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QUESTIONAMENTOS BUTLERIANOS AO CONSTRUTIVISMO DISCURSIVO: UMA PROBLEMÁTICA EPISTEMOLÓGICA DO CORPO NA PSICANÁLISE

BUTLERIAN QUESTIONING TO DISCURSIVE CONSTRUCTIVISM: AN EPISTEMOLOGICAL PROBLEMATIC OF THE BODY IN PSYCHOANALYSIS

RESUMO

Este texto pretende repensar a disputa de epistemologias feministas no que tange às construções discursivas de gênero, tendo como contexto os pensamentos de Freud e Lacan. Trata-se da crítica de Butler às teorias feministas binárias relativamente à substancialização do corpo sexual: se o corpo sexual é construído pelo discurso, ele também se porta como um elemento subversor do discurso, já que não pode ser completamente determinado pelo binarismo cultural de gênero. Utilizamos parte do debate que Butler trava com a psicanálise freudiana e lacaniana como um “caso modelo” no qual tais questionamentos epistemológicos seriam analisados: de início, a psicanálise coloca-se como um dos principais alvos críticos da “segunda onda” feminista; em segundo lugar, a psicanálise também teria sido mobilizada a favor da causa feminista binária; contudo, para Butler, tais feministas não teriam criticado suficientemente a psicanálise, por não discutirem a raiz corporal essencializada que sustentaria a divisão binária entre sexos; finalmente, Butler ressalta a potencialidade crítica que a psicanálise comporta, dada a resistência subversiva e plástica do inconsciente, das pulsões, do desejo e do corpo, noções centrais para a epistemologia feminista não binária e remodelação do construtivismo discursivo.

Palavras-chave:
Psicanálise; Feminismo; Binarismo; Construção; Discurso; Epistemologia

ABSTRACT

This text intends to rethink the dispute of feminist epistemologies regarding the conception of gender discursive constructions from the background of Freud and Lacan’s thesis. Our basis is Butler’s critique of binary feminist theories regarding the substantialization of the sexual body: if the sexual body is constructed by discourse, it is also a subversive element of discourse, since it cannot be completely determined by cultural gender binarism. We use excerpts from the debate between Butler-Freudian and Lacanian psychoanalysis as a “model case” where such epistemological questions could be analyzed: at first, psychoanalysis is one of the main critical targets of the feminist “second wave”; secondly, psychoanalysis would also have been mobilized in favor of the binary feminist cause; however, for Butler, such feminists would not have sufficiently criticized psychoanalysis, for not attacking the essentialized sexual bodily root that would sustain the binary division between sexes; finally, Butler emphasizes the critical potential that psychoanalysis holds, given the subversive and plastic resistance of the unconscious, drive, desire and body, central notions for non-binary feminist epistemology and remodeling of discursive constructivism.

Keywords:
Psychoanalysis; Feminism; Binarism; Construction; Discourse; Epistemology

Introdução

Sabe-se que, ao longo dos anos 1960 e 1970, foi de suma importância nos estudos feministas um ponto de vista construtivista que analisa as relações sociais de gênero a partir de determinações discursivas. O objetivo central dessa “segunda onda”1 1 Entre aspas, pois se utiliza a expressão com muitas ressalvas. feminista era o combate ao ponto de vista essencialista de gênero, forma de relacionar as diferenças e limites de atuações de gênero a uma concepção da natureza presumivelmente imutável dos seres humanos. Para combatê-la, as teóricas feministas retiraram o enfoque da natureza sexual – âmbito supostamente inquestionável de autoridade, dadas as evidentes diferenças anatômicas entre os sexos – e passaram a privilegiar o campo cultural, no qual a construção do gênero feminino seria socialmente negociável, já que historicamente modificável. Tal premissa, predominante a um certo ponto dos debates feministas, foi de suma importância para demonstrar o descentramento do sujeito, bem como criticar as formas de subjetivação e construção de identidades de gênero.

