RESUMO
Segundo a leitura canônica, a matemática alvo da etapa da dúvida em que Descartes recorre à hipótese do Deus enganador seria a matemática segundo a concepção cartesiana, isto é, a matemática concebida como conhecimento constituído por ideias claras e distintas e, por essa razão, ao duvidar do conhecimento matemático, estar-se-ia duvidando da verdade das ideias claras e distintas. Apesar de já bastante estabelecida a plausibilidade dessa interpretação, com base, sobretudo, na passagem em que Descartes, nas Meditações metafísicas, introduz uma possível distinção entre, de um lado, as ciências como a física e, de outro, as matemáticas, meu objetivo nesse texto é discutir qual seria a concepção de matemática considerada na Primeira Meditação e sugerir que esta matemática dubitável não pode ser um exemplo de ciência constituída por ideias claras e distintas, o que implica que as ideias claras e distintas não seriam postas em questão pelo recurso à hipótese de um Deus enganador. A hipótese a ser sustentada é a de que, em vez de ideias claras e distintas, a dúvida cartesiana, em todas as suas etapas, inclusive na etapa em que Descartes recorre à hipótese do Deus enganador, tem como alvo o processo abstrativo que, segundo a escolástica de inspiração aristotélica, é a primeira das operações cognitivas e cujo princípio fundamental é o de que todo e qualquer conhecimento, de um modo ou de outro, depende da matéria.
Palavras-chave:
Descartes; Ciências naturais; Matemática; Deus enganador
ABSTRACT
According to the canonical reading, the mathematics that is the target of the stage of doubt in which Descartes resorts to the hypothesis of the deceiving God is the mathematics according to the Cartesian conception, that is, a mathematics conceived as knowledge constituted by clear and distinct ideas and, for this reason, doubting mathematical knowledge is doubting the truth of clear and distinct ideas. Although the plausibility of this interpretation has already been established, based, above all, on the passage in which Descartes in the Metaphysical Meditations introduces a possible distinction between, on the one hand, sciences such as physics and, on the other, mathematics, my objective in this text is to discuss what would be the conception of mathematics considered in the First Meditation and to suggest that this doubtful mathematics cannot be an example of science constituted by clear and distinct ideas, which implies that clear and distinct ideas would not be called into question by resorting to the hypothesis of a deceitful God. The hypothesis to be supported is that, instead of clear and distinct ideas, the Cartesian doubt, in all its stages, including the stage in which Descartes resorts to the hypothesis of the deceiving God has, as its target, the abstractive process that, according to the scholastic of Aristotelian inspiration, is the first of the cognitive operations and whose fundamental principle is that all and any knowledge, in one way or another, depends on matter.
Keywords:
Descartes; Natural Sciences; Mathematics; Deceiving God
Introdução
Tradicionalmente considera-se que a matemática que aparece na Primeira Meditação das Meditações metafísicas1, o alvo da dúvida que recorre à hipótese do Deus enganador, é um exemplo de conhecimento constituído por ideias claras e distintas. O recurso à hipótese de um Deus enganador, segundo essa tradição interpretativa, tem a função de complementar e, assim, radicalizar a dúvida apresentada nessa Primeira Meditação, atingindo algo até então não atingido: as ideias claras e distintas. Por meio de etapas argumentativas apresentadas antes do recurso à hipótese do Deus enganador, Descartes teria posto em questão o que seria o conhecimento obtido por meio dos sentidos e da imaginação e, finalmente, com o recurso a essa hipótese, teria concluído a dúvida pondo em questão o que seria o conhecimento obtido por meio da razão sem o auxílio dos sentidos, isto é, conhecimento obtido por meio de ideias claras e distintas, ainda que essas ideias não sejam mencionadas. Segundo essa leitura canônica, a matemática alvo da dúvida que recorre à hipótese do Deus enganador seria a matemática segundo a concepção cartesiana, isto é, a matemática concebida como conhecimento constituído por ideias claras e distintas e, por essa razão, ao duvidar do conhecimento matemático, estar-se-ia duvidando da verdade das ideias claras e distintas. Ainda segundo essa tradição interpretativa, por consequência, a função da prova da existência de um Deus veraz seria a de eliminar a base da dúvida da verdade das ideias claras e distintas, garantindo, assim, a legitimidade da operação da razão pura, que produz ideias claras e distintas, como fonte de conhecimento.2
Apesar de já bastante estabelecida a plausibilidade dessa interpretação, com base em algumas passagens das Meditações metafísicas, meu objetivo nesse texto é discutir qual seria a concepção de matemática considerada na Primeira Meditação e sugerir que esta matemática dubitável não pode ser um exemplo de ciência constituída por ideias claras e distintas, o que implica que as ideias claras e distintas não seriam postas em questão pelo recurso à hipótese de um Deus enganador.
O problema acerca de qual é a concepção de conhecimento matemático tratada na Primeira Meditação surge a partir de um, ao menos aparente, paradoxo entre o que Descartes diz na Primeira Meditação, ao recorrer à hipótese de um Deus enganador, e o que ele diz na Terceira Meditação ainda antes de provar a existência de Deus veraz. Mencionando, nessas duas Meditações, dentre outras coisas, o mesmo exemplo tomado da matemática (“dois e três fazem cinco”), no final da Primeira Meditação, por meio do recurso à hipótese do Deus enganador, Descartes afirma a dubitabilidade da matemática, e no início da Terceira Meditação, antes mesmo de eliminar essa hipótese de um Deus enganador, isto é, antes mesmo de provar a existência e a veracidade divinas, Descartes afirma a indubitabilidade da matemática. Ao recorrer à hipótese do Deus enganador, na Primeira Meditação, Descartes se pergunta se poderia ser o caso de Deus ter desejado que eu me engane “cada vez que adiciono dois a três ou conto os lados do quadrado, ou faço outra coisa que se possa imaginar ainda mais fácil” [AT VII: 21. Ênfase acrescentada]. No início da Terceira Meditação, ainda antes da prova da existência de Deus, Descartes afirma “engane-me quem puder, nunca poderá fazer, no entanto, que eu nada seja, enquanto eu pensar que sou algo ... ou, talvez mesmo, que dois juntos a três fazem mais ou menos do que cinco, ou coisas semelhantes, nas quais reconheço manifesta contradição. [AT VII: 36. Ênfase acrescentada].
Um primeiro ponto a ser notado com relação a essas passagens é que, ao recorrer à hipótese do Deus enganador na Primeira Meditação, onde claramente afirma a dubitabilidade da matemática, Descartes não menciona nem sequer fornece qualquer pista de que esta seria um exemplo de conhecimento constituído por ideias claras e distintas. Um segundo ponto a se observar é que, ao contrário, no texto do início da Terceira Meditação, ao afirmar a indubitabilidade da matemática, Descartes parece, ali sim, associála a ideias claras e distintas quando 1) afirma haver uma semelhança quanto à indubitabilidade entre a matemática, o cogito e coisas semelhantes; 2) caracteriza essas ideias indubitáveis como ideias cuja negação é contraditória. A associação com ideias claras e distintas é nítida na medida em que: 1) o que sabemos do cogito até aquele momento da Terceira Meditação é que se trata de uma ideia clara e distinta, que independe inteiramente dos sentidos. E 2) sabemos, além disso, que Descartes caracteriza a ideia clara e distinta como sendo de tal modo que “a existência possível está contida no conceito ou ideia de tudo o que clara e distintamente pensamos...” [AT VII: 116], isto é, a clareza e distinção das ideias garante a possibilidade da existência daquilo que é representado. As ideias claras e distintas exibem em seu conteúdo algo que pode ter uma contraparte existente no mundo e, portanto, exibe um conteúdo não contraditório.
