RESUMO
A questão do “comum” ganhou proeminência na fase atual do capitalismo, marcada pelo retrocesso do Estado de bem-estar social, a privatização de serviços essenciais à vida, e o agravamento da concentração de renda e das desigualdades sociais no mundo, concomitantes ao aumento exponencial da produção de bens e riquezas. Abordaremos a questão do “comum” a partir de duas referências atuais sobre o assunto, os pares Negri/ Hardt e Dardot/Laval, sobretudo a partir da crítica do segundo par ao primeiro. Mas iniciaremos a discussão com o filme “O Náufrago”, dirigido por Robert Zemeckis e estrelado por Tom Hanks, com o qual introduziremos as dimensões material e imaterial do “comum”. Destacaremos do filme a importância de outrem em nossas vidas e a questão da alteridade, cuja discussão faremos por meio dos pensamentos de Winnicott e Merleau-Ponty. Encerraremos procurando reunir as perspectivas da relação com o outro e do “comum”, desenvolvidas no artigo.
Palavras-chave
Merleau-Ponty; Winnicott; Hardt e Negri; Dardot e Laval; Alteridade; Comum
ABSTRACT
The question of the “common” has earned prominence in capitalism’s current stage, marked by the regression of the welfare state, privatization of services essential to life, and aggravation of income concentration and social inequalities around the world, in tandem with the exponential increase in the production of goods and wealth. We will address the question of the “common” based on two current views on the subject, those of the pairs Negri/Hardt and Dardot/Laval, particularly regarding the latter pair’s critique of the former. But we will open the discussion with Robert Zemeckis’ film “Cast Away”, starred by Tom Hanks, with which we will introduce the material and immaterial dimensions of the “common”. We will highlight, about the film, the importance of others in our lives and the question of otherness, which we will discuss through the thoughts of Winnicott and Merleau-Ponty. Finally, we try to unite the two perspectives developed in the article, i.e., that of our relationships with others and that of the “common”.
Keywords
Merleau-Ponty; Winnicott; Hardt e Negri; Dardot e Laval; Otherness; Common
Introdução
Serge Audier (2015)AUDIER, S. « Penser le “neoliberalisme”, Le moment néoliberal, Foucault et la crise du socialisme ». Lormont, Françe : Le Bord de L’eau, 2015. considera que a questão do “comum” está na moda, referindo-se, principalmente, aos trabalhos de Negri e Hardt (2012), os quais, como afirmam Dardot e Laval (2017DARDOT, P., LAVAL, C. (2014). “Comum, Ensaio sobre a revolução no século XXI” (tradução de M. Echalar). São Paulo: Boitempo, 2017.), alçaram a noção à dimensão de seu caráter mais amplo e abstrato, que funda não apenas o estatuto de coisas comuns, mas, principalmente, a atividade social que as produz.
Talvez possamos responder a Audier (a cuja crítica voltaremos) servindonos do próprio autor, pois, afinal, como ele aponta, a onda do capitalismo neoliberal que assola o mundo desde a década de 1980 precipitou a emergência do tema do “comum”, ante 1) o processo progressivo de privatizações, inclusive de bens naturais e essenciais como, por exemplo, a água em alguns países, 2) o refluxo do Estado de bem-estar social, construído após a Segunda Guerra Mundial, justamente como meio de integração social - mesmo fazendo parte de uma concepção de mercado inclusivo ou expansivo do próprio capital -, e 3) o aumento das desigualdades e exclusões sociais num mundo de produção exuberante, diante das épocas passadas - aumento de produção exponencial que também representa a ameaça às condições de vida no planeta, cuja questão passa a ser incontornável para qualquer projeto político alternativo de sociedade futura. Todos esses itens também são reunidos na introdução de Comum, Ensaio sobre a revolução do século XXI, de Dardot e Laval (2017DARDOT, P., LAVAL, C. (2014). “Comum, Ensaio sobre a revolução no século XXI” (tradução de M. Echalar). São Paulo: Boitempo, 2017.) - e parecem mesmo quase um senso comum ilustrado sobre a crise do capitalismo atual. Como se fosse preciso chegarmos a essa situação paradoxal ou contraditória para que a questão do “comum” pudesse ser alçada à dignidade teórica que ela merece, ou como se fosse preciso o risco de perder o que o “comum” representa para torná-lo explícito e mostrar a sua importância.1
A questão do “comum” eclodiu de maneira clara com os trabalhos de Hardt e Negri (2012)HARDT, M., NEGRI, A. “Commonwealth” (tradução de Elsa Boyer). Paris: Folio Gallimard, 2012., sobretudo em Commonwealth (2012), que unificou, aprofundando e elevando a questão dos bens comuns ao significado filosófico do substantivo comum, no singular (Dardot e Laval, 2017DARDOT, P., LAVAL, C. (2014). “Comum, Ensaio sobre a revolução no século XXI” (tradução de M. Echalar). São Paulo: Boitempo, 2017., p. 18; Alvaro, D., 2020, p. 98). O conceito de bens comuns remonta aos primórdios da civilização ocidental, e participa do arcabouço de formação ao longo de sua história (Alvaro, D., 2020, p. 90). Assim como o termo comunidade (do latim communitas), do qual deriva o termo comum. O termo comunidade voltou a ganhar força e destaque nas últimas décadas, após seu recalque ocasionado pela experiência catastrófica do nazismo e fascismo durante a II Guerra Mundial, e pela experiência socialista na União Soviética. O sentido de comunidade sintetizado no e capturado pelo Estado totalitário levou à evitação ou suspeição do termo, bem como as guerras e conflitos identitários atuais. Daí a recusa expressa da possibilidade de qualquer concepção essencialista do “comum” por parte dos pares Hardt/ Negri, Dardot/Laval, e de Jean-Luc Nancy e Roberto Esposito, que abordam o tema do “comum” de um ponto de vista mais ontológico, conforme veremos ao final do artigo.2
Embora sem mencioná-la como tal, passamos pela questão do “comum” através do conceito de “mundo” ao final de “O erotismo na filosofia de MerleauPonty” (Furlan, 2016aFURLAN, R. “O erotismo na filosofia de Merleau-Ponty”. In: Caminha, I.O. e Nóbrega, T.P. (org.). Compêndio Merleau-Ponty. São Paulo: LiberArs, pp. 395-406, 2016a.), por meio da obra de Michael Foessel (2012)FOESSEL, M. « Après la fin du monde, Critique de la raison apocalyptique ». Paris: Seuil, 2012. e de filmes do cinema que exploram a possibilidade de “fim de mundo”, com as experiências 1) da Segunda Guerra Mundial, por meio do filme “Alemanha ano zero” (1948ALEMANHA, ANO ZERO. Direção: Roberto Rossellini. França-Itália-Alemanha, 1948.), dirigido por Roberto Rossellini, 2) dos guetos de Varsóvia e campos de concentração nazista, por meio do documentário “Shoah” (1985SHOAH. Direção: Claude Lanzmann. França, 1985.), dirigido por Claude Lanzmann, e 3) com a ficção apocalíptica de uma situação pós-guerra nuclear, por meio do filme “O último combate” (1983O ÚLTIMO COMBATE. Direção: Luc Besson. França, 1983.), dirigido por Luc Besson. Vamos destacar, agora, outro filme, desta vez em um cenário bem diverso, mas que parece ideal para o início da discussão da questão do “comum”. Trata-se de “O náufrago” (2000O NÁUFRAGO. Direção: Robert Zemeckis. Estados Unidos, 2000.), dirigido por Robert Zemeckis, com Tom Hanks no papel de Chuck Noland. Do ponto de vista didático, a grande vantagem desse filme é que ele foi visto pela maioria de nossos leitores, e tem um enredo muito simples, de modo que podemos apresentá-lo de forma sucinta, como exemplo concreto de um drama para uma discussão conceitual do tema do “comum”.
O personagem principal era um executivo hipermoderno, atrelado à velocidade e eficiência de nosso tempo (o personagem é um engenheiro de sistemas de uma empresa multinacional de correios), que subitamente se vê na contingência de viver sozinho numa ilha do Pacífico por mais de quatro anos, isolado de seus próximos e da civilização. A simplicidade da situação do personagem na ilha parece ideal para mostrar o que significa a vida em sociedade, em qualquer sociedade, em particular na sociedade moderna contemporânea.
O náufrago
Vamos levantar duas perspectivas ou campos de reflexão a partir do filme, para a temática do “comum”.