Entretanto, o que tal posicionamento construtivista discursivo não chegou a fazer teria sido questionar a própria natureza do sexo em sua imutabilidade, ou melhor, problematizar a forma a partir da qual a compreensão de natureza seria epistemologicamente construída por influências culturais. Tal exigência de se perguntar pelo valor historicamente atribuído à própria anatomia humana emerge justamente de sujeitos que procuram pela transformação física para que o corpo se aproxime da própria identificação de gênero. A natureza sexual, até então tomada como substantiva e imutável, passa a ser vista como arbitrária, contingente e, portanto, modificável. Conclamam as pessoas trans: se a mulher se torna mulher via construção cultural, essa construção deve abranger inclusive a reconstrução do corpo que fora, até então, naturalizado e fixado enquanto masculino ou feminino. Tal historicização do que se mostra como naturalizado permitiu ainda ampliar as configurações de gênero para além do binarismo, levando a uma variedade de cruzamentos subversivos entre sexo, gênero, identidades e desejos. O “sujeito” político do feminismo conquistou, com isso, uma expansão para além das mulheres cis.

É justamente na reconstrução do “natural” (agora com aspas, pois entendemos o natural como aquilo que fora histórica e culturalmente naturalizado) que se encontra a virada epistemológica queer no interior dos estudos feministas. A expansão da construção do corpo gera a necessidade de mudança de paradigma epistemológico feminista, impondo um questionamento não só sobre a relação entre construção e discurso (que se vê limitado pela materialidade corporal situada de uma só vez fora e dentro do âmbito cultural discursivo), mas também sobre a própria concepção de construção, que precisa ser revista diante da sua aparente amplitude conceitual.

Para tanto, iremos recorrer a Butler, filósofa que relaciona as demandas não binárias ao debate feminista, discutindo, entre outras, as mudanças epistemológicas dos limites e reformulações que a materialidade do corpo impõe ao discurso. Faremos isso sem mobilizar toda a teoria butleriana, mas somente os aspectos epistemológicos encontrados nas psicanálises de Freud e Lacan. Para nós, a leitura feita por Butler da teoria psicanalítica em geral é exemplar ao ilustrar tanto o posicionamento da autora em relação às feministas binárias, quanto as possibilidades de subversão crítica para fins emancipatórios.

Butler e o construtivismo performativo

Apesar de Butler ter abrangido em sua teoria noções de autores pós-estruturalistas que seguem a hipótese cultural construtivista a partir da análise discursiva, a autora desenvolve uma concepção de performatividade de gênero que reconfigura os limites do construtivismo discursivo, reformulando-o.

Tais limites são pelo menos dois. Primeiramente, segundo a autora, a construção feminista era, até então,

entendida como um processo unilateral iniciado por um sujeito prévio, fortalecendo a hipótese da metafísica do sujeito que diz que, onde há atividade, esconde-se por trás dele um sujeito iniciador e voluntário. Desse ponto de vista, o discurso ou a linguagem ou o social se personificam, e, na personificação, a metafísica do sujeito é reconsolidada. (Butler, 2019BUTLER, J. “Corpos que importam – os limites discursivos do ‘sexo’.” Tradução V. Daminelli e D. Y. Françoli. São Paulo: N-1 edições, 2019., p. 30)

Segundo essa leitura, aquele que constrói culturalmente seria um sujeito gramatical aparentemente autoevidente, um agente coerente e “substancializado” que já teria previamente “resolvido” suas questões de gênero. O que o tornaria apto a agir em sua própria transformação, construindo de forma causal e processual a identidade de si tomada como um produto da ação subjetiva. Ora, tal sujeito gramatical pode ser visto como uma nova forma de essencialismo, já que instaura a posição de um agente produtor de si atuando sobre o campo social da linguagem. Contudo, como veremos, Butler vê a construção não como “um sujeito nem seu ato, mas um processo de reiteração através do qual emergem tanto os ‘sujeitos’ como seus ‘atos’. Não há poder algum que atue, apenas uma atuação reiterada que se faz poder em virtude de sua persistência e instabilidade” (Butler, 2019BUTLER, J. “Corpos que importam – os limites discursivos do ‘sexo’.” Tradução V. Daminelli e D. Y. Françoli. São Paulo: N-1 edições, 2019., p. 30).

