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AGARRAR O DIA: CORPO, HISTÓRIA E PRESENÇA DE ESPÍRITO EM WALTER BENJAMIN** ** Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito da Norma Transitória – DL 57/2016/CP1453/CT0040 e do Projecto “Fragmentação e reconfiguração: a experiência da cidade entre arte e filosofia” – PTDC/FER-FIL/32042/2017.

SEIZING THE DAY: BODY, HISTORY AND PRESENCE OF MIND IN WALTER BENJAMIN

RESUMO

O presente artigo debruça-se sobre o papel que o conceito de “presença de espírito” (Geistesgegenwart) desempenha no pensamento de Walter Benjamin, aprofundando linhas de interpretação que se articulam com outros conceitos relevantes, como os de “atenção” (Aufimerksamkeit) ou “tempo do agora” (Jetztzeit). São analisados os elementos da obra de Benjamin que desenvolvem a importância filosófica da presença de espírito, sublinhando-se a sua dimensão corpórea e a sua pertinência estética e crítica. A análise incide sobre cinco linhas de interpretação que de diferentes modos se entrecruzam: (i) a presença de espírito é uma forma de pensamento/acção que deve ser cultivada como modo de lidar com a vivência do choque; (ii) ter presença de espírito é uma atitude que pode ser exercitada; (iii) “agarrar o dia” envolve o corpo e pressupõe uma experiência do tempo intensivo; (iv) a presença de espírito é uma instância conceptual que integra elementos relativos ao jogo; (v) valorizando o presente, a presença de espírito implica uma relação entre perigo e gesto crítico – na reflexão histórica e política de Benjamin, esse gesto entrelaça a dimensão individual e a dimensão colectiva.

Palavras-chave:
Presença de espírito; Corpo; História; Vivência do choque; Perigo; Estética

ABSTRACT

This article focuses on the role that the concept of “presence of mind” (Geistesgegenwart) plays in Walter Benjamin’s thought, deepening lines of interpretation that are connected to other relevant concepts such as “attention” (Aufimerksamkeit) and “now-time” (Jetztzeit). It examines elements of Benjamin’s work that develop the philosophical importance of presence of mind, emphasizing its corporeal dimension and its aesthetic and critical relevance. The analysis covers fve lines of interpretation that intersect in different ways: (i) presence of mind is a form of thought/action that should be cultivated as a way of dealing with the experience of shock; (ii) having presence of mind is an attitude that can be exercised; (iii) “seizing the day” involves the body and presupposes an experience of intensive time; (iv) the conceptual framework of presence of mind integrates elements related to play; and (v) by valuing the present, presence of mind implies a relationship between danger and a critical gesture – in Benjamin’s historical and political reflection, this gesture intertwines the individual and the collective dimensions.

Keywords:
Presence of mind; Body; History; Experience of shock; Danger; Aesthetics

Uma fuga a tempo exige, pois, tanta firmeza ao homem livre quanto um combate; ou seja, o homem livre escolhe a fuga com a mesma firmeza, ou presença de espírito, com que escolhe o combate. (Espinosa, Ética, IV, 69)

1. Presença de espírito: circunscrever os cambiantes de um conceito

“Ter presença de espírito significa: deixar-se ir no instante do perigo”. (Benjamin, 1991BENJAMIN, W. “Gesammelte Schriften”. Vols. I-VII. Ed. R. Tiedemann e H. Schweppenhäuser. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991., GS VI, p. 207). Afrmações de carácter enigmático como esta encontram-se amiúde nos escritos e apontamentos de Walter Benjamin, constituindo uma fonte inesgotável de interpretações que alimentam a literatura secundária, mas que nem sempre são contextualizadas e aprofundadas no sentido de uma confrontação directa, quer com o labirinto da obra benjaminiana, quer com o próprio carácter enigmático que elas aparentam ter. O conceito de “presença de espírito” (Geistesgegenwart) não conhece nessa obra uma circunscrição e sistematização detalhada, mas é possível ligá-lo a outros conceitos relevantes, como os de “atenção” (Aufimerksamkeit) ou “tempo do agora” (Jetztzeit), com os quais, no entanto, não se confunde. O objectivo do presente artigo é analisar o papel que a presença de espírito desempenha em momentos-chave do pensamento de Benjamin, com vista a aprofundar algumas linhas de interpretação e aferir da sua actualidade (Aktualität). Esta última, como defende Sigrid Weigel (1996, pp. 2-3)WEIGEL, S. “Body-and image-space. Re-reading Walter Benjamin”. Trad. G. Paul, R. McNicholl and J. Gaines. London: Routledge, 1996., não deve ser reduzida a uma mera “relevância contemporânea” dependente de fenómenos culturais circunstanciais; neste sentido, o “trabalho da presença de espírito corpórea [Werk leibhaftige Geistesgegenwart]” (Benjamin, 2004bBENJAMIN, W. “Rua de sentido único”. (2004b). In: W. Benjamin, 2004, pp. 7-69., p. 64)1 1 Tradução alterada. aponta ao invés para um método de pensar e agir por imagens, bem como para a importância que o corpo tem no pensamento de Benjamin. Estes aspectos desdobram-se num modo particular de filosofar e analisar, na atitude adoptada perante ideias e constelações, e numa forma de aproximação e de trabalho com o material da história e da cultura.

Tal com a expressão “trabalho da presença de espírito corpórea”, também a expressão “agarrar o dia” pertence à imagem de pensamento (Denkbild) “Madame Ariane, segundo pátio à esquerda”, analisada na quarta secção do presente artigo. Ambas se situam no cruzamento das diversas linhas de interpretação que permitem percorrer o método benjaminiano a partir da presença de espírito. Saliente-se desde já a dificuldade de analisar um conceito que, como tantos outros utilizados por este autor, não encontra uma estabilização semântica, antes transfigura-se em função do contexto e do objecto sobre o qual incide. A essa dificuldade, acresce que se trata de uma instância que parece apontar para uma dimensão estritamente intuitiva, que na linguagem corrente é facilmente reduzida a uma condição moral ou, pelo menos, a um traço de carácter. Portanto, importa questionar esse uso corrente e examinar os lugares da obra de Benjamin que desenvolvem a dimensão conceptual e filosófica da presença de espírito, mostrando-se a sua relevância estética e crítica. Estética, pois esses lugares fazem apelo a elementos corpóreos e à percepção sensorial, bem como ao próprio trabalho de teoria e crítica de arte. Crítica, pois esses lugares apontam para uma atenção ao presente que, sobretudo nos textos mais tardios, tem um carácter eminentemente político e histórico.

Na linguagem corrente, a expressão “presença de espírito” traduz a capacidade intuitiva de agir ou de dizer algo no momento certo, sem grande ponderação, reflexo de uma escolha que se revela apropriada e que parece dar conta de uma perspicácia na relação com os outros e na leitura das situações. Essa capacidade está também associada a uma vivacidade serena, ao ânimo com que se responde em contextos difíceis e tensos. Impõe-se dizer que, quer na definição de senso comum, quer nas diferentes adopções que Benjamin faz dessa expressão, ela tem pouco a ver com o carpe diem (sobretudo se este for entendido como uma fruição dos prazeres do momento). Por outro lado, também é errado reduzi-la a tendências contemporâneas como o mindfulness, que simultaneamente fazem uso de tradições antigas e são um espelho da sociedade em que vivemos. Recorrendo a um conjunto diversificado de práticas quotidianas de atenção, relaxamento ou meditação, o mindfulness visa sobretudo um equilíbrio entre a parte física, emocional e mental. Tendo em conta os modos de vida contemporâneos, sujeitos a altos padrões de competitividade e ansiedade que se reflectem nas relações profissionais, interpessoais e afectivas, não é de estranhar o incremento destes modelos que se inspiram em práticas milenares, sobretudo orientais. Contudo, e apesar de todos os seus aspectos positivos, a mercantilização destes produtos não pode deixar de conter as suas ambiguidades. Sob o manto individualista da redução do stress, adormecem também os impulsos que se poderiam revoltar contra as causas sociais e políticas que estão na sua origem.

