RESUMO
Kant defende um compatibilismo radical na sua tese da união: necessidade natural e liberdade precisam estar unidas em “uma e mesma ação”. Na Elucidação Crítica da Analítica da segunda Crítica, Kant elabora em termos vinculados à sua distinção transcendental entre fenômenos e coisas em si e ao contexto da discussão histórica da Teodicéia sua metafisica da liberdade para a razão prática. Ela é articulada através da distinção que “se segue” da distinção transcendental, esta entre a causalidade do “ente agente” e da “ação no mundo sensorial”, que preserva a atribuição de ambos, necessidade natural e liberdade, às mesmas coisas, isto é, nossas ações no mundo físico. O que mostro no artigo é que essa distinção crucial exige a concepção das ações como o que fazem agentes que têm “causação de agente” e não como eventos físicos que são ocorridos ou acontecimentos no mundo. O elemento fundamental dessa metafísica da agência é que agentes não causam suas ações, que então não são eventos, porque elas são justamente o causar de eventos, seus efeitos, que encontramos como ocorridos no mundo. Contemporaneamente, uma distinção traçada na filosofia da ação entre o uso transitivo e o uso intransitivo de verbos de ações físicas auxilia a articular o que é central à metafísica da liberdade para a razão prática de Kant.
Palavras-chave:
Kant; Metafísica da ação; Razão prática; Filosofia da
ABSTRACT
Kant advocates a radical compatibilism in his thesis of the union: natural necessity and freedom must be united in “one and the same action”. In the Critical Elucidation of the Analytics of the Second Critique, Kant elaborates in terms linked to his transcendental distinction between phenomena and things in themselves and to the context of the historical discussion of the Theodicy his metaphysics of freedom for practical reason. It is articulated through the distinction that “follows ” from transcendental distinction, the one between the causality of the “acting being” and of the “action in the sensory world”, which preserves the attribution of both natural necessity and freedom to the same things, i.e., our actions in the physical world. What I show in the essay is that such crucial distinction requires the conception of actions as something that agents do because of their “agent causation” and not as physical events that merely take place or are worldly occurrences. The fundamental element of such metaphysics of agency is that agents do not cause their actions, which are not events, because they are precisely the causes of events, their effects which we find as happenings in the world. Contemporarily, a distinction established in the philosophy of action between the transitive and intransitive use of verbs applying to physical actions helps to articulate what is central to Kant’s metaphysics of freedom for practical reason.
Keywords:
Kant; Metaphysics of freedom; Practical reason; Philosophy of action; Agency
Ein solches Noumenon handelt also zwar als Erscheinung nach dem Mechanism der Natur, seine Handlugen geschehen nicht so, sondern nach seinem Willen und nicht durch den Mechanism der Natur. Seine Caußalitaet von einer Begebenheit [Watkins: “event” (2005, p.343)] ist nicht wider eine Begebenheit, denn er ist keine Erscheinung. (Kant, Metaphysik Mrongovius, Ak.29:924, linhas 17-22).
1. Introdução: o problema do compatibilismo em Kant
Considere-se a seguinte afirmação:
O conceito central da ação humana não é o de movimento do nosso próprio corpo, mas antes o de produzir mudança no mundo – direta ou indiretamente – por um ato da vontade, uma decisão, ou intenção. Esse conceito pode ser aplicado inteligivelmente a uma deidade puramente espiritual. Acontece que teremos que pensar em Deus como produzindo mudanças no mundo “exterior” diretamente por um ato da vontade – não indiretamente através do movimento do seu corpo, como no nosso caso1.
A posição apresentada envolve uma cisão ontológica entre, por um lado, atos da vontade, e, por outro, mudanças no mundo, concebíveis, presumivelmente, como movimentos ou mudanças de estados de coisas. A posição requer também que, no nosso caso – no caso da produção indireta da mudança no mundo –, o veículo da mudança seja o movimento do nosso corpo. Uma posição como essa parece poder ser congenial a filósofos como R. Descartes, R. Cudworth e S. Clarke entre outros, teístas que procuram demonstrar que Deus existe, que criou (como inteligência ou intelecto) o mundo e que age sobre ou nele. Qual é a posição de Kant quanto a essa cisão? Especialmente quando notamos que para ele a dificuldade fundamental é a seguinte: “[...] Suprimir [...] a aparente contradição entre mecanismo natural e liberdade em uma e mesma ação” (5:97/157, minha ênfase2) ou “[...] conservar ambos os conceitos [da causalidade segundo a lei da necessidade natural e da liberdade] entre si adversos; só que na aplicação, se se quiser explicá-los como unidos em uma e mesma ação e, portanto, explicar essa própria união” (5:956/154-5, minha ênfase), isso é que é difícil. Em Kant, então, parece não poder haver a referida cisão, pois necessidade causal natural e liberdade são aplicados a uma e mesma ação. A pergunta é: como assim? Que isso seja o caso em Kant é o que proponho chamar a sua tese da união.
A tese da união tem, claramente, caráter compatiblista, mas de que espécie? Ela também parece merecer ser tomada como ponto máximo, o cume, da articulação que Kant oferece de sua posição sobre liberdade e necessidade. Não há como não a levar em consideração, nem se deveria tergiversar quanto a ser o que necessita de esclarecimento. Proponho tomá-la como a tese central cuja compreensão, ou não, representa o sucesso, ou insucesso, de interpretações de Kant. Isso tem base textual, como vimos, mas tem, também, apoio filosófico.
É fato que Kant não é tomado por um compatibilista tradicional – como Hume, por exemplo, é tomado para efeitos de consumo –, pois a liberdade psicológica de sermos agentes movidos única e exclusivamente pelos nossos desejos e intenções, os estados da nossa vontade, isto é, sem sermos levados à ação por causas externas à psicologia do agente (seus estados mentais subjetivos), é insatisfatória para ele. Ela é somente nominalmente compatível com a necessidade nas ações: ações assim causadas são chamadas “livres” somente porque são o resultado da vontade do sujeito. É livre quem não está acorrentado nem preso a um compromisso anterior, assim reza o quase dictum. Mas, para Kant, é preciso que sejamos realmente livres, livres também em relação a estados mentais que são causas internas ao sujeito, é preciso que sejamos livres transcendentalmente: isso significa sermos livres na ordem no tempo, em relação a eventos antecedentes pertencentes quer à psicologia do sujeito quer ao que se passa no entorno, no “exterior”, dele.
É nesse ponto que kantianos fizeram uma opção conhecida, com pelo menos duas variantes internas. Allen Wood, por exemplo, defendeu – em função do perfil incompatibilista, de fato, libertariano3, da liberdade que é necessária à ação moral em Kant – que ele advoga “a compatibilidade do compatibilismo e do incompatibilismo”4. Wood, no entanto, reconhece a necessidade de uma abordagem metafísica do problema, o que faz com que sustente que a compatibilidade é a do nosso pertencimento, em uma visão não unificada de nós próprios, a dois mundos metafísicos diferentes. Pierre Keller defende que é o apego de Wood a um ponto de vista teórico exaustivo que o força à postulação de um mundo distinto como sustentáculo da liberdade transcendental, enquanto que para ele o que Kant pretende é justamente defender que não há tal ponto de vista exaustivo, e, portanto, a pretendida manutenção tanto da necessidade natural quanto da liberdade transcendental deve ser remetida à dicotomia dos pontos de vista teórico e prático – que seriam complementares, se não tomados, nenhum deles isoladamente, como exaustivos, se não, são mutuamente excludentes5.
Mas é exatamente sobre isso que incide a objeção filosófica. Se tudo o que Kant tem a nos oferecer quanto à “liberdade transcendental”, essa necessária afinal tanto à ação simpliciter quanto à responsabilidade moral, é a visão da ação de um ponto de vista prático com suas exigências internas próprias de racionalidade e sujeição a normas de deliberação cuja autoridade é diferente de todas as demais, então a defesa até da complementaridade dos dois pontos de vista passa (1) pela objetividade do ponto de vista prático e (2) pela justificada supressão, presumivelmente em casos claramente circunscritos, do ponto de vista teórico. São duas tarefas, embora com implicações mútuas. Mas o que não tem nenhum apoio até o momento é poder-se rechaçar uma explicação causal de uma ação – digamos que a tenhamos: foi devida à manifestação de um desejo determinado do sujeito A – porque podemos adotar um ponto de vista prático quanto ao ocorrido. Isso parece gratuito, como se fosse meramente facultativo olhar as ações de um outro ponto de vista, o prático, ad libitum. Ora, se tivermos a explicação da ação em mãos, como D. Davidson, p. ex., quer nos fazer acreditar, então o resto é prescindível. Se sabemos o que de fato levou alguém a fazer algo, do que nos adianta dizer que ele poderia ter deliberado de outro modo?6
Não é por outra razão que Kant insiste que o mecanismo natural e a liberdade dizem respeito a uma e à mesma ação, sua tese da união. A pergunta é: como assim, se isso exige mais do que a remissão a meros pontos de vista, um explicativo e outro deliberativo, se isso exige – se não uma visão teórica exaustiva – uma explicação filosófica da metafísica da liberdade para a razão prática?
