RESUMO
O artigo mostra a forma em que Reinhold, nos seus Beyträge de 1801-1803, supera uma mera concepção progressiva da história da filosofia e entende os erros descobertos nas tentativas falhas de realizar a tarefa fundamental da filosofia em uma dimensão positiva como instrumento heurístico imprescindível para a realização dela (§ 4), após uma descrição sintética das críticas reinholdianas aos modelos de filosofia transcendental encarnados por Fichte e Schelling, ao suposto realismo de Bouterweck e às filosofias do senso comum que estão conectadas com elas (§ 2), e como consequência da demonstração da inevitabilidade das tentativas parciais de realização da tarefa fundamental da filosofia (§ 3) e do aprofundamento da noção de Nexus, que permite reconduzir as tentativas parciais à própria estrutura imanente da razão. A resolução de tarefa fundamental do filosofar por meio de uma heurística da filosofia envolve, assim, um questionamento do realismo racional como uma teoria acerca da realidade e valoriza a sua função metacrítica, a saber, o questionamento dos pressupostos básicos do filosofar enquanto uma prática de racionalidade.
Palavras-chave:
Reinhold, K.L.; Filosofia transcendental; Realismo; Senso comum; Heurística
ABSTRACT
The paper shows the way in which Reinhold, in his Beyträge of 1801-1803, overcomes a mere progressive conception of the history of philosophy and interprets the errors discovered in the failed attempts to carry out the fundamental task of philosophy in a positive dimension, as an essential heuristic instrument for its realization (§ 4), after a synthetic description of the Reinholdian critiques of the models of transcendental philosophy embodied by Fichte and Schelling, of Bouterweck’s supposed realism and the philosophies of common sense that are connected with them (§ 2), and as a consequence the demonstration of the inevitability of partial attempts to carry out the fundamental task of philosophy (§ 3) and the deepening of the notion of Nexus, which makes it possible to bring partial attempts back to the very immanent structure of reason. The resolution of the fundamental task of philosophizing through a heuristic of philosophy involves, therefore, a questioning of rational realism as a theory about reality and values its metacritical function, namely the questioning of the basic assumptions of philosophizing as a practice of rationality.
Keywords:
Reinhold, K.L.; Transcendental philosophy; Realism; Common sense; Heuristic
1. Fundação e purificação
Na discussão acerca dos rumos da filosofia pós-kantiana é um dado consolidado o fato de a revolução crítica ter levado não apenas a uma visão das estruturas das faculdades humanas e à definição das condições do saber e do agir humano, mas também a uma reflexão “metacrítica” acerca das próprias condições do saber filosófico1 1 Para uma visão geral das tendências da filosofia pós-kantiana nesse sentido, cf. Lorini, 2015 e Förster, 2018. . A radicalização desse movimento teria sido possível graças a um desenvolvimento específico da concepção kantiana do idealismo, a ser entendido como marco de uma concepção da filosofia como ciência rigorosa, caracterizada por um afastamento reflexivo das tomadas de posição da consciência comum (Zöller, 2000, p. 138ZÖLLER, G. (2000). From Critique to Metacritique: Fichte’s Transformation of Kant’s Transcendental Idealism. In Sedgwick, 2000, pp. 129-146.). No entanto, esse desenvolvimento parece apenas uma opção. Em especial, ele aparece como o resultado da conciliação de autofundação epistêmica do saber e justificação ôntica das estruturas da realidade, em detrimento da inteligibilidade universal dos princípios do saber e em prol de um potenciamento da consciência individual (Franks, 2005, p. 237FRANKS, P. “All or nothing”. Cambridge: Harvard University Press, 2005.). Isso tudo leva, ao longo da discussão pós-kantiana, a uma intensa reflexão sobre as modalidades de elevação, ou acesso, ao ponto de vista filosófico e a uma definição delas em função de uma temperamental thesis, conforme “a filosofia que se faz depende do homem que se é” (Fichte, 1962, I, 4, p. 195FICHTE, J.G. “Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften” Stuttgart-Bad Cannstatt: Fromman Holzboog, 1962.)2 2 Para uma visão geral desse aspecto, cf. Breazeale, 1987-1988, pp. 97-123. .
Uma outra possível opção na reconfiguração do idealismo kantiano consiste em basear a justificação da certeza imediata que caracteriza o senso comum em um princípio assumido hipoteticamente, ainda não descoberto pelo sujeito filosofante, mas legítimo em função da sua capacidade de validar os seus próprios juízos (Fichte, 1962, I, 2, pp. 146-147FICHTE, J.G. “Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften” Stuttgart-Bad Cannstatt: Fromman Holzboog, 1962.)3 3 Cf. a respeito Fincham (2005), que destaca também a função de F. Niethammer nesse contexto. . Existe, no entanto, uma terceira possibilidade, que entende a fundação de uma filosofia como uma expressão direta da consciência natural. Essa opção levaria a um realismo, a ser entendido, tanto no sentido jacobiano, conforme a filosofia encontra o seu princípio em um verdadeiro que fica fora da filosofia e percepcionado pela consciência natural4 4 Para uma visão panorâmica e problematização dessas formas de realismo, veja-se Pluder, 2013. , como no sentido de uma filosofia especulativa que entende a performance reflexiva da filosofia apenas como uma parte do empreendimento filosófico, visando, por um lado, superar a oposição entre filosofia e consciência comum e, por outro, à aniquilação das posições reflexivas diante de um absoluto que doa sentido para elas (Hegel, 1968, II, pp. 28-29HEGEL, G. W. “Gesammelte Werke”. Hamburg: Meiner, 1968.). Isso permitiria explicar mais um dado consolidado da discussão acerca dos rumos da filosofia pós-kantiana, segundo o qual, ao lado, ou junto, com um desenvolvimento “idealista”, vai uma vertente “realista” do filosofar, que visa tematizar justamente o que sobra da performance da consciência concreta no ato de fundação das estruturas do saber e da realidade (BLU, II, pp. 166-167)5 5 Nesse contexto, é relevante também a posição de F.A. Köppen, assim como reconstruído por Tarli, 2016. . Essa “suplementação” realista da razão (Zöller, 2003, p. 202; Beiser, 2002BEISER, F. “German Idealism”. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2002.)6 6 Uma abordagem que entende essa suplementação realista como progressiva dissolução do kantismo é apresentada por Rosenkranz (1840). envolve uma revisão da concepção kantiana da dinâmica do conhecimento como “síntese” entre mente e mundo (cf. GEL, p. 12), em prol de uma investigação da “lógica” da realidade como o ritmo fundamental dela (BW, pp. 105-106), ou seja, como a sua coerência imanente, que, de certa forma, a torna “real”. Consequentemente, o filosofar não é mais expressão de uma consciência potenciada que opera uma doação de sentido para um dado sem sentido, e sim é reflexo de uma atividade de descoberta dessas estruturas, que passa por uma purificação ou desconstrução do saber dado. Essa desconstrução não é uma negação do saber dado, e sim uma ‘purificação’ dele. O seu objetivo é o esclarecimento da dinâmica que o levou à luz de uma doutrina do fenômeno e da aparência ou ‘fenomenologia’7 7 Não é esse o contexto para entrarmos nos detalhes das concepções pós-kantianas da fenomenologia. Trata-se de uma expressão que se encontra tanto em Fichte (cf. por ex. Fichte, 1962, II, 8, p. 138), como em Reinhold (cf. por ex. BLU, V, pp. 1-4) e Hegel (cf. por ex. Hegel, 1968, IX, p. 55) e usada para indicar a dinâmica geral de autoesclarecimento das estruturas da consciência, entendida como horizonte em que o seu princípio se articula e se manifesta concretamente, e como purificação do erro, ou seja, de qualquer saber não levado a uma justificação plena e acabada. Uma visão mais detalhada nesse contexto foi dada, entre outros, por Bockhove (1991), que apresenta uma reconstrução histórica ampla da gênese da abordagem fenomenológica em função de uma melhor compreensão da fenomenologia transcendental husserliana, e Ferraguto (2012), que foca nas concepções da fenomenologia desenvolvidas por Reinhold, Fichte e Hegel em função da gênese delas no debate sobre a flosofia de Kant a partir do fim do século XIX. . Na tentativa de mediar entre as vertentes idealistas e realistas da discussão póskantiana (BW, p. 82), Reinhold abre os seus Beyträge de 1801 problematizando justamente este aspecto e reconduzindo o filosofar à expressão de uma ‘análise’ da identidade da razão que leva à resolução da tarefa fundamental da filosofia:
A nobilitação (Veredelung) do conhecimento através de uma purificação (Läuterung) intencional (beabsichtigt) dele até a verdade pura e certeza, ou, o que é o mesmo, no esforço (Bestrebung), de verificar (bewähren) a Realidade do conhecimento através da investigação (Ergründung) do mesmo (BLU, I, p. 11).
Essa formulação, que caracteriza o realismo racional de Reinhold, é bastante interessante, por conseguir sintetizar os vários aspectos mencionados acima. Há uma ação ligada ao temperamento – a nobilitação (Veredelung) e uma purificação (Läuterung) do conhecimento – que vai junto com um esforço (Bestrebung) e um ato de investigar ou sondar fundo do próprio conhecimento (Ergründung)8 8 Cf. para o significado do verbo ergründen, Grimm (1854, ad vocem). . Há também algo que independe desse esforço e que esse esforço deixa, de forma justificada e intencional (beabsichtigt), aparecer (bewähren)9 9 Para uma discussão da concepção Reinholdiana da tarefa fundamental da filosofia, veja-se Valenza (1994), cujas teses são retomadas de forma sintética em Valenza (2018). .
Claro que essa purificação acontece de forma circular. Por um lado, a tarefa tem que ser preliminarmente posta para que a purificação aconteça. Por outro, apenas por meio da purificação acabada a tarefa terá legitimidade. Para Reinhold, é possível permanecer nesse círculo de forma ‘virtuosa’. Para que um filosofar autêntico aconteça, só é preciso uma compreensão do sentido da própria tarefa e não da realização da tarefa em si mesma (BLU, I, p. 12). Esta abordagem leva Reinhold, e a discussão pós-kantiana como um todo, não apenas à exigência de problematizar a inevitável relação entre fato e razão na definição do começo do filosofar, mas também a tematizar o estatuto das tentativas passadas de resolver a tarefa fundamental da filosofia.