Uma definição prévia da presença de espírito que se contrapõe a esses dois princípios ou práticas, carpe diem e mindfulness, aponta, ao invés, para o gesto de “agarrar o dia” que está profundamente ligado ao instante do presente, ao agora, mas pressupõe também uma resposta atempada aos perigos que pairam sobre as nossas vidas. Se bem que num quadro filosófico distinto do benjaminiano, a noção de “presença de espírito” é referida na proposição 10 da Parte V (“Da Potência do Entendimento, ou da Liberdade Humana”) da “Ética” de Espinosa, descrevendo aqui um elemento importante na determinação da acção oportuna, a qual deve ser exercitada de acordo com uma “regra de vida correcta” (Espinosa, 2020ESPINOSA, B. de “Ética”. Trad. D. P. Aurélio. Lisboa: Relógio D’Água, 2020., V, 10, p. 344), capaz de proteger o ser humano dos maus afectos e de contribuir para o ânimo que luta contra as paixões tristes e favorece a firmeza e a alegria. Esta referência remete também para a capacidade de evitar e superar o perigo: “para eliminar o medo, deve-se pensar na firmeza, quer dizer, devem-se enumerar e imaginar muitas vezes os perigos comuns da vida e de que modo podem ser evitados e superados da melhor forma pela presença de espírito e pela fortaleza” (ibidem, p. 344).

Ao contrário de Goethe, Freud, do materialismo histórico ou do messianismo judaico (entre outros), Espinosa não se conta entre as principais influências do pensamento de Benjamin, mas o paralelismo justifica-se pelo seguinte: também neste último é possível encontrar esta dimensão de exercício de vida, bem como várias referências à necessidade de evitar e superar o perigo. A questão fundamental que estabelece uma afinidade entre os dois autores prende-se com a necessidade de exercitar a presença de espírito. Por outro lado, a própria definição de perigo determina a forma que a presença de espírito pode tomar. Trata-se de uma ameaça física? De evitar a morte? De agir correctamente? De falhar o momento oportuno para dizer ou fazer algo? De evitar uma perda material? De uma protecção contra os poderes que podem restringir a liberdade?

Tendo em conta este pano de fundo, é possível desde já adiantar que a presença de espírito não visa anular as tensões do dia-a-dia, mas sim tornálas produtivas. Se ela pode ser crítica, é também porque permite lidar com os momentos críticos – complexos e arriscados. Veremos os diferentes sentidos que essa produtividade adquire na obra de Benjamin, a qual amplia e complexifica a já referida definição do senso comum. Como forma de situar as leituras, importa indicar as cinco linhas de interpretação que serão desenvolvidas, e que de diferentes modos se entrecruzam.

  • i) A presença de espírito é uma forma de pensamento/acção que deve ser cultivada como um modo de lidar com a vivência do choque e o poder dilacerante da novidade, em particular na esfera da vida urbana, com a aceleração e estimulação sensorial que a caracterizam – característica fundamental da leitura benjaminiana da modernidade, desenvolvida em particular nos textos e anotações sobre Charles Baudelaire. No ensaio “A obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica”, a vivência do choque aparece ligada a transformações profundas no aparelho perceptivo, provocadas pelas novas técnicas e formas de arte, as quais, ao mesmo tempo, abrem possibilidades de resposta adequadas às exigências do presente.

  • ii) Ter presença de espírito é menos um dom e mais uma prática ou uma atitude. Envolve, num certo sentido, o cultivo de uma estética da existência, daí a sua relação com a noção de exercício.2 2 Abre-se aqui uma ligação com a leitura que Michel Foucault realiza da modernidade, a partir de Kant e Baudelaire, entendendo-a menos como um período histórico e mais como uma atitude: “a modernidade é a atitude que torna possível apreender o aspecto heróico do momento presente” (Foucault, 1994a, p. 569). Tradução minha, à semelhança de todas as outras traduções não assinaladas.

  • iii) “Agarrar o dia” implica o corpo e pressupõe uma experiência do tempo intensivo que se aproxima da noção de kairos, de um “agir no momento oportuno”.3 3 Para uma localização filosófica da noção de kairos no cruzamento com o pensamento benjaminiano, cf. Agamben (2014, pp. 107-126).

  • iv) A presença de espírito é uma instância conceptual que integra elementos relativos à figura do jogador e ao jogo de azar; também estes acarretam um corpo-a-corpo com o instante.

  • v) Valorizando o presente, a presença de espírito pressupõe uma relação entre perigo e gesto crítico; na reflexão histórica e política de Benjamin, esse gesto estabelece um arco entre a dimensão individual e a dimensão colectiva, desempenhando um papel vital na interrupção do continuum histórico.

Algumas destas linhas de interpretação encontram-se de forma relativamente isolada nos textos de Benjamin, outras cruzam-se e sobrepõem-se em diversos contextos. Passemos à análise.

2. Intensificação da vida nervosa, vivência do choque e esgrima

Nos textos dedicados à caracterização da vida nas grandes cidades, e em particular no ensaio “A metrópole e a vida do espírito”, Georg Simmel analisa as formas de adaptação dos indivíduos face às forças externas que lhes são impostas pelo ambiente físico, social e tecnológico. Se é verdade que o ser humano sempre teve de lutar com a natureza para assegurar a sua “existência física” (Simmel, 2004aSIMMEL, G. “As Metrópoles e a Vida Mental”. (2004a). In: G. Simmel, 2004, pp. 75-94., p. 75), também é verdade que a vida moderna, marcada por um crescente processo de industrialização e urbanização, criou tensões suplementares entre o interior e o exterior, entre o plano individual e o supra-individual, as quais põem em perigo a própria autonomia dos sujeitos. Estes passam por processos de transformação e adaptação, desenvolvendo por vezes formas de resistência que visam impedir o nivelamento e o desgaste produzido pelos mecanismos sociotecnológicos. O fundamento psicológico destes processos encontra-se na “intensificação da vida nervosa que resulta da mudança rápida e ininterrupta de impressões internas e externas” (ibidem, p. 76). A aceleração da vida urbana, desde logo na sua contraposição à vida rural, factores económicos ligados à maior circulação do dinheiro, os quais se relacionam também com o próprio incremento de um espírito quantitativo, infiltram-se nos hábitos e nos gestos urbanos (a referência ao papel do relógio de bolso é paradigmática, pois ela dá conta dessa infiltração ou, por outras palavras, de uma mediação tecnológica em que corpo, tempo e espaço social se afinam mutuamente). Os habitantes das grandes cidades desenvolvem assim uma tendência para a reserva, uma atitude de auto-preservação perante a profusão de estímulos e choques que põem em causa o seu equilíbrio psíquico. Daí que Simmel refra a existência de um órgão psíquico protector, suportado por uma consciência intelectual que visa amortecer os efeitos da intensificação da vida nervosa (cf. ibidem, p. 77). A atitude de reserva liga-se, por um lado, ao espírito racionalista, económico e tecnocrata das cidades. Liga-se, por outro lado, ao carácter blasé, a uma atitude de indiferença perante a realidade externa. Simultânea e paradoxalmente, verificam-se fenómenos de diferenciação, gestos de afirmação da liberdade individual que acabam por contrabalançar a reserva. Trata-se, como bem se vê, de fenómenos ambivalentes que, num desdobramento aparentemente contraditório entre a intensidade da exposição ao exterior e o sentido de preservação interior, entre a proximidade corporal e a distância espiritual, dão conta da própria ambiguidade que caracteriza a vida urbana e moderna (cf. Waizbort, 2000WAIZBORT, L. “As aventuras de Georg Simmel”. São Paulo: Editora 34, 2000., p. 333).