Gostaria de extrair essa metafísica em seus traços fundamentais justamente da seção “Elucidação Crítica da Analítica da Razão Prática Pura” (do final do 3° Capítulo [“Dos Motivos da Razão Prática Pura”] da Analítica da 2a Crítica), onde Kant apresenta a tese da união. Procederei a uma análise algo detida desse texto.
2. O lugar sistemático do compatibilismo na segunda Crítica
Kant se vê forçado a tratar do tema da relação entre a necessidade e a liberdade quanto à ação em função da peculiaridade da Elucidação Crítica da Analítica da razão prática pura. Note-se que essa Elucidação está a serviço do estabelecimento das prerrogativas da razão prática pura. Portanto, é com vistas ao atendimento dos interesses dessa razão, apresentados na Analítica, que Kant vem a tratar do compatibilismo necessidade-liberdade presente na tese da união7.
Formalmente, a compreensão dessa Elucidação da Analítica prática é a de que se trata da “investigação e justificação de por que ela tem de possuir exatamente esta forma sistemática e nenhuma outra, se a comparamos com um outro sistema que tenha como fundamento uma faculdade de conhecer semelhante” (5:89/144). Segundo Kant, a “razão especulativa” tem, e também a “razão prática”, como fundamento “a mesma faculdade de conhecer”, a saber, a “razão pura”. O que as distingue – e o que lhes dá “formas sistemáticas” distintas – é a relação desses usos da razão pura com os “respectivos fundamentos” teórico e prático da razão especulativa e da razão prática. Digno de nota aqui é que as razões teórica e prática em Kant não parecem se distinguir pelos seus “objetos” meramente, como na Antiguidade clássica: o objeto do conhecimento versus a ação. Antes, elas se distinguem pelos seus distintos fundamentos na razão pura.
A Elucidação da Analítica prática nos convida, então, para a comparação com a Analítica especulativa. É nessa comparação que a primeira revela sua forma sistemática peculiar, a exigir o tratamento da metafísica da liberdade justamente para a razão prática.
Formalmente, o esclarecimento do que Kant chamou de “paradoxo do método” no segundo capítulo sobre o conceito de um objeto da razão prática pura – “que o conceito de bom e mau não tem que ser determinado antes da lei moral [...], mas somente [...] depois dela e através dela” (5:62/100-1) – exige uma forma sistemática da Analítica prática que é quase a inversão da Analítica teórica ou especulativa. Essa começava pela intuição (que é sempre sensível), ou seja, pela sensibilidade, passava por conceitos dessa e terminava em proposições fundamentais, os princípios puros do entendimento. Na Analítica prática, como pôde ser visto anteriormente no livro, foi preciso começar pela “possibilidade de proposições fundamentais práticas a priori”, passar pelos conceitos dos objetos da razão prática, isto é, “de absolutamente bom e mau, para pela primeira vez fornecê-los em acordo com aquelas proposições fundamentais” (5:89/145), para então alcançar a “formatação” – surpreendentemente – a priori da sensibilidade como um sentimento deveras especial, pois, segundo Kant, na relação, por um lado, da razão prática pura com, por outro, nossa sensibilidade, essa razão tem uma “influência necessária (cognoscível a priori) sobre a mesma [a sensibilidade]” (5:90/146). Disso tratou o terceiro e último capítulo da Analítica, reveladoramente intitulado “Dos Triebfedern da Razão Prática Pura”, isso que constitui uma espécie de estética da razão prática pura. Claro, isso que pode ser conhecido a priori sobre nossa sensibilidade na sua relação com a razão prática pura é o modo de produção do sentimento (bona fide) moral de respeito (cf. 5:92/149: “uma peculiar espécie de sensação”).
Se, por um lado, essa comparação revela a diferença na forma sistemática das Analíticas, por outro, enseja uma expectativa sobejamente kantiana: que essas comparações entre formas sistemáticas nos permitam vislumbrar a “unidade de toda a faculdade da razão pura (tanto da faculdade teórica como da prática) e deduzir tudo de um princípio, o que é a inevitável necessidade da razão humana, que somente encontra plena satisfação numa unidade completamente sistemática de seus conhecimentos” (5:90/147). Nada mais é feito disso na Elucidação prática, mas esse desideratum ao menos indica – na remissão a “um princípio” – que razão teórica e prática não se distinguem pelos seus presumidos “objetos”, pois é, por certo, via seus distintos fundamentos que precisamos vê-las remetidas a um único princípio.
Mas é de se presumir que a quase inversão da forma sistemática da Analítica prática se deva ao conteúdo do “conhecimento [...] de uma razão prática pura e através da mesma” (5:91/147), isso que se cristalizou numa necessária inversão do método na investigação prática que Kant chamou de “paradoxo do método”. E é justamente em função de uma peculiaridade quanto à justificação da razão prática, devida ao seu conteúdo, que se exige de novo a abordagem do compatibilismo necessidade-liberdade.
A razão especulativa pode ser provada “mediante exemplos das ciências” (5:91/147). Conhecimentos puros a priori podem ser encontrados na matemática não aplicada e na ciência pura da natureza. Nesses casos não precisamos temer a insuspeita participação de fundamentos empíricos. Mas é exatamente a ausência de exemplos a nos assegurar ao menos a efetividade da razão prática pura que dá à Analítica prática a sua forma sistemática. Kant, então, recapitula sua trajetória na Analítica e, em especial, a situação peculiar da prova da razão prática pura. O resumo não é trivial, e muitos passos são relembrados. Vejamos quais são as principais etapas.
1a) A lei moral não é, na visão de Kant, o resultado a que chegamos numa investigação filosófica sobre a natureza da razão prática pura. Ela é, de fato, o “fundamento de toda ciência e não se [origina] pela primeira vez dela” (5:92/148). Isso faz com que a Analítica prática deva começar com “princípios morais como proposições fundamentais” como “dados primeiros” para a nossa consideração. Mas isso exige, consequentemente, a tese do reconhecimento, a saber, a lei moral (ou “a proposição fundamental prática suprema”) é reconhecida como “a lei suprema [da] vontade” de toda “razão humana natural”, isso enquanto proposição “inteiramente a priori e sem dependência de nenhum dado sensível” (5:91/148). A tese do reconhecimento dessa lei da vontade confere a ele dois aspectos. Primeiramente, e de um ponto de vista mais filosófico (pois o ponto visa “estabelecer e justificar” a lei moral), o reconhecimento se dá na constatação, mesmo por parte da “razão comum” – essa que faz um “uso prático mais comum da razão” – de que a lei moral é “como se fosse um factum que antecede toda a sua argumentação sobre sua possibilidade e sobre todas as consequências que se desejassem tirar dela” (5:91/148). Isso é o que deve vir antes, até mesmo “antes que a ciência pudesse tomá-la em mãos para fazer uso dela” (idem).
Em segundo lugar, outro aspecto do reconhecimento pode ser encontrado na “experiência moral” do enfrentamento com o “valor moral”: produz-se em nós respeito pelo “fundamento determinante” racional, via uma razão praticamente legislativa que exclui “toda mescla de inclinações”, toda possível determinação via desejos assentados no conhecimento imediato que temos dos “sentimentos de prazer ou dor”. O que temos, alternativamente, é o conhecimento de “uma peculiar espécie de sensação”:
Que, porém, não precede a legislação da razão prática, mas, muito antes, é produzida unicamente por ela e, na verdade, como uma coerção, ou seja, pelo sentimento de um respeito como nenhum homem tem por inclinações, seja de que espécie forem, mas sim pela lei, a ponto de ninguém, mesmo o entendimento humano mais comum, dever deixar de perceber momentaneamente, em um exemplo apresentado, que mediante fundamentos empíricos do querer na verdade se possa aconselhá-lo a seguir seus impulsos, mas jamais pretender que obedeça a uma outra lei que a lei prática pura da razão (5:92/149).
2a) O enfrentamento com o que tem “valor moral” absoluto, a lei moral, revela claramente uma “heterogeneidade dos fundamentos determinantes” em empíricos e racionais. Disso decorre a distinção exaustiva e excludente entre a doutrina da felicidade e a doutrina da moralidade, uma ocupação das “mais importante[s]” da Analítica prática. O quadro, no entanto, é complexo e sofisticado.