Sabe-se que a definição do realismo racional dada por Reinhold, e mais em geral o filosofar reinholdiano, não podem ser separados de uma tomada de consciência histórica dos erros das filosofias anteriores e de uma crítica dos pressupostos fundamentais que estas filosofias compartilham10 10 A função essencial do momento histórico-fatual é sublinhada por Reinhold em abertura da Fundamentschrift, em sustentar que “a filosofia não precede o emprendimento da razão, mas o segue” (FS, p. 10), a ser interpretada não apenas como expressão de um progresso linear, mas sim, conforme o que alega Ivaldo (2010), como reflexo de uma concepção da razão como operatividade que se articula concretamente em tentativas de realizar a tarefa fundamental da filosofia. Uma interpretação teórica dessa articulação encontra-se em Lauth (1984, p. 17). Sobre a história da filosofia em Reinhold e sobre a sua relação com a definição da tarefa fundamental da filosofia, cf. Valenza (2018 e 1994). . Como também acontece no horizonte da filosofia elementar, Reinhold está convencido de que a multiplicidade de vertentes da filosofia seja o sintoma de uma falta de rigor na definição dos pressupostos da própria busca filosófica. E também ele está convencido de que a fragmentação do panorama filosófico é apenas aparente. As mais diversas orientações da filosofia moderna, de fato, nada mais seriam do que variações e reformulações do mesmo erro11 11 Cf. Versuch, pp. 43 e 62. Reinhold aprofunda esse aspecto também no ensaio de 1797, Ueber den gegenwärtigen Zustand der Metaphysik und der transcenentalen Philosophie überhaupt, publicado no segundo tomo da Auswahl vermischter Schriften (cf. Reinhold, 2017, p. 132 et seq.). Um tratamento da dialética entre revolução e reforma da metafisica existente que caracteriza a visão reinholdiana foi dado por Schuhmann (1968). No entanto, Schuhman investiga apenas a interpretação dada no Versuch de 1789, sem levar em consideração outras expressões da fase jenense do pensamento reinholdiano, assim como a fase do realismo racional. . No contexto da filosofia elementar, este erro consiste na incapacidade de definir de forma exaustiva e justificada o conceito de representação, que é inevitavelmente partilhado pelas mais diversas vertentes filosóficas (FS, 12). No do realismo racional, como veremos ao longo deste artigo, o erro consiste na incapacidade de tomar consciência da dinâmica que está por detrás dele e, então, na sua imprescindível função para a exposição clara do princípio de todo filosofar. Esta abordagem pode certamente induzir para uma concepção progressiva da filosofia, a ser entendida como uma “espécie de arte manual, que se deixaria aperfeiçoar através de novos procedimentos técnicos incessantemente descobertos” (Hegel, 1968, II, p. 34HEGEL, G. W. “Gesammelte Werke”. Hamburg: Meiner, 1968.) e em função da qual cada tentativa falha seria deixada cair por ser insuficiente. No entanto, esta concepção põe o problema do estatuto da própria falha ou do ‘erro’ em filosofia. Tratar-se-ia, por assim dizer, de averiguar a consistência ontológica e epistemológica do erro e da sua relação com a verdade, tanto no que diz respeito à própria estrutura da realidade, como no que diz respeito à nossa forma de interagir com ela12 12 Trata-se de uma questão presente desde o Sofista Platônico (252 e), ligada à refutação tanto de uma polaridade entre ser e negação, ou entre verdade e erro (parmenidismo), como à da participabilidade absoluta deles (sofística), em função da discussão de uma ‘terceira’ alternativa, a da participabilidade relativa, em que o ser e a negação, a verdade e falsidade são dadas pela coerência da relação entre os elementos de uma relação (253 e). De fato, conforme, comenta Sasso (1991, p. 149), “o transcendimento do erro, do falso, do que é em si mesmo contraditório implica, na verdade, que, pela sua própria possibilidade, o seu ato remonte ao ‘transcendido’, ou seja ao erro, ao falso ao contraditório, que, desta forma, constituem, até, o seu fundamento e a sua razão de ser. E este é o absurdo, pois, para além de qualquer brincadeira fantástica, a que o induz o espírito representativo, como poderia ser autêntico transcendimento um ato que encontra a sua razão de ser e o fundamento da sua possibilidade no ‘transcendido’? Será que no erro, junto com o seu fundamento, a sua razão encontra o critério do seu ser (ou neste caso do seu vir a ser)?”. Para além dessa interpretação exclusivamente ontológica, o Sofista platônico desperta justamente a atenção sobre a possibilidade de reconfigurar, sem esgotar, a polaridade parmenidiana entre ser e não ser, ou verdadeiro e falso, nas relações discursivas, e contingentes, necessárias para a ex-pressão concreta da verdade enquanto tal. De fato, seria possível objetar à interpretação de Sasso que a verdade se alcança por meio de uma transgressão, ou de um ‘transcendimento’ do erro, apenas do ponto de vista da consciência discursiva e que este transcendimento é incontornável, não para a constituição da verdade em si, mas sim para tomar conhecimento do processo que leva à nossa compreensão da verdade como algo que não apenas é dado, mas, sim, constituído. .
Neste artigo iremos investigar como Reinhold supera uma mera concepção progressiva da filosofia e entende o erro em uma dimensão positiva como instrumento heurístico imprescindível para a realização da tarefa fundamental do filosofar (§ 4), após uma descrição sintética das críticas reinholdianas aos modelos de filosofia transcendental encarnados por Fichte e Schelling, ao suposto realismo de Bouterweck e às filosofias do senso comum que estão conectadas com elas (§ 2), e como consequência da demonstração da inevitabilidade das tentativas parciais de realização da tarefa fundamental da filosofia (§ 3) e do aprofundamento da noção de Nexus, que permite reconduzir as tentativas parciais à própria estrutura imanente da razão. A resolução de tarefa fundamental do filosofar por meio de uma heurística da filosofia envolve, portanto, um questionamento do realismo racional como uma teoria acerca da realidade e valoriza a sua função metacrítica, a saber, o questionamento dos pressupostos básicos do filosofar enquanto uma prática de racionalidade.
2. Para além da individualidade. Dimensão crítica e metacrítica do realismo racional
Na fase do realismo racional, o erro das filosofias passadas consiste na troca entre pensar e representar e, portanto, na troca entre pensar como pensar, ou seja, como posição absoluta da razão, e pensar na aplicação, isto é, as formas em que a posição absoluta da razão se articula de forma concreta tomando consciência de si mesma (BLU, I, p. 82). Esta troca desenvolve-se em duas dimensões, que têm a ver respectivamente com o desenvolvimento histórico da filosofia e com a relação entre filosofia e entendimento comum. No que diz respeito ao desenvolvimento histórico da filosofia, as tentativas passadas de resolver a tarefa fundamental da filosofia, culminadas no transcendentalismo de Kant e Fichte, configuram a troca entre pensar como pensar e pensar na aplicação em função de uma subordinação explícita do objetivo ao subjetivo e a uma identificação das determinações do ser com as do saber (BLU, II, p. 134). A filosofia da identidade schellinguiana, em contrapartida, seria apenas o espelho do subjetivismo (e, portanto, do psicologismo e do empirismo) de Fichte (BLU, II, p. 192)13 13 A filosofia de Schelling seria entendida até como uma espécie de regressão na resolução da tarefa fundamental da filosofia (BLU, V. 670). Sobre as críticas de Reinhold a Schelling, cf. Bondeli, 1995a, pp. 323-329. . A indiferença entre subjetivo e objetivo, de fato, apenas repropõe a polaridade entre sujeito e objeto, que caracteriza a representação, mas que pode, e deve, ser fundamentada do ponto de vista do pensamento, enquanto pensamento14 14 Uma análise da crítica reinholdiana a Fichte e Schelling foi dada respectivamente por Ferraguto, 2020a e Ferraguto 2020b. . Só em aparência diferente parece ser a posição desenvolvida na Apodiktik por Friedrich Bouterweck15 15 Para uma discussão geral do pensamento de Bouterweck, cf. Lyssy, 2020; Dierse, 1999; Lyssy, 2014; Senne, 1972; Zinkstok, 2016. . Reinhold a enfrenta criticamente no ensaio conclusivo de BLU, III16 16 Estamos nos referindo a Die erste Aufgabe der Philosophie in ihren merkwurdigsten Auflösungen, BLU, III, pp. 354-367. , preparando assim o epílogo da longa reflexão sobre as tentativas de realizar a tarefa fundamental da filosofia que se subseguiram ao longo da modernidade e chegaram até a discussão pós-kantiana. O próprio Bouterweck, com sua Apodítica, pretende superar as abstrações da filosofia transcendental apelando para um elemento que transcende a generalidade dos conceitos e está enraizado na dimensão extraconceitual da experiência. Mas, como na filosofia de Fichte e Schelling, na Apodítica também a afirmação de uma realidade absoluta, representada por uma resistência que libera a virtualidade do pensamento17 17 Cf. Bouterweck, 1799, I, p. 21. Essa posição antecipa a reflexão acerca da possibilidade de sustentar um realismo puro ou, para usar a expressão de Ferraris, 2015, p. 225, um realismo positivo, também baseado na concepção da realidade como algo que resiste ao saber (ibid., p. 221) e cuja função seria a de solicitar ou estimular (auffordern) as tomadas de posição da consciência finita (ibid., p. 227; cf. também Ferraris, 2012, p. 127). Entretanto, Ferraris não justifica o fato de que para compreender a realidade como resistência continua sendo necessária uma rede de referências ou em um discurso produzido pela própria consciência finita (cf. Stella; Ianulardo, 2018). , precisa afinal de uma capacidade absoluta de reflexão que “subjuga o pensamento com um ato de força incondicional”. Mas o resultado dessa submissão é contraditório. É impossível falar de uma força ou resistência absoluta, pois esses conceitos são essencialmente relativos (BLU, III, p. 356). Isso só seria possível na medida em que esses conceitos fossem reconduzidos, justamente pela capacidade de julgar, às determinações de uma atividade absoluta do sujeito. Mas em virtude da crítica à escola fichteano-schellinguiana, para Reinhold, essa possibilidade tem que ser definitivamente excluída. De fato, a posição da Apodítica não ficaria muito longe da de Fichte e Schelling, na qual a filosofia “seria fundamentada através de um princípio que no pensamento contradiz a si mesma, mas que, representado através da Tathandlung, ao invés da contradição fornece aquele conflito, sem o qual não teria nenhum eu e nenhum não-eu” (BLU, III, p. 365). Com a única diferença, toda em prol de Fichte, que a doutrina da ciência põe absolutamente o seu primeiro princípio desde o começo da sua exposição, conseguindo assim oferecer uma exposição, criticável, mas coerente, das determinações do saber filosófico. A Apodítica, pelo contrário, conseguiria o seu princípio apenas no fim da sua exposição e, portanto, estaria baseada em um conjunto de assunções cuja interconexão não chegaria a completa justificação.