1- A necessidade do outro em nossas vidas, não apenas de um ponto de vista material, que destacaremos a seguir, mas afetivo e dialógico. É o que se destaca por meio da relação que o personagem, Chuck Noland, estabelece com uma bola de vôlei da marca Wilson, e que começou como um ato espontâneo, criativo e aparentemente de pouco valor, quando o personagem desenha na bola com o próprio dedo e saliva os traços esquemáticos de um rosto humano, sobre a impressão do seu próprio sangue na bola. Ao cortar a mão na tentativa de acender uma fogueira pelo atrito de dois pedaços de madeira, o personagem, num acesso de raiva, chuta objetos no chão, pega com a mão ferida a bola que se encontra ao seu lado e a lança para longe. Quando volta do mar, onde foi lavar o ferimento na mão, depara-se com a bola manchada de sangue, e a mancha lhe parece o formato de uma cabeça humana, na qual, então, o personagem acrescenta os olhos, o nariz e a boca, limpando a mancha de sangue impressa na bola com o dedo indicador e a saliva da boca. Ora, após todo o tempo que passou na ilha com esse outro imaginário na bola, chamado Wilson, sua ligação com ele ficou tão forte que o personagem sofre a angústia de sua separação em alto mar, após uma tempestade praticamente destruir sua jangada e, do que lhe restou desta, a bola se desprender. Como se a bola com traços esquemáticos de um rosto humano tivesse adquirido a condição de um objeto transicional (Winnicott, 1975WINNICOTT, D. “O Brincar e a realidade” (tradução de J. O. A. Abreu e V. Nobre). Rio de Janeiro: Imago, 1975., p. 30), algo entre a realidade interna do sujeito e a realidade externa compartilhada com os outros.
Lembramos que Winnicott (1975)WINNICOTT, D. “O Brincar e a realidade” (tradução de J. O. A. Abreu e V. Nobre). Rio de Janeiro: Imago, 1975. criou o conceito de objeto transicional para marcar a forte ligação afetiva do bebê com objetos no mundo externo (bichinhos de pelúcia, pedaços de pano ou qualquer coisa à qual a criança possa se apegar) que substituem a mãe interiorizada pelo bebê como extensão de sua realidade “interna”, no seu processo de transição para a percepção do sentido da realidade externa. Lembramos, também, que Winnicott (1975WINNICOTT, D. “O Brincar e a realidade” (tradução de J. O. A. Abreu e V. Nobre). Rio de Janeiro: Imago, 1975., p. 30) estende o fenômeno da transicionalidade à experimentação intensa na vida adulta em fenômenos culturais como a arte, a religião e a criação científica, que do ponto de vista da realidade apenas objetiva são considerados uma ilusão. E o importante, aqui, é destacar a ideia de intensificação da experiência, que é vivida de forma mais subjetiva sem a distinção entre realidade interna e externa, que implicaria o recuo para a consciência da própria experiência ou do simbólico nela instalado, e a consequente diminuição do engajamento da própria atividade criativa ou imaginativa. Ou seja, segundo esse modelo, o fenômeno da transicionalidade se instala como uma experiência intermediária entre a realidade interna e externa do indivíduo, tal como a característica afetiva dos objetos transicionais.
Claro que Winnicott introduz, dessa forma, mais uma graduação de diferenciação entre as realidades interna e externa do indivíduo, do que a distinção clara entre os seus sentidos, afinal, não é difícil concluir que toda a cultura se encontra instalada entre ambas. Por isso Winnicott (1975WINNICOTT, D. “O Brincar e a realidade” (tradução de J. O. A. Abreu e V. Nobre). Rio de Janeiro: Imago, 1975., p. 19) pode dizer que com a cultura “os fenômenos transicionais se tornaram difusos, se espalharam por todo o território intermediário entre a ‘realidade psíquica interna’ e ‘o mundo externo, tal como percebido por duas pessoas em comum’, isto é, por todo o campo cultural”. Como se a cultura ou a sociedade fossem o substituto do estado natural da vida do bebê com a mãe na sua passagem para a experiência da realidade externa.
Mas nosso objetivo, aqui, não é discutir, propriamente, a teoria do objeto transicional de Winnicott, e sim fazer a sua relação com o estatuto que a bola adquire para o náufrago no filme. Como se a bola, à luz da teoria de Winnicott, ocupasse para o náufrago o papel de objeto transicional na sua separação da sociedade diante do seu enfrentamento solitário da realidade na ilha. Ou seja, sem ao menos a companhia de algo que “representasse externamente” a sociedade que o náufrago trazia como realidade interna, talvez ele não tivesse suportado o longo tempo de sua separação. Note-se que, ao contrário da bola, o retratinho da noiva, que ele trazia no relógio de bolso, servia tanto para marcar a sua ausência quanto a presença do amor entre eles e a esperança de voltar para ela; eram momentos de experiência da distância sofrida, e ao mesmo tempo de força para perseverar e reencontrar a amada, enquanto a bola, sobretudo como experiência dialógica, comum também em experiências religiosas, “trazia” a presença do outro e da sociedade (perdida) por meio das queixas, perguntas e afirmações que o náufrago lhe endereçava.
Pode-se aventar que, se não fosse sua vida prévia junto a pessoas na sociedade, talvez o personagem não pudesse viver o drama dessa separação que mostra a necessidade da presença do outro em nossas vidas. Mas o fato é que assim, isto é, na ausência do outro na formação da vida humana, parece que tocamos nas condições limites da própria humanidade. Como afirma de forma categórica Roberto Esposito (2000)ESPOSITO, R.. « Communitas, Origine et destin de la communauté » (tradução de Nadine Le Lirzin). Paris : PUF, 2000., citando Heidegger, “somos um diálogo” (p. 118), ou ainda, de maneira mais incisiva, reportando-se à interpretação de Bataille sobre Heidegger, “a comunicação é um fato que de forma alguma se sobrepõe à realidade humana, mas a constitui” (p. 147). Voltaremos ao ponto.
Não basta, no entanto, com o náufrago, afirmar a necessidade ou importância do outro em nossas vidas, pois, agora lembrando Merleau-Ponty (2001MERLEAU-PONTY, M. « Psychologie et pédagogie de l’enfant - Cours de Sorbonne, 1949-1952 ». Lagrasse: Verdier, 2001., pp. 339-340), vale destacar que a relação com a alteridade é um desafio para a vida toda, assim como o desafio do bebê de perceber e assumir a realidade externa nos acompanha na vida adulta, conforme Winnicott. Tanto num caso como no outro, o desafio se encontra na questão da identificação, que a uma só vez demonstra a importância da presença dos outros na formação de nossa subjetividade, e o risco que ela representa, na medida em que pode substituir a experiência efetiva da alteridade pela relação consigo mesmo (Merleau-Ponty, 2001MERLEAU-PONTY, M. « Psychologie et pédagogie de l’enfant - Cours de Sorbonne, 1949-1952 ». Lagrasse: Verdier, 2001., pp. 339-340).
Merleau-Ponty aborda essa questão por meio dos termos “introjeção” e “identificação”, da psicanálise. A saber, na medida em que me identifico com outrem eu o introjeto ou o incorporo na minha formação, que assim passa a fazer parte daquilo que sou: “O homem é espelho para o homem” (MerleauPonty, 1984MERLEAU-PONTY, M. “O olho e o espírito”. In “Merleau-Ponty” (tradução de M. Chaui), 1984, pp. 85-111., p. 93). A seguir, quando percebo outro alguém, transfiro para a percepção do sentido desse outro o sentido do outro que sou e trago em mim. É um processo no qual o desafio é manter a abertura para a diferença constitutiva de ambos, isto é, de si mesmo e do outro, visto que não se percebe outrem (nem nada no mundo) pela segunda vez sem a transferência da percepção anterior, ou de sua história que trazemos em nós e nos constitui naquilo que somos, nem somos apenas aquele ou aquilo com que nos identificamos fora de nós em nossa história pessoal. Em particular, tratando-se do desejo, que marca massivamente o sentido da presença de Noland na ilha, visto que ele é, praticamente, a personificação da falta do outro, não se percebe outrem sem a transferência do ideal do outro que se traz consigo e se almeja, o que traz o risco de fazer do outro um ideal ou uma extensão de si próprio, quando não se reconhece a sua alteridade. A alteridade do outro, nessa condição precária, reduz-se ou mesmo se perde na possibilidade de encarnar o sentido que transfiro para a sua percepção, servindo apenas de ocasião e condição mínima para que a transferência narcísica ocorra, ou, ao inverso, é minha alteridade que se perde ou se reduz, quando é apenas a ocasião e condição mínima para a introjeção do outro que percebo. Nesse caso, passo a ser o sentido daquele papel ou o sentido que o outro transfere para mim.
Ora, para o nosso propósito, mesmo considerando que Noland cria “Wilson” a partir de práticas e representações sociais prévias - inclusive a todo instante por meio da fala, herança da língua que ele aprendeu, ou que Wilson é um nome masculino e o personagem vivia o amor pela noiva, cuja foto ele trazia no interior de seu relógio de bolso -, o fato é que ele o cria como transferência de sua formação na bola de vôlei, isto é, da sociedade que ele viveu e traz em si, o que nos lembra, num paralelo importante, a projeção do caráter onírico e impreciso do instinto animal na “criação” do seu objeto, conforme MerleauPonty.3 Ou, retomando a questão do desafio da percepção da alteridade do outro, eu percebo no outro o desejo que sou a partir de elementos seus que podem ser muito pobres ou diferentes do sentido que transfiro a ele. De modo que é a mim mesmo que percebo, desejo e amo no outro. Mas, justamente, é esse movimento de criação do outro a partir de necessidades e identificações internas o que impossibilita ou compromete a relação com a alteridade que não somos nós.