Por um lado, todo e qualquer fundamento determinante da vontade que se assenta em dados empíricos pertence ao princípio da felicidade, porque enquanto princípios empíricos não podem senão se justificar pela quantidade, qualidade e duração de prazer que prometem, tornando desse modo imprescindível a referência à constituição do sujeito – e por isso mesmo, por causa dessa inevitável autorreferencialidade na concepção do valor, são princípios materiais agrupáveis todos no princípio da felicidade, um princípio de valor. Isso inviabiliza a concepção do “valor moral absoluto”, esse no qual não devemos encontrar a limitação da autorreferência por parte do sujeito. Não se trata, no caso dos princípios empíricos materiais, que a felicidade seja valorizada por nós, mas que ela seja erigida num princípio de avaliação de escolhas. O problema está no princípio da felicidade representar um interesse da nossa sensibilidade que não encontra nela nenhum limite: esse princípio é um princípio do amor de si que faz da felicidade o bem incondicional, ou seja, uma lei8. “Nosso interesse na nossa felicidade, não importa como o preenchemos, oferece a condição para nossos outros interesses materiais. Em contraste, nosso interesse na felicidade não tem tal condição”9, se ele for o pilar da nossa concepção de valor.
Mas, em contrapartida, embora quanto à concepção do valor moral não haja lugar para a felicidade (“tão logo se trate do dever, ela [a felicidade] não seja de modo algum tomada em consideração” [5:93/151]), encontramos em Kant a recomendação de um cálculo pessoal de felicidade: “o proveito, depois de ser separado e desembaraçado de toda aderência à razão (a qual somente se encontra totalmente do lado do dever), é então pesado por cada um para entrar em vinculação com a razão ainda em outros casos, só não naqueles em que ela pudesse contrariar a lei moral” (5:93/150-1). Então, não obstante a distinção entre os princípios da felicidade e da moralidade, não há “imediata oposição entre ambos”. De fato, surpreendentemente, Kant afirma: “a razão prática pura não quer que se abandonem as reivindicações [Ansprüche: melhor: “exigências de direito”, com conotações de legitimidade] da felicidade” (5:93/151: minha ênfase, a primeira). É claro que o que é apresentado como o rationale neste contexto parece constituir uma mera instrumentalização da felicidade:
Sob certo aspecto pode ser até dever cuidar de sua felicidade: em parte, porque ela (e a isso pertencem habilidade, saúde, riqueza) contém meios para o cumprimento do próprio dever e, em parte, porque sua falta (por exemplo, pobreza) envolve tentações à transgressão de seu dever. Só que promover a sua felicidade jamais pode ser imediatamente um dever, menos ainda um princípio de todo dever (5:93/151).
O que a razão prática pura não quer é que se abandone a preocupação com a felicidade, mas por que, por parte dela, devemos cuidar meramente de sermos eficazes no cumprimento do dever? No entanto, “por que a razão [a prática pura] deveria se importar se somos felizes ou estamos satisfeitos com respeito a nossos desejos?”10 No segundo capítulo da Analítica prática, Kant fala de uma incumbência:
O homem, enquanto pertencente ao mundo sensorial, é um ente carente e nesta medida sua razão tem certamente uma não desprezível incumbência, de parte da sensibilidade, de cuidar do interesse da mesma e de propor-se máximas práticas também em vista da felicidade desta vida e, se possível, também de uma vida futura (5:61/98-9).
Pergunto: pode esta incumbência de cuidar de agir “também em vista da felicidade desta vida” dizer respeito exclusivamente à preparação para cumprirmos nossos deveres? Não parece, mas não abordarei o ponto aqui11.
3a) Do anterior temos que a lei moral é um fundamento determinante racional, distinto daquele da felicidade, que por isso “não admite [na capacidade de fundamento determinante] absolutamente nenhum fundamento determinante empírico” (5:94/153). Ela, simplesmente, não é assim. Mas, como ela é ao invés, como fundamento determinante racional? E quais são as dificuldades com a articulação dessa alternativa? É com esta etapa que chegamos à necessidade de explicar filosoficamente o compatibilismo necessidade-liberdade.
Primeiramente, não resta dúvida de que a vontade (a humana) é uma causalidade12. A vontade é exercida por nós como “causa eficiente”, trata-se “da causalidade de um ente que pertence ao mundo sensorial”. Agora, segundo a terceira seção da FMC, “a liberdade seria aquela propriedade dessa causalidade na medida em que esta pode ser eficiente independentemente da determinação por causas alheias” (4:446, minha ênfase), ou seja, ela será eficiente por ter“de ser uma causalidade segundo leis imutáveis” (4:446). É por isso que, na Elucidação Crítica, Kant afirma que se tivéssemos (um condicional) a perspiciência (termo de Valério Rohden), o insight, quanto à possibilidade “da liberdade de uma causa eficiente”, também teríamos o insight combinado da possibilidade e da necessidade “da lei moral enquanto lei prática suprema de entes racionais aos quais se atribui liberdade da causalidade de sua vontade”. A famosa tese da Einerleyheit (“ser uma coisa só”: “uma vontade livre e uma vontade sob leis morais é uma e a mesma coisa” [4:447]) recebe uma explicitação (não mais do que isso) na Elucidação prática. A liberdade da causa eficiente que é a vontade e a necessidade da lei moral são ambas “conceitos [que] estão tão inseparavelmente vinculados” de modo que “poder-se-ia definir a liberdade prática também pela independência da vontade de toda outra lei, com exceção unicamente da lei moral” (cf. também 5:55-6/89-90). Ou seja, a atuação livre da vontade se dá exclusivamente pela dependência da vontade, na sua ação, da lei moral. Como se dá essa dependência? Não poderei argumentar o ponto aqui, mas não me parece ser pela mera necessária sujeição normativa da vontade – reconhecida de modo eminentemente representacional13 – a uma lei da ação racional simpliciter, ou seja, simplesmente por estarmos “sob a lei moral” normativamente. Não, a lei moral é a lei da nossa própria agência racional: não seríamos agentes se essa não fosse a lei dessa agência. A lei moral é a lei dessa causalidade eficiente que é a nossa vontade14. A dependência parece dizer respeito à possibilidade mesma de sermos eficazes volicionalmente.
Mas isso saberíamos se tivéssemos o insight referido. E, note-se, o insight dizia respeito à liberdade de uma causa eficiente “principalmente no mundo sensorial” (5:94/152). Kant se compromete com a impossibilidade desse insight, e se regozija com a situação: “felizmente!” Não podemos – como já insistia a FMC – “explicar” a liberdade, isto é, sujeitá-la a uma compreensão “segundo princípios empíricos, como qualquer outra faculdade natural” (5:94/152). Portanto, abordagens empiricistas são necessariamente insatisfatórias, a liberdade não é uma “propriedade psicológica” presente na nossa alma ou nos “motivos da vontade” (como sugerido pela locução “fez porque quis”). A natureza da liberdade é outra para Kant. Se, por um lado, ela é, nas palavras dele, “um predicado transcendental da causalidade de um ente que pertence ao mundo sensorial”, mundo no qual ele presumivelmente exercita essa causalidade com essa propriedade – o que para Kant exige nada menos do que a atuação da razão prática “mediante a lei moral” (5:94/153), o que representa (e parece ser figurativo) “a abertura para um mundo inteligível” (5:94/153); isso só se dá de fato, por outro lado, pela “realização do conceito” de liberdade. Ou seja: pela ação com “dependência” da lei moral. Se não for assim, o conceito de liberdade será transcendente e o “mundo inteligível” será visto como o mundo hiperfísico da metafísica tradicional. Se essa “realização do conceito” não se der nos termos que Kant advoga e se, alternativamente, nos ativermos às explicações empiristas da liberdade como característica psicológica dos motivos da vontade, então, isso representará a supressão da “própria lei moral” (5:94/153).
É, então, para esvaziar essa possibilidade, que é uma “ilusão”, que Kant terá que mostrar qual é a sua metafísica da liberdade para a razão prática pura. Kant terá que mostrar que necessidade e liberdade são compatíveis, mas não segundo o “superficial” empirismo que concebe a ação livre simplesmente como a ação causada por “objetos internos” constituintes da vontade do agente, que agiu livremente simplesmente porque fez o que fez, ou seja, porque quis em conformidade aos desejos de sua vontade. Sem a referida metafísica, Kant não poderá afastar a ameaça de que a única compatibilidade à disposição é a típica empirista.