A oposição entre saber e realidade, que está por trás da Apodítica bouterweckiana e proporciona a construção de uma filosofia como Glaubenslehre, permite tematizar a relação entre filosofia e entendimento comum. A Glaubenslehre, no entanto, é inconciliável com as pretensões de uma filosofia rigorosa. Ela traduz-se em uma ignorância positiva (BLU, V, p. 726) incapaz de chegar ao conhecimento do pensamento como pensamento na aplicação e, portanto, incapaz de chegar a um conhecimento claro daquele absoluto que tem conhecido e pressentido antes de forma vaga através da fé e da crença. Um problema parecido encontra-se também naquela Alllehre, que Schelling e Hegel tinham apresentado no Kritisches Journal18 18 Sobre as relações críticas entre o realismo racional e a proposta filosófica apresentada por Schelling e Hegel no Kritisches Journal, cf. Onnasch (2006), que, além de uma reconstrução da recepção hegeliana e schellinguiana do realismo racional, mostra também como uma diferente interpretação do realismo racional se coloca na base dos diferentes desenvolvimentos filosóficos de Hegel e Schelling. A respeito, cf. também Bondeli, 1995b e Buchner, 1965. . Esta, em invés de fragmentar o absoluto nas suas diversas dimensões, entende-o como identidade absoluta de ser e conhecer, de finito e infinito e identifica-o com Deus. Em linha geral, para Reinhold, essa identificação poderia até ser correta, desde que seja o resultado de um conhecimento autêntico da manifestação de Deus na natureza como expressão de uma dinâmica que envolve o pensamento e não a sua conciliação com a natureza em uma dimensão ulterior. Pensamento e natureza, de fato, não têm uma essência separada e identificável. Eles são a mesma coisa, ou seja, articulações de uma única racionalidade. Remontando a Malbranche e explicando em que termos ele entende a teoria conforme vemos os objetos em Deus19 19 Reinhold refere-se aqui em especial a Malebranche, 2006, II, pp. 454-461. , Reinhold afirma que, nesta perspectiva, o verdadeiro, enquanto tal na natureza, ou a natureza assim como ela é em si mesma e aparece na nossa percepção sensível, tem que ser entendida como expressão do pensamento de Deus, como palavra divina, para além do prazer que temos individualmente em gozar dos seus efeitos: a consciência moral, a coerência matemática, a organização da natureza, a clareza dos raciocínios filosóficos ou a ligação com Deus por meio da fé (BLU, V, p. 740, 741)20 20 Reinhold usa, nesse sentido, o termo Antitipia, para indicar apenas a aparência, a imagem ou o espelhamento do verdadeiro como resultado da satisfação de uma tendência individual. Se na tradição estoica e leibniziana o termo ‘antitipia’ era usado para definir a impenetrabilidade da matéria, e como princípio para definir a individualidade dos corpos, Bardili (BW, pp. 104, 166, 208) usa-o para indicar uma Abbild ou Gegenbild, reprodução ou espelhamento da verdade. Para Bardili, de fato, trata-se de uma representação individual do pensamento ou da essência originaria por meio do pensamento humano caraterizado pela sensibilidade e pela imaginação. Dessa forma é definido o pensamento platônico de uma participação do pensamento humano à essência originária (BW, p. 207) em que consiste a religião também. Para uma apresentação geral do conceito de antitipia na época moderna, cf. Perl, 1969. . São posições que, em si, teriam, para Reinhold, uma legitimidade. É típico da razão humana alcançar a conexão entre ser, aparência e manifestações. No primeiro caso, teríamos uma visão clara do entendimento. No segundo, teríamos o desenvolvimento do que Reinhold chama de razão em sentido estrito (BLU, VI, p. 868). O problema surge quando essas distinções não são feitas de forma clara e desembocam em uma especulação que não chega ao seu princípio fundamental. Esta, em se basear em um conceito obscuro da diferença entre manifestação, aparência e ser, goza igualmente daquela distinção e permanece nela. Dessa forma, eleva-se para além do entendimento vulgar, pois realiza as distinções. Mas não supera a dimensão do entendimento comum em geral, na medida em que não as desenvolve de forma clara. Eleva-se “certamente para além da falta de consciência da troca e confusão entre esses elementos”, mas não se eleva para além da troca em si mesma e resolve a confusão “por meio de uma suprassunsão ilusória da troca em uma troca ulterior que põe a si mesma como um diferenciar”. Na medida em que esta suprassunsão é arbitrária, as confusões que podem derivar dela são diversas. E são diversas também as posições pseudofilosóficas que derivam dela (BLU, VI, p. 871). A filosofia, pelo contrário, nasce quando o pensamento não é mais identificado com o sentir, o intuir ou o representar e conceituar lógico, mas é entendido como pensamento, ou seja, como o que é implícito em todas essas posições. Uma vez que entendimento vulgar, entendimento comum e razão são expressões da estrutura da razão humana, não é necessário pensar que se trate de modalidades alternativas ou exclusivas. Mais do que isso, elas se relacionam reciprocamente como ser em si, manifestação e aparência. Assim como para a razão humana não se dá ser sem manifestação e sem uma ilusão a ser desvendada, ao mesmo modo não existe filosofia sem entendimento comum e sem especulação (BLU, VI, p. 881). A filosofia teria assim a função purificadora de libertar o entendimento, tanto das ilusões inevitáveis geradas pelo entendimento comum, como das envolvidas na especulação, na medida em que “eleva o prazer da verdadeira diferença entre ser em si, manifestação e aparência... em que consiste a saúde do entendimento comum, e que é desviada pela especulação, à consciência clara” (BLU, VI, p. 881)21 21 Essa posição não é muito diferente da sustentada nos Beiträge de 1794 (cf. Reinhold, 2003, II, pp. 13-16), sobre a qual veja-se Imhof (2018). .
Assim, o realismo racional apresenta duas dimensões. A primeira é, por assim dizer, crítica: averigua o saber dado e mostra a verdadeira estrutura do ser e da sua unidade originária e incindível com o pensamento. A segunda é, por assim dizer, metacrítica ou fenomenológica: em função destas estruturas, desvenda os erros das posições filosóficas consolidadas e, ao mesmo tempo, mostra a necessidade delas, para que o percurso de autoesclarecimento e realização da tarefa fundamental do filosofar seja concretamente realizado.
3. Em busca da ratio omnis rationati
Trata-se de uma duplicidade que Reinhold sublinha de forma muito clara e sobretudo justifica do ponto de vista especulativo no primeiro ensaio do VI tomo de BLU, acerca da resolução tarefa fundamental da filosofia22 22 Trata-se do ensaio Neue Auflösung der alten Aufgabe der Philosophie, em BLU, VI, pp. 752-813. . Aqui as posições filosóficas consideradas parciais não são criticadas em nome de um esquema pré-constituído. A decomposição delas contribui para a definição das próprias estruturas do realismo racional como condição de possibilidade e exposição da sua realização. Em seu apresentar o fundamento real do conhecimento, a filosofia, de fato, tem que reconduzir o condicionado, ou seja, tudo o que pode ser fundamentado, à sua condição, ou seja, ao que pode tudo fundamentar. Dessa forma é realizado apenas o esforço, caraterístico do ser humano, de construir um conhecimento verdadeiro e certo, capaz de explicar de forma exaustiva o ser e o conhecer em função do princípio deles e da origem que eles têm compartilhada. Essa realidade, contudo, não é construída ou produzida. A filosofia não é um instrumento para a criação da sua própria verdade. O filosofar aparece, mais do que isso, como uma mediação imprescindível pela qual a averiguação e a certificação claras do condicionado em relação à sua condição podem acontecer. Que o filosofar, entendido dessa forma, seja possível é demostrado pela realização efetiva da própria tarefa que o define.
Mas não é possível demonstrar que ele seja impossível, como tem feito Schulze no Enesidemo (Schulze, 1911, p. 6SCHULZE, G. “Aenesidemus oder über die Fundamente der von dem Herrn Professor Reinhold in Jena gelieferten Elementar-Philosophie”. Berlin: Reuther & Reichard, 1911.). O ceticismo que se desenvolve com este objetivo, de fato, faria sentido apenas em função de um pressuposto falho e, assim, mais do que a impossibilidade da filosofia, demonstraria a absurdidade de uma tentativa contingente de realizar a tarefa que a define enquanto tal. Diferentemente o “cético deveria afirmar a absurdidade de tudo o que é e pode ser e, portanto, também a absurdidade do seu próprio afirmar e demonstrar” (BLU, VI, p. 753). A sua função seria, portanto, provisória e ‘histórica’ e consistiria em suspender as representações do ser e do conhecer tidas até o momento.