O segundo limite é percebido no contexto segundo o qual, para a construção discursiva feminista de até então, o corpo sexual apareceria como fora do campo cultural, como natural e essencializado; nessas condições, tal corpo previamente constituído seria passivamente submetido ao domínio da linguagem, momento em que é “generificado”. Entretanto, Butler subverte os posicionamentos do corpo em relação ao discurso, mostrando não só que não haveria um corpo sexual anterior à linguagem; como também na imposição da linguagem sobre o corpo é produzido um “resto corporal” não governável que denuncia os limites possíveis do construtivismo discursivo, levando a modificações dos termos pelos quais é descrita a construção. O sexo entra para a história, não se mostra mais como naturalmente essencializado, nem como passivamente carregando as inscrições culturais de gênero, mas ele também seria o local de produção cultural e de resistência a essa mesma produção – como veremos mais à frente.

Configura-se, então, uma virada epistemológica no interior das teorias feministas a partir do questionamento queer – aqui tematizado pela teoria butleriana que repensa a noção feminista de construção discursiva, ressaltando como o corpo sexual passaria por um processo de materialização cultural que procura demarcar, sempre de forma incompleta, certa fixidez por meio de suas práticas. Tal fixidez do corpo sexual, como veremos, seguirá matrizes de orientação heterossexual e masculinista:

Com isso, ela proporá um deslocamento da centralidade da categoria gênero como instrumento de crítica às discriminações na vida social, cultural e econômica, para pensar na heteronormatividade como elemento que constrói e orienta a materialidade dos corpos. (Rodrigues, 2019RODRIGUES, C. “Para além do gênero: anotações sobre a recepção da obra de Butler no Brasil”. Em Construção, Nr. 5, 2019, pp. 59-72., p. 65)

O sujeito pretensamente autoevidente, causador de si, voluntarista e coerente não é mais visto como produzindo ou “assumindo” sua própria identidade sexual a ser inscrita em seu corpo. Agora o corpo sexual passa a ser ele mesmo produzido por determinações discursivas culturais que simultaneamente constroem esse mesmo sujeito. Recuperando teorias linguísticas, Butler lembra-nos de que a fala performativa é aquela que produz aquilo que nomeia. Sendo assim, os discursos, ao nomearem o sexo, produzem-no no momento mesmo em que o denominam como natural.

Como veremos mais à frente, na psicanálise freudiana, tal produção do corpo sexual ocorre implicitamente, sendo enunciada enquanto “predisposições” à heterossexualidade que serão, então, reguladas por práticas sociais que pretendem inseri-lo no ambiente cultural, privilegiadamente na situação do fim do complexo de Édipo via o que Lacan chamou de significantes, tais quais o Nome-do-Pai, por exemplo: “as normas regulatórias do ‘sexo’ trabalham de forma performativa [...][...] para materializar a diferença sexual a serviço da consolidação do imperativo heterossexual” (Butler, 2019BUTLER, J. “Corpos que importam – os limites discursivos do ‘sexo’.” Tradução V. Daminelli e D. Y. Françoli. São Paulo: N-1 edições, 2019., p. 21). Com isso, o sexo não pode ser “assumido” em um único ato por um sujeito voluntarista, mas a “assunção” do sexo é reiteradamente produzida pelas normas discursivas que são, então, forçadamente impostas ao sujeito também em construção.

Contudo, tal hipótese performativa não desfaz completamente a concepção de agência subjetiva, nem mesmo dilui totalmente o corpo no discurso: “se existe uma liberdade de agência, ela deve ser encontrada, paradoxalmente, nas possibilidades que oferecem a apropriação obrigada da lei reguladora, a materialização dessa lei, a apropriação compulsória e a identificação com tais demandas normativas” (Butler, 2019BUTLER, J. “Corpos que importam – os limites discursivos do ‘sexo’.” Tradução V. Daminelli e D. Y. Françoli. São Paulo: N-1 edições, 2019., p. 35). De um lado, sabemos que as enunciações, caracterizações e internalizações do discurso performam a materialidade do sexo, pretendendo fixar a sexualidade em contornos estáveis concebidos como identidades culturalmente inteligíveis. Contudo, tal estabilidade está fadada ao necessário fracasso não só pelo próprio processo de repetição das normas – que nunca ocorre de forma idêntica –, mas também pela ação do próprio inconsciente produtivo e potencialmente subversivo.