3. O Problema e o seu enfrentamento inicial via Idealismo Transcendental
Mostrar que necessidade e liberdade são compatíveis num sentido não trivial requer o enfrentamento do problema respeitando a tese da união. O problema está em dar conta da “liberdade, na medida em que ela deve unir-se ao mecanismo natural em um ente que pertence ao mundo sensorial” (5:99/163). A tese da união, necessidade e liberdade em uma e mesma ação – “a mesma ação, que enquanto pertence ao mundo sensorial é sempre sensivelmente condicionada, isto é, mecanicamente necessária, pode ao mesmo tempo, enquanto pertencente à causalidade do ente agente como parte do mundo inteligível, ter também como fundamento uma causalidade sensivelmente incondicionada, portanto ser pensada [tida, vista] como livre” (5:104/170) – exige em Kant uma visão que compatibilize, por um lado, a causalidade detectável no mundo sensível, que é “mecanicamente necessária”, e, por outro, esta outra causalidade, a “causalidade do ente agente”, que é uma causalidade bona fide, mas “sensivelmente incondicionada”. E isso [NB] na mesma ação. Então, o problema é, fundamentalmente, compatibilizar duas causalidades numa mesma ação. Que se trata, efetivamente, dessas causalidades em relação às nossas ações, Kant deixa claro da seguinte maneira:
É perfeitamente possível com respeito ao nosso próprio sujeito, [intermediar a conexão de um [...] ente inteligível com o mundo sensorial], na medida em que ele mesmo se reconhece, de um lado, como ente inteligível (em virtude de sua liberdade) determinado pela lei moral e, de outro, como atuando no mundo sensorial de acordo com essa determinação (5:105/172).
Ou seja, agindo no mundo, em suas ações físicas, em função dessa “causalidade do ente agente”, isto é, essa causalidade de agente15.
O primeiro movimento, na Elucidação prática, para a solução do problema consiste em enfrentar a situação utilizando a distinção básica do Idealismo Transcendental: fenômenos e coisas em si mesmas. O que Kant fará a partir disso é criticar o “conceito comparativo de liberdade” (atribuído a Leibniz). Mas, só com isso, o problema persiste. Vejamos.
Coisas existindo como fenômenos é que estão sujeitas à necessidade natural da causalidade, elas têm sua existência “determinável no tempo”. A outra causalidade, a “causalidade enquanto liberdade” deve ser atribuída às coisas como “coisas em si mesmas”. Se não respeitarmos a distinção transcendental, “a necessidade na relação causal não [poderá] de modo algum unificar-se como a liberdade; mas elas se [oporão] contraditoriamente entre si” (5:94/153). Vejamos a razão tipicamente incompatibilista esgrimida por Kant a esta altura, ela traz um uso do termo “ação” que merecerá mais atenção na continuação:
Pois da [relação causal] segue-se que cada evento, consequentemente cada ação que precede um determinado momento [que precede um evento!? Então: ação como evento que precede um evento?] está necessariamente sob a condição daquilo que era no tempo precedente. Ora, visto que o tempo passado não está mais em meu poder, cada ação que pratico tem que ser necessária mediante fundamentos determinantes que não estão em meu poder, isto é, jamais sou livre no momento em que ajo (5:94/153).
Esse seria um caso em que estou sempre
sob a necessidade de ser determinado a agir mediante aquilo que não está no meu poder, e a [...] série infinita dos eventos, que eu sempre só prosseguiria segundo uma ordem já predeterminada e não iniciaria espontaneamente em parte alguma, seria uma cadeia causal constante, portanto, minha causalidade jamais seria liberdade (5:95/154).
Para dar espaço à liberdade, no entanto, não se deve ir na direção do incompatibilismo metafísico. Não se trata de negar a necessidade natural e “[excluir o ente cuja existência é determinada no tempo] da lei da necessidade natural de todos os eventos em sua existência, por conseguinte, também de suas ações [em que sentido?]”, pois isso seria “entregar” o ente em suas ações “ao cego acaso” (5:95/154). Mas como proceder, defensavelmente, de modo compatibilista?
Neste ponto, Kant não facilita as coisas para o meu argumento. Porque apresenta um caso, que será naturalmente encarado como psicológico – assim convidando a uma leitura fortemente psicológica do conceito “comparativo” (chamado de “psicológico”) de liberdade, que, como vimos, é insuficiente para Kant. O caso é o de um furto “inevitável” (por que, como vimos, é insuficiente para Kant): um homem comete um furto e sua “ação” é um “resultado necessário segundo a lei natural da causalidade a partir de fundamentos determinantes do tempo precedente” (5:95/155), mas então “era impossível que [o furto] deixasse de realizar-se” (5:95/155). Mas, em função de que a lei moral exige que ele “deveria ter sido evitado”, então precisa ser o caso que “tal ato, não obstante, tivesse podido deixar de realizar-se”. Ou seja, o homem precisa ter podido não furtar. Mas como – “e com vistas à mesma ação” – pode o homem ser “totalmente livre” e “encontra[r]-se submetido a uma inevitável necessidade natural”?
Esse é o “difícil problema” que não pode ser resolvido por “um pequeno verbalismo” (5:96/156). Ou seja, através da decisão de chamarmos uma ação um “efeito livre” porque o “fundamento natural determinante encontra-se internamente no ente operante” (5:95/155), quer ele seja visto como uma “maquinaria” movida pela matéria, e assim seja um automaton materiale, quer seja visto como um ente “movido por representações” e seja assim um automaton spirituale leibniziano.
Aqui temos que ter cuidado, em função da equiparação dos automata por parte de Kant. O fato é que o automaton que interessa aqui é qualquer objeto que uma vez posto em movimento “não é [mais] impelido externamente por algo” (5:95/155). Isso vale para um projétil que é um corpo lançado e está em “livre movimento”, para um relógio que move ele próprio seus ponteiros, e, diz Kant, para “as ações do homem, [pois são] necessárias pelos seus fundamentos determinantes que as precedem no tempo”, não obstante nós as chamarmos “livres porque se trata de representações internas produzidas por nossas próprias faculdades, mediante cujas representações elas são apetites gerados segundo situações que os ensejam e, por conseguinte, são ações produzidas segundo nosso próprio arbítrio” (5:96/155-6). Não importa, portanto, o tipo de automaton, se tido como “efetiva máquina material” (cuja causalidade é estritamente “mecânica”) ou como “máquina espiritual” operante via representações (cuja causalidade é “psicológica”, não literalmente mecânica16), pois em ambos os casos a causalidade desse ente está determinada por “fundamentos determinantes” que “jazem no sujeito ou fora dele” (se no sujeito, “por instinto ou por fundamentos determinantes pensados racionalmente”), que pertencem ao ente “enquanto sua existência é determinável no tempo, por conseguinte sob condições necessitantes do tempo passado, as quais, quando o sujeito deve agir, não estão mais em seu poder” (5:97/156). Assim, embora chamemos esse um caso de “liberdade psicológica” (“se se quiser utilizar esta palavra a respeito de um encadeamento meramente interno por representações da alma”), essas “ações” terão “necessidade natural”, elas serão determinadas pelo “fundamento de sua existência [do sujeito] no tempo e, em verdade, no estado anterior do sujeito”. Isso que assim chamamos de liberdade da nossa vontade não será senão uma liberdade “psicológica e comparativa”, em nada melhor “que a liberdade de um assador [espeto] giratório, o qual, uma vez posto em marcha, executa por si os seus movimentos” (5:97/157).
Do que precisamos, ao invés, é da “liberdade transcendental”, essa que é uma causalidade com “independência de todo o empírico” e – note-se bem – “da natureza em geral”, e que é unicamente “a priori prática”. Essa liberdade da vontade é, ao invés, absoluta, isto é, sem qualquer determinação à ação por um estado anterior.
Duas coisas são dignas de nota a esta altura. Uma: que “toda a necessidade dos acontecimentos no tempo segundo a lei natural da causalidade pode chamarse de mecanismo da natureza” (5:97/157), ou seja, no que importa à discussão, a tal “causalidade psicológica” não é menos mecanismo da natureza que a “causalidade mecânica”17. Esse ponto será importante para o meu argumento na continuação. A segunda coisa a notar: a liberdade transcendental, “no último e autêntico sentido”, que é a liberdade requerida pela lei moral e que faculta a “imputação segundo a mesma” [de todas as ações?], até esse ponto não recebe maior esclarecimento por intermédio da distinção transcendental entre a existência das coisas no tempo e a existência “dessas coisas em si mesmas”. Se não somos como relógios, nem “relógios mentais”, somos como o quê?