Explícita ou implicitamente, Walter Benjamin, que foi aluno de Simmel em Berlim, prolongou vários elementos desta caracterização da “vida do espírito”, explorando a sua matriz fisiológica e sensorial, bem como um apurado entendimento da ambivalência dos fenómenos metropolitanos. De uma forma mais geral, e até metodológica, esta influência (que se estendeu também a autores como Siegfried Kracauer) libertou o seu olhar analítico para os fenómenos da cultura – por vezes marginais – que permitiam identificar as mutações da experiência.4 4 Graeme Gilloch desenvolve alguns aspectos desta influência de Simmel na filosofia urbana de Benjamin (cf. Gilloch, 1997, pp. 139-145). Contudo, esse prolongamento simmeliano da relação entre espaço urbano e experiência conheceu ao longo da obra de Benjamin desvios significativos, alguns deles decorrentes do interesse pelas vanguardas artísticas (como a inspiração surrealista e a prática de montagem subjacente às imagens de pensamento de “Rua de sentido único”), outros decorrentes da adopção de temas da psicanálise, do pensamento de Henri Bergson ou da obra literária de Marcel Proust, os quais entram no pano de fundo teórico do ensaio “Sobre alguns motivos na obra de Baudelaire”. Este ensaio procurou aprofundar “até que ponto a poesia lírica se pode fundar numa experiência [Erfahrung] para a qual a vivência do choque [Chockerlebnis] se tornou norma” (Benjamin, 2006cBENJAMIN, W. “Sobre alguns motivos na obra de Baudelaire”. (2006c). In: W. Benjamin, 2006, pp. 103-148., p. 112). O que está aqui em causa é também averiguar o enfraquecimento de um tipo de experiência consolidada e assimilada pelo indivíduo, que integra uma tradição e é transmissível geracionalmente, face ao incremento de um tipo de experiência vivida (ou vivência) que se torna crescentemente individualizada, fragmentada, sujeita às rápidas transformações da época moderna.5 5 Toda esta questão pressupõe uma discussão sobre a categoria da experiência e as suas diversas acepções, tópico benjaminiano que tem sido sobejamente tratado pela crítica. Ver, por exemplo, o capítulo de Thomas Weber em “Benjamins Begrife” (2000a, pp. 230-259). Portanto, os ensaios sobre Baudelaire pressupõem uma reflexão, através da arte e da poesia, sobre diversos motivos ligados à intensificação da vida nervosa. E isto implica a dimensão estética num duplo sentido: por um lado, trata-se de uma análise de teoria da arte; por outro lado, trata-se de enraizar a experiência estética no âmbito mais lato da aisthesis, na acepção grega do termo, ligada à percepção sensorial.

Mais do que a criação de um órgão protector, mais do que um mecanismo de defesa por intermédio da consciência, o que a obra de Baudelaire revela é uma luta com a multidão e o caos da grande cidade, um duelo constante que faz parte de um processo de criação que insere a experiência do choque “no âmago do seu trabalho artístico” (Benjamin, 2006cBENJAMIN, W. “Sobre alguns motivos na obra de Baudelaire”. (2006c). In: W. Benjamin, 2006, pp. 103-148., p. 113). Portanto, esta luta tem dois sentidos concomitantes. O primeiro resulta desse corpo-a-corpo com a cidade, com os seus ritmos e estímulos sensoriais, com a miríade de vidas que nela circulam. O segundo prende-se com o próprio ofício poético, também ele sujeito à “absurda esgrima [fantasque escrime]” a que Baudelaire dá voz no poema “Le soleil”: “Exercito sozinho esta absurda esgrima, / Farejando em cada canto os acasos da rima, / Tropeçando em palavras como na calçada, / Dando às vezes com versos há muito sonhados” (Baudelaire, 1998BAUDELAIRE, C. “As Flores do Mal”. Trad. F. P. Amaral. Lisboa: Assírio e Alvim, 1998., p. 215).

Benjamin assinala estes diferentes motivos do duelo, bem como a sua ambivalência: entre imersão na multidão e resistência aos seus efeitos inumanos. Contudo, e como Maria Filomena Molder aponta, na sua leitura do poema “Le soleil” ele não nomeia explicitamente o outro duelista envolvido, a beleza. Trata-se, portanto, de uma outra face do duelo que caracteriza a própria experiência moderna, na sua complexa relação com as formas artísticas herdadas da tradição, pelo que, segundo esta interpretação, o heroísmo mais íntimo do poeta-esgrimista provém de “sucumbir aos golpes da beleza” (Molder, 2011MOLDER, M. F. “O Químico e o Alquimista. Benjamin, leitor de Baudelaire”. Lisboa: Relógio D’Água, 2011., p. 206).

Neste ponto importa destacar a distinção entre a figura do esgrimista, verdadeira figura heróica, e o flâneur. Em “A Paris do Segundo Império na Obra de Baudelaire”, Benjamin argumenta que, quando Baudelaire se refere ao flâneur e à sua capacidade de observação e concentração que convergem para um “poder do olhar [que] celebra o seu triunfo”, não tem em vista um auto-retrato (Benjamin, 2006bBENJAMIN, W. “A Paris do Segundo Império na Obra de Baudelaire”. (2006b). In: W. Benjamin, 2006, pp. 9-102., p. 71). Pelo contrário, se Baudelaire disse algo de decisivo sobre a grande cidade, fê-lo porque estava mais próximo “daqueles que a atravessaram, por assim dizer, distraídos, mergulhados nos seus pensamentos ou distracções. É a eles que faz jus a imagem da ‘absurda esgrima’” (ibidem, p. 71). A distração ou, mais literalmente, a “ausência de espírito” (Geistesabwesenheit) de quem no meio da esgrima se entrega às suas próprias preocupações, surge como uma espécie de contraponto à atenção vigilante do transeunte da grande cidade, bem como à armadura imposta pelo “choque que nasce da novidade difícil de absorver” (Molder, 2011MOLDER, M. F. “O Químico e o Alquimista. Benjamin, leitor de Baudelaire”. Lisboa: Relógio D’Água, 2011., p. 211). Surge também como contraponto ao ofício poético que já não pode desconsiderar o mundano. Contrariamente à atitude de reserva, a esgrima não retira o poeta da multidão, mas abre caminho por entre ela, e isto é ao mesmo tempo uma protecção contra os perigos e um modo de baixar a guarda. Este estado de espírito heróico estabelece-se numa relação dialéctica entre atenção e distracção, entre presença de espírito (Geistesgegenwart) e “ausência de espírito” (Geistesabwesenheit).

Duas clarificações são necessárias: por um lado, Benjamin não se refere explicitamente à presença de espírito nos textos sobre Baudelaire, embora a imagem gestual da esgrima ponha em cena uma dinâmica que, por via da protecção contra a vivência do choque, muito se lhe assemelha; por outro lado, é impossível traduzir para português o duplo sentido de Abwesenheit, que tanto pode significar distracção como ausência. Veremos adiante que a noção de distracção (Zerstreuung) explorada no ensaio “A obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica”, bem como a ausência de intenção descrita no texto “Madame Ariane, segundo pátio à esquerda”, dão conta de idênticos contrapontos dialécticos na circunscrição da presença de espírito. Se este conceito não conhece uma estabilização semântica na obra de Benjamin, conhece, por outro lado, uma série de contrapontos que, mais do que estabelecer oposições lineares, acabam por integrar a sua dinâmica conceptual e a própria dissolução do pensamento dualista, dissolução que, no fundo, se ajusta também à ambivalência que constitui a descrição da urbana vivência moderna.