Se os indivíduos nunca podem performatizar o gênero fora das imposições sociais de normas discursivas, em contrapartida, sabemos que uma replicação fel das normas é impossível. A repetição geracional guarda em si a possibilidade de uma performance que não irá refundar as configurações de gênero, mas reencenar as performatividades dominantes por meio de uma nova experiência que permite certa modificação na ritualização das atuações de gênero pretensamente mais legítimas: “é somente no interior das práticas de significação repetitiva que se torna possível a subversão da identidade” (Butler, 2003BUTLER, J. “Problemas de gênero – feminismo e subversão da identidade.” Tradução R. Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003., p. 209). O que Butler sugere é um deslocamento na repetição inevitável da lei, replicando diferentes performances das identidades de gênero – algo que o inconsciente, enquanto reserva plástica de pulsões e significações, pode fazer justamente por manter atuantes as identificações melancólicas homossexuais que foram renegadas, como veremos. “Essa instabilidade é a possibilidade de deconstituição no próprio processo de repetição, o poder que desfaz os próprios efeitos pelos quais o ‘sexo’ é estabilizado, a possibilidade de pôr a consolidação das normas do ‘sexo’ em uma crise potencialmente produtiva” (Butler, 2019BUTLER, J. “Corpos que importam – os limites discursivos do ‘sexo’.” Tradução V. Daminelli e D. Y. Françoli. São Paulo: N-1 edições, 2019., p. 31).

Além disso, podemos dizer que o próprio corpo impede uma determinação total do discurso em sua constituição. Se o corpo sexual é construído pelo discurso, ele também é, ao mesmo tempo, seu elemento subversor, já que não pode ser completamente determinado pelo binarismo cultural de gênero. Nessa produção, o corpo não é subjugado de forma completa, constituindo fissuras que irão impedir a estabilização e fixação total na produção dos corpos sexuais. Butler diz-nos que a própria necessidade de repetir reiteradamente as normas sobre o corpo já é um sinal, em si, de que

os corpos nunca cumprem completamente as normas pelas quais se impõe sua materialização. De fato, são as instabilidades, as possibilidades para rematerialização abertas por esse processo, que marcam um domínio em que a força da lei regulatória pode voltar-se contra si própria, gerando rearticulações que ponham em causa sua força hegemônica. (Butler, 2019BUTLER, J. “Corpos que importam – os limites discursivos do ‘sexo’.” Tradução V. Daminelli e D. Y. Françoli. São Paulo: N-1 edições, 2019., p. 21)

Embora as imposições do discurso prevalente heterossexual no corpo não o livrem de uma inscrição na cultura, os limites descritos promovem a possibilidade de desconstrução da nomeação hegemônica e o surgimento de outras possibilidades de linguagem sobre o corpo. Tal renomeação seguirá, nos termos de Butler, as trilhas da reincorporação dos corpos expulsos da cultura hegemônica, produzidos como abjetos pelas normas discursivas predominantes, deslegitimados em sua importância como menos humanos. “Se a materialidade do sexo é demarcada no discurso, então, essa demarcação produzirá um domínio de ‘sexos’ excluídos e deslegitimados” (Butler, 2019BUTLER, J. “Corpos que importam – os limites discursivos do ‘sexo’.” Tradução V. Daminelli e D. Y. Françoli. São Paulo: N-1 edições, 2019., p. 39). O reconhecimento da abjeção e do processo que a produz levaria, então, a uma teoria ético-normativa da modificação possível do poder vigente pela reinserção dos que foram construídos como excluídos por esse próprio poder. A violência da exclusão e abjeção deve ser, então, reconhecida, no campo discursivo cultural, como um sinal da limitação hegemônica que passará, portanto, por uma desconstrução e ressignificação: “certas declarações alargam as fronteiras do próprio simbólico, produzem um deslocamento do simbólico e também dentro dele” (Butler, 2019BUTLER, J. “Corpos que importam – os limites discursivos do ‘sexo’.” Tradução V. Daminelli e D. Y. Françoli. São Paulo: N-1 edições, 2019., p. 201).