4. A distinção que “se segue” da distinção transcendental da primeira Crítica
Ao “difícil problema” Kant se volta novamente via a distinção transcendental, mas agora ele permitirá que vejamos que há mais nela quanto à metafísica da liberdade para a razão prática. Que seja “mais” é apresentado assim: “Ora, para suprimir [...] a aparente contradição entre mecanismo natural e liberdade em uma e mesma ação, é preciso que nos recordemos do que fora dito na Crítica da Razão Pura ou do que dela se segue” (5:97/157-8, minha ênfase).
O que “se segue”? Segue-se uma distinção, que não é traçada por Kant de modo muito cuidadoso, e cujos termos não estão presentes nos lugares em que poderíamos querer que estivessem. Mas a distinção é feita, os seus termos estão presentes, e ela é crucial para articular o sentido da tese da união. Nossa discussão exige atenção ao proceder de Kant no texto.
a) Onde suspeitar a distinção: imputar-se a causalidade de fenômenos e arrependimento
Primeiramente, a necessidade natural é atribuída somente “às determinações daquela coisa que está submetida às condições do tempo”. É claro aqui que a necessidade natural objetifica aquilo ao que se aplica: a coisa submetida ao tempo. Mas e quando é aplicada ao sujeito e às suas ações? Diz Kant que, quando aplicada ao “sujeito agente”, ela só pertence a ele “enquanto fenômeno”. E note-se bem o fraseado quanto a essa qualificação: “Na medida em que os fundamentos determinantes de cada ação do mesmo se situam naquilo que pertence ao tempo passado” (5:97/158). Ou seja: enquanto que não se toma a “ação do mesmo” como propriamente ação porque o fundamento determinante do que acontece no ou via o sujeito “não está mais em [seu] poder” (5:97/158), isto é, não é propriamente ação. É nesse rol, no entanto, que Kant também coloca o que ele designa “seus atos já praticados” e até mesmo “seu caráter, determinável por eles” – mas, novamente somente “enquanto fenômenos”, isto é, enquanto acontecimentos, ocorridos, determinados, sujeitos às “condições de tempo”. Não propriamente como ações. Isso poderá ser visto no caso do arrependimento a seguir.
Mas se assim – submetidos à necessidade natural – não somos agentes, quando somos? Quando o sujeito se toma, é claro, “como coisa em si mesma”, mas o que isso significa exatamente nesse contexto prático?
Isso significa que o sujeito se toma como uma existência submetida “a si mesmo como determinável por leis que ele mesmo se dá pela razão”, e nessa existência (chamada por Kant de “inteligível”)
nada precede a determinação de sua vontade, mas cada ação, e em geral cada determinação de sua existência mutável de acordo com o sentido interno, e mesmo toda a sequência serial de sua existência como ente de sentidos, não pode, na consciência de sua existência inteligível, passar senão por consequência, jamais por fundamento determinante de sua causalidade enquanto noumenon (5:98/158).
É claro que Kant fala aqui de “cada ação”, mas a equiparação dessas com o que é determinável no tempo no sentido interno, e em geral determinável no tempo em função de o sujeito ser um “ente de sentidos” (como ente que tem estados determinados no tempo como estados sensíveis) faz com que o que importa sobre essas “ações” não seja que as tomemos propriamente como as ações de um “sujeito agente”, mas que sejam acontecimentos ligados ou pertencentes ao “sujeito agente” enquanto “ente de sentidos”. Ou seja, acontecimentos como resultados ou efeitos de ações propriamente ditas.
É essa acepção de “ações” não propriamente como ações, mas como acontecimentos, ocorridos, que deve estar presente na seguinte passagem aparentemente recalcitrante, na qual – note-se bem – o termo “ação” é, no entanto, também usado na sua acepção própria: daquilo que o sujeito agente faz.
Ora, sob esse aspecto [de o sujeito ser uma causalidade enquanto noumenon] o ente racional de cada ação contrária à lei cometida por ele [ele, de fato, agiu], ainda que ela como fenômeno [NB: “ela como fenômeno”, não “ela” simpliciter, ou seja, não como ação propriamente dita] seja no passado suficientemente determinada, e nessa medida, necessária, pode com direito dizer que ele poderia tê-la evitado (5:98/158-9).
Ora, porque é a “ação como fenômeno” é que é determinada segundo as condições do tempo. Não a ação propriamente dita. Claro que o sujeito agente não pode mudar o passado, mas o que Kant está dizendo é que aquela “ação como fenômeno” foi como mero acontecimento, ocorrido, determinado pelo que veio antes no tempo como acontecimento ou ocorrido no ou via o sujeito. No entanto, como ação propriamente dita – que é, não obstante, ação física (ou seja, capaz de causar acontecimentos ou ocorridos) – ela é uma causalidade daquelas “ações como fenômenos”. Afirma Kant:
Pois ela [como suficientemente determinada no passado], com todo o passado que a determina [isso pode valer também para “ações como fenômenos” pregressos], pertence a um único fenômeno de seu caráter que ele conquista para si mesmo [do qual ele é responsável] e de acordo com o qual ele [o “ente racional”], enquanto causa independente de toda a sensibilidade imputa-se a causalidade daqueles fenômenos [que sejam os fenômenos que são, como as consequências de suas ações] (5:98/159)18.
Isso é o que deveríamos poder ver na explicação da natureza (dual) do arrependimento. Ele é um sentimento doloroso (Kant: “sensação dolorosa”, para destacar a dimensão hedônica negativa real) produzido por “disposição moral”, pela “consciência moral” (Gewissen; vs. Bewußtsein), quando da avaliação moral negativa (“autorrepreensão”, “censura”) de uma ação pregressa (“um ato cometido”). Uma pergunta é: como se produz exatamente? E na resposta há algo de necessário, como no caso da produção do respeito.
Kant trata de assinalar dois aspectos do arrependimento. O primeiro: o arrependimento é “praticamente vazi[o]”. Isso não se deve exatamente a que o sentimento tenha uma dimensão absurda porque ele “não pode servir para tornar o acontecido não acontecido” (5:98/160), o que Kant oferece como a razão para essa avaliação. Esse sentimento é praticamente “vazio” porque para ser relevante praticamente ele teria que se pronunciar sobre o que pode ser deliberativamente engendrado, sobre como temos que determinar deliberativamente o que fazer. E nisso um sentimento voltado somente ao que já aconteceu, já foi feito, não pode ajudar.
Mas o seu outro aspecto lhe dá lugar na psicologia moral kantiana. O arrependimento, esse sentimento doloroso, é, “enquanto dor, [...] perfeitamente legítim[o]” (5:98/161), ou seja, o entretenimento desse sentimento hedonicamente negativo é um artigo genuíno da experiência moral. Mas por que se é praticamente vazio? Por causa da sua produção, do modo como se origina. Nisso, o que é crucial é um reconhecimento da razão.
Quando, “enquanto dor”, o arrependimento é legítimo? Somente quando a razão se volta à ação – como ação propriamente dita – “e pergunta somente se o evento me pertence como ato” (5:98/161), ou seja, se o acontecimento, o ocorrido, foi uma ação bona fide; e isso a razão faz munida unicamente da “lei de nossa existência inteligível”, isto é, da lei moral, apreciando então o ocorrido sem reconhecer – na pergunta sobre se é minha ação – qualquer “diferença de tempo” (“quer ele tenha ocorrido agora ou há muito tempo”). Quando, então, a razão visa desse modo o ocorrido, e o reconhece como ação, ela (NB: a razão) pode vincular ao ocorrido como ação “moralmente a mesma sensação”, isto é, a dor própria do arrependimento. Esse parece ser mais um caso de relação necessária entre razão e nossa sensibilidade. Mas o que isso requer metafisicamente quanto à agência?
b) Preparação para a distinção: a radicalidade do compatibilismo de Kant
Vimos anteriormente que se não respeitarmos a distinção transcendental em relação às nossas “ações”, então o desideratum inextirpável de preservar a liberdade nos conduz inevitavelmente ao incompatibilismo metafísico, que exige negar necessidade natural ao ente cuja existência é determinada no tempo, também às suas “ações”, isto é, promover o “cego acaso” em relação aos fenômenos. No entanto, para registrar seu comprometimento com o compatibilismo necessidade-liberdade, Kant novamente se socorre de um caso: o de um caráter inevitável, de um “malvado inato” (5:99/162; antes era o de uma “ação” inevitável: um furto)19 – que naturalmente convida a uma leitura de novo quase que exclusivamente psicológica do que Kant afirma precisa ser aceito: a necessidade natural em relação à “cadeia de fenômenos” (5:99/161-2). Isso representará uma dificuldade – um modo recalcitrante de expressão – em relação à distinção que quero atribuir a Kant. A ver.