Assim, pelo o que é dito no início da Terceira Meditação, depreende-se a suspeita de que ali, ao referir-se à matemática como indubitável, Descartes refere-se a ideias claras e distintas, que seriam indubitáveis apesar da hipótese da existência de um Deus enganador, e que na Primeira Meditação, ao afirmar a dubitabilidade da matemática, Descartes não necessariamente se refere a uma concepção de matemática que envolve ideias claras e distintas, independentes dos sentidos. Com base nessa suspeita e nas afirmações de Descartes de que a Primeira Meditação será dedicada a desfazer-se de “todas as opiniões a que até então dera crédito” [AT VII: 17], e de que todas as coisas que até então recebera como verdadeiras, aprendera “dos sentidos ou pelos sentidos” [AT VII: 18), a hipótese a ser sustentada é a de que a concepção de matemática posta em dúvida na Primeira Meditação, como todo conhecimento posto em questão pela dúvida, é a de um conhecimento dependente da matéria e não de um conhecimento produzido pela razão independentemente dos sentidos. Na esteira dessa hipótese, será sustentado que, em vez de ideias claras e distintas, a dúvida cartesiana, em todas as suas etapas, inclusive na etapa em que Descartes recorre à hipótese do Deus enganador, tem como alvo o processo abstrativo assumido pela escolástica de inspiração aristotélica como sendo a primeira das operações cognitivas e cujo princípio fundamental é o de que todo e qualquer conhecimento, de um modo ou de outro, depende da matéria.3
Antes de iniciar a análise das passagens do texto cartesiano, cabe a seguinte ressalva. Segundo muitos intérpretes, esse início da Terceira Meditação em que a matemática, o cogito e coisas semelhantes são ditas indubitáveis, sugere não um paradoxo, e sim que a dúvida que recorre ao Deus enganador tem como alvo um aspecto das ideias claras e distintas, embora não as ideias claras e distintas tomadas indiscriminadamente. Segundo alguns (por exemplo, J.M. Beyssade (1979)), o texto do início da Terceira Meditação aponta para a distinção entre duvidar da regra geral da verdade de que toda ideia clara e distinta é verdadeira e a verdade de uma ideia clara e distinta enquanto pensada. A função do Deus enganador na Primeira Meditação seria a de impedir a passagem de uma certeza racional subjetiva (uma opinião da qual estou persuadido no momento em que a concebo clara e distintamente), para uma verdade objetiva (um conhecimento). No início da Terceira Meditação, Descartes estaria mencionando ideias de cuja verdade está persuadido por serem indubitáveis, mas para que essa persuasão subjetiva possa ser considerada como conhecimento seria necessário garantir a objetividade da verdade dessas ideias. Outros intérpretes (por exemplo, Carriero (2009)), por outro lado, sustentam que esse início da Terceira Meditação sugere que a dúvida do Deus enganador atinge não a passagem da persuasão para o conhecimento e sim a estabilidade da verdade. No início da Terceira Meditação Descartes estaria elencando ideias cuja verdade depende de estarem sendo pensadas, enquanto o Deus enganador abalaria a permanência da verdade das ideias quando não pensadas.
O exame detalhado do texto que vem logo em seguida a esse início da Terceira Meditação, em que Descartes explica a necessidade das provas da existência e da veracidade de Deus, permite, entretanto, rejeitar qualquer leitura que sustente que de algum modo as ideias claras e distintas estão em questão por meio da hipótese do Deus enganador. Imediatamente depois dessa passagem que supostamente sugere a necessidade de uma garantia da verdade das ideias claras e distintas, seja garantindo a objetividade de uma certeza subjetiva, seja garantindo a estabilidade de uma verdade percebida, Descartes afirma a necessidade das provas da existência e da veracidade de Deus relacionando-as ao conhecimento. Nesse contexto, chamo atenção para o fato de que há uma diferença, a meu ver bastante significativa, entre o texto original em latim e a versão francesa do Duque de Luynes.
No original latino lê-se:
Mas, para eliminar, ela também [a hipótese do Deus enganador] tão logo a ocasião se apresente, devo examinar se há um Deus e, havendo, se pode ser enganador. Pois, na ignorância disso, não parece que eu possa jamais estar completamente certo de nenhuma outra coisa [AT VII: 36. Trad. F. Castilho, 2004. Ênfase acrescentada]4.
E na versão francesa do Duque de Luynes lê-se:
Mas, a fim de poder afastá-la [a hipótese do Deus enganador] inteiramente, devo examinar se há um Deus, tão logo a ocasião se apresente; e, se achar que existe um, devo também examinar se ele pode ser enganador: pois sem o conhecimento dessas duas verdades, não vejo como posso jamais estar certo de coisa alguma [AT IX: 28. Trad. B. Prado Junior e J. Guinsburg, 197. Ênfase acrescentada]5.
Note-se, portanto, que na versão francesa a expressão “nenhuma outra coisa” (ulla alia) que aparece no original latino é substituída por “coisa alguma” (d’aucune chose), o que, ao menos à primeira vista, muda o significado da passagem: ou bem, como é com frequência sustentado, Descartes ali afirma que sem o conhecimento da existência de Deus veraz não se pode conhecer coisa alguma, como aparece na versão francesa; ou bem, com base no texto original latino, Descartes ali afirma que sem o conhecimento da existência de Deus veraz não se pode conhecer outra coisa além do que já tenho assegurado. Levando em conta as passagens imediatamente anteriores a essa, o que já tenho assegurado sem a garantia divina é a verdade das ideias claras e distintas (“engane-me quem puder, ainda assim jamais poderá fazer que eu nada seja, enquanto eu pensar que sou algo ... ou coisas semelhantes, nas quais reconheço manifesta contradição. AT VII: 36). A versão francesa reforça a interpretação segundo a qual por meio da hipótese do Deus enganador a verdade das ideias claras e distintas é posta em questão e, nesse início da Terceira Meditação, Descartes estaria expressando a necessidade de uma garantia para todo conhecimento que estaria assim posto em questão. Nesse contexto a matemática mencionada nas Primeira e Terceira meditações é a mesma, a matemática concebida por ideias claras e distintas que antes da prova da existência de Deus é apenas uma persuasão e/ou uma verdade temporária que só alcançará o status de conhecimento a partir da garantia divina. O original latino, por sua vez, reforça a leitura aqui sugerida, segundo a qual as ideias claras e distintas não são postas em questão pelo recurso à hipótese do Deus enganador, e nesse início da Terceira Meditação Descartes estaria chamando atenção para a distinção entre o que é indubitável e, por isso mesmo, não precisa de garantia divina, a saber, a verdade das ideias claras e distintas, e outros supostos conhecimentos, postos em questão na Primeira Meditação, a saber, o suposto conhecimento que recebera dos sentidos ou pelos sentidos que, para ser recuperado como conhecimento, necessitará de garantia divina. Nesse contexto, Descartes estaria, então, expondo duas concepções de matemática: uma dubitável, que depende dos sentidos, alvo do Deus enganador na Primeira Meditação, e outra indubitável, constituída por ideias claras e distintas independentes dos sentidos, cuja verdade é ressaltada já na Terceira Meditação, antes mesmo da prova da existência de um Deus Veraz.