De fato, não é possível, para Reinhold, realizar a tarefa fundamental da filosofia em função de uma representação do ser e do conhecer dadas. A diferença entre eles, assim como a relação entre eles, tem, mais do que isso, que ficar indefinida até a tarefa for realizada (BLU, VI, p. 753):
Portanto, o suposto filosofar do metafisico – quando reconduzido à fundação do ser em contraposição ao conhecer – e a do filósofo transcendental, que move da fundação do conhecer em oposição ao ser, não menos do dos teóricos da totalidade (Alllehrers), que fazem consistir a igual realidade do conhecer e do ser em uma Identidade pressuposta do subjetivo e do objetivo, tem falhado absolutamente já na posição da tarefa enquanto tarefa (BLU, VI, p. 753).
Em outras palavras, Espinosa, Leibniz, Kant e Fichte, Schelling e Bouterweck, além de Hegel, têm definido a tarefa da filosofia com base no que tem que ser realizado por meio dela própria e, portanto, teriam baseado a definição das filosofias deles como ciência rigorosa em uma clara petição de princípio.
A realização da tarefa da filosofia tem, ao invés, que começar por uma compreensão da dinâmica em função da qual ser e conhecer se constituem como termos que entram em relação. Assim, se em Schelling a relação entre eles foi definida em função de uma unidade como in-diferença entre as duas, e se, em Fichte, a correlação entre ser e saber foi reconduzida a uma dinâmica imanente ao sujeito, para Reinhold ela tem que ser entendida em função de uma relação fundamental que precede e põe os seus próprios elementos constitutivos. Reinhold fala, nesse sentido, de Nexus. O Nexus não é,
Como os kantianos sonham, e como eu há um tempo sonhava, uma síntese, mas contém a síntese e esta última... não é contraposta à análise; esta última é, mais do que isso, síntese e antítese em conjunto. Por fim, o Nexus e a análise não são, como sonhava Schelling, a identidade absoluta da identidade e da não identidade relativa, não a absurda unidade que se cinde em si mesma... mas a aplicação da identidade como tal, em que a identidade como tal é certamente na conjunção e na disjunção com a não identidade (BLU, VI, p. 763).
Isto não significa que ela se transforme em uma identidade relativa. Ela fica, mais do que isso, identidade imutável enquanto tal. O Nexus é certamente compreensível como absoluto, mas não no sentido de uma indiferença, e sim no de uma relação originária, toda imanente à própria identidade (BLU, VI, p. 764). No contexto do realismo racional a aplicação pode ser entendida como repetir-se do princípio, ou do pensar como princípio23 23 A tarefa da filosofia, portanto, não é realizada no nível do pensamento, que é a racionalidade básica que caracteriza o real, mas no de sua repetição como tal e de sua aplicação a si mesma (BLU, III, p. 292). Na medida em que essa repetição não pode ocorrer após a relação com um objeto externo, o desenvolvimento do pensamento deve ser uma repetição imanente: o pensamento compreende a si mesmo como (als) pensamento, aplicando-se a si mesmo (BLU, III, p. 301). Assim, pode-se dizer que, na visão de Reinhold e Bardili, o filosofar não se desdobra imediatamente a partir de seu pressuposto original, e sim apenas no nível de sua aplicação, ou articulação concreta, que Reinhold chama justamente de pensamento como (als) pensamento, ou seja, no momento em que a identidade absoluta como tal, ou, o que é o mesmo, como o uno e o mesmo “como uno e o mesmo” se repete em si mesmo (BLU, IV, p. 583). . O pensar é o sentido fundamental da realidade. A aplicação é a repetição desse sentido em articulações compreensíveis e comunicáveis e, portanto, pode ser entendida como relação de todo relacionar (Verhältnis alles Verhaltens): a própria possibilidade da relação como base para a fundação e justificação das concretas tomadas de posição acerca da realidade. Mas também neste caso seria errado entender a aplicação como uma função que especifica o pensar como pressuposto para o filosofar ou como faculdade inata que faz parte da natureza do sujeito filosofante. Também a definição do pensar – a sua forma, é o que, justamente por meio do pensar permite diferenciar a realidade (o pensado) da possibilidade (o pensável) – é esclarecida pela resolução da tarefa fundamental da filosofia, e, portanto, pela exposição do Nexus. Até esta exposição não acontecer, continua Reinhold, a definição das leis do pensamento por meio da lógica formal não será senão uma definição das leis do opinar e do saber acerca delas, não é um saber acerca do pensamento, mas sim um “saber acerca do que até o momento foi considerado como pensamento” (BLU, VI, p. 755). Este suposto conhecer do pensar ordinário, na medida em que troca o pensar com o representar, baseiase sobre um erro fundamental: o representar pressupõe um múltiplo e este último é sua própria razão. “A forma do pensar, trocado com a representação” transfere assim “o múltiplo do representável ao pensável e ao pensamento”. Dessa forma, fornece aos conhecimentos que se baseiam nele nenhum outro tipo de imutabilidade “que não seja a própria mutação” (BLU, VI, p. 756).
Nessa definição geral da tarefa da filosofia, que retoma as críticas formuladas às diversas vertentes filosóficas da modernidade, Reinhold tem até agora explicado como a filosofia não tem que proceder. Ela não tem que assumir um pressuposto dado, não tem que subordinar o ser ao conhecer e vice-versa, não tem que fundar o uno no outro:
O reconduzir da possibilidade e da realidade do conhecer e do ser ao uno absoluto, em que e através do que consiste qualquer possibilidade e realidade, transforma-se em um círculo falho se se pressupõe como conhecido algo diferente da identidade enquanto tal e da não identidade enquanto tal (BLU, VI, p. 756).
Afinal, não é possível unificar possibilidade e realidade, ser e saber, identidade e não identidade, em um termo que ‘suprassuma’ o estrutural ser relativo de ambos. Nem por meio do recurso à celebre formulação, utilizada por Hegel na Differenzschrift, da ‘Identidade da identidade e não identidade’. Mesmo conseguindo superar a implícita redução do real a uma atividade do sujeito, típica da filosofia transcendental, estas posições não conseguiriam se desfazer de uma concepção da unificação como síntese, como coalisão e como mistura. Na base delas teria uma contradição lógica insuperável: de um lado se pretende pôr uma unidade absoluta na base da relação entre ser e saber. De outro lado, vincula-se esta unidade a um dos dois elementos a serem unificados24 24 A mudança de perspectiva proposta por Reinhold – de uma crítica à subjetividade a uma contradição lógica – não é necessariamente nova (como parece alegar Bondeli, 2020, p. 939). Trata-se, mais do que isso, de uma consequência necessária da troca entre pensar e representar. É essa troca que leva a uma compreensão da unificação como síntese e destaca uma contradição lógico-ontológica que invalida a filosofia transcendental e a filosofia da identidade, mas também a Apodítica bouterweckiana. Entre a dimensão antropológica e a lógico-ontológica, portanto, não há descontinuidade. As duas refletem o conjunto de tentativas atuadas por Reinhold para superar as possíveis contradições envolvidas no realismo racional. A distinção deste último em função da contraposição entre sujeito e objeto deixa em aberto o problema da matéria e leva Fichte a identificar a perspectiva de Reinhold e Bardili com uma variação da filosofia elementar (Fichte, 1962, p. 253). A definição do realismo racional mediante a tematização da relação entre identidade e não identidade deixa um espaço ainda para as críticas de Schelling, conforme as quais, e como temos visto no capítulo precedente, o realismo racional não seria senão uma repetição da filosofia da identidade, assim como aparece no ensaio Ueber das absolute Identitäts-System und sein Verhältniß zum neuesten (Reinholdischen) Dualismus (Schelling, 1802, p. 41). .
Reinhold passa assim a focar no tipo de relação que tem que existir entre saber, ser e unidade entre os dois. Ele interpreta aquela com um entrelaçamento de relações entre o que é em si ignoto (An sich Unbekanntes), resultado da realização da tarefa do filosofar e princípio da unificação, e o que é em si conhecido (An sich Bekanntes), ou seja, o que tem que ser assumido como instrumento para que a tarefa seja realizada (BLU, VI, p. 657). Obviamente, e em virtude do que foi visto até agora, ignoto e conhecido não têm que ser entendidos como dados. Eles são funções, ou ferramentas, para configurar as relações entre a identidade, objetivo da resolução da tarefa do filosofar e ainda desconhecida, e não identidade, ponto de partida da resolução da tarefa fundamental da filosofia e expressão de um saber dado, ainda a ser compreendido nas suas estruturas originárias. Assim, entre a dupla identidade/não identidade, e em si ignoto e em si conhecido, não há diferença no que diz respeito ao conteúdo. A primeira dupla indica a dinâmica da tarefa do ponto de vista especulativo. A segunda é expressão da dinâmica que o concreto filosofar tem que atuar para que a tarefa seja realizada.
O em si conhecido não é tal porque explicitado em relação ao seu pressuposto (o em si ignoto). E o em si ignoto não o é porque os seus componentes não foram ainda descobertos. Trata-se, mais do que isso, de relações possíveis. Antecipando um pensamento que irá ser desenvolvido por Hegel na Fenomenologia do espírito (Hegel, 1968, IX, p. 26HEGEL, G. W. “Gesammelte Werke”. Hamburg: Meiner, 1968.), Reinhold entende o ignoto como o que tem que ser sempre reconhecido por meio de relações estabelecidas entre os seus elementos conhecidos, mas como não coincidente e não conseguinte deles e, além disso, como o que através daquelas relações torna o conhecido tal e o faz de uma certa forma. Em outras palavras, o em si ignoto é um pressuposto alcançado (ou inferido) heuristicamente em virtude da exigência que às nossas concretas tomadas de posição diante da realidade façam sentido ou, em termos mais gerais ainda, como a lógica que descobrimos no real.