É no presente contexto que Kant apresenta talvez o seu paralelo compatibilista mais conhecido: se conhecêssemos (com uma “tão profunda perspiciência” [insight]) cada motivo (“mesmo o menor”) para a “maneira de pensar de um homem”, então “poderíamos futuramente calcular a conduta de um homem com a certeza de um eclipse lunar ou solar” (5:98/161). Mas – e é muito importante notar o seguinte: sem que se prejudique o comprometimento com a necessidade natural do que acontece como fenômeno – isso é apresentado como uma especulação: “[...] podemos admitir que, se nos fosse possívelter uma tão profunda perspiciência...” (5:98/161; minha ênfase). É dessa especulação que Kant se utiliza para registrar seu comprometimento resoluto com o compatibilismo necessidade-liberdade: podemos, não obstante, “afirmar a propósito que o homem seja livre” (5:99/161)20.
Mas, então, não nos é possível o tal “cálculo” (por que exatamente não procurarei responder aqui). Notável, no entanto, é que essa impossibilidade é comparada com outra: a de termos uma “intuição intelectual do mesmo sujeito” da especulação anterior. Nesse caso, o que saberíamos é que ele é livre também. Mais importantes do que a presente especulação são os termos usados por Kant para articular o que “perceberíamos”:
que toda esta cadeia de fenômenos [tudo que é fenômeno pertence ao “ente de sentidos de nosso sujeito”] em relação ao que sempre e somente pode dizer respeito à lei moral depende da espontaneidade do sujeito como coisa em si mesma, de cuja determinação não pode absolutamente ser dada nenhuma explicação física (5:99/162).
Mas, então, como o compatibilismo radical – esse em relação a uma e mesma ação – é possível? Qual é, afinal, a metafísica da liberdade que o articula?
c) A distinção entre ação e efeito ou resultado da ação
Vimos anteriormente Kant distinguir, por um lado, a aplicação da necessidade natural ao sujeito e às suas “ações”, envolvendo a submissão desses às condições do tempo, com a consequência de que ela pertence a eles dois somente “enquanto fenômenos”. Nesse caso, falamos de acontecimentos, de ocorridos, sujeitos àquilo que pertence ao tempo passado. Por outro lado, chamamos de ação propriamente dita, ou falamos da “ação” do sujeito como o que é propriamente ação, algo que é ação física de fato, ou seja, essa ação é capaz de causar acontecimentos e ocorridos no mundo físico. E dissemos, então, que esse causar é o causar daquelas “ações como fenômenos”. É nessa capacidade que Kant apresenta o “ente racional” como “causa independente de toda a sensibilidade” [essa é a outra causalidade, a “causalidade livre”, essa do “ente agente” que é, não obstante, causalidade bona fide também] imputando-se a causalidade daqueles fenômenos, ou seja, a causalidade das “ações” como acontecimentos ou ocorridos. Com isso tínhamos Kant começando a traçar a distinção que interessa.
Com a resposta de Kant ao “malvado inato” temos, no entanto, uma formulação cujos termos são recalcitrantes à clara distinção que Kant precisa estar fazendo nesse contexto de articulação da metafísica da liberdade. É que a resposta de Kant se utiliza do conceito de “uniformidade da conduta”, que sugere fortemente tratar-se, por óbvio, da necessidade natural das ações como “fenômenos” meramente psicológicos. Mas a sugestão pode e deve ser resistida.
Kant afirma que o “malvado inato”, adulto ou não, é imputável, e é tido como culpado pelos seus crimes. Mas isso exige o seguinte:
[...] Tudo o que emerge do seu arbítrio (como sem dúvida cada ação praticada intencionalmente) tem como fundamento uma causalidade livre que desde cedo expressa seu caráter em seus fenômenos (as ações) [aqui “ações” está por ações como acontecimentos, ocorridos], os quais, em virtude da uniformidade da conduta, dão a conhecer um nexo natural que, porém, não torna necessária a qualidade viciosa da vontade, mas, muito antes, é a consequência de proposições fundamentais más e imutáveis, livremente assumidas, as quais só tornam a vontade tanto mais reprovável e condenável (5:99/162-3).
A causalidade livre “expressa” o “caráter”, que é a livre assunção de “proposições fundamentais más”, “em seus fenômenos (as ações)”. A referência a “fenômenos” aqui só pode ser ao que está sujeito às condições do tempo. Portanto, não obstante a referência a eles através de “ações”, o que está em jogo não são as ações propriamente ditas, mas as “ações” como acontecimentos ou ocorridos. Então, o mau caráter expressa esse caráter via sua causalidade livre como “ente racional” em “fenômenos”, em acontecimentos ou ocorridos ante nossos olhos. Agora vem a dificuldade.
Os “fenômenos” em questão pareceriam, como fenômenos, se apresentar numa “uniformidade de conduta”. Isso sugere uma regularidade perfeita. Essa uniformidade daria a conhecer um “nexo natural” que, não obstante, não torna o mau caráter alguém malvado necessariamente, ou seja, fatalmente mau. Mas vejamos o que pode estar em questão aqui. Se dermos à expressão “nexo natural” uma leitura forte, o que parece ser exigido, então o quadro poderia ser o seguinte.
A uniformidade da conduta, por um lado, poderia ser somente isso; não a expressão de uma lei causal sobre o comportamento, ou seja, não se trataria de assim podermos inferir uma lei psicológica do comportamento. Não obstante, essa regularidade poderia ser tomada como indicativa de um “nexo natural” pertencente ao “mecanismo natural em um ente que pertence ao mundo sensorial” (5:100/163). Aqui, a referência parece ser ao mundo corpóreo, físico, assim, quanto ao que acontece ao automaton, quer materiale quer spirituale, o que importa é tratar-se de um “mecanismo da natureza” (5:97/157).
Por outro lado, o que o nexo natural causal exige é mais do que uma mera uniformidade, ele exige a determinação causal completa pelo estado temporal anterior, exige que o que ocorre, mesmo que em mim, mesmo que eu seja o veículo, faça com que eu esteja “sob a necessidade de ser determinado a agir mediante aquilo que não está em meu poder” (5:95/154). Então, uma leitura forte do “nexo natural” faz dele um nexo com necessidade, o que só poderia ser encontrado, de fato, na “causalidade mecânica” pertencente ao que ocorre nos corpos. Uma leitura fraca do “nexo natural” faz dele uma conexão necessária, porque devida ao que vem antes no tempo (assim uma alternativa “não está em meu poder”), mas não subsumível a uma lei do comportamento (algo como o que preconiza o Monismo Anômalo). Mas é necessário lembrar: são equiparados, por Kant, projéteis em voos livres, relógios de corda em funcionamento e homens “agindo” com “liberdade psicológica” (ou “comparativa”). Que essas “ações” sejam via representações é importante e está refletido no fato de se tratar de um caso de liberdade psicológica, mas, quanto à necessidade, ela convida a remissão ao que ocorre materialmente, fisicamente, pois é somente aí que temos a determinação do que acontece com necessidade natural21.
A distinção que, portanto, é crucial à articulação da metafísica da liberdade em Kant é esta entre ações propriamente ditas, por um lado, e resultados ou efeitos dessas ações, por outro, sendo que as ações não são eventos que causam esses resultados ou efeitos. O “ente agente” racional livre é, sim, uma causa eficiente, um causador com poder causal físico, mas – e isso é crucial – ele não causa suas ações. Suas ações são justamente o causar de eventos que são os resultados ou efeitos de suas ações. Vejamos essa distinção nos termos que Kant utiliza.
O contexto histórico é o de uma Teodiceia. O problema para a “afirmação da liberdade”: Deus como “ente originário universal”, “ser de todos os entes” (5:100/163), seria também o responsável pelas nossas ações (“ter-se-á também de admitir que as ações do homem tenham o seu fundamento determinante [...] naquele ser” [5:100/164]). A distinção transcendental será, então, posta a serviço do tratamento do seguinte problema:
[...] se as ações do homem, da maneira como elas pertencem às suas determinações no tempo, não fossem simples determinações dele enquanto fenômeno [como acontecimentos, ocorridos, a seu respeito] mas enquanto coisa em si mesma, a liberdade não se salvaria. O homem seria uma marionete ou um autômato de Vaucanson, fabricado e posto em movimento pelo mestre supremo de todas as obras de arte (5:101/164).
Aliberdade não se salvaria se não distinguíssemos entre ações propriamente ditas e eventos, os acontecimentos ou ocorridos, ligados a nós como seres do “mundo sensorial”, a nós primariamente como corpos, porquanto, na medida em que esses eventos são completamente determinados somente por eventos anteriores, como quando um autômato é posto em movimento por um mecanismo com o seu próprio movimento, nosso “comportamento” – nossas ações de fato – seria somente movimento do nosso corpo causado por eventos físicos anteriores (sinapses e contrações em nós) “fora do nosso poder”.