A enigmática frase “ter presença de espírito significa: deixar-se ir no instante do perigo” não anda longe deste movimento, o qual, embora aparentemente contraditório, resulta, no fundo, da experimentação de formas de pensar e agir. Por outras palavras, aponta para “uma estratégia impertinente de desatenção pelo caminho já traçado e de atenção por descaminhos que permitiriam, quem sabe, vislumbrar outras viagens, ‘ouvir o inaudito’, ‘tocar o intocado’” (Gagnebin, 2014aGAGNEBIN, J. M. “Atenção e dispersão: elementos para uma discussão sobre arte contemporânea a partir de Adorno e Benjamin”. (2014a). In: J. M. Gagnebin, 2014, pp. 99-119., p. 111). As referências sensoriais de Jeanne Marie Gagnebin fazem todo o sentido neste contexto. Por intermédio da exploração dos diversos elementos do duelo com a vivência do choque – multidão, novidade, beleza –, a figura do poeta-esgrimista absorve a possibilidade de “se deixar ir”, pois só assim lhe é dado experimentar o perigo e reagir de forma apropriada ao presente. O heroísmo de Baudelaire prende-se também com este “estar presente”, que não resulta de uma capacidade de observação distanciada, nem de uma imersão sem freios, nem da ilusão de vir a encontrar a alma da multidão; resulta, sim, dessa aceitação do dia que, no mesmo gesto, celebra a destruição da tradição e a resposta ao novo. Portanto, “‘Não caluniar o dia de hoje’ poderia ser uma máxima de Benjamin, no sentido em que o gesto crítico nunca se pode tornar lamento sobre o presente” (Molder, 2011MOLDER, M. F. “O Químico e o Alquimista. Benjamin, leitor de Baudelaire”. Lisboa: Relógio D’Água, 2011., p. 213). Como tantas vezes acontece no pensamento deste autor, a dimensão política e histórica liga-se de forma íntima com essa capacidade de pesar os ganhos e as perdas e, assim, encontrar os conceitos que apontam caminhos dentro do possível.

3. Da imersão contemplativa à presença de espírito

Dentro do possível ou, pelo menos, dentro de um determinado diagnóstico, tal como o realizado no ensaio “A obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica”. Na esteira do efeito de choque da arte dadaísta, Benjamin descreve o funcionamento do cinema segundo uma constante requisição perceptiva, mas fomentada pela transformação e sucessão das imagens, que assim interrompem a própria cadeia de associações. “Nisto se baseia o efeito de choque do cinema, que, como qualquer efeito de choque, exige ser amortecido por uma presença de espírito intensificada” (Benjamin, 2006aBENJAMIN, W. “A modernidade”. Trad. J. Barrento. Lisboa: Assírio e Alvim, 2006., pp. 236-237).6 6 Tradução alterada. Se a tela da pintura convida à imersão contemplativa (kontemplativer Versenkung), já o ecrã do cinema impõe uma recepção assente na distracção (Zerstreuung). Esta transformação impõe-se também como uma passagem da imersão à presença de espírito, a qual encontraria a sua justificação fundamental nos crescentes perigos de morte que o ser humano estaria a enfrentar. A exposição aos efeitos de choque aparece assim como uma adaptação perceptiva a esses perigos, que se estendem ao domínio individual e histórico-colectivo (cf. ibidem, pp. 237-239).

A noção de exercício é também fundamental neste contexto de recepção na distracção, pois mais do que condenar a perda da aura, o enfraquecimento da beleza ou de outras categorias estéticas legadas pela tradição, Benjamin apressa-se a identificar os traços das novas formas de arte, como o cinema e a fotografia, que se revelam apropriados às condições de vida do seu próprio presente, os quais se podem tornar um “instrumento de exercício [Übungsinstrument]” (ibidem, p. 239). Saliente-se também que a segunda versão do ensaio acentua aspectos ligados ao corpo, à teoria mimética e ao jogo, recorrendo ao vocabulário fisiológico de uma inervação capaz de fazer a ligação entre o corpo individual e o corpo colectivo. A função estética do cinema seria assim, para lá de uma questão de recepção, um exercício dessa inervação com potencial político (cf. Benjamin, 2014BENJAMIN, W. “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica” (segunda versão). Trad. F. P. Machado. Porto Alegre: Zouk, 2014.).

Ora, as transformações do aparelho perceptivo operadas pelo cinema são aproximadas – na nota 29 do ensaio (Benjamin, 2006aBENJAMIN, W. “A modernidade”. Trad. J. Barrento. Lisboa: Assírio e Alvim, 2006., p. 237) – da vivência de “qualquer transeunte das grandes cidades” (no plano privado), bem como de qualquer cidadão (no plano histórico). Acresce a isto que as referências à arquitectura na secção XV mostram como a experiência da cidade desempenha um papel importante na elaboração da instância conceptual da presença de espírito. A recepção da arquitectura, no seu desdobramento entre uso (recepção táctil) e percepção (recepção óptica), torna-se, assim, à semelhança do que acontece com o cinema, um palco privilegiado para a exercitação do ser humano nas tarefas impostas por um contexto que, de acordo com o prognóstico de Benjamin, torna problemática a imersão contemplativa.

4. Um saber íntimo e corpóreo

As secções anteriores procuraram mostrar como a vida nas grandes cidades e a relação complexa, tensa, que a modernidade mantém com a tradição, com implicações profundas sobre as condições da experiência e as próprias práticas artísticas, estão intimamente ligadas ao conceito de presença de espírito. Se este é requisitado para descrever uma forma de comportamento adequado à moderna vivência do choque, seja no caso do transeunte citadino, seja no do espectador que se exercita perante as imagens do cinema, por outro lado ele desempenha, no pensamento de Benjamin, outras funções que aprofundam quer a sua dimensão corporal, quer a sua dimensão histórica e política. Em textos contemporâneos ou até anteriores aos escritos sobre Baudelaire e ao ensaio “A obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica”, o conceito de presença de espírito possui uma densidade semântica que excede a reacção defensiva aos estímulos sensoriais da vida metropolitana, erigindo-se antes como um núcleo de interacção dialéctica – ou contraponto dialéctico – entre dualismos: espírito e corpo; actividade e passividade; protecção e deixar-se ir. A leitura que Carolyn Duttlinger faz da relação entre concentração e distracção segue uma lógica semelhante, isto é, pressupõe, mais do que uma oposição disjuntiva, uma relação dialéctica entre termos não excludentes (cf. Duttlinger, 2007DUTTLINGER, C. “Between Contemplation and Distraction: Configurations of Attention in Walter Benjamin”. German Studies Review, Vol. 30, No. 1, 2007, pp. 33-54.).

Neste sentido, interessa analisar o texto “Madame Ariane, segundo pátio à esquerda”, integrado em “Rua de sentido único”, pois este explora a dimensão corpórea e temporal da presença de espírito. Esta é contraposta ao saber do futuro que pode ser proporcionado por videntes, o qual resulta de uma indolência e de uma renúncia a um saber íntimo do futuro que é muito mais exacto do que qualquer leitura que nos venha do exterior. Perante a “dócil imbecilidade” de quem assiste à “revelação do destino”, é valorizado “o gesto perigoso e fulminante com que aquele que é corajoso encosta o futuro à parede. É que a sua essência é a presença de espírito, a percepção exacta daquilo que acontece neste segundo, mais decisiva do que saber de antemão o que ainda vem longe” (Benjamin, 2004bBENJAMIN, W. “Rua de sentido único”. (2004b). In: W. Benjamin, 2004, pp. 7-69., p. 63). O nosso organismo é atravessado constantemente por sinais, intuições, pressentimentos, num movimento como o das ondas. Ora, mais do que vermos prenúncios nesses sinais, trata-se de dar-lhes uso. Acresce a isto – e este aspecto é determinante para a contraposição entre presença de espírito e interpretação – que a própria leitura desses sinais, adiando a acção, pode já vir tarde: “Lemo-los, mas agora é tarde de mais” (ibidem, p. 63). Uma das chaves desta imagem de pensamento encontra-se na articulação entre instante e corpo, é em função dela que, não só o destino, mas o próprio pressuposto de que há um destino, podem ser subvertidos. Uma outra chave prende-se com uma oposição, aparentemente irreconciliável, entre agir e interpretar, e é nesse sentido que Bettine Menke defende que o traço fundamental da presença de espírito corpórea é o de servir de contraponto à interpretação (cf. Menke, 1991MENKE, B. “Sprachfiguren: Name – Allegorie – Bild nach Walter Benjamin”. München: Fink Verlag, 1991., pp. 349-360). A sua forma de temporalidade não visa apenas aparar os golpes da vivência do choque, mas sobretudo reagir de forma apropriada e no momento certo. Por outro lado, e explorando uma inversão também ela aparentemente contraditória, o entendimento benjaminiano da presença de espírito retira ao espírito a sua função de controlo e transforma o corpo no palco onde se joga a acção. Isto não implica uma qualquer apologia da irracionalidade, é simplesmente a circunscrição de um terreno em que a distinção entre racional e irracional se torna filosófica e vitalmente empobrecedora.