Ainda acerca da indubitabilidade das ideias claras e distintas, cabe lembrar o que diz Descartes na Terceira Meditação, também ainda antes da prova da existência de um Deus veraz: “[T]udo o que a luz natural me mostra - como que de duvidar segue-se que sou, e coisas semelhantes -, de modo algum pode ser duvidoso, porque não pode haver nenhuma outra faculdade em que confie tanto quanto nessa luz.” [AT VII: 38. Ênfase acrescentada]. Mesmo admitindo a controvérsia existente acerca do que significa “luz natural” no pensamento cartesiano, fica claro que na Primeira Meditação (ou em outras meditações) as ideias claras e distintas não podem ser, “de modo algum”, postas em questão: nem as ideias claras e distintas tomadas em geral podem ser postas em questão nem um aspecto específico da clareza e distinção pode ser posto em questão. Admitindo como Kemp Smith (1968) que “luz natural”, “intelecto”, “razão” significam o mesmo, a saber, o poder de conhecer, ou como Morris (1973) que “luz natural” significa um poder passivo da razão de reconhecer a verdade de uma ideia, ou ainda como Boyle (1999) que “luz natural” significa o poder da razão de iluminar ideias percebidas, de modo a tornar irresistível o reconhecimento por parte da vontade da verdade de ideias claras e distintas, seja como for, o que não se pode duvidar, “de modo algum” é do que resulta da operação da luz natural, as ideias claras e distintas.
A dúvida cartesiana, sentidos e imaginação
A fim de sustentar a leitura aqui sugerida, de que a matemática posta em questão na Primeira Meditação é a matemática como concebida pela escolástica aristotélica e não a matemática como concebida por Descartes, passo ao exame de alguns textos envolvidos na preparação para o recurso ao Deus enganador e de alguns de Tomás de Aquino, tomado aqui como representando a escolástica de orientação aristotélica, textos em que ambos examinam a semelhança e/ou distinção entre as ciências.6
Em toda etapa da dúvida apresentada na Primeira Meditação, Descartes prepara a introdução de uma razão para duvidar indicando ou bem a necessidade de um complemento à razão fornecida na etapa anterior ou bem indicando o que, até então, teria escapado da dúvida. Da primeira etapa da dúvida, cujo alvo é o que é supostamente diretamente conhecido por meio dos sentidos e que se baseia na falta de consenso acerca de como são as coisas corporais singulares, já que as qualidades sensíveis de um modo geral são “coisas tênues e muito afastadas”7, escapam as coisas e situação singulares imediatamente percebidas por intermédio dos sentidos:
Mas, talvez, apesar de os sentidos nos enganarem às vezes ... muitas outras coisas haja, contudo, sobre as quais não se pode de modo algum duvidar, não obstante hauridas dos sentidos. Por exemplo, que agora eu esteja aqui, sentado junto ao fogo, vestindo esta roupa de inverno, tendo este papel às mãos e coisas semelhantes. [AT VII: 18]
Um novo alvo da dúvida surge: o suposto conhecimento, também diretamente advindo dos sentidos, da existência das coisas e situações particulares e, com ele, a nova etapa, então, é apresentada com o recurso à hipótese do sonho.8 Em termos gerais, Descartes argumenta que, se não há marcas que distinguem o que percebe-se por meio dos sentidos na vigília do que supostamente percebe-se por meio dos sentidos durante o sonho, e se essas supostas percepções, quando ocorrem nos sonhos, são ilusões produzidas pela imaginação, então, talvez, as supostas percepções sensíveis que tenho na vigília sejam também apenas ilusões da imaginação. A preparação para uma nova razão para duvidar é a indicação da necessidade de um complemento a esse argumento que consiste em mostrar por que o produto da imaginação pode ser ilusório. Recorrendo à analogia com quadros de pintores, uma nova etapa da dúvida é, então, introduzida: assim como no caso da pintura de quadros, a imaginação, ao produzir ideias, pode “excogitar talvez algo a tal ponto novo que nada do que antes se viu se lhe assemelhe de todo e seja, assim, completamente fictício e falso ...” [AT VII: 20]. O produto da imaginação pode ser ilusório, portanto, porque sua operação de composição é arbitrária e, por isso mesmo, pode produzir ideias falsas. Prosseguindo com o mesmo procedimento das etapas anteriores, Descartes prepara a próxima etapa da dúvida, assinalando o que, ao menos aparentemente, escapa à dúvida até então e que será alvo da etapa seguinte:
[...] embora essas coisas gerais - olhos, cabeça, mãos e semelhantes - possam ser elas também imaginárias, é preciso confessar, todavia, que são pelo menos necessariamente verdadeiras algumas outras coisas, ainda mais simples e universais, a partir das quais são figuradas ... todas as imagens de coisas... Desse gênero de coisas parecem ser natureza corporal comum, e sua extensão; bem como a figura das coisas extensas; a quantidade, ou grandeza delas, e seu número; o lugar onde existem e o tempo pelo qual duram e coisas semelhantes [AT VII: 20]
A hipótese do Deus enganador
Logo a seguir, ainda como preparação para a introdução do recurso à hipótese do Deus enganador, com base na consideração de objetos compostos, Descartes introduz o que seria uma distinção entre as ciências dubitáveis e indubitáveis até esse momento da dúvida. A física e as ciências que dependem de consideração de coisas compostas, isto é, da representação imagética de coisas sensíveis, são dubitáveis, e as matemáticas, que não dependem da consideração de coisas existentes, isto é, não dependem da representação de coisas sensíveis, são indubitáveis:
... partindo disso, não seria talvez incorreto concluir que a Física, a Astronomia, a Medicina e todas as outras disciplinas que dependem da consideração das coisas compostas são, na verdade, duvidosas, ao passo que a Aritmética, a Geometria e outras desse modo - que não tratam senão de coisas muito simples e muito gerais, pouco se preocupando com que estejam ou não na natureza das coisas - contêm algo certo e fora de dúvida ... E não parece possível que verdades tão manifestas incorram na suspeita de falsidade. [AT VII: 20. Ênfase acrescentada]
Segundo a leitura tradicional, dessas duas passagens depreendemos que a matemática indubitável é a matemática como concebida por Descartes, isto é, como constituída de ideias claras e distintas que, portanto, será o alvo da etapa seguinte da dúvida, a que recorre à hipótese do Deus enganador.
Essa leitura, entretanto, não está isenta de problema. Admitir que o que ali é afirmado como indubitável é a matemática como a concebe Descartes, porque esta é exemplo de conhecimento claro e distinto, leva ao embaraço de admitir que para Descartes ciências como a sua física, uma física matemática, não são ciências claras e distintas, o que parece absurdo. Isto é, se admitimos que a matemática mencionada nessas passagens é a matemática como concebida por Descartes, não há nenhuma razão para não admitirmos que as outras ciências mencionadas na mesma frase, a física, a astronomia e a medicina também seriam tais como são concebidas por Descartes. Mas se é assim, ou bem admitimos que, segundo Descartes só a matemática, mas não as ciências como a física e a astronomia, é conhecimento claro e distinto ou bem admitimos que o critério de distinção usado nessas passagens não é a clareza e distinção das ideias que constituem as ciências. Sabemos, entretanto, que para Descartes, a física, por exemplo, é ciência que envolve a matemática e, por isso mesmo, é uma ciência constituída por ideias claras e distintas: “toda a minha física” diz Descartes a Mersenne, “nada mais é do que geometria” [AT II: 268], tese retomada em inúmeros textos, como nos Princípios da Filosofia:
Os únicos princípios que aceito ou exijo em física são aqueles da geometria e matemática pura; esses princípios explicam todos os fenômenos naturais e nos torna capazes de oferecer demonstrações certas a seu respeito ... [AT VIII A: 78. Ênfase acrescentada].