A respeito disso, Reinhold usa a expressão ratio absoluta omnis rationati (BLU, VI, p. 764), razão absoluta, fundamento ou razão que tornam um raciocínio tal. O em si ignoto, por conseguinte é o próprio fato de que esta lógica tenha que se revelar e fazê-lo em formas específicas. O ignoto fica em si não conhecido e não conhecível, pois excede qualquer articulação específica dele. O conhecido fica tal, na medida em que é sempre articulação (e não componente) de algo que o excede. Realizar a tarefa fundamental da filosofia significa, neste sentido, e antes de quaisquer articulações do conhecido ou do ignoto, compreender a diferença (Reinhold fala em “separação”, ou cisão, Abscheidung, BLU, VI, p. 757) entre os dois, para além da mistura entre eles. Mais uma vez em uma direção muito próxima à Fenomenologia hegeliana, Reinhold, entende a tarefa da filosofia como purificação do saber dado em função de uma explicação das relações fundamentais que o caracterizam25 25 Cf., por ex, Hegel, 1968, IX, pp. 22-24. Sobre as analogias e o contexto da concepção reinholdiana da filosofia na fase do realismo racional e a fenomenologia hegeliana, cf. Ferraguto, 2012. . Justamente no nível desta explicação se coloca, para além das críticas às filosofias do passado, a pars construens do realismo racional.
4. Dimensão heurística da filosofia
De fato, ao longo dos Beyträge Reinhold reconfigura a sua critica às filosofias do passado como condição concreta de possibilidade para desenvolver uma filosofia em sentido autêntico. A definição da tarefa da filosofia como articulação entre em si ignoto e em si conhecido tem como primeiro resultado a constatação de que a mistura entre eles não é expressão da essência do pensar, mas sim do opinar e, portanto, é essência de um saber não rigoroso e inautêntico que torna possível ao mesmo tempo dogmatismo e ceticismo. Ceticismo, como afirmação da impossibilidade da separação entre conhecido e ignoto. Ou, em outras palavras, como negação da possibilidade de pôr, na base das nossas concretas tomadas de posição acerca do real, um ‘sentido’ universal e uma lógica a ser compartilhada, que a tornaria expressão, não apenas de uma específica individualidade, mas também reflexo de uma razão de que o indivíduo concreto é portador, mas não produtor. Dogmatismo, ao levar em consideração a separação como acontecida, sendo, no entanto, “o suposto separado” ainda “uma mistura da antiga mistureba” (BLU, VI, p. 758). O dogmatismo, em outras palavras, admite que uma lógica universal do real pode existir. Mas identifica a base dela em um elemento só em aparência extraindividual, mas que na verdade é o resultado da absolutização de um elemento específico da articulação daquela própria lógica. É claro que, deste ponto de vista, a diferença entre dogmatismo e ceticismo é apenas aparente. Não há diferença entre afirmar que não existe uma lógica universal envolvida em nossas tomadas de posição acerca do real e o praticar da individualização dessa lógica. Neste sentido Reinhold fica ainda próximo ao Fichte da Primeira introdução, em que se afirma uma continuidade substancial entre dogmatismo, ceticismo, materialismo e fatalismo (Fichte, 1962, I, 4, pp. 192-193FICHTE, J.G. “Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften” Stuttgart-Bad Cannstatt: Fromman Holzboog, 1962.). No entanto, diferentemente de Fichte, Reinhold reconhece como inevitável este resultado da especulação e propõe o realismo racional como corretivo e não como alternativo. Aliás: o próprio ponto de partida do realismo racional seria expressão de uma mistura que ele mesmo deveria contribuir a esclarecer:
Esta mistura entre conhecido e ignoto, que na tarefa da filosofia precede de forma inevitável a separação entre em si conhecido e o em si ignoto, é contida também na forma que temos inicialmente escolhido para representar esta tarefa. O uno absoluto, a que é preciso que sejam reconduzidas, como ao fundamento delas, possibilidade e realidade, pressupõe, até onde sabemos, o que queremos conhecer através deles (BLU, VI, p. 758).
No entanto, continua Reinhold, não o conhecemos como é em si mesmo, mas como o resultado daquela recondução, assim como é impossível para nós conhecer algo que não se apresente neste horizonte relativo. É, pelo contrário, possível tomar uma perspectiva hipotética e afirmar que, se a separação tem que ser possível, ela tem que acontecer a partir daquele uno originário. Entendido como termo que tem que preceder a separação, o uno-absoluto tem que ser purificado de qualquer atributo. Ele não tem que ser entendido nem como possível, nem como real, nem como fundamento, nem como absoluto. E até entendê-lo como identidade fundamental nos levaria novamente a pressupor o que estamos buscando. Dessa forma, de fato, teríamos reconduzido o em si ignoto ao em si conhecido e o teríamos novamente incluído naquele horizonte de que o tínhamos hipoteticamente diferenciado. Ao mesmo tempo, a caraterização provisória de identidade e não identidade é importante, não para compreender como elas são em si, mas sim para pôr o conjunto de questões que caracterizam a filosofia: o que é o ser, a possibilidade, a realidade, o fundamento, o absoluto, tanto no que diz respeito a eles próprios, como no que diz respeito à relação que eles têm com os demais conceitos.
Assim, mesmo não podendo dizer o que sejam o idêntico ou o não idêntico em si, temos pelo menos que os poder pressupor, se as perguntas fundamentais da filosofia têm que ser possíveis. Até porque, se houvesse uma resposta a respeito, a tarefa da filosofia já teria sido realizada. Para Reinhold, contudo, o problema não parece ser de imediato esta pressuposição, mas, sim, a clareza apenas aparente que deriva dela. A lógica formal, por exemplo, estaria baseada sobre esta aparente clareza ligada ao fato de que um pressuposto obscuro é, necessariamente, também confuso. E, em um sentido ainda mais radical, esta clareza apenas aparente seria posta na base da intuição intelectual da identidade absoluta de subjetivo e objetivo, teorizada por Schelling. Ainda em 1801SCHELLING, J.W.F. “Zeitschrift für spekulativem Physik. Bd. 2”. Jena: Gabler, 1801.26 26 No seu Anhang zu dem Aufsatz des Herrn Eschenmayer betreffend dem wahren Begriff der Naturphilosophie und richtige Art ihre Probleme Aufzulösen, no primeiro tomo da Zeitschrift zur spekutativen Physik. , Schelling defende que, para além do esforço fichteano de entender a intuição intelectual como intuição imediata da atividade do sujeito, haveria uma intuição intelectual ‘objetiva’ em que se exige também a “abstração do intuinte ... uma abstração que me devolveria também o puro objetivo neste ato, o que em si é mero sujeito-objeto, mas não-Eu” (Schelling, 1802, p. 122SCHELLING, J. „Über das absolute Identitäts-System und sein Verhältniß zum neuesten (Reinholdischen) Dualismus“. Kritisches Journal der Philosophie, 1, pp. 1-90, 1802.).
No caso da lógica formal, de fato, o princípio de identidade seria absolutamente conhecido, mas não claramente compreendido na sua origem, como expressão de algo que o fundamenta. No caso da filosofia schellinguiana da identidade haveria, mais uma vez, uma apresentação da ‘verdade do verdadeiro’ em função de algo absolutamente e em si conhecido, enquanto, pelo contrário, essa verdade teria que ser fundamentada em algo absolutamente em si ignoto. De resto, comenta ironicamente Reinhold, ninguém poderia ter a menor dúvida de possuir uma compreensão clara e evidente do que é uma identidade. No entanto, ele seria também o conceito “mais vazio e estéril” que possuímos e poderia ser fecundado “apenas por uma intuição” (BLU, VI, p. 760).
A raiz dos erros da filosofia contemporânea, e em geral da filosofia moderna, consistiria, para Reinhold, justamente nesta compreensão abstrativa da identidade. Entendida como mera abstração, de fato, poderia ser saturada apenas por um conteúdo representativo e/ou intuitivo, ou seja, por algo heterogêneo ao que ela originariamente indica. O primeiro passo para esclarecer a identidade como conceito não meramente abstrato consiste, portanto, em compreender que identidade e não identidade são as condições de pensabilidade daquele mesmo conteúdo. Não é possível falar de um algo (Etwas) que satura o conceito abstrato de identidade sem poder afirmar a identidade dele com si mesmo e a heterogeneidade entre o conceito abstrato e o que deveria fecundá-lo. Este esclarecimento e aprofundamento da identidade é, portanto, o instrumento fundamental – Reinhold o chama de instrumento heurístico (BLU, VI, p. 761) – para desvendar os erros envolvidos nas tentativas passadas de resolver a tarefa fundamental da filosofia e reconduzir as categorias da filosofia desenvolvida até o momento (mistura, composição, afinidade, analogia, indiferença) às estruturas que não sofram a heterogeneidade entre pensar e a realidade e que, portanto, permitam superar uma concepção do pensamento baseada na síntese.
O recurso de Reinhold a esta expressão não tem que surpreender, se pensarmos no fato de que o filósofo assume explicitamente nestas páginas o modelo da matemática como capaz de ultrapassar as parcialidades das posições filosóficas contemporâneas e se levarmos em conta o fato de que, desde a Fundamentschrift, esse modelo tinha sido levado como ideal, mesmo que irrealizável, de uma filosofia rigorosa e autenticamente fundamentada27 27 Este aspecto é destacado em um nível teórico geral por Cellucci (1998, p. 298), que, ao comentar a posição também relevante neste sentido de Hintikka e Rames (1976), destaca o fundamental entrelaçamento entre método analítico e procedimento heurístico. . Ao mesmo tempo, não podemos esquecer que na tradição leibniziana tinha se consolidado uma ideia do procedimento matemático como arte da descoberta e que a esta arte da descoberta tinha sido atribuída não apenas a função de chegar a um conhecer rigoroso, mas também a de purificar e policiar o nosso modo de conhecer. Não é por acaso que o próprio Bardili tinha entendido o seu Grundriss como uma medicina mentis, apta a refundar a lógica e entendê-la como disciplina capaz de ter efeitos relevantes sobre a vida28 28 Encontramos vestígios desse procedimento em autores que têm marcado os desenvolvimentos da concepção da filosofia e da lógica a partir da segunda metade do século XVIII, entre os quais vale a pena lembrar pelo menos Plocquet (GEL, p. VI), de que Bardili e Flatt foram sucessores, Meier e Reimarus (cf. a respeito Schneider, 1980, pp. 75-92). Sobre a importância da medicina mentis na filosofia pós-kantiana, cf. Henrich (2004, pp. 1212, 1346 e sg.) e Risse (1970, pp. 582 sg.), onde se destaca a função, na construção deste conceito das teorias de Tchirnhaus (Tschirnhaus, 1963), que, baseado no modelo oferecido pela matemática, entende a medicina mentis como um exercício de pensamento que coloca constantemente em questão os seus pressupostos, não no sentido de uma definição preliminar destes últimos, mas no da produção de um modelo que, mesmo não invalidando o saber constituído, visa deslegitimar a sua autoridade para compreender a dinâmica que está envolvida nele (Tschirnaus, 1963, p. 45). .