É nesse sentido que Bimbenet (2011)BIMBENET, E. « L’animal que je ne suis plus ». Paris: Folio Gallimard, 2011. afirma que a vida e o mundo animal são mais subjetivos do que a vida e o mundo humano, invertendo a representação científica, que é antropomórfica, conforme diz Merleau-Ponty (2002MERLEAU-PONTY, M. (1942). « La Structure du Comportement », 2ª. Ed. Paris: PUF, 2002.) em A Estrutura do Comportamento, quando ela afirma que o mundo animal é formado de relações objetivas. Ao contrário, é por possuirmos a razão, isto é, a capacidade simbólica de tratar o percebido como passível de infinitas abordagens e significações, que o percebido se constitui como uma coisa independente de nós, ou seja, como outrem propriamente dito. O animal viveria, pois, num mundo mais sonhado segundo suas necessidades vitais. É para o que aponta o exemplo das bolas de celuloide, adotadas como companheiros pelos periquitos, na nota 3. O que, em parte, vale também para nós, que, se transcendemos as coisas em nossa percepção do mundo e do outro (e vice-versa), é mantendo essa relação em um nível de abertura à realidade da diferença ou alteridade das coisas e do outro, da qual participam as identificações por meio das quais introjetamos nossas diferenças e as possuímos (possuídos por elas), que ao mesmo tempo garante nosso mundo comum, chamado cultura, e ameaça a condição de alteridade de cada um de nós ou do mundo. Ou seja, é o realismo que se encontra em questão, e com ele a relação efetiva com a alteridade do mundo e de cada um de nós.
Ora, para os nossos propósitos, a questão é saber em que medida nossos encontros, cada vez mais raros ou simplesmente funcionais na sociedade moderna contemporânea, não são apenas ou não se tornam cada vez mais encontros com “bolas Wilson”, algumas mais próximas, tal como a bola no filme, outras mais distantes, com diferentes papéis em uma sociedade complexa como a nossa. Ou seja, em que medida se trata, cada vez mais em nossas relações, apenas das necessidades e desejos de nós mesmos na relação com os outros, de circularidades fechadas que se relacionam em torno de si mesmas, formando uma sociedade “Wilson” reflexo de um narcisismo secundário generalizado.4
A questão não é atribuir o estado de narcisismo secundário ao personagem do filme, cuja transferência de si na bola mostra, sobretudo, a necessidade de outrem em nossas vidas, ou como o outro é constitutivo de nossa humanidade - mais precisamente, a transferência foi a tentativa extrema de recuperá-lo. De fato, após vários anos isolado na ilha, a conversação imaginária do náufrago com “Wilson” aparece como condição para a manutenção de sua integridade psíquica, além da lembrança da amada, presente em seu retrato no relógio de bolso, cuja ausência era vivida como índice da realidade exterior. O importante é apontar que a necessidade constitutiva do outro em nossas vidas não é suficiente para a percepção da sua alteridade, dada a mistura ou confusão da percepção que temos do outro com as identificações que nos constituem - situação que nos parece a mais comum -, ou a possibilidade da redução do outro ao estado mínimo de sua diferença conosco, como mostram os exemplos das bolas de celuloide e a bola “Wilson”, no filme, cuja pobreza de realidade externa suporta a transferência do instinto animal e das identificações do personagem na bola. Vale destacar que, ao contrário do náufrago, “Wilson” não falava e que, para escutar o outro em nossas relações, não basta ouvi-lo ou apenas não ser surdo. Na verdade, era o náufrago que lhe emprestava a “fala” e seus pensamentos, como nas brincadeiras de criança com seus brinquedos animados, com os quais a criança conversa consigo mesma, reduzindo e controlando o outro conforme suas fantasias.
Em resumo, nossas relações com os outros estabelecem um espaço comum de cultura em que nossas vidas ocorrem, que tradicionalmente chamamos de mundo. Um mundo povoado de gente com seus trabalhos, feições, vestimentas, com uma linguagem omnipresente em suas atividades e relações de trocas materiais, simbólicas e afetivas, do qual também fazem parte entes que tradicionalmente reunimos sob o nome de natureza. Um conjunto de produções humanas materiais e imateriais (simbólicas) para a formação de um mundo comum no enfrentamento da realidade. Voltaremos ao ponto para o fechamento dessa questão na relação com a questão do “comum”.
2- O segundo campo ou perspectiva do filme “O náufrago” que gostaríamos de destacar representa a ligação mais fácil e direta de fazer com a questão do “comum”, afinal, o que pode um homem sozinho numa ilha? Na melhor das hipóteses, sobreviver. Vale lembrar, nesse sentido, que, antes do acidente que o deixou isolado na ilha, o personagem acusava, em meio à correria de suas atividades de trabalho, incômodo em um dos dentes, que, no entanto, podia aguardar a visita ao dentista, tida como garantida ou à disposição como em todo grande centro urbano moderno, sobretudo para quem tem meios financeiros para pagar essa visita, como era o seu caso. Mas isso tudo mudou quando ele se viu isolado na ilha, e o que numa cidade moderna era simples de resolver se transformou em um fato desesperador que o forçou à tentativa de solucionar o problema com o que tinha às mãos, no caso, ainda restos da civilização trazidos do naufrágio até a ilha pelo movimento da maré. Entre outras coisas, tal como a bola de vôlei citada, a lâmina retirada de um patim de esqui, que primeiro serviu como espelho, com o qual Noland visualizou o dente na boca, e depois para extraí-lo, com uma pancada forte por meio de uma pedra. Um “simples” problema de saúde que se não tivesse sido solucionado poderia tê-lo levado à morte, como, de fato, uma simples infecção de dente ou na unha do pé devem ter levado à morte muitas pessoas na história da humanidade, ou ainda podem, em rincões afastados da modernidade.
Mas o que parece mais relevante, para os nossos propósitos, é o que acontece quando, finalmente, ele consegue voltar à civilização, resgatado por um navio em alto mar. Após um jantar de comemoração entre os colegas da empresa, e diante de sobras de uma mesa farta de alimentos, primeiro ele se depara com a possibilidade de um simples acender e apagar o fogo com um isqueiro de cozinha, comparada à dificuldade que enfrentou na ilha para acender um fogo; e depois com a possibilidade de ligar e desligar a luz ao léu por meio de um interruptor elétrico, comparada à escuridão da noite que se impunha a ele de forma absoluta com o movimento natural da Terra.
Não é nosso objetivo, aqui, abordar a mudança de vida social propiciada pela invenção e extensão das redes de energia elétrica nas cidades modernas, ou o simples fato da possibilidade moderna de uma vida intensa de atividades noturnas, antes obrigada a se recolher durante a noite. Basta destacarmos que esse simples ato de ligar ou desligar a luz mediante um simples toque de dedo no interruptor pressupõe uma rede de relações muito além do ambiente de nossas casas, que se revela quando a energia é interrompida durante nossas atividades noturnas por algum acidente na linha de transmissão elétrica que chega até nós. Então esperamos, sabe-se quem ou onde, repará-la, muitas vezes debaixo de chuva. Ora, a presença da luz elétrica em nossas vidas não representa apenas uma extensa rede espacial de trabalhos atuais, mas também temporal e com desenvolvimento histórico, pois a luz elétrica não foi inventada na nossa geração, e por isso podemos dizer, sem sombra de dúvida, que estamos empoleirados nas gerações passadas, inclusive na humanidade pré-histórica que, não houvesse sido capaz de sobreviver, não estaríamos aqui e agora contando a história.
Negri/Hardt, Dardot/Laval
Posto isso, retornemos a questões mais conceituais do tema do “comum”, que apresentaremos a partir de duas das principais referências atuais sobre o assunto, os pares Negri/Hardt e Dardot/Laval. Mais precisamente, focaremos a crítica de Dardot/Laval a Negri/Hardt, considerando que Dardot/Laval tratam conceitualmente a questão do “comum”, fazendo uma avaliação crítica das principais teorias do comum na atualidade, das quais eles destacam a teoria de Negri/Hardt. Isso porque, considerando o que acabamos de expor, surge a questão de saber o que está por trás da construção desse comum que os membros de uma sociedade podem usufruir, ainda que de formas e proporções diferentes, de acordo com seus respectivos lugares sociais (há também excluídos e marginalizados, assim como há mães boas e ruins, ou simplesmente ausentes, lembrando a comparação que fizemos com Winnicott entre a mãe e a cultura).
E aqui, talvez o ponto privilegiado para entrar na discussão da questão do “comum” entre os pares Negri/Hardt e Dardot/Laval, engatando com o que acabamos de expor sobre “O náufrago”, seja iniciar com aquele que aparece como sua principal diferença, ao menos a propalada por eles. Adiantamos que nossa perspectiva não será a de enfatizar suas diferenças, mas, em certa medida, tentaremos aproximá-las por meio de um diálogo entre suas ideias, procurando diminuir a dimensão da divergência que as separa, ou colocá-las em balanço, no sentido do movimento de vai e vem, ao lado de outros autores.
A diferença parece girar em torno do lugar que a teoria de Proudhon supostamente ocupa em ambas as concepções, afinal, é ela que aparece como o “bode expiatório” na crítica que ambos os pares se endereçam, reciprocamente (na verdade, por meio de Negri, no primeiro par, em resposta às críticas a eles endereçadas).