Regressemos à relação entre instante e corpo – e a uma passagem que condensa bastante bem aquilo que aqui está em jogo:

Transformar a ameaça de futuro num agora realizado, o único milagre telepático desejável, é obra de uma presença de espírito que passa pelo corpo. Os tempos primordiais, quando tal comportamento era parte integrante da vida quotidiana, ofereciam ao homem, no corpo nu, o mais fável instrumento divinatório. A Antiguidade conhecia ainda esta prática autêntica, e Cipião, tropeçando ao pisar o solo de Cartago, exclama, abrindo muito os braços na queda, a fórmula da vitória: Teneo te, Terra Africana! [És minha, terra africana!] Aquilo que queria transformar-se num sinal assustador, em imagem de desgraça, é por ele ligado de forma viva ao instante, e ele próprio se torna factotum do seu corpo. Foi por esta via que os antigos exercícios [Übungen] ascéticos do jejum, da castidade, da vigília, celebraram os seus máximos triunfos. Todas as manhãs o dia está aí, como uma camisa lavada em cima da nossa cama; este tecido incomparavelmente fino e incomparavelmente resistente da mais pura profecia assenta-nos como uma luva. A felicidade das próximas vinte e quatro horas depende de sabermos ou não agarrá-lo ao acordar. (Benjamin, 2004bBENJAMIN, W. “Rua de sentido único”. (2004b). In: W. Benjamin, 2004, pp. 7-69., p. 64)7 7 Tradução alterada.

O cônsul romano Cipião é descrito como factotum, como faz-tudo do seu próprio corpo. Esta imagem de pensamento encarna um gesto que dá conta da complexa dinâmica da presença de espírito. Deixar-se ir no momento do perigo é, neste sentido, o gesto que interrompe o perigo, e a presença de espírito revela-se tanto mais forte quanto mais facilmente decorrer de uma ausência de intenção.8 8 Gerhard Richter desenvolve esta questão da ausência de intenção na sua relação com o “deixar-se ir” como uma forma de repensar o si-próprio (self), a qual se realiza, quer ao nível da consciência subjectiva, quer ao nível daquilo a que ele chama de “desmembramento do corpo unificado” (cf. Richter, 2000, pp. 155-158). O desastre é evitado, a “ameaça de futuro” é interrompida, o presente é assumido na sua plenitude, nas suas conquistas e nas suas dores, o corpo inscreve-se na luta diária contra o chegar tarde de mais. Portanto, a ausência de intenção não resulta de uma pura passividade, da negação de um estado de coisas ou da expectativa de uma iluminação divina. Liga-se, pelo contrário, a um exercício quotidiano e a uma arte de viver. Daí a referência aos exercícios ascéticos e esse apelo à capacidade de vestir a “camisa dos dias”.

Numa outra tónica, e embora Benjamin não o diga explicitamente, também é possível identificar neste tempo do agora, neste instante corpóreo, a marca de uma atenção salvadora que se relaciona com o “telos judaico do instante histórico e do potencial messiânico que lhe é inerente” (Liska, 2011LISKA, V. “Walter Benjamin’s Dialectics of Attentiveness”. Symposium: A Quarterly Journal in Modern Literatures, Vol. 65, No. 1, 2011, pp. 16-24., p. 20). Vivian Liska articula o conceito de atenção com o de presença de espírito, descrevendo um percurso pelos textos de Benjamin que vai de uma crítica à indecisão (de inspiração teológica) até à transformação do conceito de atenção em presença de espírito intensificada, capaz de responder aos desafios históricos e políticos. Neste sentido, a redenção é um potencial inerente à atenção, a qual, contudo, não se converte numa atitude de sujeição derrotista perante o mundo, nem, por outro lado, na tentativa voluntarista de o controlar e dominar (cf. Liska, 2011LISKA, V. “Walter Benjamin’s Dialectics of Attentiveness”. Symposium: A Quarterly Journal in Modern Literatures, Vol. 65, No. 1, 2011, pp. 16-24., pp. 16-24). Um dos aspectos interessantes desta leitura é que ela mostra como Benjamin vai operando conceptualmente num interstício que faz vir ao de cima a importância dos elementos incontroláveis da atenção, que se relacionam ora com o hábito e a distracção, ora com mecanismos inconscientes e a inervação do corpo. De qualquer forma, o instante histórico liga-se com o kairos, o tempo do momento oportuno.

O que há de assinalável nessa relação com a perspectiva teológica é a reflexão a partir de categorias corporais e, por outro lado, uma dinâmica que faz apelo a uma prática da existência. Voltemos a Baudelaire, desta feita guiados por Michel Foucault, para seguir o duplo sentido do seu interesse pela modernidade baudelairiana. Por um lado, essa modernidade pressupõe a atitude de quem se mostra extremamente atento ao presente, aceitando aquilo que nele é real, mas, simultaneamente, violentando-o. Por outro lado, o interesse vem também da dimensão ascética que Foucault lhe descobre, pois ser moderno é “tomar-se a si próprio como uma complexa e difícil elaboração” (Foucault, 1994aFOUCAULT, M. “Qu’est-ce que les lumières?”. (1994a). In: M. Foucault, 1994, pp. 562-578., p. 570). Esta dimensão de exercício, que tanto parece ser inspirada pelo pensamento antigo quanto surgir das exigências do presente, pode ser prolongada no sentido das práticas artísticas e, nomeadamente, das artes performativas. E é neste sentido que se torna pertinente defender, como o faz Sigrid Weigel (1996, p. 9)WEIGEL, S. “Body-and image-space. Re-reading Walter Benjamin”. Trad. G. Paul, R. McNicholl and J. Gaines. London: Routledge, 1996., que o modo como Benjamin articula a materialidade do tempo do agora (Jetztzeit) com a dimensão da presença de espírito corpórea (leibhaftige Geistesgegenwart) antecipa uma série de ideias pertencentes aos debates sobre a performance que se desenvolveram na segunda metade do século XX, e sobretudo a partir dos anos 70. Tal como o malabarista Rastelli – da imagem de pensamento “Exercício” (Benjamin, 2004aBENJAMIN, W. “Imagens de pensamento”. (2004a). In: W. Benjamin, 2004, pp. 123-258., p. 226) – alcança a mestria quando a vontade cede o lugar ao acaso e aos membros do corpo, também o

dom do bom escritor é o de, pelo seu estilo, dar ao pensamento o espectáculo oferecido por um corpo treinado [durchtrainierter Körper] com inteligência e eficácia. Nunca diz mais do que aquilo que pensou. Assim, a sua escrita aproveita, não a ele próprio, mas tão somente àquilo que quer dizer. (ibidem, p. 249)

Prolongando-se estas ideias, é possível afirmar que também um fotógrafo ou um pintor conseguem, por intermédio de uma relação cada vez mais íntima com a sua técnica, criar um estilo próprio, bem como libertar automatismos, fuxos não intencionais altamente produtivos, de relação entre corpo e técnica.