Assim, se as posições filosóficas parciais não são excluídas por princípio, mas são integradas no processo de realização da tarefa fundamental da filosofia, então a contraposição entre identidade e não identidade também tem que ser reconduzida ao significado mais originário aberto pela dinâmica da relação entre pensamento e aplicação. Tem que ser observado que a não identidade é o vestígio do pensamento aplicado, traço da mudança, da fragmentação e da variedade. Pensada em relação à não identidade, ou seja, como identidade da identidade e da não identidade, a identidade só pode ser um conceito relativo e, logo, tem que ser reconduzida à não identidade. Reinhold pode, assim, formular a tese segundo a qual “a identidade, enquanto tal, na sua relação com não identidade, ou a aplicação da identidade, como tal, é a identidade como tese na disjunção e na conjunção com a não identidade como hipótese” (BLU, VI, p. 761).
Para além da linguagem relativamente complicada, o pensamento que Reinhold apresenta aqui é simples. A não identidade tem que pressupor a identidade, pois diferentemente seria idêntica com si mesma, anularia a si mesma e se tornaria uma identidade. A identidade é, ao invés, apenas parcialmente caraterizada pela mesma contradição. Ela é pura. Mas esta pureza é tal em relação a algo que não o é e, portanto, se define com base em uma relação. Em pressupor a não identidade, portanto, também a identidade anula a si mesma enquanto tal. Identidade e não identidade, portanto, fazem sentido não em função da definição recíproca de si mesmas, ou seja, do seu ser funções da aplicação e não determinações do pensamento.
A identidade, pelo contrário, pode ser vista de outra perspectiva. Enquanto tal, ela é sempre pura e para pôr a si mesma enquanto tal não pode pressupor a não identidade. Neste sentido ela se apresenta como uma posição absoluta da razão ou como uma tese absoluta. Em contrapartida, a não identidade apresentase como o que pressupõe a identidade como um outro de si que, por sua vez, não pressupõe nada. Mas uma pressuposição subordinada a uma posição absoluta é, para Reinhold, uma hipótese29 29 Reinhold, inspirado por Bardili (GEL, p. 256) emprega aqui evidentemente o termo hipótese em um sentido platônico (Rep. 510b, 511 a-c), como um pressupor necessário para que um raciocínio seja iniciado com o objetivo de reconduzir o que é admitido preliminarmente como verdadeiro a um verdadeiro originário. . No entanto, ligada à hipótese, a tese não pode ficar uma mera tese, pois para sê-lo deveria anular a hipótese e, então, a si mesma novamente. Ela “não é uma mera tese, não a mera identidade como tal, mas, como tese e como identidade em conjunção necessária com a hipótese, ou com a não identidade, como tal, e sob ela” (BLU, VI, p. 762). A conjunção, contudo, mantém juntas, e ao mesmo tempo separa, identidade e não identidade, enquanto tais. A identidade não pode, enquanto tal, tornar-se não identidade sem anular a si mesma e vice-versa. Na medida em que fazem sentido na conjunção entre elas, identidade e não identidade são, por meio da conjunção, também originariamente disjuntas.
Se for fixado enquanto tal, cada um desses elementos anularia a si mesmo. Ma, entendida como rede de referências recíprocas, a fórmula segundo a qual a “identidade é como tese na disjunção e na conjunção com a não identidade como com a hipótese” permite que identidade e não identidade coexistam. Para Reinhold, portanto, pensar a identidade como identidade da identidade e não identidade não é por si mesmo um erro. Desde que a identidade seja entendida não como a base irregressível da busca filosófica, mas como o reflexo de uma origem que ainda tem que ser encontrada e apresentada. Vista através do prisma das relações que definem a aplicação, a identidade não pode ser entendida como posição absoluta, e sim como relação absoluta ou, como fala Reinhold, como Nexus. Este não consiste absolutamente:
Em uma composição, justaposição, resultante da identidade e da não identidade, e sim na inseparabilidade da identidade como tese da não-identidade como hipótese na conjunção e na disjunção das mesmas. A falta de mistura e a inseparabilidade dos quatro caracteres do Nexus ou a identidade enquanto tal da aplicação é a evidência em si mesma, assim como a mistura dos mesmos, que tem como consequência necessária a separação e a obscuridade ou a confusão em si mesma (BLU, VI, p. 763).
Onde os quatro caracteres do Nexus são respectivamente a separabilidade e a não separabilidade na tese e na hipótese. Estes, contudo, não podem ser entendidos separadamente, mas como perspectivas sobre uma dinâmica unitária: a identidade se põe, enquanto tal, como tese, na hipótese e, logo, pressupõe a não identidade. Esta compreensão, porém, não fixa a identidade como princípio originário, mas apenas como reflexo de uma argumentação (ela, portanto, faz sentido apenas na hipótese, ou seja, como princípio de um raciocínio). Por meio da introdução do conceito de Nexus, podemos conseguir também uma visão diferente da síntese, ou seja, do horizonte fundamental em função do qual, tanto na modernidade como a partir de Kant, foi compreendida a relação entre mente e mundo (Aportone, 2009, p. 4APORTONE, A. “Gestalten der transzendentalen Einheit Bedingungen der Synthesis bei Kant”. Berlin-New York: De Gruyter, 2009.).
A síntese é uma perspectiva sobre esta dinâmica, que tem juntas identidade e não identidade como conceitos relativos que se implicam reciprocamente. A perspectiva que os compreende como distintos e através da qual a identidade manifesta a sua pureza é, por contraste, a antítese. A unidade de ambas é a análise entendida não como decomposição, e sim como, por assim dizer, período analítico, ou seja, como relação entre elementos em função da qual pode ser destacada a natureza deles30 30 Já Fichte tinha entrevisto, na Wissenschaftslehre nova methodo (cf. Fichte, 1962, IV, 3, p. 477) uma opção teórica deste tipo ao chamar de período sintético quíntuplo não a junção de elementos dados, e sim a dinâmica autorreflexiva e imanente da razão. . A análise, como unidade de síntese e antítese e o Nexus implicam-se reciprocamente. Não existe, portanto, como queria Kant, uma síntese originária, que precede a análise (B, p. 130), assim como não é possível interpretar o Nexus como conexão entre elementos ou como a identidade absoluta da identidade relativa entre identidade e não identidade, como queria Schelling. Para Reinhold, a identidade originária não se cinde e não aparece nos seus componentes. Identidade e não identidade são, mais do que isso, expressões do seu movimento interno, poderíamos dizer, o precipitado da dinâmica interna da razão que, enquanto tal, tende a tornar-se transparente em uma argumentação fornecida de sentido.
Assim, ao afirmar discursivamente o absoluto “ainda não sabemos o que o absoluto seja, o que seja o princípio ou o princípio absoluto em si”. Ele, assim como os conceitos sobre os quais se funda a formulação e a resolução da tarefa fundamental da filosofia: possibilidade, conhecimento, realidade, podem ser vistos apenas no contexto da aplicação do pensamento. A aplicação é, portanto, um meio heurístico para a articulação do princípio, ou seja, é um momento fatual imprescindível para que o princípio se manifeste e seja descoberto como tal, mesmo não sendo por si mesmo alcançável dentro deste espaço. A heurística do princípio acontece por meio de uma penetração nas estruturas da aplicação. Caracterizada pela relação entre tese e hipótese, ou entre identidade e não identidade, a aplicação é também caracterizada pela contradição. Ela afirma, de fato, a identidade absoluta, com base em uma hipótese, ou seja, com base na não identidade. Isso também significa que tudo o que não entra na esfera desta contradição, enquanto tal, fica em si ignoto (não podemos conhecer uma contradição, pois ela é por si mesma absurda e, portanto, inconhecível) e, logo, é ulteriormente conhecível (BLU, VI, p. 769). Do ponto de vista, por assim dizer, crítico, isto significa que o plano da aplicação, e, então, a estrutura da análise como dinâmica das relações entre síntese e antítese, permite inferir as determinações do saber e da realidade, assim como as diversas formas da relação entre eles. Do ponto de vista metacrítico, ou seja, na perspectiva da autocompreensão do realismo racional como resolução da tarefa fundamental da filosofia, o reconhecimento da contradição tem uma função catártica. De fato, ele liberta da confusão entre identidade e não identidade e, sobretudo, da compreensão da “contradição como não contradição”, ou seja, da troca entre identidade e não identidade que, para Reinhold, se põe na base das diversas formas de dogmatismo.
Uma análise detalhada desses momentos, que envolveria uma discussão da fenomenologia de BLU, IV31 31 Sobre o que cf. Ferraguto, 2020b. , levaria muito além dos objetivos do presente texto. É suficiente ter notado a estrutura ‘analítica’ do realismo racional e tomado consciência da forma em que esta estrutura tem um potencial heurístico que permite sustentar como a investigação das tentativas de resolver a tarefa fundamental da filosofia não possa ser reduzida a um conjunto de tentativas falhas, mas tenha que ser entendida, mais do que isso, como o momento fático irredutível para a realização da filosofia como consciência do inevitável articular-se concreto da razão.
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Para uma visão geral das tendências da filosofia pós-kantiana nesse sentido, cf. Lorini, 2015LORINI, G. “Rethinking the Absolute: Recent Enquiries into German Idealism”. Alvearium, 2015, pp. 89-117. e Förster, 2018FÖRSTER, E. “Die 25 Jahre der Philosophie”. Frankfurt am Main: Klostermann, 2018..
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2
Para uma visão geral desse aspecto, cf. Breazeale, 1987-1988, pp. 97-123BREAZEALE, D. “How to make an idealist. Fichte´s refutation of Dogmatism and the problem of the starting point of the Wissenschaftslehre”. The Philosophical Forum, pp. 97-123. 1987-1988..