Iniciaremos com a crítica de Dardot/Laval (2017DARDOT, P., LAVAL, C. (2014). “Comum, Ensaio sobre a revolução no século XXI” (tradução de M. Echalar). São Paulo: Boitempo, 2017.) ao proudhonismo de Negri e Hardt, exposta em Comum, Ensaio sobre a revolução no século XXI. Mas fixemos, antes, a ideia que resume, no livro, a compreensão proudhoniana da produção social, que dá suporte à ideia da propriedade privada como “roubo”. A saber, Proudhon advoga o princípio de espontaneidade da força produtiva da coletividade, que será roubada ou apropriada pela propriedade privada, por meio da formação da indústria e produção capitalistas. No caso de Proudhon, portanto, a força coletiva é dada como um princípio sociológico ou mesmo ontológico (de formação do ser social) que antecede qualquer forma que ela possa adquirir historicamente. É essa espontaneidade da força coletiva, segundo Dardot/Laval, que será criticada por Marx e marcará a diferença entre ambos no movimento socialista da época, e que por fim resultará no ostracismo de Proudhon na história do pensamento socialista. Mais precisamente, Marx entende como metafísica a tese de uma força produtiva não configurada socialmente, e passa a prerrogativa para a sua organização concreta, que no capitalismo representa a composição orgânica do capital, isto é, a organização do trabalho com os meios de produção - capital variável e constante, reciprocamente.
E aqui fica claro por que iniciamos a questão do “comum” com a perspectiva da diferença entre os autores, centrada na figura de Proudhon. Porque, à luz do “náufrago”, parece bastante razoável supor que, se ao invés de apenas um, fossem dois, três ou quatro os sobreviventes do acidente da queda do avião (no caso, sua tripulação), nasceria espontaneamente entre eles uma cooperação produtiva de sobrevivência, que poderia se materializar de diferentes formas. Nesse caso, ainda, parece bastante razoável supor que, dada a fragilidade do indivíduo humano, considerado isoladamente, nasceria espontaneamente entre eles um princípio de união e cooperação para a sobrevivência.
Ora, por que Dardot/Laval consideram que a concepção de “comum” em Negri/Hardt implica um proudhonismo5 que é passível de crítica? Porque Negri/Hardt (2012) defendem, em Commonwealth, a externalidade da produção biopolítica de valor que o capital não controla, mas “rouba” ou explora na forma de renda. Ou seja, no capitalismo atual, caracterizado por Negri/Hardt sobretudo pela importância da produção de bens imateriais (afetos, linguagens e conhecimentos, que se realizam, em grande parte fora dos domínios da organização da empresa capitalista), dá-se a separação na composição orgânica do capital, entre capital constante (meios de produção) e variável (trabalho) na formação do valor da mercadoria, o que significa que a força do trabalho se torna cada vez mais independente do capital, que se torna cada vez mais dependente dessa força externa para a formação do valor da mercadoria. Ou ainda, isso que Negri/Hardt chamam de produção biopolítica6 passa a ser cada vez mais essencial à produção de valor no capitalismo atual, que não se expressa mais pelo caráter eminentemente material da mercadoria. Daí a impossibilidade no capitalismo atual de realizar isso que Marx chamou de subsunção real do trabalho pelo capital, e a necessidade de sua subsunção formal na forma de renda, o que tem levado outros autores a retomarem a concepção de Rosa Luxemburgo, de que o roubo não é apenas uma característica da acumulação primitiva do capital, mas uma característica que acompanha a sua história - roubo, então, como expressão do que Marx chama de subsunção formal do trabalho ao capital, isto é, de formas não capitalistas de produção que são incorporadas ou apropriadas pelo sistema de produção capitalista.
Em síntese, “externalidade”, “composição orgânica do capital” (capital constante mais variável), “subsunção real ou formal do trabalho”, são os termos marxianos convocados para o debate. No caso, se a produção biopolítica, também destacada com a importância da produção de subjetividades para a formação do valor no capitalismo, é apontada em Negri/Hardt como cada vez mais independente do controle da produção pelo capital, o inverso se dá na perspectiva de Dardot/Laval, que enfatizam, justamente, o avanço da lógica do capital sobre a vida, fazendo uso, assim, de um Foucault mais ortodoxo, e por isso destacando a subsunção real do trabalho pelo capital, onde Negri/ Hardt veem sua subsunção formal. O caso da produção de conhecimento nas universidades é paradigmático nessa discussão, conforme se o entenda como exemplo de uma ou outra dessas duas perspectivas em pauta.
Mas, se é assim, conforme Dardot/Laval, e consideramos que, em certo sentido, de modo significativo, é mesmo assim, o que resta fora da lógica do capital, capaz de se contrapor ao seu domínio? Em um rápido balanço, essa é uma objeção que se pode levantar, defendendo certa externalidade ao capitalismo neoliberal, quer por meio do conceito de biopolítica, entendido como capacidade de resistência e produções alternativas de vida, como procuram destacar Negri/Hardt, quer por meio da defesa do papel do Estado como expressão possível da luta pelo comum (Audier, 2015AUDIER, S. « Penser le “neoliberalisme”, Le moment néoliberal, Foucault et la crise du socialisme ». Lormont, Françe : Le Bord de L’eau, 2015., pp. 554ss). Serge Audier (2015)AUDIER, S. « Penser le “neoliberalisme”, Le moment néoliberal, Foucault et la crise du socialisme ». Lormont, Françe : Le Bord de L’eau, 2015. destaca, nesse sentido, a contradição aparente do princípio do comum defendido por Dardot/Laval (2017DARDOT, P., LAVAL, C. (2014). “Comum, Ensaio sobre a revolução no século XXI” (tradução de M. Echalar). São Paulo: Boitempo, 2017.) em Comum, Ensaio sobre a revolução do século XXI (2017), com sua obra anterior, A Nova razão do mundo (Dardot e Laval, 2016DARDOT, P., LAVAL, C. (2009). “A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal” (tradução de M. Echalar). São Paulo: Boitempo, 2016.), que segue a linha da concepção ortodoxa de Foucault sobre o poder.7 Talvez seja o preço que Dardot/Laval (2016DARDOT, P., LAVAL, C. (2009). “A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal” (tradução de M. Echalar). São Paulo: Boitempo, 2016.) paguem por se manterem muito colados à perspectiva metodológica dos trabalhos de Foucault sobre o poder, que focam apenas o que o (micro) poder nos faz ver e dizer, como somos disciplinados por relações de poder que atravessam e compõem nossos corpos, na forma de ser ou viver o espaço e o tempo, e nos incitam a determinados comportamentos e valores. Em síntese, como somos subjetivados, sobretudo no sentido de sermos assujeitados.8
Em contrapartida, Negri/Hardt parecem muito otimistas sobre a externalidade da biopolítica no capitalismo atual. É a crítica que lhes faz Stéphane Haber (2013HABER, S. « Penser le néocapitalisme, Vie, capital et aliénation ». Paris : Les Prairies Ordinaires, 2013., p. 170), à luz de uma teoria da alienação em Marx, cujo conceito orienta sua crítica ao neocapitalismo, em contraposição ao veio espinosista presente em Commonwealth. No caso, Haber enfatiza que o movimento de expansão das forças produtivas no capitalismo é apenas um dos aspectos da teoria de Marx, que não pode substituir ou deixar de lado sua denúncia ao caráter da expansão irracional e deletéria do capital sobre a vida geral das pessoas. De fato, Negri/Hardt convocam para a discussão do neoliberalismo, além de Marx, Espinosa (assimilado a partir de Deleuze), o próprio Deleuze em sua parceria com Guattari, e a fenomenologia, que acaba entrando nessa discussão sob o viés da experiência do mundo da vida. Negri/Hardt, inclusive, abrem Commonwealth anunciando o projeto de uma leitura espinosista de Ser e Tempo (Heidegger), na qual destacam o enfoque de Merleau-Ponty sobre a experiência da alteridade e do corpo próprio, que, segundo eles, é assumido na sequência pelos trabalhos de Foucault sobre o corpo e o poder (Hardt e Negri, 2012HARDT, M., NEGRI, A. “Commonwealth” (tradução de Elsa Boyer). Paris: Folio Gallimard, 2012., pp. 60-61), embora Foucault o faça em uma perspectiva parcial, como dissemos, ou, conforme Deleuze (1988DELEUZE, G. “Foucault” (tradução de C. S. Martins). São Paulo: Brasiliense, 1988., p. 101), da perspectiva do poder sobre nós, razão pela qual Hardt/Negri precisam ressignificar a concepção de biopolítica de Foucault.