Não só os princípios matemáticos são os únicos princípios da física, mas também o objeto da geometria são os objetos da física cartesiana. Diz Descartes na mesma carta a Mersenne: “Meu objetivo é ter mais tempo para dedicar-me a um outro tipo de geometria, onde os problemas tem a ver com a explicação dos fenômenos naturais” [AT II: 268].
A partir dessas passagens, portanto, conclui-se que segundo Descartes, tanto o objeto quanto os princípios da física, envolvem fundamentalmente os princípios e objetos das matemáticas. Sendo ciências que compartilham dos princípios e objeto, como seria possível que uma fosse clara e distinta e outra obscura e confusa, de tal modo que a clareza e distinção pudesse servir de critério para diferenciá-las? Com efeito, o que, segundo Descartes, distingue essas ciências não é a clareza e distinção de suas ideias, mas apenas o fato de uma se aplicar ao existente sensível e a outra a tudo o que é possível (as verdades eternas):
A única diferença é que a física considera seus objetos não apenas como entes reais e verdadeiros, mas também como algo atual e especificamente existente. A matemática, por outro lado, os considera meramente como possíveis, isto é, como algo que não existe atualmente no espaço, mas pode existir. [AT: V: 160]
Se a física e a matemática cartesianas compartilham dos mesmos objetos e princípios, e se a matemática cartesiana é um conhecimento claro e distinto, então, a física cartesiana é também um conhecimento claro e distinto, o que sugere que no momento da preparação do alvo para a próxima etapa da dúvida, não é a clareza e distinção ou sua ausência que está embasando a dubitabilidade ou não das ciências. Admitindo, como tradicionalmente se admite, que, nas passagens que preparam o alvo da etapa da dúvida que recorre à hipótese do Deus enganador, a matemática concebida como constituída por ideias claras e distintas é a considerada indubitável, temos que assumir que, quando, na mesma frase, Descartes menciona a dubitabilidade de outras ciências, como a física, também ali se trata de ciências segundo a concepção cartesiana, isto é, de conhecimentos claros e distintos. Ora, mas se ali também se tratasse das ciências como as concebe Descartes, estariam também elencadas ao lado da geometria e da aritmética como indubitáveis, o que, entretanto, não é o que ocorre. Parece então razoável acatar que, nessas passagens que preparam para a introdução da hipótese do Deus enganador, nem a física, nem a astronomia, nem a medicina, nem a matemática são as ciências como as concebe Descartes, cuja característica fundamental é a clareza e distinção. Mais ainda, se não são ciências segundo o modelo cartesiano de conhecimento claro e distinto, então o critério que as distingue quanto a sua dubitabilidade ou não nessas passagens preparatórias para a hipótese do Deus enganador, é outro, e não a clareza e distinção.
Exatamente porque não é a clareza e distinção o critério que embasa a indubitabilidade das matemáticas e a dubitabilidade das ciências como a física, que ao introduzir essa distinção Descartes sequer menciona “ideias claras e distintas”. Em vez de clareza e distinção, o que Descartes fornece como critério para embasar a distinção entre as ciências por sua dubitabilidade ou não é a “consideração de coisas compostas” que caracteriza as ciências dubitáveis e o fato de não cuidarem muito se aquilo de que tratam, seus objetos, “existem ou não na natureza”, que caracteriza as indubitáveis. A expressão chave aqui, sugiro, é “consideração de coisas compostas”. Não é porque ciências como a física são “conhecimentos” obscuros e confusos e ciências como a geometria e a aritmética são conhecimentos claros e distintos que são, respectivamente ciências dubitáveis e ciências indubitáveis, e sim porque as ciências como a física dependem de considerar coisas compostas diferentemente das ciências como a geometria e aritmética, que não dependem.
Se, como vimos, é problemático considerar a matemática indubitável até esse momento nas Meditações como exemplo de conhecimento clara e distintamente percebido, talvez seja possível compreender do que matemática se trata, levando a sério o que afirma Descartes, logo no início da Primeira Meditação, ao anunciar que toda a dúvida ali apresentada tem como alvo as antigas opiniões a que dera crédito, as antigas opiniões que considerava como mais verdadeiras, isto é, que considerava como conhecimento, teriam os sentidos como origem. Em suas palavras: “Faz alguns anos já, dei-me conta de que admitira desde a infância muitas coisas falsas por verdadeiras e de quão duvidoso era o que depois sobre elas construí. Era preciso, portanto, que ... fossem postas abaixo todas as coisas, recomeçando dos primeiros fundamentos ...” [AT VII: 18] e, algumas linhas depois, explica: “tudo o que admiti até agora como o que há de mais verdadeiro, eu o recebi dos sentidos ou pelos sentidos”. Se o que considerava como conhecimento (opiniões mais verdadeiras) tem origem nos sentidos, é nessa origem que Descartes foca a dúvida e não no que considerava menos verdadeiro e, portanto, já dubitável. 9 Note-se ainda que no final da Sexta Meditação, ao fazer um balanço de suas antigas opiniões destruídas nas Meditações precedentes, Descartes esclarece que o alvo de suas críticas é o princípio segundo o qual todo conhecimento é dependente de dados sensíveis: “[F]acilmente me persuadia de que não tinha nenhuma [ideia] no intelecto que não tivesse tido antes no sentido” [AT VII: 75], princípio atribuído a Aristóteles por Tomás de Aquino [De Veritate, q. 2, artigo 3, arg. 19]10. Com base nisso, justifica-se buscar na concepção de conhecimento da vertente aristotélica do pensamento escolástico, aqui representada por Tomás de Aquino, a explicação da discriminação entre ciências dependentes da “consideração de coisas compostas” e as ciências que não cuidam se seus objetos “existem ou não na natureza”, tomando como base a tese de que todo conhecimento depende de um processo de abstração que embora, direta ou remotamente, dependente da matéria, nem sempre depende da consideração das coisas existentes ou, como veremos, da matéria sensível.
Ciências naturais e matemática segundo Tomás de Aquino
Em Comentário ao Tratado da Trindade de Boécio (STB)11, depois de distinguir as ciências especulativas das ciência práticas, Tomás de Aquino se ocupa em distinguir as diversas ciências especulativas a partir do modo como estas visam às coisas sensíveis, tornando-as seus objetos específicos, explicando que nos casos das diferentes ciências naturais de um lado, e da matemática de outro, essa visada se dá em virtude de processos distintos de abstração, e que no caso da metafísica, que não consideraremos aqui, essa visada se dá, mais precisamente, pelo processo de separação. Em suas palavras,
Encontra-se, portanto, uma tríplice distinção na operação do intelecto: uma, de acordo com a operação do intelecto que compõe e divide, que é chamada propriamente de separação; esta compete à ciência divina ou metafísica; outra de acordo com a operação pela qual são formadas as quididades das coisas, que é a abstração da forma da matéria sensível; esta compete à matemática; a terceira, de acordo com essa mesma operação [que é a abstração] do universal do particular; esta compete à física e é comum a todas as ciências, porque em todas as ciências deixa-se de lado o que é acidental e toma-se o que é por si. [STB, q. 5, a. 3].