Se esse fosse um autômato também pensante, sua consciência de si gerando uma consciência de espontaneidade como liberdade não faria qualquer diferença segundo Kant (é como acontece com a razão que não sendo prática somente reflete sobre a perfeição da natureza que nos dotou de um instinto para a felicidade no contexto do conhecido argumento teleológico da primeira seção da Fundamentação). Militaríamos sob um engano: essa liberdade é meramente comparativa – e note-se bem do que Kant está falando – “porque as causas determinantes próximas de seu movimento e uma longa série delas, em verdade, são internas [representações], mas a última e suprema é encontrada totalmente em mão estranha [Deus]” (5:101/164).
Então, se nossas ações forem somente eventos físicos, o que Kant chamou de “fatalidade das ações” seria inevitável. Mas, note-se, o que é crucial para o meu argumento: elas seriam somente movimentos causados por “causas determinantes próximas” anteriores no tempo e, de fato, “fora do nosso poder”. Desse modo, no espinozismo p. ex., nós – as “coisas dependentes” do “ser supremo” – não somos substâncias genuínas, mas “meros acidentes inerentes” a esse ser, precisamente porque a criação divina de seres como nós seria a criação de coisas como efeitos existentes “simplesmente no tempo” (tempo aqui é propriedade da coisa em si e não “simples forma da intuição sensível, consequentemente como simples modo de representação que é próprio do sujeito enquanto pertencente ao mundo sensorial” (5:100/163), caso em que a “sua [de Deus] causalidade em relação à existência dessas coisas tem que ser condicionada mesmo quanto ao tempo” (5:101/165)). Mas, assim também, nossas “ações” seriam simplesmente eventos físicos (acontecimentos, ocorridos) que “teriam de ser meramente ações suas [de Deus] que ele exercesse em algum lugar ou tempo qualquer” (5:101/166). É assim que acabamos por conceber nossa criação “se os entes tomados por substâncias e existentes em si no tempo são considerados efeitos de uma causa suprema” (5:102/166). A situação é distinta com a concepção de Kant, e o problema pode ser resolvido. Isso se ações não são “somente eventos físicos”. Mas em que sentido são também esses eventos e em que sentido não são simplesmente tais eventos?
A “resolução da dificuldade” da Teodiceia é que traz os termos kantianos mais claros da distinção que nos interessa em relação à ação humana. Por causa da idealidade transcendental do tempo, a criação por parte de Deus de seres como nós (de “entes pensantes no mundo”) é “criação de coisas em si mesmas”, “porque o conceito de criação não pertence ao modo de representação sensível da existência e à causalidade, mas só pode ser referido aos noumena” (5:102/166). Ou seja, essa criação, fazer surgir de fato [do nada!?], é criação de substância genuína. Então, “se de entes do mundo sensorial digo que são criados, então e nessa medida os considero como noumena” (5:102/166, minhas ênfases). Mas, então, a consequência é que Deus não é um “criador de fenômenos”, dizê-lo seria contraditório. E o que se segue disso para as nossas ações?
Que “é também contraditório dizer que ele como Criador seja causa de ações no mundo sensorial, por conseguinte enquanto fenômenos, embora ele seja causa da existência dos entes agentes (enquanto noumena)” (5:102/1667, minha ênfase). Esse é o texto mais claro para os meus propósitos. Por paridade de raciocínio, se Deus não é o criador, o causador, das ações enquanto fenômenos, ou seja, ele não é o causador das “ações” enquanto eventos físicos cujas existências estão condicionadas no tempo enquanto tais, então nós – os “entes agentes” (os noumena) – somos os causadores enquanto agentes dessas “ações” enquanto eventos físicos. Ou seja, nós não somos causadores das nossas ações propriamente ditas, porque nossas ações são, de fato, a nossa causação das nossas “ações” enquanto fenômenos, isto é, como eventos físicos.
O quadro kantiano é, portanto, o seguinte. A liberdade nas nossas ações está preservada, não se verifica a fatalidade das ações em função da criação, porque a existência no tempo se aplica simplesmente a fenômenos, às nossas “ações” como eventos físicos, e nós, como noumena, estamos fora dessa condição para esse tipo de existência. Consequentemente, nossa liberdade pode ser afirmada conjuntamente à afirmação “do mecanismo natural das ações enquanto fenômenos” (5:102/167). Mas isso porque nós como “entes mundanos” que existem como coisas em si mesmas, como substâncias em sentido genuíno, somos autores (criadores) de nossas “ações” enquanto acontecimentos ou ocorrências segundo “o mecanismo nessa[s] substância[s]”. Ou seja, Deus é o criador da substância que somos, mas não é – nós somos! – “o autor de todo mecanismo nessa substância” (5:102/167). Nós somos causadores de eventos físicos por sermos “entes agentes”. Essa é a “causação de agente” de Kant, que não é uma “causação de eventos”. Esse é o outro tipo de causalidade exigido por sua posição. Nós temos – enquanto agentes – um “mecanismo” na nossa substância (noumenon) que é a causação de “ações enquanto fenômenos”, mas o exercício dessa causação não é ele próprio um caso de uma “ação enquanto fenômeno”, não é um evento físico causando outro evento físico. Kant, claramente, crê que isso resolve o problema da Teodiceia ao preservar a liberdade das nossas ações juntamente com as suas determinações enquanto acontecimentos, ocorrências, no tempo. Trata-se de um compatibilismo genuíno.22
Coda
Contemporaneamente, faz-se uma distinção que articula de modo independente a distinção que atribuí a Kant, essa entre ações em sentido próprio e os resultados ou efeitos de ações como acontecimentos ou ocorridos, eventos físicos. A distinção é esta entre movimento em sentido intransitivo e movimento em sentido transitivo23.
Na filosofia da ação em relação a ações físicas contemporânea, é comum a posição de que ações são movimentos corporais, a discussão centrando-se, então, em determinar a causa das ações assim compreendidas. Mas os termos “movimentos corporais” são ambíguos, dependendo dos usos intransitivo e transitivo dos verbos de movimento. Fazendo-se essa distinção, pode-se aceitar que uma ação é um movimento corporal, mas somente no sentido transitivo dos verbos de movimento. Se a pessoa A ergue o seu braço, então o erguer do seu braço é uma ação de A; e o levantar, o erguer-se, do braço é um evento de A. Na afirmação “o braço levantou” (ou “o braço ergueu-se”24) o uso do verbo é intransitivo e registra um evento, um acontecimento ou ocorrido. Esses usos do verbo podem receber subscritos: “T” e “I”. Então a pessoa A “levantouT” seu braço e o braço “levantouI” (o braço de A). A distinção, então, é necessária para que possamos diferenciar uma ação que não é um evento e o efeito ou resultado de uma ação que pode sim ser um evento. Mas, nesse caso, a pessoa A não causa sua ação, somente o efeito ou resultado dela. O rationale da distinção é o seguinte: a pessoa A levantar o seu braço é ela causar o erguer-se do seu braço, mas isso não quer dizer que A levantar o braço é um evento, pois sua ação é na verdade levantarT o braço. Não é certo que o causar, mesmo que de um evento, seja ele mesmo um evento. Mas se isso for aceito, então, o levantar do braço por um agente não é o mero levantar-se desse braço. E assim a pessoa A não causa a sua ação que é o levantarT do braço, mas causa o levantarI do braço, que é um evento, o efeito ou resultado da ação. Ou seja, ações que são movimentos corporais – as ações físicas – são casos de “moverT” e não são nesse sentido eventos, mas o causar de eventos, que são o que podemos registrar como casos de “moverI”, “o braço levantouI”. Mas, se for assim, então, o agente pode ser o causador de acontecimentos e ocorridos sem que o causar desses últimos seja ele próprio um evento. O causar do agente é uma “causalidade de agente”, e não uma “causalidade de eventos”. Nesse caso, estamos comprometidos com um princípio mais fraco do que o exigente “somente eventos podem causar eventos”25. Necessariamente, porque aceitamos a causação de agente. Consequentemente, aceitaremos um princípio que justamente faz justiça ao compatibilismo da metafísica da liberdade de Kant: “todo evento que tem uma causa é causado por outro evento”, pois, nesse caso, um evento pode ter sido causado pelo agente e ter também um evento como sua causa que não é a ação do agente. E isso “em uma e mesma ação”, se distinguirmos nessa o que pertence à causação do agente e o que pertence à causação de eventos. O agente causa o evento e2 e esse evento terá uma causa no tempo precedente que é o evento e1, mas disso não se segue que a ação do agente que é o causador de e2 seja e1. A ação propriamente dita não é um acontecimento ou ocorrido, ou, nos termos mais familiares para kantianos, a ação “do ente agente” (ou racional) não é “ação como fenômeno”, ou a “ação no mundo sensorial” (ou ainda, no plural: “ações efetivamente dadas na experiência como eventos do mundo sensorial” [5:105/170]). Pois diz Kant:
[...] A mesma ação, que enquanto pertencente ao mundo sensorial é sempre sensivelmente condicionada, isto é, mecanicamente necessária, pode ao mesmo tempo, enquanto pertencente à causalidade do ente agente, como parte do mundo inteligível, ter também como fundamento uma causalidade sensivelmente incondicionada, portanto, ser pensada como livre (5:104/170, minha ênfase).