Embora Haber (2013HABER, S. « Penser le néocapitalisme, Vie, capital et aliénation ». Paris : Les Prairies Ordinaires, 2013., p. 32), como mostramos em outro trabalho (Furlan, 2017FURLAN, R. “O significado da crise da sociedade contemporânea”. Revista Aoristo, International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics, n.1, v. 1, pp. 159-187. Toledo, Paraná: Unioeste, 2017., p. 184), também enfatize a possibilidade de uma expansão dos poderes da vida no capitalismo informacional, ele acusa no diagnóstico de Negri/Hardt (2012) a ausência de importantes trabalhos empíricos na área da psicossociologia do trabalho, que contrariam a imagem que eles fazem da biopolítica na sociedade atual. Na verdade, há uma vasta literatura que trata do caráter deletério da expansão do capitalismo na ocupação da vida das pessoas, antes externo à produção de valor da mercadoria; ocupação compreendida sob o tema da mercantilização da vida, sobretudo por meio das novas tecnologias de informação e comunicação. É para o que chamam a atenção Crary (2014)CRARY, J. “24/7: capitalismo tardio e os fins do sono” (tradução de J. Toledo Jr.). São Paulo: Cosac Naify, 2014. e Vioulac (2013VIOULAC, J. « La crise de la phénoménologie intuition, spéculation, spectralisation ». Revue de métaphysique et de morale, n. 78. Paris : PUF, 2013, pp. 245-269., 2015VIOULAC, J. « Marx entre réalisation et dépassement de la philosophie. Principes d’une lecture philosophique du Capital ». Les Études philosophiques, n° 154. Paris: PUF, 2015, pp. 493-512.), desdobrando a crítica de Debord (1997DEBORD, G. (1967). “A Sociedade do espetáculo, Comentários sobre a sociedade do espetáculo” (tradução de E. S. Abreu). Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.) à sociedade de espetáculo como a forma dominante da mercadoria na fase atual do capitalismo. As críticas vão desde a passividade generalizada de espectadores atrelados à presença constante das telas em suas vidas (Castoriadis, 1996CASTORIADIS, C. « La culture dans une société démocratique ». In Castoriadis, 1996, pp. 234-248., p. 246; Crary, 2014CRARY, J. “24/7: capitalismo tardio e os fins do sono” (tradução de J. Toledo Jr.). São Paulo: Cosac Naify, 2014., p. 97; Vioulac, 2013VIOULAC, J. « La crise de la phénoménologie intuition, spéculation, spectralisation ». Revue de métaphysique et de morale, n. 78. Paris : PUF, 2013, pp. 245-269., p. 257; Gaulejac e Hanique, 2015GAULEJAC. V. de; HANIQUE, F. « Le capitalisme paradoxant. Un système qui rend fou ». Paris : Seuil, 2015., p. 51), até ao comportamento compulsivo digno do diagnóstico de mania social, como destacam Gaulejac e Hanique (2015GAULEJAC. V. de; HANIQUE, F. « Le capitalisme paradoxant. Un système qui rend fou ». Paris : Seuil, 2015., pp. 203-204), estado que naturalmente se conjuga com o diagnóstico de depressão, considerada a psicopatologia da nossa época (Ehrenberg, 2000EHRENBERG, A. « La fatigue d’être soi, Dépression et société ». Paris: Odile Jacob, 2000.), na qual, justamente, os indivíduos se veem cobrados com insistência e constância por desempenhos qualitativos e quantitativos de produção de bens que variam sob a lógica da reprodução do capital.
Ora, a despeito do reconhecimento da apropriação parcial e, consequentemente, degradação da biopolítica do comum pelo capital, Negri (1993)NEGRI, A. “Infinitude da comunicação, finitude do desejo”. In A. Parente (org.), 1993. pp. 173-176. é categórico na crítica ao que considera uma posição de esquerda retrógrada e moralista sobre o uso massivo das novas tecnologias de informação e comunicação em nossas vidas. “Mostram-nos uma vida cotidiana dominada pelo monstro da mídia como um cenário povoado de fantasmas, de zumbis prisioneiros de um destino de passividade, frustrações e impotências” (1993, p. 173). Ao contrário disso, Negri (1993)NEGRI, A. “Infinitude da comunicação, finitude do desejo”. In A. Parente (org.), 1993. pp. 173-176. afirma a ebulição de potências de vida por meio delas.
A comunicação se torna a forma pela qual se organiza o mundo da vida com toda a sua riqueza [...]. O trabalho humano de produção de uma nova subjetividade ganha toda a sua consistência no horizonte virtual aberto cada vez mais pelas tecnologias da comunicação [...] como máquina que domina toda a sociedade, mas dentro da qual a cooperação das consciências e das práticas individuais atinge seu mais alto nível de produtividade - produtividade do indivíduo, cooperação dos indivíduos, produção de um novo horizonte ao mesmo tempo de riquezas e de liberação. No próprio seio comunicacional, as derradeiras resistências de um mundo capitalístico reificado, preso em suas determinações fetichistas do horizonte da mercadoria, se enfraquecem [...]; a atividade comunicacional da força de trabalho, das consciências comunicantes, dos indivíduos cooperantes se torna portanto capaz de levar a cabo, radicalmente, a transformação social, sem outro limite senão a finitude de nosso desejo (p. 175).
O opúsculo Declaração, Isto não é um manifesto, escrito em parceria com Hardt, reafirma o mesmo juízo (Hardt; Negri, 2014HARDT, M.; NEGRI, A. “Declaração, Isto não é um manifesto” (tradução de C. Szlak). São Paulo: n 1 edições, 2014., p. 32).
De modo que nos encontramos com a questão da ênfase dos autores sobre aspectos negativos ou positivos das novas tecnologias de informação e comunicação. O que não significa que a ênfase seja uma questão de menor importância, pois implica questões de estratégia política e a capacidade da crítica de fazer seu papel de reflexão social. Afinal, defender aspectos que podem alimentar o processo de reprodução do que se critica é enfraquecer, dentro de seus limites de atuação, o próprio papel da crítica. Nesse sentido lembramos a curiosa e inquietante associação de termos da esquizoanálise de Deleuze e Guattari (Boltanski; Chiapello, 2011BOLTANSKI, L. e CHIAPELLO, E. « Le nouvel esprit du capitalisme ». Paris: Gallimard, 2011., p. 237) ao movimento de crítica neoliberal de expansão do capital ao que se considerava então o “capitalismo social planificado e controlado pelo Estado - tratado como obsoleto, tacanho e coercitivo” (Boltanski; Chiapello, 2011BOLTANSKI, L. e CHIAPELLO, E. « Le nouvel esprit du capitalisme ». Paris: Gallimard, 2011., p. 313).
No mesmo sentido se encaminha, como adiantamos, o alerta de Audier (2015)AUDIER, S. « Penser le “neoliberalisme”, Le moment néoliberal, Foucault et la crise du socialisme ». Lormont, Françe : Le Bord de L’eau, 2015. à subestimação do papel positivo do Estado na filosofia de Foucault, a favor do que Audier considera certo deslumbre de Foucault pela emergência do pensamento neoliberal nos anos 1970.
Se, no contexto da nossa discussão, “otimismo” significa, em certa medida, falta de contato com a realidade, conforme a crítica de Haber (2013)HABER, S. « Penser le néocapitalisme, Vie, capital et aliénation ». Paris : Les Prairies Ordinaires, 2013. a Hardt e Negri (2012)HARDT, M., NEGRI, A. “Commonwealth” (tradução de Elsa Boyer). Paris: Folio Gallimard, 2012. a partir de pesquisas empíricas no campo da psicossociologia do trabalho, também vai nessa direção a crítica endereçada aos autores por Serge Audier (2015)AUDIER, S. « Penser le “neoliberalisme”, Le moment néoliberal, Foucault et la crise du socialisme ». Lormont, Françe : Le Bord de L’eau, 2015., a respeito das considerações políticas de Hardt e Negri (2012)HARDT, M., NEGRI, A. “Commonwealth” (tradução de Elsa Boyer). Paris: Folio Gallimard, 2012. em Commonwealth. Audier (2015AUDIER, S. « Penser le “neoliberalisme”, Le moment néoliberal, Foucault et la crise du socialisme ». Lormont, Françe : Le Bord de L’eau, 2015., p. 557) considera que Negri e Hardt reeditam o antigo ideal comunista de autogestão ou organização social espontânea, fundado numa imagem hagiográfica da Comuna de Paris, que ele considera uma utopia sem base na realidade, sobretudo porque abre mão da importância do papel do Estado, que Audier considera indispensável para enfrentar os desafios da sociedade contemporânea. Nesse sentido ele advoga a necessidade de uma renovação profunda da república ou um republicanismo revigorado, no qual, inclusive, se reveja o estatuto da propriedade privada. Audier lembra, também, que a diminuição do papel do Estado é uma pauta política do neoliberalismo (em geral populista), de modo que o abandono da disputa política pela transformação do Estado seria revolucionário só na aparência. Lembramos, no entanto, que, na crítica virulenta que Negri e Hardt (2012, p. 32) fazem à República da propriedade, em Commonwealth, os autores reconhecem que os termos não são necessariamente implicados (república e defesa dos interesses da propriedade privada), mas que esse é o modelo que se efetivou a partir das Revoluções burguesas na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos.
Mas gostaríamos de aproveitar a noção de “externalidade” de Negri e Hardt (2012) para destacar, justamente, a produção social como um todo que não pode e jamais pôde ser quantificada no espaço restrito da empresa capitalista ou no circuito da sua economia, enquanto produção, circulação e consumo de mercadorias. Os autores ressaltam, a nosso ver, com toda razão, a enorme produção da vida social que sustenta qualquer produção econômica, seja no capitalismo ou em qualquer outra forma de sociedade. Essa discussão é importante porque, no caso do capitalismo, a economia é vista de forma autônoma em relação às outras esferas da vida social, um fato social que, como destacou Karl Polanyi (1983POLANYI, K. (1944). « La grande transformation ». Paris: Tel Gallimard, 1983.), é inédito na história da humanidade, visto que a economia, enquanto produção, circulação e consumo de bens, sempre se subordinou ou esteve atrelada a valores sociais específicos.