Alguns debates de Butler com a psicanálise freudiana e lacaniana

Uma vez expostas as linhas gerais do pensamento butleriano que nos interessam, utilizaremos alguns trechos evocados pela autora de debates com Freud e Lacan como modo de demonstração mais palpável das explanações acima. Nossa exposição será organizada segundo a delimitação de quatro eixos: 1) exemplificação do uso performativo do discurso clínico e teórico psicanalítico na produção e perpetuação de matrizes heteronormativas e masculinistas na cultura; 2) a leitura subversiva da própria teoria psicanalítica por parte de Butler, cujas conceituações favoreceriam a edificação de um debate feminista e queer, especialmente em Freud; 3) a contraposição interna entre as teorias psicanalíticas de Freud e Lacan produzida por Butler, relacionando a noção de eu corporal imaginário à imposição do simbólico lacaniano; 4) por fim, o enaltecimento da potencialidade crítica que a psicanálise comporta, dada a própria resistência subversiva e plástica do inconsciente, das pulsões, do desejo e do corpo, noções centrais para a mudança epistemológica feminista e remodelação do construtivismo discursivo.

Iniciemos, então, com a exposição bastante conhecida2 2 Vale lembrar que a crítica ao falocentrismo da teoria freudiana remonta à primeira geração de psicanalistas mulheres, tais quais Hélene Deutsch, Karen Horney, ou ainda Ernest Jones, com as quais Freud debateu ainda em vida, citando-as com certa frequência em seus textos. dos mecanismos de produção e reiteração de heterossexismos e masculinismos na psicanálise. São várias as psicanalistas feministas com quem Butler trava debates, mais ou menos explícitos, sobre as leituras de textos freudianos. Juliet Mitchell (1974)MITCHELL, J. “Psychoanalysis and Feminism – a radical reassessment of Freudian psychoanalysis.” New York: Basic Books, 1974., por exemplo, autora incontornável da retomada psicanalítica nos estudos feministas, assume certa posição de defesa de Freud ao dizer que o autor só teria descrito a situação feminina que encontra em seus casos clínicos, e não poderia estar prescrevendo modos de condutas de gênero. Porém, tal afirmação é contraposta à perspectiva de Butler, para quem “a proposição constatativa é sempre performativa em algum grau” (Butler, 2019BUTLER, J. “Corpos que importam – os limites discursivos do ‘sexo’.” Tradução V. Daminelli e D. Y. Françoli. São Paulo: N-1 edições, 2019., p. 32). Nesse sentido, o que parece ser uma simples descrição do lugar passivo, naturalizado e objetificado da mulher no complexo de Édipo – como encontramos predominantemente em uma sociedade masculinista – acaba assumindo um caráter performativo de enormes proporções, dada a importância de Freud para a constituição da cultura contemporânea ocidental, produzindo efeitos hegemônicos prolongados na materialização de corpos.

Por isso, devemos atentar aos discursos médicos e biológicos reprodutivos que não estão claramente expostos na obra de Freud, mas que embasam as “predisposições” à heterossexualidade na explicação edípica. Como diria Butler:

A performatividade [...] oculta ou dissimula as convenções das quais é uma repetição. Além disso, esse ato não é primariamente teatral; de fato, sua aparente teatralidade é produzida na medida em que sua historicidade permanece dissimulada (e, reciprocamente, sua teatralidade ganha certa inevitabilidade dada a impossibilidade de divulgar de forma plena sua historicidade). (Bulter, 2019BUTLER, J. “Corpos que importam – os limites discursivos do ‘sexo’.” Tradução V. Daminelli e D. Y. Françoli. São Paulo: N-1 edições, 2019., p. 35, grifos nossos)