Bem, é certo, também, que em Kant a causalidade do ente agente, essa “sensivelmente incondicionada”, tem a sua lei: a lei moral26. Mas essa é uma (outra) história que, não obstante aparências em contrário, pode também aplacar pruridos quanto à metafísica da liberdade para a razão prática aqui apresentada.
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1
William Alston (1985), p.225; cf. também Bede Rundle (2006) p.154 [minha tradução; o que ocorrerá sempre, a não ser quando o tradutor é indicado].
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2
Crítica da Razão Prática, Vol. 5 da edição da Academia, p. 97. Farei citações da segunda Crítica por meio dessa identificação do seu volume na Edição da Academia (de Berlim), que é o 5, e da paginação desse volume em primeiro lugar, seguida da paginação da tradução de Valério Rodhen. O mesmo vale para citações da Fundamentação, que é o volume 4 da Edição da Academia, paginação nesse volume, mais a paginação da tradução de Guido de Almeida.
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3
O termo aqui está sendo usado na acepção em que ocorre, p. ex., no clássico Free Will (1982), editado por Gary Watson (na sua Introdução), e, em especial, por Peter Strawson no seu “Freedom and Resentment”, ou seja, na acepção metafísica própria à discussão do compatibilismo entre liberdade e necessidade. Ou seja, o sentido aqui não é o da Filosofia Política, em que Nozick é visto como um “libertariano”.
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4
Allen Wood (1984), p. 101.
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5
Cf. Pierre Keller (2010), p. 120.
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6
Cf. Erick Watkins (2005): pp. 319 ss., para a distinção entre interpretações de “duplo aspecto” do Idealismo Transcendental, que são de “abstração” e de “dois pontos de vista”. Na primeira, a coisa em si é pensada quando abstraímos das propriedades espaço-temporais e categoriais dos objetos da realidade, enquanto que, na segunda, o ponto de vista a partir do qual pensamos na coisa em si é o da deliberação sobre a ação. A última interpretação é atribuída a C. Korsgaard (em Creating the Kingdom of Ends) por Watkins. É essa que me parece insatisfatória (cf. Watkins (2005), p. 322, para uma crítica similar em termos da pergunta sobre se ambos os pontos de vista podem ser verdadeiros ou se um precisa ser ilusório).
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7
Cf. Watkins (2005), pp. 335-6, para o que parece ser a negligência desse ponto.
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8
Cf. André Klaudat (2010), p. 91.
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9
Barbara Herman (2005), p. 25.
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10
Barbara Herman (2007, p. 182).
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11
Cf. André Klaudat (2011).
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12
Todas as referências na sequência imediata pertencem às pp. 5:83-5/152-3.
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13
Quanto à distinção “sob a ideia” (envolvendo uma representação) e “em consequência dessa ideia” (como efeito, representacionalmente, da ideia), na nota 108 (5:60/95), Kant distingue dois sentidos da expressão sub ratione boni. O primeiro é o de “nós nos representarmos algo como bom se e porque o apetecemos (queremos)”, e nesse caso o querer é o “fundamento determinante do conceito do objeto como algo bom” – nesse caso, a situação é que “queremos algo sob a ideia de bom”. O segundo sentido requer: que “nós apetecemos algo porque nos representamos como bom”, caso no qual “o conceito de bom [é] o fundamento determinante da apetência (da vontade)” – nesse último caso, queremos algo “em consequência dessa ideia [de bom], que tem de preceder o querer como seu fundamento determinante”. Isso significa: somos causas eficientes em função dessa ideia; e não porque o somos de qualquer maneira, sendo que seríamos obrigados ainda a sujeitar nossos desejos a uma lei para eles. Para uma visão tradicional da máxima em questão, justamente essa que parece ser o alvo da crítica de Kant, cf. Peter Geach (1967), que, ironicamente, intenciona estar criticando Kant.
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Cf. Robert Johnson: “Agentes racionais estão comprometidos a [agir sob a ideia de que a lei sob a qual suas volições estão é uma lei causal que se aplica à causalidade de todos os outros seres racionais], não porque eles são racionais, mas porque a alternativa é que eles não seriam uma causa originadora por si só das suas ações” (2009), p. 89. Cf. também Barbara Herman (2007a).
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Cf. 5:97/158: “sujeito agente”; 5:104/170: “ente agente”.
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No caso da “causalidade psicológica”, Kant insiste que a ação é produzida “mediante representações e não mediante movimento corporal”, assim dando a entender que há algo de distintamente relevante para a presente discussão nessa causalidade, o que a meu ver, no entanto, não se confirma.
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Cf: “Die Einrichtung, daß alles in der Welt nach beständigen Regeln geschieht, kann man nennen den Mechanism der Natur. Mechanism eines Dinges heißt sonst die Einrichtung eines Dinges nach Gesetzen der Bewegung, aber, allgemeiner kann es die Einrichtung nach allerlei Arten von Gesetzen bedeuten. In der Sinnen Welt, geht also alles nach dem Mechanism der Natur, nach Natur Nothwendigkeit” (Metaphysik Mrongrovius, Ak 29:924, linhas 5-11).
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“Pois a vida dos sentidos tem, em relação à consciência inteligível de sua existência (da liberdade), unidade absoluta de um fenômeno, o qual, na medida em que contém simplesmente fenômenos da disposição concernente à lei moral (do caráter) tem que ser ajuizado não segundo a necessidade natural que lhe pertence como fenômeno mas segundo a espontaneidade absoluta da liberdade” (5:98/161).
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Melhor: o caso de alguém que, desde a infância, apesar de uma boa educação, é malvado precocemente e assim continua até ser adulto (cf. VR162).
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É importante para mim que se trate de mera especulação (há a convicção entre kantianos de que a psicologia não pode ser uma ciência em Kant), portanto, não é de fato possível o “cálculo” aludido por Kant. Mas o objetivo do paralelo certamente é o de endossar resolutamente o compatibilismo. Mas qual exatamente? A ver com a distinção que procurarei estabelecer na sequência. Mas compare-se a posição com a de Peter Geach: “Se circunstâncias físicas descritíveis sem referência às minhas intenções permitiram a alguém predizer que ondas sonoras saíram da minha boca, então a minha liberdade de expressão seria uma reles ilusão” (2000, p. 79). Se, por um lado, também não parece haver uma ciência psicológica prevendo ações; por outro, a única genuína preservação da liberdade parece exigir um incompatibilismo metafísico. A resposta parece precisar ser: como sons saindo da minha boca, talvez; como fala, com referência às minhas intenções, está fora de propósito, minhas falas não são a mera ocorrência de sons, embora elas por certo sejam sons que produzo justamente ao falar.
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“[...] Conquanto ele como sujeito que também pertence ao mundo sensorial seja mecanicamente condicionado em relação a ela [“uma ação dada”]” (5:100/163, minha ênfase).
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Cf. Bede Rundle (2004), Capítulo 7: “Mind and Agency”.
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A distinção é feita por, entre outros, Maria Alvarez e John Hyman: Agents and their Actions. Philosophy 73, 1998; Jennifer Hornsby: Simple Mindedness, In Defense of Naïve Naturalism in the Philosophy of Mind. Harvard U.P., 1997; Helen Steward: A Metaphysics for Freedom. Oxford U.P., 2012.
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Cf. Houaiss: “erguer” é somente T.D. ou Pron. (p. 1187): 11. Pron. “Apresentar-se ereto, levantado”.
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25
Cf. Alvarez e Hyman, op. cit., p. 227.
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26
Cf. Johnson: “A lei moral é a lei de acordo com a qual opera a causalidade de uma vontade racional” (op. cit., p. 95).
Referências
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
01 Dez 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
03 Ago 2023 -
Aceito
11 Out 2023