Em síntese, na concepção ampliada de formação do valor no capitalismo, na qual se insere a atividade econômica, estrito senso, também fazem parte os cuidados com a prole, a educação em todas as etapas da vida, a linguagem, os afetos, os trabalhos domésticos etc. Ou seja, simplesmente não há ou não é possível produção de valor capitalista sem todas essas atividades que constituem a vida de qualquer sociedade. Hardt e Negri (2012)HARDT, M., NEGRI, A. “Commonwealth” (tradução de Elsa Boyer). Paris: Folio Gallimard, 2012. destacam, em particular, todo o conhecimento desenvolvido e acumulado nos séculos XIX e XX, como as condições mais próximas da produção de valor econômico atual.
Em contrapartida, o otimismo de Negri/Hardt sobre a biopolítica, que nos parece em certo sentido injustificável ou exagerado de um ponto de vista psicossocial, também é acompanhado, como adiantamos, por uma sequência de críticas que os autores fazem à corrupção do “comum”, focadas na empresa capitalista, na nação e, em particular, na família.9 De modo que esse otimismo, se não se justifica do ponto de vista da análise empírica do capitalismo atual, pode valer como um princípio aberto de instituição do “comum”. O importante é notar que tais críticas visam à ampliação da realização do “comum”. Ora, essa mudança de perspectiva, da consideração dos fatos para a consideração dos princípios, nos dá oportunidade de passar à crítica que Negri (2015)NEGRI, A. (2015). La métaphysique du commun. Extraído de https://blogs.mediapart.fr/segesta3756/blog/141015/la-metaphysique-du-commun-par-toni-negri, traduzido do italiano, publicado em 08/05/2014, em https://sinistrainrete.info/marxismo/3669-toninegri-la-metafisica-del-comune.html
https://blogs.mediapart.fr/segesta3756/b...
endereça a Dardot/Laval, que justamente enfatizam o princípio de instituição do “comum”. Ou seja, Negri devolve a eles a crítica de um proudhonismo sem base na realidade, mais precisamente, como de um princípio metafísico com a desmaterialização do “comum”.
O que é no mínimo curioso, porque Dardot/Laval assumem a continuidade dos trabalhos de Negri/Hardt, mas contrapondo à externalidade da produção do biopoder justamente a produção do “comum” pelo capital: “No modo de produção capitalista - e referimo-nos aqui em particular às análises de O capital sobre a cooperação na grande indústria -, o capital é que organiza o comum e o põe inteiramente a seu serviço para produzir o excedente necessário à acumulação” (p. 201).
Já nos posicionamos, em certo sentido, “a favor” de Proudhon, nos limites restritos deste nosso trabalho, mas aqui, sobre esse ponto da contenda, queremos frisar que todos eles, Negri/Hardt e Dardot/Laval, parecem assumir ou não contrariar a tese de que o “comum” está presente em todas as sociedades, expresso de diferentes formas conforme seu arranjo histórico social.
Nesse sentido, parece-nos que a crítica de Negri da desmaterialização do “comum” em Dardot/Laval encontra-se ou numa leitura apressada da ênfase que os autores dão à necessidade de instituição do “comum”, no mesmo sentido em que Negri/Hardt advogam a necessidade de levar adiante a sua instituição, criticando suas formas corrompidas ou diminuídas (na forma nação, propriedade privada e família), ou numa certa confusão, favorecida por termos dos próprios Dardot/Laval, conforme podemos destacar dos autores sobre esse ponto específico:
Haverá quem pergunte por que a construção desses modelos [trata-se dos três modelos de concepção histórica de “comunismo”: a comunidade de vida, de Platão, a associação de produtores, de Marx e Engels, e a captura do “comum” pelo comunismo de Estado] é pré-requisito para as reflexões sobre aquilo que nessas páginas se entende pelo nome de “comum”. É que ela nos ensina, no mínimo, a distinguir o comum e seus simulacros: o comum, ao menos no sentido de obrigação que todos impõem a si mesmos, não pode ser nem postulado como origem que deve ser restaurada, nem dado imediatamente no processo de produção, nem imposto de fora, do alto. É importante, acima de tudo, atentar para a última parte desta conclusão: a pretensa “realização” do comum na forma de propriedade do Estado só pode ser a destruição do comum pelo Estado. Consequentemente, se, apesar de tudo, alguma coisa do comum sobreviveu nos subterrâneos das sociedades dominadas por essa propriedade, foi à custa da resistência a esse apoderamento pelo Estado (Dardot; Laval, 2017DARDOT, P., LAVAL, C. (2014). “Comum, Ensaio sobre a revolução no século XXI” (tradução de M. Echalar). São Paulo: Boitempo, 2017., p. 100, grifos nossos).
Grifamos “ao menos no sentido de obrigação que todos impõem a si mesmos” porque assim os autores colocam claramente a definição de um conceito, independentemente de sua realização histórica. Ou seja, estamos no campo dos princípios, e não apenas de sua realização histórica. Mas falar em destruição do “comum” só pode ter sentido, também, como o princípio que orienta a tese dos autores, e não como realidade de fato, pois, como estamos colocando, isso seria o mesmo que destruir a organização do que é o “comum” na sociedade, seja ela qual for. Ou ainda, se o capitalismo é mais social do que a forma econômica a que sucedeu (Dardot; Laval, 2017DARDOT, P., LAVAL, C. (2014). “Comum, Ensaio sobre a revolução no século XXI” (tradução de M. Echalar). São Paulo: Boitempo, 2017., p. 132), não há razão para falar em destruição do “comum”, tout court. Parece-nos que há, assim, certa confusão conceitual10 entre uma dimensão mais fundamental do “comum”, que implica tudo o que nos liga e produz a vida social (a linguagem, o conhecimento, o afeto, a produção de bens materiais e nosso pertencimento comum à natureza, incluídas, aí, nossas relações com os não humanos, como destacam Negri/Hardt) e suas formações históricas particulares. Da mesma forma, como é preciso distinguir a política como atividade específica de uma sociedade, tradicionalmente atribuída à democracia grega na Antiguidade e à formação dos Estados modernos, e o político, no sentido geral do termo, que, como Dardot/Laval enfatizam com Castoriadis, faz parte de qualquer sociedade, como instituição do poder e distribuição da justiça (Dardot; Laval, 2017DARDOT, P., LAVAL, C. (2014). “Comum, Ensaio sobre a revolução no século XXI” (tradução de M. Echalar). São Paulo: Boitempo, 2017., pp. 449-450). O “comum”, nesse sentido, a uma só vez se encontra, de alguma forma desde sempre instituído, e ao mesmo tempo é palco de disputa por toda a história da humanidade, porque sua instituição implica ao mesmo tempo sua realização.
Considerações finais
Mais do que encaminhar uma conclusão de um assunto que se mostra como uma tarefa ou um desafio de elaboração conceitual, nosso objetivo foi trazer elementos que justificam a importância e a necessidade da discussão e do aprofundamento do tema, sobretudo hoje, diante da crise histórica e social por que passa a humanidade no contexto de globalização do capitalismo neoliberal. Nesse sentido, procuramos trazer, em primeiro lugar, o que nos parece a condição mais elementar para essa discussão, por meio de um filme que deveria cumprir o mesmo papel da criança que diz que “o rei está nu”, no conto de Hans Christian Andersen. A saber, diante de tantas imagens e ideias que povoam o imaginário social atual, divulgadas por meio das novas tecnologias de informação e catalisadas em torno de celebridades com riquezas estratosféricas, que mistificam a compreensão da realidade e incitam desejos de consumo e estilos de vida idealizados, é preciso voltar a colocar “os pés no chão”. É o que procuramos fazer por meio dessa incursão sobre a questão do “comum”, privilegiando três pares de autores, a partir de duas perspectivas sobre o tema, deflagradas em torno do significado do filme “O Náufrago”. A primeira, a partir de Winnicott e Merleau-Ponty, privilegiando o estatuto da alteridade ou de nossas relações com os outros; e a segunda, a partir dos pares Dardot/Laval e Hardt/Negri, privilegiando o estatuto da produção do comum. Gostaríamos de encerrar este artigo ligando essas duas perspectivas por meio da ideia de pertencimento, no sentido de fazer parte de uma vida em comum numa sociedade. Pertencimento que se mostra como ontologicamente primeiro e constitutivo do próprio sujeito. Daí, parece-nos, a pertinência da comparação da relação do sujeito com a mãe e a sociedade, ambas constitutivas do sujeito desde a sua gestação.
Marcel Gauchet (2009)GAUCHET, M. “Personne, individu, sujet, personalité”, in Gauchet, M., Quentel, J-C. (dir.) Histoire du sujet et théorie de la personne, La rencontre Marcel Gauchet Jean Gagnepain. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2009. sintetiza essa situação de pertencimento, originária do sujeito, dizendo que todas as sociedades foram de pessoas, isto é, de seres dotados de presença a si mesmos e atribuindo a mesma capacidade reflexiva a seus semelhantes, destacando, porém, que “esse sentido do singular se apresenta em todas as sociedades sob uma forma institucionalizada que é aquela do nome próprio. Fato capital e carregado de implicações: não há sociedade onde as pessoas não recebam nome” (p. 13). Para os nossos propósitos, destacamos a atitude de dar um nome, que significa o acolhimento de um ser que nasce e cresce no seio de uma sociedade, da qual será um membro em todas as fases de sua vida.