Ao omitir alguns dos discursos normativos que norteiam a produção de sua teoria sexual – como o pressuposto biológico da reprodução humana como fator explicativo da hegemonia heterossexual –, Freud conduz-nos à leitura que vê na heterossexualidade uma “predisposição” natural. A diferença sexual pretensamente natural entre homens e mulheres é construída pelo discurso biológico implícito que nomeia a distinção anatômica entre órgãos a partir de delimitações preferencialmente reprodutivas (e não vinculando os órgãos a fontes de prazer ou a funções políticas ou estéticas, por exemplo). Não nos esqueçamos de que Freud aborda a distinção entre “normalidade” e homossexualidade (como um dos exemplos da patologia perversa) a partir da finalidade reprodutiva do aparelho sexual. Ou seja, na teoria freudiana, a anatomia é instrumentalizada e normalizada de acordo com discursos médicos que inscrevem finalidades externas à materialidade corporal. Ao desvelar tal produção material via a nomeação de um órgão pela sua restrição a uma única função pretensamente mais importante do que outras de suas funções possíveis, Butler demonstra-nos o que há por trás das “predisposições” naturais à heterossexualidade. A reprodução humana é tomada como pressuposto tácito de finalidade de órgãos, não como uma consequência meramente contingente às práticas envoltas a esses próprios órgãos:

Contada do ponto de vista que toma a lei proibitiva como momento fundador da narrativa, a lei tanto produz a sexualidade sob forma de “predisposições” e reaparece ardilosamente, num momento posterior, para transformar essas predisposições aparentemente “naturais” em estruturas culturalmente aceitáveis [...]. Assim, a lei repressiva efetivamente produz a heterossexualidade, e atua não como um código meramente negativo ou excludente, mas como uma sanção e, mais apropriadamente, uma lei do discurso, distinguindo o que é dizível do que é indizível (delimitando e construindo o campo do indizível), o que é legítimo do que é ilegítimo. (Butler, 2003BUTLER, J. “Problemas de gênero – feminismo e subversão da identidade.” Tradução R. Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003., pp. 100-102)

Tal pressuposto normativo escamoteado por Freud opera justamente na passagem entre o nascimento de um bebê e a escolha de objeto de amor na situação edípica. Por mais que Freud conceba uma noção de complexo de Édipo negativo homossexual (que correria paralelamente ao Édipo positivo heterossexual) decorrente da afirmação de que todos os seres humanos nascem bissexuais, tais explicações não são suficientes para explanar a passagem da bissexualidade inata às escolhas heterossexuais e masculinistas, tomadas como hegemônicas e paradigmáticas, do menino hétero no complexo de Édipo. Nesse âmbito, Butler constrói a sua releitura do complexo de Édipo baseada na premissa de que “Na psicanálise, a bissexualidade e a homossexualidade são consideradas predisposições libidinais primárias, e a heterossexualidade é a construção laboriosa que se baseia em seu recalcamento gradual” (Butler, 2003BUTLER, J. “Problemas de gênero – feminismo e subversão da identidade.” Tradução R. Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003., p. 116).

Desse modo, Butler interroga o lugar do interdito do incesto na determinação da escolha de objetos pulsionais sexuais, já que, na situação do confito edípico, a postura heterossexual já teria se sedimentado:

Embora Freud não o argumente explicitamente, dir-se-ia que o tabu contra a homossexualidade deve preceder o tabu heterossexual do incesto; o tabu contra a homossexualidade com efeito cria as “predisposições” heterossexuais pelas quais o confito edipiano torna-se possível. O menino e a menina que entram no drama edipiano com objetivos incestuosos heterossexuais já foram submetidos a proibições que os “predispuseram” a direções sexuais distintas. [...] Em outras palavras, as “predisposições” são vestígios de uma história de proibições sexuais impostas, de uma história que não é contada e cujas proibições buscam torná-la indizível. (Butler, 2003BUTLER, J. “Problemas de gênero – feminismo e subversão da identidade.” Tradução R. Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003., pp. 143-144)

Em complemento, se o tabu da homossexualidade produzido pelos discursos heteronormativos tornados implícitos por Freud precede e causa o tabu do incesto edipiano, Butler diz-nos que o pavor de se identificar com uma mulher se encontra escamoteado na raiz do complexo de castração: “O fato de o menino geralmente escolher [a predisposição] heterossexual não resultaria do medo da castração pelo pai, mas do medo de castração — isto é, do medo da ‘feminização’, associado com a homossexualidade masculina nas culturas heterossexuais” (Butler, 2003BUTLER, J. “Problemas de gênero – feminismo e subversão da identidade.” Tradução R. Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003., p. 93). O “medo da feminização” estaria situado antes da angústia da castração, sendo, na verdade, sua condição e não seu efeito, como quer Freud.