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3
Cf. a respeito Fincham (2005)FINCHAM, R. “Refuting Fichte with “common sense”: Friedrich Immanuel Niethammer’s Reception of the Wissenschaftslehre 1794/95”. Journal of the History of Philosophy, 2005, pp. 301-324., que destaca também a função de F. Niethammer nesse contexto.
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4
Para uma visão panorâmica e problematização dessas formas de realismo, veja-se Pluder, 2013PLUDER, V. “Die Vermittlung von Idealismus und Realismus in der Klassischen Deutschen Philosophie. Eine Studie zu Jacobi, Kant, Fichte, Schelling und Hegel”. Stuttgart-Bad Cannstatt: Frommann Holzboog, 2013..
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5
Nesse contexto, é relevante também a posição de F.A. Köppen, assim como reconstruído por Tarli, 2016TARLI, S. Compiti e Limiti della filosofia. Bardili, Reinhold e Koppen in dialogo. Roma: Diss. 2016..
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6
Uma abordagem que entende essa suplementação realista como progressiva dissolução do kantismo é apresentada por Rosenkranz (1840)ROSENKRANZ, K. “Geschichte der kantischen Philosophie”. Berlin: Voss, 1840..
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Não é esse o contexto para entrarmos nos detalhes das concepções pós-kantianas da fenomenologia. Trata-se de uma expressão que se encontra tanto em Fichte (cf. por ex. Fichte, 1962, II, 8, p. 138FICHTE, J.G. “Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften” Stuttgart-Bad Cannstatt: Fromman Holzboog, 1962.), como em Reinhold (cf. por ex. BLU, V, pp. 1-4) e Hegel (cf. por ex. Hegel, 1968, IX, p. 55HEGEL, G. W. “Gesammelte Werke”. Hamburg: Meiner, 1968.) e usada para indicar a dinâmica geral de autoesclarecimento das estruturas da consciência, entendida como horizonte em que o seu princípio se articula e se manifesta concretamente, e como purificação do erro, ou seja, de qualquer saber não levado a uma justificação plena e acabada. Uma visão mais detalhada nesse contexto foi dada, entre outros, por Bockhove (1991)BOCKHOVE, N. “Phänomenologie. Ursprung und Entwicklung des Terminus im 18. Jahrhundert”. Utrecht: Scientia 1991., que apresenta uma reconstrução histórica ampla da gênese da abordagem fenomenológica em função de uma melhor compreensão da fenomenologia transcendental husserliana, e Ferraguto (2012)FERRAGUTO, F. “Il concetto di fenomenologia dalla tradizione prekantiana all’idealismo tedesco”. In Cimino-Costa, 2012 pp. 25-35., que foca nas concepções da fenomenologia desenvolvidas por Reinhold, Fichte e Hegel em função da gênese delas no debate sobre a flosofia de Kant a partir do fim do século XIX.
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Cf. para o significado do verbo ergründen, Grimm (1854GRIMM, J., GRIMM, W. “Deutsches Wörterbuch der Philosophie”. Leipzig: Hirzel, 1954., ad vocem).
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9
Para uma discussão da concepção Reinholdiana da tarefa fundamental da filosofia, veja-se Valenza (1994)VALENZA, P. “Reinhold e Hegel”. Padova: Cedam, 1994., cujas teses são retomadas de forma sintética em Valenza (2018)VALENZA, P. “La storia della filosofia secondo Reinhold all’inizio del XIX secolo”. Aurora, 2018, pp. 727-750..
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A função essencial do momento histórico-fatual é sublinhada por Reinhold em abertura da Fundamentschrift, em sustentar que “a filosofia não precede o emprendimento da razão, mas o segue” (FS, p. 10), a ser interpretada não apenas como expressão de um progresso linear, mas sim, conforme o que alega Ivaldo (2010)IVALDO, M. (2010). Zwei Wege der Kantischen praktischen Vernunft: Reinhold und Fichte, cit., pp., pp. 188-189. In: Di Giovanni, 2010, pp. 181-193., como reflexo de uma concepção da razão como operatividade que se articula concretamente em tentativas de realizar a tarefa fundamental da filosofia. Uma interpretação teórica dessa articulação encontra-se em Lauth (1984, p. 17)LAUTH, R. “Die transzedentale Naturlehre nach den Principien der Wissenschaftslehre”. Amburg: Meiner, 1984.. Sobre a história da filosofia em Reinhold e sobre a sua relação com a definição da tarefa fundamental da filosofia, cf. Valenza (2018VALENZA, P. “La storia della filosofia secondo Reinhold all’inizio del XIX secolo”. Aurora, 2018, pp. 727-750. e 1994VALENZA, P. “Reinhold e Hegel”. Padova: Cedam, 1994.).
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11
Cf. Versuch, pp. 43 e 62. Reinhold aprofunda esse aspecto também no ensaio de 1797, Ueber den gegenwärtigen Zustand der Metaphysik und der transcenentalen Philosophie überhaupt, publicado no segundo tomo da Auswahl vermischter Schriften (cf. Reinhold, 2017, p. 132REINHOLD, K. L. “Auswahl vermischter Schriften”. Basel: Schwabe, 2017. et seq.). Um tratamento da dialética entre revolução e reforma da metafisica existente que caracteriza a visão reinholdiana foi dado por Schuhmann (1968)SCHUHMANN, K. “Reinholds Vorstellungstheorie und die Metaphysik”. Tijdschrift voor Filosofie, 1968, pp. 264-324.. No entanto, Schuhman investiga apenas a interpretação dada no Versuch de 1789, sem levar em consideração outras expressões da fase jenense do pensamento reinholdiano, assim como a fase do realismo racional.
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12
Trata-se de uma questão presente desde o Sofista Platônico (252 e), ligada à refutação tanto de uma polaridade entre ser e negação, ou entre verdade e erro (parmenidismo), como à da participabilidade absoluta deles (sofística), em função da discussão de uma ‘terceira’ alternativa, a da participabilidade relativa, em que o ser e a negação, a verdade e falsidade são dadas pela coerência da relação entre os elementos de uma relação (253 e). De fato, conforme, comenta Sasso (1991, p. 149)SASSO, G. “L’essere e le differenze. Sul “Sofista” di Platone”. Bologna: Il Mulino, 1991., “o transcendimento do erro, do falso, do que é em si mesmo contraditório implica, na verdade, que, pela sua própria possibilidade, o seu ato remonte ao ‘transcendido’, ou seja ao erro, ao falso ao contraditório, que, desta forma, constituem, até, o seu fundamento e a sua razão de ser. E este é o absurdo, pois, para além de qualquer brincadeira fantástica, a que o induz o espírito representativo, como poderia ser autêntico transcendimento um ato que encontra a sua razão de ser e o fundamento da sua possibilidade no ‘transcendido’? Será que no erro, junto com o seu fundamento, a sua razão encontra o critério do seu ser (ou neste caso do seu vir a ser)?”. Para além dessa interpretação exclusivamente ontológica, o Sofista platônico desperta justamente a atenção sobre a possibilidade de reconfigurar, sem esgotar, a polaridade parmenidiana entre ser e não ser, ou verdadeiro e falso, nas relações discursivas, e contingentes, necessárias para a ex-pressão concreta da verdade enquanto tal. De fato, seria possível objetar à interpretação de Sasso que a verdade se alcança por meio de uma transgressão, ou de um ‘transcendimento’ do erro, apenas do ponto de vista da consciência discursiva e que este transcendimento é incontornável, não para a constituição da verdade em si, mas sim para tomar conhecimento do processo que leva à nossa compreensão da verdade como algo que não apenas é dado, mas, sim, constituído.
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13
A filosofia de Schelling seria entendida até como uma espécie de regressão na resolução da tarefa fundamental da filosofia (BLU, V. 670). Sobre as críticas de Reinhold a Schelling, cf. Bondeli, 1995a, pp. 323-329BONDELI, M. “Das Anfagsproblem bei K.L. Reinhold”. Frankfurt am Main: Klostermann, 1995a..
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14
Uma análise da crítica reinholdiana a Fichte e Schelling foi dada respectivamente por Ferraguto, 2020aFERRAGUTO, F. O verdadeiro para além do fudnamento. O realismo racional de K.L. Reinhold. Cadernos de filosofia alemã, 2020a, pp. 41-58. e Ferraguto 2020bFERRAGUTO, F. “Schellings Idealismus aus der Sicht des rationalen Realismus”. In De Pascale et. al., 2020b, pp. 135-154..
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15
Para uma discussão geral do pensamento de Bouterweck, cf. Lyssy, 2020LYSSY, A. “Reality as Resistance: The Concept of the Will in Bouterwek’s Idea of an Apodictic (1799)”. In: Nöller, 2020, pp. 159-180.; Dierse, 1999DIERSE, U. „Bouterwecks Idee einer Apodiktik“. In: JAESCHKE, W. Transzendentalphilosophie und Spekulation. Hamburg: Meiner, 1993. pp. 32-52.; Lyssy, 2014LYSSY, A. “Kant für Jedermann. Über F. Bouterweks Versuch, Kants kritische Philosophie populär darzustellen”. In: Binkelmann, 2014, pp. 139–167.; Senne, 1972SENNE, L. L. “Friedrich Bouterwek, the philosophical critic. An intellectual biography”. Stanford University: Diss, 1972.; Zinkstok, 2016ZINKSTOK, J. „Bouterwek.“. In: Klemme, 2016 ad vocem..
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16
Estamos nos referindo a Die erste Aufgabe der Philosophie in ihren merkwurdigsten Auflösungen, BLU, III, pp. 354-367.