A determinação do objeto das ciências naturais e da matemática depende da operação específica do intelecto em cada caso. O que distingue as ciências naturais da ciência matemática não é a especificidade da realidade a qual se referem, mas sim as respectivas operações de abstração que produzem seus objetos. Isto é, a diferença entre as ciências depende, sobretudo, das distinções que a própria mente faz ao investigar as coisas do mundo. Essa diferença é explicada por seu objeto, mas apenas na medida em que este depende da operação abstrativa específica exercida pelo intelecto na constituição deste. A esse respeito Tomás de Aquino afirma:
Há, pois, entre os especuláveis alguns que dependem da matéria no que se refere ao ser porque não podem ser senão da matéria. Estes distinguem-se, porque alguns dependem da matéria no que se refere ao ser e ao inteligido, como aquilo em cuja definição é posta a matéria sensível; donde não poder ser inteligido sem a matéria sensível, como na definição do ente humano é preciso incluir a carnes e os ossos. Destes se ocupa a física ou ciência natural. Há, ainda, alguns, que apesar de dependerem da matéria no que se refere ao ser, não dependem no que se refere ao inteligido porque a matéria sensível não é posta em suas definições, como a linha e o número. Destes trata a matemática [SBT, q. 5, a.1, r.].
O objeto das ciências naturais é o que há de universal nas coisas sensíveis e o objeto da matemática o que há de forma quantitativa nas coisas sensíveis. A natureza universal das coisas, objeto das ciências naturais em geral, é imaterial na medida em que inclui apenas o que é comum a todos da mesma espécie, não incluindo, portanto, os aspectos particulares de cada indivíduo. O que garante que o conhecimento das ciências naturais é conhecimento da essência universal das coisas materiais é o fato de que no ato cognitivo que produz seu objeto, o processo abstrativo se dá diretamente a partir da consideração da coisa material representada por uma imagem composta pela imaginação, que resulta da afecção dos sentidos pelas qualidades sensíveis. Os sentidos fornecem o contato cognitivo inicial da alma com o objeto. A imaginação compõe e exibe na alma uma imagem de uma coisa sensível. Por ser imagem sensível, é particular, o que impede sua inteligibilidade, sendo então necessário que o intelecto agente abstraia das particularidades e apreenda o inteligível, isto é, a forma universal ali subjacente. É, portanto, a partir da consideração da matéria sensível representada pela imagem composta pela imaginação, que o intelecto agente abstrai de tudo o que individualiza a matéria sensível, obtendo sua forma universal. Note-se, portanto, que segundo a concepção tomista, nessa primeira operação cognitiva, a operação abstrativa, ciências naturais como a física dependem de modo fundamental da consideração das coisas compostas: só é possível apreender a essência das coisas no processo de abstração que depende da consideração da matéria sensível por meio de uma imagem de coisas compostas pela imaginação a partir dos dados que afetam os sentidos.
O ato cognitivo que constitui as ciências naturais envolve ainda a operação da conversão por meio da qual o intelecto compõe ou separa o que apreende com a primeira operação [STB q.5, a.3, r]. Operação que, como a primeira, também depende da consideração da matéria sensível, isto é, depende da representação da imaginação da coisa sensível particular, produzida a partir dos dados sensíveis. A conversão ocorre quando o intelecto possível já atualizado pela forma universal da coisa sensível retorna à imaginação para referir à imagem atual da coisa a forma universal abstraída e expressa por um conceito. A conversão, que completa a primeira operação cognitiva, na medida em que é o retorno à imagem que reúne o que os sentidos transmitiram a partir dos dados sensíveis, é o que torna possível aplicar ao particular o universal abstraído. Resumindo, no caso das ciências naturais, o intelecto se relaciona com a matéria sensível representada pela faculdade da imaginação de dois modos: a) para obter o universal das coisas, o intelecto considera a matéria sensível por meio da imagem produzida a partir de dados sensíveis (uma coisa composta), deixando de lado os princípios materiais individuantes; e b) para considerar na coisa particular o universal abstraído, o intelecto, por meio da conversão, retorna à imagem o universal abstraído e expresso por um conceito.
Mais precisamente, nos termos de Tomás de Aquino, as ciências naturais apreendem o universal abstraindo da matéria sensível designada, representada pela imagem e expressa por um conceito, e retornam a essa representação da matéria sensível designada para referir-se, à coisa particular, retendo, entretanto, a matéria sensível comum ou indeterminada. Na medida em que é sujeito das particularidades que constituem os indivíduos, a matéria sensível comum é aquilo que permite que os conceitos sejam satisfeitos por indivíduos e, por conseguinte, é também condição de possibilidade da forma universal obtida no processo abstrativo:
Há dois tipos de matéria da qual é feita a abstração: a matéria inteligível e a matéria sensível ... Chamo de matéria designada se ela é considerada juntamente com a determinação de suas dimensões, isto é, como essa ou aquela dimensão. Chamo de não designada, entretanto, se for considerada sem a determinação de suas dimensões. Nesse contexto, deve-se notar que a matéria designada é o princípio de individuação, da qual todo intelecto abstrai quando se diz que abstrai do aqui e agora. O intelecto do filósofo da natureza, entretanto, não abstrai da matéria sensível não designada [De Veritate, q.2, a.6, ad 1].
Ou como diz no Comentário ao Tratado da Trindade de Boécio,
[É] preciso que tais noções, de acordo com as quais as ciências podem tratar das coisas móveis, sejam consideradas sem a matéria indicada e sem tudo o que se segue à matéria indicada, mas não sem a matéria não-indicada, pois de sua noção depende a noção de forma que determina para si uma matéria. ... Visto que os singulares incluem na sua noção a matéria indicada e os universais a matéria comum, como se diz no livro VII da Metafísica, por isso a supracitada abstração não é denominada de forma em relação à matéria de modo absoluto, mas do universal em relação ao particular. [STB, q.5, a.2,r.]
Assim, como vimos, nas ciências naturais, o objeto de estudo, o universal, é obtido por consideração e abstração da matéria sensível designada representada pela imagem e expressa por um conceito. Cabe agora mostrar que, embora segundo essa tradição escolástica, o processo abstrativo característico da ciência matemática envolva a abstração da matéria sensível representada pelo composto produzida pela imaginação, de modo algum depende, e não pode depender, da consideração dessa matéria sensível. Por um lado, o que caracteriza a matemática é que a forma quantitativa, seu objeto, como o universal, objeto das ciências naturais, existe na matéria sensível e, por outro, é que, diferentemente do objeto das ciências naturais, sua inteligibilidade independe da consideração de qualquer matéria sensível. A matemática depende das coisas sensíveis, mas apenas porque seu objeto de estudo, a forma quantitativa, existe nestas. Seu objeto, entretanto, é obtido sem a consideração das coisas sensíveis, que são concebíveis separadamente. A forma quantitativa é concebível separadamente, isto é, sem considerar a matéria sensível, porque é prioritária a qualquer divisão da matéria sensível, visto ser a condição de possibilidade da diversificação de corpos individuais e, portanto, da matéria sensível determinada:
A matéria não é princípio da diversidade de acordo com o número senão na medida em que, dividida em muitas partes e recebendo em cada uma das partes a forma da mesma espécie, constitui vários indivíduos da mesma noção. Ora, a matéria não pode ser dividida a não ser que se pressuponha a quantidade, que se for removida toda substância permanece indivisível. Assim, a primeira determinação na diversificação do que é da mesma espécie se dá de acordo com a quantidade. [Ibid., r.3]
Embora a quantidade, objeto da matemática, não possa ser compreendida a partir da consideração da matéria sensível por ser prioritária com relação a esta, a quantidade é quantidade de alguma substância. Quantidade é acidente e, como tal, só pode ser compreendida se considerada a substância à qual inere: “a quantidade não pode ser considerada sem considerar a substância que é sujeito da quantidade” [ST I, 85 I ad.2], ou ainda, “Quantidade não envolve em sua inteligibilidade as qualidades sensíveis .... Ainda assim, inclui substância em sua inteligibilidade” [Comentário à Física de Aristóteles, II, 3, 161]12. A substância considerada no processo abstrativo que produz a forma quantitativa é a matéria inteligível, que é substância apenas enquanto sujeito da quantidade, assim como a matéria sensível é substância enquanto sujeito de qualidades sensíveis: “a matéria sensível é matéria corpórea enquanto sujeito de qualidades sensíveis como estar frio ou não, duro ou macio, e coisas semelhantes; enquanto a matéria inteligível é substância enquanto sujeito de quantidade” [ST. I, Questão 85, 1 ad 2].