Todas estas passagens sobre o exercício e a presença de espírito dissolvem a separação entre espírito e corpo, dissolução que nos afasta, terminantemente, de qualquer lógica da subjectividade moderna, aproximando-nos, sim, de características do pensamento antigo. Presença de espírito (Geistesgegenwart) também quer dizer presença do corpo (Gegenwart des Leibes) (cf. Weidmann, 1992WEIDMANN, H. “Geistesgegenwart: Das Spiel in Walter Benjamin’s Passagenarbeit”. MLN, Vol. 107, No. 3, 1992, pp. 521-547., p. 532). Em “O caminho para o sucesso em treze teses”, a décima terceira tese aponta exactamente para uma compreensão da presença de espírito que vai nesse sentido:

Com a expressão “presença de espírito”, a língua deixa entender que o segredo do sucesso não está no espírito. Quem decide não é o Quê e o Como, mas tão somente o Onde do espírito. Estar presente num momento e num espaço é qualquer coisa que ele só consegue se penetrar no tom de voz, no sorriso, nos silêncios, no olhar, no gesto. Pois só o corpo cria a presença de espírito. (Benjamin, 2004aBENJAMIN, W. “Imagens de pensamento”. (2004a). In: W. Benjamin, 2004, pp. 123-258., p. 171)

Estes textos e estas várias referências parecem dar conta de uma atitude que se torna patente em três níveis: em primeiro lugar, indiciam um elemento existencial, ligado porventura à própria vida de Benjamin e aos perigos do contexto histórico em que viveu (esse elemento biográfico poderá ser interessante, mas não cabe no escopo do presente artigo explorá-lo); em segundo lugar, descrevem traços caracterológicos da existência humana que procura o sucesso e tenta evitar o perigo; em terceiro lugar, e como veremos, apontam implicitamente para um princípio metodológico ligado a uma filosofia da história.

Mas antes olhemos de um outro prisma para esta ideia de que é o corpo que cria a intersecção espácio-temporal da presença de espírito (o espaço da materialidade corpórea que se inscreve numa série de relações sensoriais; o tempo da atenção ao presente). São várias as práticas humanas onde essa intersecção se manifesta, e uma das mais pertinentes é descrita num conjunto de notas que Benjamin terá escrito em 1929 ou 1930, e que não foram publicadas durante a sua vida, nas quais propõe, por assim dizer, os princípios de uma filosofia do jogo de azar (considerações que se articulam com outros textos, desde o konvolut de “Das Passagen-Werk” dedicado ao jogo e à prostituição, passando pelos ensaios sobre Baudelaire).9 9 Heiner Weidmann (1992) desenvolve uma análise mais detalhada destas diferentes ocorrências, incidindo sobretudo sobre a relação entre a presença de espírito e as considerações acerca do jogo, não só em Das Passagen-Werk, mas também num conjunto de outros textos, entre os quais as “Notas sobre uma teoria do jogo” (que aqui só podem ser aforadas). Também neste contexto o corpo desempenha um papel importante, e de novo verificamos a descrição de um fenómeno que visa anular uma série de mediações e se aproxima do vocabulário fisiológico. Benjamin refere-se ao “comportamento reflexo” do jogador, à sua “inervação motora” ou a uma “correcta predisposição física” que liga os estímulos motores ao destino, conduzindo-o assim a um lance vencedor (Benjamin, 1991BENJAMIN, W. “Gesammelte Schriften”. Vols. I-VII. Ed. R. Tiedemann e H. Schweppenhäuser. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991., GS VI, pp. 188-190). Por outro lado, também ao nível do jogo o perigo aparece como elemento fundamental, nomeadamente sob a forma de uma relação entre aceleração e perigo. Este não provém tanto da possibilidade de perder a aposta, mas sim da possibilidade de não ganhar. A inversão é subtil e acentua o pólo fundamental, relacionado com o “estar presente”, pois o que há de específico no perigo do jogo prende-se com as categorias ligadas ao decidir “demasiado tarde”, ao “perder a oportunidade” (ibidem, p. 190). Como diz Anatole France em “Le jardin d’Épicure”, livro que aparece referido nas notas, trata-se de um duelo físico: “o jogo é um corpo-a-corpo com o destino” (France, 1895FRANCE, A. “Le jardin d’Épicure”. Paris: Calmann Lévy, 1895., p. 21). Esta ideia permite descortinar o carácter heróico do jogador, bem como um paralelismo entre o esgrimista e o jogador: “A imagem do jogador tornou-se em Baudelaire o verdadeiro complemento da imagem arcaica do esgrimista. Um e outro são para ele figuras heróicas” (Benjamin, 2006cBENJAMIN, W. “Sobre alguns motivos na obra de Baudelaire”. (2006c). In: W. Benjamin, 2006, pp. 103-148., p. 130). Dirimir as semelhanças e as distinções entre estas duas figuras heróicas desviar-nos-ia agora do percurso principal. De qualquer forma, trata-se de duas figuras modernas que, cada uma a seu modo, se envolvem num duelo: num caso, com a multidão e o ofício poético; no outro caso, com o destino e o risco de não ganhar. Nesse duelo, ambos incorporam o contraponto dialéctico entre estar intensamente presente no momento e deixar-se ir.

O duelo com o perigo, que encontra no jogo uma escola muito particular, é representado pela imagem do jogador que coloca a sua aposta no último momento possível: “A relampejante inervação no perigo: o jogo permite experimentar o caso limite em que a presença de espírito se torna divinação, um dos mais elevados e raros instantes da vida” (Benjamin, 1991BENJAMIN, W. “Gesammelte Schriften”. Vols. I-VII. Ed. R. Tiedemann e H. Schweppenhäuser. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991., GS VI, p. 90). Nesta linguagem que roça o esoterismo, esconde-se por sua vez um conhecimento profundo dos mecanismos do jogo e da sua ambivalência. Por um lado, a excitação sensorial e o empolgamento do jogador são capazes de despertar faculdades de atenção e acção difíceis de exercitar noutros contextos; por outro lado, a relação com o dinheiro corrompe tudo aquilo que de elevado e raro surge nesses momentos, tornando o jogo de azar numa forma decaída de divinação. É ainda de salientar, nestas anotações, a presença do tema da inervação, o qual, como já foi referido anteriormente, surge também na segunda versão de “A obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica” – e, acrescente-se, no ensaio sobre o surrealismo10 10 Sobre a importância deste texto e, em particular, das noções de “espaço do corpo [Leibraum]” e “espaço da imagem [Bildraum]” para a concepção benjaminiana do corpo, cf. Weigel (1996, pp. 14-27). – apontando para um campo fisiológico e materialista no qual se incorporaria o potencial revolucionário das vanguardas e das novas técnicas artísticas.

5. História e corpo

Comecemos por uma entrada de Das Passagen-Werk:

Estas palavras de Turgot fazem jus, de forma magnífica, à presença de espírito enquanto categoria política: “Antes de termos percebido que as coisas estão numa determinada situação, já elas mudaram várias vezes. Assim, apercebemo-nos sempre demasiado tarde dos acontecimentos, e a política tem sempre necessidade de prever, por assim dizer, o presente.” Turgot, Oeuvres II, Paris,1844, p. 673 (Pensées et fragments). (Benjamin, 2019BENJAMIN, W. “As passagens de Paris”. Trad. J. Barrento. Lisboa: Assírio e Alvim, 2019., p. 608 [N 12a, 1])

São evidentes as semelhanças entre esta entrada e o texto “Madame Ariane, segundo pátio à esquerda”, pois ambos remetem para os perigos de fazer algo “demasiado tarde”, bem como para a necessidade de “prever o presente”. Contudo, aqui entramos num domínio político e histórico, no qual importa descobrir a presença de espírito como um preceito metodológico para a tarefa de imobilizar o pensamento numa “constelação saturada de tensões”, numa imagem dialéctica (ibidem, p. 605 [N 10a, 3]). Ou, por outras palavras, a presença de espírito é um dos elementos que permitem ao historiador materialista apreender “aquilo em que o outrora converge com o agora numa constelação fulminante”, abrindo-se assim a possibilidade de conhecimento histórico (ibidem, pp. 591-592 [N 3, 1]).