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Cf. Bouterweck, 1799, I, p. 21BOUTERWECK, F. “Idee einer Apodiktik”. Halle: Regerschen Buchhandlung, 1799.. Essa posição antecipa a reflexão acerca da possibilidade de sustentar um realismo puro ou, para usar a expressão de Ferraris, 2015, p. 225FERRARIS, M. “Transcendetal Realism”. The Monist, pp. 215-232, 2015., um realismo positivo, também baseado na concepção da realidade como algo que resiste ao saber (ibid., p. 221) e cuja função seria a de solicitar ou estimular (auffordern) as tomadas de posição da consciência finita (ibid., p. 227; cf. também Ferraris, 2012, p. 127FERRARIS, M. “Esistere è resistere”. In: De Caro-Ferraris, 2012, pp. 139-168.). Entretanto, Ferraris não justifica o fato de que para compreender a realidade como resistência continua sendo necessária uma rede de referências ou em um discurso produzido pela própria consciência finita (cf. Stella; Ianulardo, 2018STELLA, A., IANULARDO, G “Metaphysical Realism and Objectivity: Some Theoretical Reflections”. Philosophia, 2018, pp. 1-21.).
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18
Sobre as relações críticas entre o realismo racional e a proposta filosófica apresentada por Schelling e Hegel no Kritisches Journal, cf. Onnasch (2006)ONNASCH, E. O. „Gegen das unphilosophische Unwesen. Das Kritische Journal der Philosophie von Schelling und Hegel“. Kritisches Jahrbuch der Philosophie, pp. 185-196, 2006., que, além de uma reconstrução da recepção hegeliana e schellinguiana do realismo racional, mostra também como uma diferente interpretação do realismo racional se coloca na base dos diferentes desenvolvimentos filosóficos de Hegel e Schelling. A respeito, cf. também Bondeli, 1995bBONDELI, M. “Hegel und Reinhold”. Hegel-Studien, 45-87, 1995b. e Buchner, 1965BUCHNER, H. Hegel und das Kritische Journal der Philosophie. Hegel-Studien,1965, pp. 95-156..
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19
Reinhold refere-se aqui em especial a Malebranche, 2006, II, pp. 454-461MALEBRANCHE, N. “De la recherche de la vérité. Livres I–III”. Vrin: Paris, 2006..
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20
Reinhold usa, nesse sentido, o termo Antitipia, para indicar apenas a aparência, a imagem ou o espelhamento do verdadeiro como resultado da satisfação de uma tendência individual. Se na tradição estoica e leibniziana o termo ‘antitipia’ era usado para definir a impenetrabilidade da matéria, e como princípio para definir a individualidade dos corpos, Bardili (BW, pp. 104, 166, 208) usa-o para indicar uma Abbild ou Gegenbild, reprodução ou espelhamento da verdade. Para Bardili, de fato, trata-se de uma representação individual do pensamento ou da essência originaria por meio do pensamento humano caraterizado pela sensibilidade e pela imaginação. Dessa forma é definido o pensamento platônico de uma participação do pensamento humano à essência originária (BW, p. 207) em que consiste a religião também. Para uma apresentação geral do conceito de antitipia na época moderna, cf. Perl, 1969PERL, M. Physics and Metaphysics in Newton, Leibniz, and Clarke. Journal of the History of Ideas, 1969, pp. 507–56..
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21
Essa posição não é muito diferente da sustentada nos Beiträge de 1794 (cf. Reinhold, 2003, II, pp. 13-16REINHOLD, K. L. “Beiträge zur Berichtigung bisheriger Mißverständnisse der Philosophen”. Hamburg: Meiner, 2003.), sobre a qual veja-se Imhof (2018)IMHOF, S. “Reinhold on the relation between common understanding and philosophising reason”. Aurora, 2018, pp. 573-596..
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22
Trata-se do ensaio Neue Auflösung der alten Aufgabe der Philosophie, em BLU, VI, pp. 752-813.
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23
A tarefa da filosofia, portanto, não é realizada no nível do pensamento, que é a racionalidade básica que caracteriza o real, mas no de sua repetição como tal e de sua aplicação a si mesma (BLU, III, p. 292). Na medida em que essa repetição não pode ocorrer após a relação com um objeto externo, o desenvolvimento do pensamento deve ser uma repetição imanente: o pensamento compreende a si mesmo como (als) pensamento, aplicando-se a si mesmo (BLU, III, p. 301). Assim, pode-se dizer que, na visão de Reinhold e Bardili, o filosofar não se desdobra imediatamente a partir de seu pressuposto original, e sim apenas no nível de sua aplicação, ou articulação concreta, que Reinhold chama justamente de pensamento como (als) pensamento, ou seja, no momento em que a identidade absoluta como tal, ou, o que é o mesmo, como o uno e o mesmo “como uno e o mesmo” se repete em si mesmo (BLU, IV, p. 583).
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A mudança de perspectiva proposta por Reinhold – de uma crítica à subjetividade a uma contradição lógica – não é necessariamente nova (como parece alegar Bondeli, 2020, p. 939BONDELI, M. “Kommentar”. In Reinhold, 2020, pp. 884-971.). Trata-se, mais do que isso, de uma consequência necessária da troca entre pensar e representar. É essa troca que leva a uma compreensão da unificação como síntese e destaca uma contradição lógico-ontológica que invalida a filosofia transcendental e a filosofia da identidade, mas também a Apodítica bouterweckiana. Entre a dimensão antropológica e a lógico-ontológica, portanto, não há descontinuidade. As duas refletem o conjunto de tentativas atuadas por Reinhold para superar as possíveis contradições envolvidas no realismo racional. A distinção deste último em função da contraposição entre sujeito e objeto deixa em aberto o problema da matéria e leva Fichte a identificar a perspectiva de Reinhold e Bardili com uma variação da filosofia elementar (Fichte, 1962, p. 253FICHTE, J.G. “Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften” Stuttgart-Bad Cannstatt: Fromman Holzboog, 1962.). A definição do realismo racional mediante a tematização da relação entre identidade e não identidade deixa um espaço ainda para as críticas de Schelling, conforme as quais, e como temos visto no capítulo precedente, o realismo racional não seria senão uma repetição da filosofia da identidade, assim como aparece no ensaio Ueber das absolute Identitäts-System und sein Verhältniß zum neuesten (Reinholdischen) Dualismus (Schelling, 1802, p. 41SCHELLING, J. „Über das absolute Identitäts-System und sein Verhältniß zum neuesten (Reinholdischen) Dualismus“. Kritisches Journal der Philosophie, 1, pp. 1-90, 1802.).
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25
Cf., por ex, Hegel, 1968, IX, pp. 22-24HEGEL, G. W. “Gesammelte Werke”. Hamburg: Meiner, 1968.. Sobre as analogias e o contexto da concepção reinholdiana da filosofia na fase do realismo racional e a fenomenologia hegeliana, cf. Ferraguto, 2012FERRAGUTO, F. “Il concetto di fenomenologia dalla tradizione prekantiana all’idealismo tedesco”. In Cimino-Costa, 2012 pp. 25-35..
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26
No seu Anhang zu dem Aufsatz des Herrn Eschenmayer betreffend dem wahren Begriff der Naturphilosophie und richtige Art ihre Probleme Aufzulösen, no primeiro tomo da Zeitschrift zur spekutativen Physik.
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27
Este aspecto é destacado em um nível teórico geral por Cellucci (1998, p. 298)CELLUCCI, C. “Le ragioni della logica”. Roma: Laterza, 1998., que, ao comentar a posição também relevante neste sentido de Hintikka e Rames (1976)HINTIKKA, J., REMES, U. “Ancient geometrical analysis and modern logic”. In: Cohen et al., 1976, pp. 253-276., destaca o fundamental entrelaçamento entre método analítico e procedimento heurístico.
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28
Encontramos vestígios desse procedimento em autores que têm marcado os desenvolvimentos da concepção da filosofia e da lógica a partir da segunda metade do século XVIII, entre os quais vale a pena lembrar pelo menos Plocquet (GEL, p. VI), de que Bardili e Flatt foram sucessores, Meier e Reimarus (cf. a respeito Schneider, 1980, pp. 75-92SCHNEIDER, W. „Praktische Logik“. In: W. WALTER, L. Borinski. Logik im Zeitalter der Aufklärung. Göttingen: Vanenhoeck und Ruprecht, 1980.pp. 75-92.). Sobre a importância da medicina mentis na filosofia pós-kantiana, cf. Henrich (2004, pp. 1212, 1346HENRICH, D. “Grundlegung aus dem Ich”. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2004. e sg.) e Risse (1970, pp. 582RISSE, W. “Logik der Neuzeit”. Stuttgart-Bad Cannstatt: Frommann Holzboog, 1970. sg.), onde se destaca a função, na construção deste conceito das teorias de Tchirnhaus (Tschirnhaus, 1963TSCHIRNHAUS, E. Medicina mentis sive ars inveniendi praecepta generalia. Editio nova (Lipsiae 1695). Leipzig: Fritch, 1963.), que, baseado no modelo oferecido pela matemática, entende a medicina mentis como um exercício de pensamento que coloca constantemente em questão os seus pressupostos, não no sentido de uma definição preliminar destes últimos, mas no da produção de um modelo que, mesmo não invalidando o saber constituído, visa deslegitimar a sua autoridade para compreender a dinâmica que está envolvida nele (Tschirnaus, 1963, p. 45).
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29
Reinhold, inspirado por Bardili (GEL, p. 256)BARDILI, G. “Grundriss der ersten Logik”. Stuttgart: Höflund, 1800 (= GEL). emprega aqui evidentemente o termo hipótese em um sentido platônico (Rep. 510b, 511 a-c), como um pressupor necessário para que um raciocínio seja iniciado com o objetivo de reconduzir o que é admitido preliminarmente como verdadeiro a um verdadeiro originário.
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Já Fichte tinha entrevisto, na Wissenschaftslehre nova methodo (cf. Fichte, 1962, IV, 3, p. 477FICHTE, J.G. “Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften” Stuttgart-Bad Cannstatt: Fromman Holzboog, 1962.) uma opção teórica deste tipo ao chamar de período sintético quíntuplo não a junção de elementos dados, e sim a dinâmica autorreflexiva e imanente da razão.
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31
Sobre o que cf. Ferraguto, 2020bFERRAGUTO, F. “Schellings Idealismus aus der Sicht des rationalen Realismus”. In De Pascale et. al., 2020b, pp. 135-154..
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
29 Maio 2023 -
Data do Fascículo
Abr 2023
Histórico
-
Recebido
14 Abr 2022 -
Aceito
26 Out 2022