Assim, a matemática não só abstrai de toda matéria sensível, a matéria designada e a comum, mas, além disso, a matéria sensível não é nem mesmo considerada no processo de abstração, visto que, como diz Tomás de Aquino, o sujeito do acidente quantidade é a matéria inteligível, e não, como é o caso nas ciências naturais, a matéria sensível. A obtenção da forma quantitativa consiste em considerar a matéria inteligível e deixar de lado a matéria inteligível individual. Nas palavras de Tomás de Aquino:
Ora, é claro que quantidade está em substância antes de outras qualidades sensíveis. Logo, quantidades, tais como número, dimensão e figuras, que são determinações de quantidade, podem ser consideradas separadamente de qualidades sensíveis; e isto é abstrair da matéria sensível; mas não podem ser consideradas sem compreender a substância que é sujeito da quantidade, porque isso seria abstrair da matéria inteligível. Podem, entretanto, ser consideradas separadas dessa ou daquela substância; pois isso é abstrair da matéria inteligível individual [ST, 85, 1, r. obj 2]. Ou ainda:
O intelecto do matemático, entretanto, abstrai inteiramente da matéria sensível, embora não da matéria inteligível não designada” [De Veritate, q.2, a. 6, ad 1].
Há, portanto, em Tomás de Aquino, claramente uma distinção essencial entre matemática e ciências naturais que se baseia na consideração de coisas compostas para obtenção de seus objetos. Embora tanto a matemática quanto as ciências naturais dependam de coisas sensíveis (o composto) para existir e de um processo abstrativo para serem conhecidos, o processo abstrativo que resulta no objeto das ciências naturais, como a física, depende da consideração do composto (a matéria designada representada por uma composição da imaginação) a partir do que produz o universal, ao passo que o processo abstrativo da matemática não parte da consideração do composto, mas apenas da consideração das propriedades extensionais, a partir das quais abstrai da matéria inteligível individual, mantendo a matéria inteligível comum, sujeito da forma quantitativa que é o seu objeto de estudo. A estrutura quantitativa das coisas sensíveis, segundo Tomás de Aquino, não tem independência objetiva porque só existe nas coisas materiais, mas sua apreensão independe da consideração do que é composto a partir do que é recebido pelos sentidos na medida em que essa operação abstrativa repousa apenas na matéria inteligível.
Ciências naturais e matemática na Primeira Meditação
Parece, então, que agora há algum elemento novo para basear uma leitura alternativa da segunda passagem preparatória para a introdução à hipótese do Deus enganador em que Descartes distingue ciências naturais até ali dubitáveis (“Razão pela qual, partindo disso, não seria incorreto concluir que a Física, a Astronomia, a Medicina e todas as outras disciplinas que dependem da consideração das coisas compostas rerum [compositarum consideratione dependent] são, na verdade, duvidosas” [AT VII: 20])13 das ciências matemáticas até ali indubitáveis (“ao passo que a Aritmética, a Geometria e outras desse modo - que não tratam senão de coisas muito simples e muito gerais, pouco se preocupando com que estejam ou não na natureza das coisas - contêm algo certo e fora de dúvida” [Ibid.]). É razoável admitir que o que está até ali em questão são as ciências cuja apreensão do objeto de estudo depende da consideração das coisas compostas, isto é, ciências como a física que, segundo a concepção escolástica, dependem da representação produzida pela composição a partir de dados sensíveis (a imagem), e estão em questão em virtude das etapas anteriores que abalaram o conhecimento fornecido pelos sentidos e pela imaginação. E, em contrapartida, que permanecem a salvo da dúvida as ciências como a matemática, também tal como concebida pela tradição escolástica, cuja produção do objeto de estudo (a forma quantitativa) não depende da consideração de coisas compostas, visto que não incluem a matéria sensível em sua definição. As ciências naturais, tais como as concebe a escolástica, seriam atingidas pela dúvida cartesiana porque seu objeto de estudo é diretamente apreendido a partir da consideração das coisas corpóreas (matéria designada), cuja imagem é a composição produzida pela imaginação a partir de dados sensíveis e o conhecimento matemático, assim como concebido pela escolástica, se manteria ainda fora do escopo da dúvida porque seu objeto de estudo não é obtido a partir da consideração da matéria sensível supostamente percebida pelos sentidos e representada por uma imagem sensível e sim da consideração da matéria inteligível abstraindo da matéria inteligível individual.
Como vimos, segundo a tradição escolástica aristotélica, ao abstrair da matéria inteligível individual, o intelecto apreende a forma quantitativa que é condição de possibilidade de divisão da matéria sensível em quaisquer que sejam as coisas individuais e esse será o alvo da dúvida que recorre ao Deus enganador: é possível que Deus me engane quanto à própria possibilidade de qualquer divisão em coisas materiais (alguma terra, algum céu, alguma coisa extensa etc.), isto é, quanto à possibilidade de qualquer objeto sensível (e, portanto, a dúvida abarca as qualidades sensíveis e as qualidades extensionais), além de me enganar também com relação às operações quantitativas. Nas palavras de Descartes:
Mas de onde sei que ele [Deus] não tenha feito que não haja de todo terra alguma, céu algum, coisa extensa alguma, figura alguma, grandeza alguma, lugar algum e que, no entanto, todas elas não me apareçam existir diferentemente de como me aparecem agora? ... não estaria eu mesmo de igual maneira errando, cada vez que adiciono dois a três, ou conto os lados do quadrado ... [AT VII:21. Ênfase acrescentada]
Dessa interpretação alternativa ao papel da dúvida que recorre à hipótese do Deus enganador, imediatamente parece surgir o seguinte problema: se a matemática da Primeira Meditação não é um exemplo de conhecimento adquirido por ideias claras e distintas, mas sim de ideias obtidas pelo processo abstrativo que tem como ponto de partida a matéria (inteligível), então qual seria a função da prova da existência de Deus introduzida nas Meditações? Se o Deus enganador não tem a função de pôr em questão as ideias claras e distintas, mas sim pôr em questão uma das etapas do processo abstrativo assumido pelos escolásticos, então a prova da existência de um Deus veraz não tem a função de garantir o conhecimento obtido por ideias claras e distintas já que este nunca foi posto em questão. Mas se é assim, qual seria a função da prova da existência de Deus nas Meditações?