O que esclarece, também, a conjugação fundamental entre o afeto e o suporte material nessa constituição. Não é nossa intenção, aqui, avançar mais a analogia entre o papel e a importância da mãe ou pessoas cuidadoras do bebê e o da sociedade para o sujeito, mas podemos adicionar à expressão “somos um diálogo”, que trouxemos com Esposito, quando passamos pela questão da redução ao que seria constitutivo da humanidade (do náufrago), que esse diálogo é necessariamente afetivo, isto é, entre corpos em situação sensível no mundo.
É nesse contexto de discussão que nos parece que Dardot/Laval (2017DARDOT, P., LAVAL, C. (2014). “Comum, Ensaio sobre a revolução no século XXI” (tradução de M. Echalar). São Paulo: Boitempo, 2017.) subestimam a tese da ontologia do comum, que os autores destacam com JeanLuc Nancy11, para criticá-la por meio da noção de instituição.
Embora não possamos fazer essa discussão aqui, o que exige outro trabalho, passemos rapidamente por ela, para não a ignorar naquilo que afeta nosso propósito de ligação entre as duas perspectivas que trouxemos sobre a questão do “comum”, e que passa, como apontam os autores, a nosso ver corretamente, pela questão da relação entre vida e sociedade. Heidegger é o autor mobilizado por eles para marcar essa distinção com a ontologia do serem-comum. Mais precisamente:
Que originalidade se pode reconhecer na ontologia do ‘ser-em-comum’ de Jean-Luc Nancy, em comparação com a de Heidegger? O termo Mitsein (‘ser-com’) dá ensejo a uma elaboração no capítulo IV, &26, de Ser e Tempo, em seguida à análise do ‘mundo’ desenvolvida no capítulo III. Por isso, a consideração do ‘ser com outrem’ é feita a partir da análise do mundo. Porque sou no mundo, compartilho esse mundo com outros, não o inverso: se eu não fosse primeiro e de imediato no mundo, o mundo não seria ‘mundo comum’ (Mitwelt) para mim. Como diz Pierre Sauvêtre, Nancy radicaliza a proposição de Heidegger, uma vez que a determinação do ‘ser-com’ já não procede do ‘ser-no-mundo’ do Dasein, mas constitui a determinação fundamental do próprio ser: ‘Com é a primeira característica do ser’. Ou: ‘Ser é ser cum’. O ‘ser no mundo’ não precede mais o ‘ser-com’: o ‘ser-com’ é reconhecido como absolutamente primeiro (Dardot; Laval, 2017DARDOT, P., LAVAL, C. (2014). “Comum, Ensaio sobre a revolução no século XXI” (tradução de M. Echalar). São Paulo: Boitempo, 2017., pp. 292-293).
Interpretação à qual eles contrapõem a leitura de Hannah Arendt sobre “Ser e Tempo”, que “parece mais fiel à tese de Heidegger sobre a primazia do ‘ser-no-mundo’” (p. 294), reconhecendo, porém, o que está em jogo, quando concordam que
há uma coerência inegável em se imputar a Arendt o ‘preconceito antibiologista’ e ‘antinaturalista’ de Heidegger e no apelo para se repensar a noção de natureza humana - o humanitas do homem, portanto - a partir da ‘realidade natural’ que é a do bios. A questão toda está em saber se da ontologia do ‘ser-em-comum’ ou da ‘vida’ se deduz uma política. Fazendo a pergunta sem rodeios: existe uma política do ser-com ou do ser-em-comum? (Dardot; Laval, 2017DARDOT, P., LAVAL, C. (2014). “Comum, Ensaio sobre a revolução no século XXI” (tradução de M. Echalar). São Paulo: Boitempo, 2017., p. 295).
Mais precisamente, numa passagem que mostra por que a crítica dos autores recai sobre Nancy e Esposito e não sobre Hardt/Negri a respeito da questão ontológica:
Todas essas abordagens esbarram numa mesma dificuldade de princípio: uma vez afirmada a primazia da ontologia, a passagem para a política só pode ser num salto, simplesmente porque a aposta de deduzir uma política da ontologia é insustentável. Não basta lembrar as palavras de Deleuze - ‘antes do ser, há a política’ -, é preciso ir mais longe e afirmar que a única ontologia ainda possível é a que Foucault denominava ‘ontologia da atualidade’ (Dardot; Laval, 2017DARDOT, P., LAVAL, C. (2014). “Comum, Ensaio sobre a revolução no século XXI” (tradução de M. Echalar). São Paulo: Boitempo, 2017., p. 296).
Ou seja, a questão está no hiato entre ontologia e política, afirmado por Nancy (2010NANCY, J-L. « Comunismo, la palabra ». In Badiou, A. et.al.; Hounie A. (comp.), 2010. pp. 145-153., 2014NANCY, J-L. “La Communauté désavouée ». Paris : Éditions Galilée, 2014.) e Esposito (2000)ESPOSITO, R.. « Communitas, Origine et destin de la communauté » (tradução de Nadine Le Lirzin). Paris : PUF, 2000. com a ênfase no caráter de abertura desmesurada do ser-em-comum, na qual se coloca a política a serviço de um ideal de comunidade indeclarável (inavouable), que se encontra sempre aquém de sua realização (portanto, negada - désavouée), e por isso sempre desobrada (désoeuvrée), contra o risco de sua hipostasia em uma realização concreta e determinada. Diante do que Dardot/Laval acusam o risco de falta de uma orientação política para a sua realização (2017, p. 291; Alvaro, 2020ALVARO, D. “Lo común: reflexiones en torno a un concept equívoco”. Trans/Form/ Ação. Marília, v. 43, n.4, p. 89-110, Out/Dez, 2020., p. 106).
A referência a Deleuze e Foucault, no entanto, traz de forma abrupta o debate monumental da possibilidade de uma ontologia, por meio da crítica de Foucault e Deleuze à fenomenologia, no qual os autores fincam bandeira ao lado dos primeiros. Por isso antecipamos na nota 5 que Dardot/Laval também assumem determinada ontologia, sem, no entanto, entrar na sua discussão. Ou seja, na linha de Foucault e Deleuze-Guattari, Dardot/Laval são construtivistas do ponto de vista ontológico, o que significa que, antes da formação política, para avançar rápido e ir direto ao ponto, há forças caóticas ou uma multiplicidade indefinida de forças, conforme Deleuze e Foucault leem e incorporam Nietzsche em seus trabalhos (Foucault, 1979FOUCAULT, M. “Nietzsche, a genealogia e a história”. In Machado, R. (org.), 1979, pp. 15-37.; Deleuze, 1998; Deleuze-Guattari, 1995aDELEUZE, G., GUATTARI, F. “Mil Platôs - capitalismo e esquizofrenia, V.1” (tradução de A. Guerra Neto). Rio de Janeiro: Editora 34, 1995a., 1995bDELEUZE, G., GUATTARI, F. “Mil Platôs - capitalismo e esquizofrenia, V.2” (tradução de A. L. Oliveira, L. C. Leão). Rio de Janeiro: Editora 34, 1995b.; Furlan, 2006FURLAN, R. “Fenomenologia e esquizoanálise na psicologia: um encontro possível?” Psicologia USP, 17(3), pp. 105-126, 2006.).
Não cabe aqui, como dissemos, abrir a discussão dos autores com os pensamentos de Nancy e Esposito sobre o “comum”. Mas enquanto Dardot/ Laval acusam o risco de despolitização da questão do “comum”, que subestima o papel primordial da política na formação da sociedade, como se o comum fosse uma realidade mais básica do que a política e irredutível a ela, vemos o risco contrário de abstração da vida, quando os autores concluem que a instituição do comum só ocorre por meio da participação dos membros da sociedade e não do pertencimento a ela:
Portanto, o pertencimento a essa comunidade pressupõe no indivíduo ‘a vontade e a capacidade de se comunicar, partilhar, comungar, participar’. [...]. É exatamente a atividade de pôr em comum - atualização dessa capacidade na deliberação - que funda a comunidade, e não o inverso: ‘O pertencimento é consequência, e não causa, da participação’, o que significa que apenas a atividade de pôr em comum determina o pertencimento efetivo à comunidade política (Dardot; Laval, 2017DARDOT, P., LAVAL, C. (2014). “Comum, Ensaio sobre a revolução no século XXI” (tradução de M. Echalar). São Paulo: Boitempo, 2017., pp. 250-251 - as aspas são citações da obra de Pierre Aubenque, Problèmes aristotéliciens).