Também neste contexto se levanta a questão do perigo, mas agora trata-se de vê-lo, já não estritamente na relação com a vivência do choque ou com o perigo de não ganhar um lance de jogo, mas numa particular relação com a história. Daí que a noção de perigo apareça várias vezes nas entradas de Das Passagen-Werk dedicadas à teoria da história e, também, em “Sobre o conceito da história”, em particular na secção VI: “Articular historicamente o passado não significa reconhecê-lo ‘tal como ele foi’. Significa apoderarmo-nos de uma recordação (Erinnerung) quando ela surge como um clarão num momento de perigo” (Benjamin, 2010aBENJAMIN, W. “Sobre alguns motivos na obra de Baudelaire”. (2006c). In: W. Benjamin, 2006, pp. 103-148., p. 11). Aqui, além de uma definição do perigo – “o de nos transformarmos em instrumentos das classes dominantes” –, estabelece-se também uma relação entre as imagens da recordação e as imagens do passado que devem ser procuradas pelo materialista histórico.

Mas o corpo não desaparece desta equação. Sigrid Weigel mostra como a actualidade do pensamento benjaminiano, para ser coerente com o seu próprio conceito de actualidade (Aktualität) histórica, deve ser encontrada na “presença de espírito corpórea”, na sua relação com o domínio da imagem (a relação entre imagem e pensamento) e num modo particular de combinação do materialismo histórico com o trabalho inconsciente das imagens (cf. Weigel, 1996WEIGEL, S. “Body-and image-space. Re-reading Walter Benjamin”. Trad. G. Paul, R. McNicholl and J. Gaines. London: Routledge, 1996., pp. 2-13). Esta ideia é também reforçada pela utilização de conceitos da psicanálise.

Por outro lado, a ligação entre história e imagens da recordação deixa entrever outro dos elos fundamentais com a questão corpórea, pois a presença de espírito pode ser aproximada de categorias que Benjamin vai desenvolver a partir da obra de Proust, tais como o despertar e a sua relação com a memória involuntária. São acima de tudo os gestos, as posturas do corpo, as sensações que fazem irromper no presente de Marcel os fos da recordação. Acresce a isto que a presença de espírito também faz parte da dimensão temporal e existencial que desponta da Recherche, mas desta feita a propósito da tentativa de lidar com a verdade de que “não temos tempo para viver os verdadeiros dramas da existência que nos foi dada” (Benjamin, 2016aBENJAMIN, W. “Para um retrato de Proust”. (2016a). In: W. Benjamin, 2016, pp. 312-328., p. 325), intuição fundamental que percorre a escrita de Proust. À eternidade proustiana, preenchida pela vida vivida, equivale um mundo onde o envelhecimento e a recordação se interpenetram, um mundo num estado de semelhança, onde reinam as correspondências – caracterização com a qual Benjamin une Proust a Baudelaire e aos românticos. Nesse mundo, a memória involuntária, capaz de envelhecer a vida num instante, é também o instante do rejuvenescimento. Ora, perante a consciência aguda de que “não temos tempo para viver os verdadeiros dramas da existência que nos foi dada”, “À la recherche du temps perdu é a tentativa interminável de conferir a toda uma vida a carga máxima de presença de espírito” (ibidem, p. 325).11 11 Tradução alterada. Neste ponto, Benjamin refere que, desde os exercícios espirituais de Loyola, dificilmente existiu na literatura ocidental uma tão radical tentativa de auto-imersão, capaz de absorver, num vórtice, todo o mundo.

Se compararmos esta presença de espírito proustiana com a enunciada no texto “Madame Ariane, segundo pátio à esquerda”, verificamos uma mesma acentuação do presente e do instante, motivada pelo receio de perder algo de essencial na vida, mas sob dois prismas diferentes: o do primeiro é da ordem da actualização como reparação; o do segundo é da ordem do mergulho no dia como receio de chegar tarde demais. De qualquer forma, são duas formas de agarrar o tempo que se complementam numa intersecção inconsciente com o corpo, as quais pressupõem gestos, ora de acção, ora de rememoração. Em Proust, tal como em Baudelaire, trata-se do gesto artístico que dá à vida uma segunda vida.

À semelhança das imagens intensivas e descontínuas que surgem no despertar e na memória involuntária, dessa forma alimentando toda a vida com a presença de espírito, também a “imagem dialéctica pode nos permitir perceber o passado como carregado de tempo do agora e, dessa maneira, realizar com ele uma experiência única e intensa, que apreende o essencial do passado” (Machado, 2013MACHADO, F. P. “Imagem e consciência da história: pensamento figurativo em Walter Benjamin”. São Paulo: Edições Loyola, 2013., p. 209). Portanto, nas diversas utilizações e transfigurações que vai conhecendo no pensamento de Benjamin, o conceito de presença de espírito acaba por adquirir também uma importância capital para a sua dimensão política e histórica, reforçando a intersecção entre o individual e o colectivo. Vejamos mais alguns exemplos de Das Passagen-Werk:

Há que estabelecer a relação entre a presença de espírito e o “método” do materialismo dialéctico. Não apenas porque no caso da presença de espírito, considerada como uma das formas superiores de um comportamento adequado, é possível provar um processo dialéctico. Mas também, e isto é decisivo, porque o pensador dialéctico tenderá a ver a história como uma constelação de perigos em relação aos quais ele, pensando e seguindo a sua evolução, está sempre alerta para os poder evitar. (Benjamin, 2019BENJAMIN, W. “As passagens de Paris”. Trad. J. Barrento. Lisboa: Assírio e Alvim, 2019., p. 599 [N 7, 2])12 12 Tradução alterada.

Trata-se da relação com um “método” para o qual a presença de espírito contribui, não tanto como uma forma de comportamento adequado, mas como um elemento integrante do que Benjamin chama de doutrina elementar do materialismo histórico, doutrina que pressupõe que seja objecto da história qualquer conhecimento que se cumpra como salvação. Subjacente à compreensão da história segundo a sua decomposição em imagens, compreensão que visa efectuar a crítica imanente do conceito de progresso, está a ideia de que cada imagem se erige como mónada. Os procedimentos do materialista dialéctico devem, assim, assentar na experiência (Erfahrung), no bom senso (gesunden Menschenverstand), na presença de espírito (Geistesgegenwart) e na dialéctica (Dialektik) (cf. ibidem, p. 606 [N 11, 4]).

A presença de espírito é concebida, portanto, como um elemento fundamental da interrupção do continuum histórico e da imobilização que permite o aparecimento de uma imagem dialéctica.13 13 Sobre esta ideia de interrupção ou cesura, ver Gagnebin (1994, pp. 107-131). A dimensão crítica do pensamento de Benjamin contraria a noção cronológica, historicista, que concebe os factos históricos como meras relíquias do passado. A este propósito, Jessica Nitsche (2010, pp. 343-346)NITSCHE, J. “Walter Benjamins Gebrauch der Fotografe”. Berlim: Kadmos, 2010. explora a ideia de que existe uma relação temporal entre a presença de espírito, na sua ligação ao instante e à imobilização do momento, e o próprio funcionamento do mecanismo fotográfico, pois também este pressupõe uma imagem do passado que imobiliza um momento que se reactualiza a cada presente de visualização e legibilidade. Por sua vez, e tal como já foi observado a propósito do texto “Madame Ariane, segundo pátio à esquerda”, a conexão entre a presença de espírito e o momento do kairos permite conceber a complementaridade entre uma dimensão materialista e uma dimensão messiânica, redentora e salvadora – é neste sentido que segue a leitura de Stephane Symons (2013)SYMONS, S. “Walter Benjamin, Presence of Mind, Failure to Comprehend”. Leiden/Boston: Brill, 2013.. Estas diferentes ligações permitem-nos verificar, não só a pertinência conceptual do conceito de presença de espírito no pensamento de Benjamin, mas também o modo como, prolongando-se em diferentes ramificações, ele convoca outras formas de pensamento histórico, tecnológico e estético.