Em um primeiro momento poder-se-ia deslocar a função do Deus enganador para a garantia desse conhecimento adquirido por meio do grau maior de abstração segundo os escolásticos, a saber, o conhecimento matemático. Se a hipótese do Deus enganador atinge a matemática como concebida pela escolástica, a prova da existência de um Deus veraz eliminaria essa dúvida, garantindo esse modelo de conhecimento matemático. Essa solução, entretanto, parece não funcionar porque todo o processo abstrativo mesmo antes dessa etapa da dúvida já estava sob suspeita, visto que para Descartes “se os fundamentos se afundam, desaba por si mesmo tudo o que foi edificado sobre eles” [AT VII: 18] e as etapas anteriores da dúvida (sobre o erro dos sentidos, a hipótese do sonho e a arbitrariedade da composição da imaginação) foram dedicadas exatamente a pôr em questão os sentidos e a imaginação, alicerces para todo processo abstrativo. O recurso ao Deus enganador ressalta a dubitabilidade mesmo do conhecimento mais abstrato, o conhecimento matemático. Mas se é assim, se todo o processo abstrativo já está em questão pelas etapas anteriores, a introdução do recurso à hipótese do Deus enganador não seria supérflua? Em um certo sentido sim, embora esse recurso nas Meditações tenha a função de chamar a atenção para o fato de que mesmo a matemática, que aparentemente não poderia ser posta em questão, é dubitável.14 Se a prova da existência de Deus não tem como função reabilitar as ideias claras e distintas (que não foram postas em questão) nem reabilitar o grau mais alto do ato cognitivo segundo a concepção escolástica (que é posto em questão já pelas etapas anteriores à hipótese do Deus enganador), qual seria sua função nas Meditações? Por ser um problema imediatamente produzido pela alternativa interpretativa aqui apresentada, apresento a seguir o que seria a minha sugestão, mas por fugir do objetivo desse texto, apresento de modo sucinto e sem a devida discussão.
Já tendo introduzido sua concepção de conhecimento como constituído por ideias claras e distintas na Segunda Meditação pelo argumento do cogito, a prova da existência de um Deus veraz teria uma dupla função: a) exibir em sua estrutura um padrão para obtenção de conhecimento complexo que não é imediatamente dado (por intuição) como é o cogito. O cogito, na Segunda Meditação, estabelece o padrão de conhecimento claro e distinto imediato e as provas da existência e veracidade de Deus. A partir da Terceira Meditação, estabelece o padrão de conhecimento que se dá por etapas. Já tendo introduzido uma primeira ideia clara e distinta (cogito), a prova da existência de Deus tem para o conhecimento complexo, isto é, para o conhecimento do que não é simples e imediatamente dado, a mesma função que o cogito tem para o conhecimento do simples e imediato. Assim como o cogito é um padrão de ideia clara e distinta que consiste em uma intuição, isto é, em um conhecimento imediatamente dado, a prova da existência de Deus, por envolver ponto de partida, elos argumentativos e conclusão claros e distintos no grau máximo, é o padrão para ideias claras e distintas adquiridas em etapas, isto é, para o conhecimento obtido por dedução. É na estrutura da prova, portanto, que esse modelo é estabelecido. E b) a partir da conclusão das provas de existência e da veracidade de Deus, garantir a verdade de algumas ideias originadas nos sentidos postas em questão na Primeira Meditação sem, ainda assim, reabilitar o processo abstrativo como característico do ato cognitivo. A existência de um Deus veraz, portanto, teria a função de garantir outros conhecimentos que não os obtidos pelas ideias claras e distintas, que sequer foram postas em questão. Como claramente se percebe na Sexta Meditação, Descartes recorre a um Deus veraz existente para garantir o conhecimento obtido a partir de uma inclinação natural incorrigível (prova de que existem coisas externas) e conhecimentos obtidos a partir de ensinamento da minha natureza, (que tenho um corpo, que esse corpo é afetado por outros corpos, do que esse corpo deve fugir ou se aproximar etc.). Na prova da existência das coisas materiais, por exemplo, Descartes parte do fato de ter sensações e recorre à veracidade divina para garantir uma forte inclinação a julgar que as sensações são causadas por coisas externas:
... pois como ele [Deus] deu-me uma grande propensão a crer que elas [as sensações] são emitidas das coisas corporais, não vejo por que não o possa entender enganador, se essas ideias forem emitidas de alhures que não das coisas corporais. Por conseguinte, as coisas corporais existem. [AT VII: 79-80]
Na prova de que a alma está unida a um corpo, Descartes parte de sensações cuja verdade é garantida com recurso à veracidade divina:
E, seguramente, não há dúvida de que todas as coisas que a natureza me ensina tem algo de verdade ... [P]or minha natureza, em particular, não entendo senão o complexo de todas as coisas que me foram atribuídas por Deus. Mas nada esta natureza me ensina mais expressamente, senão que tenho um corpo [AT VII: 80].
E essa mesma natureza cujo ensinamento é garantido por Deus, por meio das sensações, me ensina também que a união corpo e alma consiste em um tipo específico de união, a saber, uma união íntima e que existem corpos em torno da união que a afetam:
A natureza também me ensina, por essas sensações de dor, fome, sede, etc., que não estou presente a meu corpo como o marinheiro em seu navio ao navio. Estou a ele ligado de modo muito estreito e como que misturado com ele, a ponto de com ele compor uma só coisa ... a natureza ensina-me também que existem, ao redor do meu, vários outros corpos, alguns dos quais devendo ser buscados, outros, evitados [AT VII: 81].
Segundo essa leitura, então, além de garantir algum conhecimento obtido por ideias dependentes dos sentidos sem, ao mesmo tempo, legitimar o processo abstrativo sustentado pelos escolásticos, a prova da existência de um Deus veraz estabelece o padrão de operação cognitiva da razão que independe do sensível e que produz ideias claras e distintas não imediatamente percebidas. Assim, por um lado, a verdade de certas ideias originadas nos sentidos postas em questão por dependerem dos sentidos é reestabelecida gozando de garantia divina, enquanto a verdade das ideias claras e distintas, porque nunca foi posta em questão, não precisa ser reestabelecida. Por serem indubitáveis, as ideias claras e distintas são, para o ser racional, as melhores candidatas a constituírem conhecimento.
Conclusão
Como vimos no início deste texto, o que motivou a discussão acerca do alvo da etapa da dúvida que recorre à hipótese do Deus enganador foi a dificuldade de conjugar a leitura canônica segundo a qual esse alvo é o conhecimento constituído por ideias claras e distintas (e a matemática mencionada na Primeira Meditação seria um exemplo desse tipo de conhecimento) com o início da Terceira Meditação, onde Descartes claramente afirma que as ideias claras e distintas são indubitáveis. A proposta de solução interpretativa aqui sugerida é a de que a hipótese do Deus enganador não visa às ideias claras e distintas e sim ao processo abstrativo de obtenção do objeto da matemática segundo a tradição escolástica de orientação aristotélica e que, portanto, a matemática, mencionada na Primeira Meditação, como todo conhecimento ali mencionado, não é o produto de ideias claras e distintas, mas sim produto de abstração que, embora dependente da matéria, não depende de consideração da matéria sensível. A dissolução da dificuldade implica, então, que nas Meditações, Descartes trata de duas concepções distintas de matemática. A matemática que é posta em questão pela hipótese do Deus enganador na Primeira Meditação, cujo objeto (forma quantitativa que possibilita a divisão da matéria em coisas individuais e que permite as operações matemáticas) resulta de um processo abstrativo, e a matemática cujo objeto são naturezas verdadeiras e imutáveis e suas possíveis relações acessadas por ideias claras e distintas, que não é posta em questão, e que só é mencionada nas Meditações depois de introduzida, na Segunda Meditação, a primeira ideia clara e distinta.