Em contrapartida, assumindo que o sujeito é situado no interior da linguagem e submetido pela linguagem, Lacan procura desvencilhar-se de tal biologismo reprodutivo implícito em Freud. Nesse âmbito, a teoria lacaniana serve muito bem aos desenvolvimentos basilares da teoria butleriana, demonstrando como a subjetividade seria constituída pelo discurso, sendo o sujeito efeito da linguagem. Contudo, veremos que, no tocante à distinção entre os sexos, Lacan é criticado por Butler.

De início, Butler concorda com Lacan ao notar como a distinção que delimita um menino e uma menina é produzida como efeito de um significante. Nesse sentido, Lacan torna-se diretamente útil a algumas teóricas psicanalistas feministas, tais quais Luce Irigaray, Rosi Braidotti e Julia Kristeva:

Contra aqueles que argumentaram que o sexo é uma simples questão de anatomia, Lacan sustentava que o sexo é uma posição simbólica que se assume sob a ameaça de punição, ou seja, uma posição que se é obrigado a assumir, pois se trata de restrições que operam na própria estrutura da linguagem e, consequentemente, nas relações constitutivas da vida cultural. Algumas feministas se voltam para Lacan em um esforço de moderar certo tipo de utopia que visava a assegurar que a reorganização radical das relações de parentesco pudesse implicar a reorganização radical da psique, da sexualidade e do desejo. Nessa perspectiva, entendia-se que o domínio simbólico que obrigava a assumir uma posição sexuada dentro da linguagem era mais fundamental do que qualquer organização específica de parentesco. De modo que um sujeito poderia reorganizar suas relações de parentesco fora da cena familiar e, ainda assim, descobrir que a própria sexualidade está construída por demandas sexuais prementes e constitutivas mais profundamente arraigadas. (Butler, 2019BUTLER, J. “Corpos que importam – os limites discursivos do ‘sexo’.” Tradução V. Daminelli e D. Y. Françoli. São Paulo: N-1 edições, 2019., p. 177)

No entanto, a teoria lacaniana dos anos 1950 prolonga a visão do complexo de Édipo freudiano como definidor das sexualidades. Como podemos ler no Seminário 5:

há no Édipo a assunção do próprio sexo pelo sujeito, isto é, para darmos os nomes às coisas, aquilo que faz com que o homem assuma o tipo viril e com que a mulher assuma um certo tipo feminino, se reconheça como mulher, identifque-se com suas funções de mulher. A virilidade e a feminilização são os dois termos que traduzem o que é, essencialmente, a função do Édipo. (Lacan, 1999LACAN, J. “O seminário, Livro 5: As formações do inconsciente.” Tradução V. Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999., p. 171)

Nesse sentido, Lacan teria cometido o mesmo equívoco que as psicanalistas feministas da “segunda geração” ao manter a materialidade do corpo em um campo à parte em relação à determinação da linguagem, sustentando o posicionamento implícito de que o corpo sexual se situaria previamente ao domínio do discurso, submetendo-se passivamente à penetração ativa do significante – paterno. A lei de parentesco, que se torna efetiva pela Lei do Pai, performatiza o gênero, uma vez que encontra já estabelecida a materialidade do corpo sexual. E o faz segundo a distinção entre a situação de se ter o significante falo (posição masculina) ou de se ser o falo (posição feminina). Nesse sentido, “ao entrar na dimensão simbólica, o corpo do sujeito se transfigura. É esta transfiguração do corpo do sujeito que coloca claramente, no paradigma da teoria lacaniana, a marca da diferença sexual” (Sabsay, 2012SABSAY, L. “De sujeitos performativos, psicoanálisis y visiones constructivistas” In: Soley-Beltran e Sabsay (eds.), 2012, pp. 135-169., p. 154).