6. Conclusão

Ao longo da circunscrição dos cambiantes do conceito de presença de espírito, vimos que o perigo toma várias formas. Aparece relacionado com a vivência do choque, a qual se manifesta na intensificação da vida nas grandes cidades, na esgrima de Baudelaire ou em formas artísticas como o cinema; aparece relacionado com o jogo, com a ideia de chegar tarde de mais ou com as constelações de imagens da história. Todos estes aspectos permitem definir a tarefa crítica da presença de espírito numa relação entre perigo, instante e corpo, tarefa que se agudiza nas reflexões benjaminianas sobre a história. Ela exige uma forma muito plástica de atenção, que reconhece o valor dos momentos súbitos de iluminação, concebendo um quadro teórico em que “a Geistesgegenwart do crítico é o seu principal instrumento, permitindo-lhe responder a fenómenos inacessíveis a modos mais contemplativos de indagação e reflexão” (Duttlinger, 2007DUTTLINGER, C. “Between Contemplation and Distraction: Configurations of Attention in Walter Benjamin”. German Studies Review, Vol. 30, No. 1, 2007, pp. 33-54., p. 51).

Por outro lado, o jogo de azar tem nestes cambiantes um estatuto particular. Nele, mais do que nos outros aspectos, o perigo é “jogado”, e isto significa que o contraponto dialéctico entre vigilância e deixar-se ir pode atingir o domínio da intensa paixão. Referindo-se ao jogo, Anatole France diz que “a atracção pelo perigo está no fundo de todas as grandes paixões” (France, 1895FRANCE, A. “Le jardin d’Épicure”. Paris: Calmann Lévy, 1895., p. 23). Esta forma radical de colocar a questão ilumina também um outro elemento da presença de espírito: é que sem uma mínima experiência do perigo, sem uma mínima distracção, não nos é dado o acesso à ambivalência das paixões, à ambivalência dos tempos complexos; tão-pouco nos é dado o acesso ao que foi esquecido e pode conservar, por isso mesmo, as sementes do rejuvenescimento. Algo de essencial se pode perder quando a distracção ou o deixar-se ir são concebidos como uma mera cedência aos ditames do controlo social ou à lógica capitalista da sociedade de entretenimento ou da indústria cultural. Esta atitude constitui, digamos assim, um dado necessário para aceder aos diferentes pontos de vista de Benjamin e Adorno, não só relativamente às possibilidades críticas e emancipatórias da arte moderna e contemporânea, mas também relativamente ao que, filosófica e antropologicamente, ambos entendem por resistência e emancipação (cf. Gagnebin, 2014aGAGNEBIN, J. M. “Atenção e dispersão: elementos para uma discussão sobre arte contemporânea a partir de Adorno e Benjamin”. (2014a). In: J. M. Gagnebin, 2014, pp. 99-119., pp. 99-119).

Ao longo das diversas secções, verificámos que a presença de espírito conhece sempre o seu contraponto dialéctico, seja na forma da distracção, do deixar-se ir ou do exercício que visa retirar ao espírito o seu lugar de controlo e dar ao corpo o palco da acção. Nas anotações para “Sobre o conceito da história”, encontramos de forma explícita o contraponto ajustado ao historiador: “Ligar com isto a definição de presença de espírito; que significa: o historiador deve deixar-se ir” (Benjamin, 1991BENJAMIN, W. “Gesammelte Schriften”. Vols. I-VII. Ed. R. Tiedemann e H. Schweppenhäuser. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991., GS I, p. 1244). O agora da cognoscibilidade (Jetzt der Erkenbarkeit) aponta para um instante do tempo, materializado e imagético, que rompe com uma qualquer consciência soberana do pensador/actor histórico e político perante os seus objectos. Ao conceber a presença de espírito como parte integrante de um método – e ao integrá-la na acção do seu pensamento sobre o presente –, Benjamin chama repetidamente a atenção para a despossessão de si próprio que ela pressupõe. Por isso o seu significado político excede uma simples forma de vigilância, tal como impede o lamento em relação ao presente.

  • **
    Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito da Norma Transitória – DL 57/2016/CP1453/CT0040 e do Projecto “Fragmentação e reconfiguração: a experiência da cidade entre arte e filosofia” – PTDC/FER-FIL/32042/2017.
  • 1
    Tradução alterada.
  • 2
    Abre-se aqui uma ligação com a leitura que Michel Foucault realiza da modernidade, a partir de Kant e Baudelaire, entendendo-a menos como um período histórico e mais como uma atitude: “a modernidade é a atitude que torna possível apreender o aspecto heróico do momento presente” (Foucault, 1994aFOUCAULT, M. “Qu’est-ce que les lumières?”. (1994a). In: M. Foucault, 1994, pp. 562-578., p. 569). Tradução minha, à semelhança de todas as outras traduções não assinaladas.
  • 3
    Para uma localização filosófica da noção de kairos no cruzamento com o pensamento benjaminiano, cf. Agamben (2014, pp. 107-126)AGAMBEN, G. “Infância e história: destruição da experiência e origem da história”. Trad. H. Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014..
  • 4
    Graeme Gilloch desenvolve alguns aspectos desta influência de Simmel na filosofia urbana de Benjamin (cf. Gilloch, 1997GILLOCH, G. “Myth and Metropolis: Walter Benjamin and the City”. Oxford: Polity Press, 1997., pp. 139-145).
  • 5
    Toda esta questão pressupõe uma discussão sobre a categoria da experiência e as suas diversas acepções, tópico benjaminiano que tem sido sobejamente tratado pela crítica. Ver, por exemplo, o capítulo de Thomas Weber em “Benjamins Begrife” (2000a, pp. 230-259).
  • 6
    Tradução alterada.
  • 7
    Tradução alterada.
  • 8
    Gerhard Richter desenvolve esta questão da ausência de intenção na sua relação com o “deixar-se ir” como uma forma de repensar o si-próprio (self), a qual se realiza, quer ao nível da consciência subjectiva, quer ao nível daquilo a que ele chama de “desmembramento do corpo unificado” (cf. Richter, 2000RICHTER, G. “Walter Benjamin and the Corpus of Autobiography”. Detroit: Wayne State University Press, 2000., pp. 155-158).
  • 9
    Heiner Weidmann (1992)WEIDMANN, H. “Geistesgegenwart: Das Spiel in Walter Benjamin’s Passagenarbeit”. MLN, Vol. 107, No. 3, 1992, pp. 521-547. desenvolve uma análise mais detalhada destas diferentes ocorrências, incidindo sobretudo sobre a relação entre a presença de espírito e as considerações acerca do jogo, não só em Das Passagen-Werk, mas também num conjunto de outros textos, entre os quais as “Notas sobre uma teoria do jogo” (que aqui só podem ser aforadas).
  • 10
    Sobre a importância deste texto e, em particular, das noções de “espaço do corpo [Leibraum]” e “espaço da imagem [Bildraum]” para a concepção benjaminiana do corpo, cf. Weigel (1996, pp. 14-27)WEIGEL, S. “Body-and image-space. Re-reading Walter Benjamin”. Trad. G. Paul, R. McNicholl and J. Gaines. London: Routledge, 1996..
  • 11
    Tradução alterada.
  • 12
    Tradução alterada.
  • 13
    Sobre esta ideia de interrupção ou cesura, ver Gagnebin (1994, pp. 107-131)GAGNEBIN, J. M. “História e Narração em Walter Benjamin”. São Paulo: Perspectiva/FAPESP; Campinas SP: UNICAMP, 1994..

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Ago 2022

Histórico

  • Recebido
    09 Jun 2021
  • Aceito
    20 Ago 2021
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