Ou ainda, como assumido desde o princípio,
o comum, o commune latino, implica sempre certa obrigação de reciprocidade ligada ao exercício de responsabilidades públicas. Deduz-se disso que o termo ‘comum’ é particularmente apto a designar o princípio político da coobrigação para todos os que estejam engajados numa mesma atividade. Ele dá a entender o duplo sentido presente em múnus: ao mesmo tempo obrigação e participação numa mesma ‘tarefa’ ou numa mesma ‘atividade’ - de acordo com um sentido mais amplo que o da estrita ‘função’. Aqui falaremos em agir comum para designar o fato de que homens se engajam juntos numa mesma tarefa e, agindo desse modo, produzem normas morais e jurídicas que regulam sua ação [...]. Exclui-se, como consequência, a possibilidade de a obrigação se fundamentar num pertencimento que seria independente da atividade (Dardot; Laval, 2017DARDOT, P., LAVAL, C. (2014). “Comum, Ensaio sobre a revolução no século XXI” (tradução de M. Echalar). São Paulo: Boitempo, 2017., p. 25).
Ora, pressupor que o comum só ocorre por meio da participação, que os autores compreendem com a noção de práxis instituinte, é pressupor que o comum só passa a existir na vida adulta do sujeito, por meio do trabalho e da política. O que parece privilegiar uma visão adultocêntrica do comum, quando, ao contrário, parece que participamos ou só podemos participar do comum porque pertencemos e nos iniciamos a ele desde crianças. Daí a importância da nossa passagem por Merleau-Ponty e Winnicott, que destacam, inclusive, a incorporação do outro no processo de subjetivação e formação social.
Ou ainda, se Dardot/Laval (2017DARDOT, P., LAVAL, C. (2014). “Comum, Ensaio sobre a revolução no século XXI” (tradução de M. Echalar). São Paulo: Boitempo, 2017.) abrem o livro destacando com Benveniste o termo latino múnus na raiz do termo “comum”, cujo significado traz “a dupla face da dívida e da dádiva, do dever e do reconhecimento, própria do fato social fundamental da troca simbólica” (p. 24), parece-nos que a dádiva e o reconhecimento são os termos adequados para fazer a ligação da política com a vida.
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Nancy (2010)NANCY, J-L. « Comunismo, la palabra ». In Badiou, A. et.al.; Hounie A. (comp.), 2010. pp. 145-153. destaca a emergência do tema em períodos históricos de grandes transformações sociais que implicam, justamente, a destruição da ordem social.
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Para uma apresentação bastante clara e didática das discussões sobre a questão do “comum”, que inclui seus principais autores na atualidade (Hardt/Negri, Jean-Luc Nancy, Roberto Esposito e Dardot/Laval), cf. Alvaro, D. (2020). Embora encaminhemos uma conclusão diferente da sua, consideramos que o autor traz com rara lucidez os elementos principais de cada autor, envolvidos na questão do comum. Outro autor que faz uma apresentação conjunta desses mesmos autores é Matías Saidel (2019)SAIDEL, M. L. «Reinvenciones de lo común: hacia una revisión de algunos debates recientes. Revista de Estudios Sociales, 70: 10-24. https://doi.org/10.7440/res70.2019.02, 2019.
https://doi.org/10.7440/res70.2019.02... , mas na defesa da leitura crítica de Dardot e Laval, sobretudo a Nancy e Esposito, uma avaliação, pois, diferente da nossa, como veremos ao final. -
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“O caráter imediatamente lacunar do esquema desencadeador faz com que um instinto se constitua mais como uma elaboração sistemática do mundo do que como referência a um mundo exterior integralmente constituído. Há um caráter onírico do instinto. Essa é a razão pela qual é fácil compreender que a atividade instintiva transforma-se em atividade mímica (cf. os periquitos que adotam por companheiros bolas de celuloide)” (Merleau-Ponty, 2000MERLEAU-PONTY, M. “A Natureza - Notas de cursos no Collège de France, 19561960” (texto estabelecido e anotado por Dominique Séglard - tradução de A. Cabral). São Paulo: Martins Fontes, 2000., p. 317).
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“Os dois extremos do narcisismo inicial e do narcisismo secundário (introjeção) são semelhantes. É além dessa oposição que começa a verdadeira relação humana” (Merleau-Ponty, 2001MERLEAU-PONTY, M. « Psychologie et pédagogie de l’enfant - Cours de Sorbonne, 1949-1952 ». Lagrasse: Verdier, 2001., p. 340).
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Proudhonismo que se soma à concepção espinosista do “comum” de Negri/Hardt (Dardot; Laval, 2017DARDOT, P., LAVAL, C. (2014). “Comum, Ensaio sobre a revolução no século XXI” (tradução de M. Echalar). São Paulo: Boitempo, 2017., p. 206). É nesse sentido que Alvaro (2020)ALVARO, D. “Lo común: reflexiones en torno a un concept equívoco”. Trans/Form/ Ação. Marília, v. 43, n.4, p. 89-110, Out/Dez, 2020. diz que a principal objeção de Dardot/Laval a Hardt/Negri “recai sobre o fato de que o comum não é apenas algo produzido pela atividade conjunta dos membros da sociedade, mas também a condição prévia da sua produção. É a dimensão ontológica do conceito do comum a que provoca a crítica mais dura desta teoria” (p. 106). Mas vale destacar que Dardot/Laval também têm uma concepção ontológica do ser, que aparece quando Alvaro diz que os autores têm uma visão construtivista do “comum”. Daí por que, para eles, só é possível, conforme Foucault, uma ontologia da atualidade, como veremos ao final.
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Termo que os autores concebem a partir da noção de biopoder em Foucault, para significar a realização de potências da vida na política, ao invés do poder político de produção e controle da vida (Foucault, 1988FOUCAULT, M. “História da sexualidade 1, A vontade de saber” (tradução de Albuquerque, M. T. C. e Albuquerque, J. A. G.). Rio de Janeiro: Graal, 1988.).
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“Não compreendemos de que modo os autores acreditam, após terem traçado em A nova razão do mundo um quadro absolutamente apocalíptico da subjetividade dos indivíduos, que seriam quase inteiramente colonizados pela racionalidade neoliberal, estarmos, agora, diante de uma ‘Revolução’ mundial do Comum [...]” (Audier, 2015AUDIER, S. « Penser le “neoliberalisme”, Le moment néoliberal, Foucault et la crise du socialisme ». Lormont, Françe : Le Bord de L’eau, 2015., p. 555). Em uma visão mais conciliadora entre as obras, Daniel Alvaro (2020ALVARO, D. “Lo común: reflexiones en torno a un concept equívoco”. Trans/Form/ Ação. Marília, v. 43, n.4, p. 89-110, Out/Dez, 2020., p. 94) destaca o princípio político que anima a lógica neoliberal, ante o qual se opõe o princípio do “comum”. Ou seja, o termo princípio não é propriamente sinônimo de realidade.
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Discutimos os “impasses” da perspectiva do poder em Furlan (2016b)FURLAN, R. “A importância da discussão sobre a noção de sujeito: Foucault, Sartre, Merleau-Ponty”. Educação e Pesquisa, v.43, n.4. São Paulo: Faculdade de EducaçãoUSP, pp. 1035-1054, 2016b..
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Como destaca Alvaro (2020)ALVARO, D. “Lo común: reflexiones en torno a un concept equívoco”. Trans/Form/ Ação. Marília, v. 43, n.4, p. 89-110, Out/Dez, 2020., “Para evitar uma leitura simplista de semelhante processo, há que se levar em conta que o comum não é menos representativo do poder constituinte da multidão que do poder imperial do capital global. Em outros termos, o comum é imanente ao ‘ser social’ existente, com todas as riquezas e misérias que lhes são próprias e que fazem dele uma realidade contraditória, conflitiva e variável” (p. 99). Para maior clareza desses termos, “Império é o nome de uma nova ordem soberana a escala planetária que se compõe tanto de instituições nacionais como supranacionais e é uma das faces da globalização. A outra face é a Multidão, e por ela se entende um novo sujeito social distinto do ‘povo’, das ‘massas’ e da ‘classe trabalhadora’, na medida em que possui uma estrutura em rede de caráter aberto, diverso em relação a sua identidade, inclusiva e horizontal” (p. 98). Do ponto de vista subjetivo, o termo-chave é o de singularidade, também destacado nos trabalhos de Jean-Luc Nancy.
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Questão, aliás, desenvolvida por Daniel Alvaro (2020)ALVARO, D. “Lo común: reflexiones en torno a un concept equívoco”. Trans/Form/ Ação. Marília, v. 43, n.4, p. 89-110, Out/Dez, 2020., cujo artigo se intitula, justamente “O comum: reflexões em torno de um conceito equívoco”.
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“Gostaríamos de estabelecer que, por depender tão só das práticas do uso coletivo, o comum exclui categoricamente qualquer ontologia do comum. Isso vale para a ontologia segundo a qual o comum consiste no ser da produção social espontânea. Porém vale mais ainda para a ontologia que, a pretexto de subtrair o ‘o ser-em-comum’ a qualquer substancialização ou reificação comunitária, faz na verdade uma ‘dissociação entre política e ser-em-comum’ (Nancy), cujo efeito é desestimular qualquer política do comum” (Dardot e Laval, 2017DARDOT, P., LAVAL, C. (2014). “Comum, Ensaio sobre a revolução no século XXI” (tradução de M. Echalar). São Paulo: Boitempo, 2017., p. 291).
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
17 Jul 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
14 Jan 2023 -
Aceito
02 Ago 2023