A alternativa interpretativa aqui apresentada pretende 1) evitar os embaraços apontados acima relativos à compatibilidade da interpretação canônica e algumas passagens do texto cartesiano; 2) oferecer uma leitura que permita acomodar no projeto cartesiano exposto nas Meditações metafísicas a nunca abandonada tese cartesiana da livre criação das verdades eternas. Nessa doutrina da livre criação fica claro que Descartes admite que, de um lado, Deus pode criar (e se pode, em virtude de sua simplicidade, cria) contradições e, de outro, cria mentes finitas humanas estruturadas para conhecer segundo os princípios da racionalidade, o que inclui o princípio da não contradição. Assim, haveria um abismo entre o que Deus cria (por exemplo, o que aparece para a mente finita como contradições) e o que pode ser conhecido pela mente finita racional humana. Mas se é assim, o projeto apresentado nas Meditações talvez não seja o de garantir que o que aparece evidente para a mente finita racional é verdade do ponto de vista de Deus. Isto é, parece plausível admitir que nas Meditações o objetivo não é o de garantir a passagem da evidência racional subjetiva para a verdade objetiva absoluta. A alternativa interpretativa aqui sugerida, então, é a de que o projeto cartesiano, em vez disso, é o de substituir por um outro modelo, o modelo cognitivo escolástico segundo o qual todo conhecimento tem origem nos sentidos. Nesse outro modelo cognitivo sugerido por Descartes, a razão pura é fonte de algum conhecimento (metafísico e matemático, como é demostrado na Segunda, Terceira e Quinta meditações: conhecimento da alma, de Deus e das essências matemáticas) e os sentidos são fontes de outros tipos de conhecimento (da existência de corpos, da união corpo/alma, do modo como o composto é afetado por corpos etc.). Por um lado, a razão, por ser racionalmente indubitável, tem as melhores credenciais para ser fonte de conhecimento humano e, nesse sentido, não precisa nem goza de garantia de Deus. Por outro lado, os sentidos, por serem racionalmente dubitáveis, para serem considerados como fonte de conhecimento humano, isto é, para serem considerados como racionalmente confiáveis, precisam e gozam da garantia divina.15
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A a pesquisa contou com apoio da FAPERJ processo E-26/200.516/2023 e do CNPq-Pq.
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1
Salvo indicação em contrário, as citações de passagens das Meditações metafísicas de Descartes serão extraídas da tradução de F. Castilho: Meditações sobre Filosofia Primeira (2004). As citações serão acompanhadas da notação da edição em latim Adam&Tannery (AT) da obra de Descartes seguida do número do volume e do número da página nessa edição.
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2
Veja-se, por exemplo, M. Gueroult (1953), B. Williams (2005), J. Broughton (2003), J. M. Beyssade (1979), M. Wilson (1978) e D. Garber (1992).
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3
Com base em diferentes argumentos e com diferentes fins, a tese a ser defendida é, de algum modo, sugerida nas alternativas interpretativas de M. Marlies (1978) para quem a dúvida cartesiana tem a função de provocar a correção da razão (e não a de buscar uma garantia para a verdade das ideias claras e distintas) e de H. Frankfurt (1987) para quem as ideias claras e distintas não são postas em questão pela hipótese do Deus enganador na Primeira Meditação.
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4
No original latino: “Ut autem etiam illa tollatur quamprimum occurret occasio, examinare debeo an sit Deus, et, si sit, an possit esse deceptor; hac enim re ignorata, non videor de ulla alia plane certus esse unquam posse”.
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5
Na versão francesa: “Mais pour la supprimer elle aussi, dès que l’occasion se présentera, je dois examiner s íl y a un Dieu et, s’il existe, s’il peut être trompeur: en effet, tant que cela n’est pas connu, il ne semble pas que je puisse jamais être pleinement certain de rien d’autre”.
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6
Em virtude da clareza de suas exposições, tomaremos Tomás de Aquino como representante dos defensores do que seria o modelo cognitivo aristotélico relativo à matemática, embora nada no texto de Descartes deixe claro haver um autor específico visado.
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7
No original latino: “minuta quaedam et remotiora”.
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8
Antes da introdução da hipótese do sonho, Descartes apresenta um argumento baseado na loucura como uma primeira possível razão para duvidar desses casos de percepção sensível: “E como poderia eu negar que estas mãos e este corpo sejam meus? A não ser, talvez, que eu me compare a esses insensatos ... que constantemente asseguram que são reis quando são muito pobres; que estão vestidos de ouro e púrpura quando estão inteiramente nus; ou imaginam ser cântaros ou ter um corpo de vidro” [AT VII: 19]. Essa primeira tentativa, no entanto, é, ao menos provisoriamente, abandonada por basear-se em uma idiossincrasia que expressa uma condição adversa, não servindo, assim, como argumento universalmente aplicável. Essa hipótese da loucura será, no entanto, em seguida retomada de forma mais radical e com abstração do aspecto idiossincrático, ao ser introduzida a hipótese do sonho e, mais tarde, a hipótese de um Deus enganador.
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9
Agradeço a um dos pareceristas da Revista Kriterion por ter chamado minha atenção para esse ponto.
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10
Tradução minha a partir da tradução de R. W Mulligan S.J, The 29 Questions on Truth, St. Thomas Aquinas (1952).
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11
As citações de passagens de Comentário ao Tratado da Trindade de Boécio (STB) serão extraídas da tradução de C.A. R. do Nascimento (1998).
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12
Tradução minha a partir da tradução de Richard J. Báckwell, Richard J. Spath e Edmund Thirlkel, Commentary on Aristotle’s Physics (1963).
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13
No original latino: “Quapropter ex his forsan non male concludemus Physicam, Astronomiam, Medicinam, disciplinassque alias omnes, quase a rerum compositarum consideratione dependent , dubias quidem esse ... atqui Arithmeticam, Geometriam, aliasque ejusmodi, quae nonnisi de simpicissimis et maxime generalibus rebus tractant, atque utrum eae sint in rerum natura necne , parum curant, aliquid certi atque indubitati continere”.
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14
Aqui cabe ressaltar o tom hesitante com que Descarte introduz a distinção entre as ciências com base em sua dubitabilidade. Com relação à física, astronomia e medicina, Descartes diz que “não seria talvez incorreto concluir” (“Quapropter ex his forsan non male concludemus) que são ciências duvidosas e incertas e no que concerne às matemáticas, afirma que até aqui “não parece possível que sejam falsas”. Talvez essa hesitação vise chamar a atenção para duas coisas: a) que a distinção entre as ciências por sua dubitabilidade está sendo feita condicionalmente: só poderia ser o caso de fazer essa distinção se consideramos a concepção de conhecimento tradicionalmente assumida, já que segundo a concepção cartesiana de conhecimento nenhuma ciência é de modo algum dubitável, visto serem todas constituídas por ideias claras e distintas; e b) para o fato de que mesmo se considerarmos o modelo cognitivo escolástico, não se poderia de fato fazer essa distinção: todo ato cognitivo já estaria posto em questão, na medida em que todo o conhecimento, segundo essa tradição visada, depende de um processo abstrativo que, de um modo ou de outro, depende da matéria e, nessa medida, já está posto em questão. Talvez a ausência desse recurso à hipótese do Deus enganador no Discurso sobre o método, em que Descartes resume as Meditações, possa ser explicada por ser, de um certo modo, supérfluo para por em questão o modelo cognitivo escolástico.
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15
Parágrafo inserido em atenção à observação de um parecerista da Revista Kriterion, a quem agradeço. Como a doutrina da livre criação das verdades eternas foge ao escopo do presente texto, para discussão e referência bibliográfica desse aspecto da doutrina cartesiana da livre criação das verdades eternas ver, E. Rocha (2016).
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
29 Set 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
26 Maio 2023 -
Aceito
29 Maio 2023