Sendo um significante, a posição de se ter um falo poderia, então, ser assumida por mulheres, o que abre a possibilidade da concepção de falo lésbico. Contudo, Butler posiciona-se desfavoravelmente quanto à replicação do falo como significante privilegiado da distinção sexual por psicanalistas feministas, como explica na ocasião de um debate com Jessica Benjamin:

Eu não sou grande fã do falo [...]. Eu entendo que os progressistas lacanianos são rápidos em distinguir entre o falo e o pênis e afirmam que o “paternal” é apenas uma metáfora. O que eles não explicam é a forma pela qual a própria distinção que converte o “falo” e o “paternal” em algo seguro que se possa usar continua dependendo e reinstituindo as correspondências pênis/falo e paternal/maternal que as distinções dizem superar. Acredito no poder da ressignificação subversiva até certo ponto e aplaudo os esforços para difundir o falo e cultivar, por exemplo, os pais lésbicos e casos parecidos. Porém seria um erro, acredito, privilegiar o pênis ou a paternidade como os termos a serem mais amplamente e radicalmente ressignificados. Por que esses termos e não outros? O “outro” destes termos é, claro, a pergunta feita aqui, e Benjamin nos ajuda a imaginar, teoricamente, uma paisagem psíquica em que o falo não controla o circuito dos efeitos psíquicos. Mas, estamos equipados para repensar o problema da triangulação agora que compreendemos os riscos da redução fálica? (Butler, 2016BUTLER, J. “Anseio de reconhecimento”. Tradução Jainara Gomes de Oliveira e Tarsila Chiara A. S. Santana. Equatorial, Vol. 03, Nr. 05, 2016, pp. 185-207., p. 190)

Seguindo tal ponderação, Butler constrói sua segunda crítica a Lacan: este não teria historicizado nem produzido uma genealogia dos significantes empregados. Por consequência, Lacan teria reinstituído o essencialismo em sua teoria do simbólico, o que teria impossibilitado a ele pensar a subversão de tais normas discursivas construtivistas:

O problema é que essa arbitrariedade da diferença sexual, enquanto simbólica e não imaginária ou social, é lida no lacanianismo como universal e necessária também. Em outras palavras, embora o paradigma lacaniano negue a naturalidade da diferença entre os sexos e enfatize, ao contrário, a arbitrariedade radical do sexo, ele nega a essa arbitrariedade humana seu caráter contingente e a coloca de volta na ordem da necessidade. [...] Aceitando a arbitrariedade, mas negando a contingência, o conceito lacaniano de diferença sexual se universaliza. Concebida como uma “arbitrariedade necessária”, a diferença sexual converte-se então em um conceito transcendental, e é efetivamente esse universalismo transcendental da noção psicanalítica de diferença sexual o que, além de preservar os pressupostos homofóbicos da abordagem freudiana, binariza o gênero. (Sabsay, 2012SABSAY, L. “De sujeitos performativos, psicoanálisis y visiones constructivistas” In: Soley-Beltran e Sabsay (eds.), 2012, pp. 135-169., pp. 158-159)

Tendo sido evidenciada a reinstituição repetitiva das normas heterossexistas e masculinistas pelas teorias freudiana e lacaniana segundo a leitura de Butler, passemos, então, ao segundo ponto mais amplo de uso subversivo da psicanálise para a construção de uma epistemologia feminista não binária, principalmente pela teoria freudiana de melancolia de gênero e de identificações ex-státicas do eu.

É em O eu e o isso, de Freud, que Butler encontra a teorização de um eu que seja: 1) não coerente; 2) formado ex-stasicamente a partir do outro; e 3) cuja sexualidade poderia ser lida como organizada por recalques melancólicos de possibilidades desviantes do masculinismo e heterossexismo. Nesse texto, Freud descreve como o eu é formado por incorporações sucessivas de diferentes alteridades, identificações que eram anteriormente relações de objetos de amor que foram perdidos ou abandonados. A constituição do eu descreveria, então, a linhagem de apegos e perdas de alteridades que formariam seu caráter, resíduo melancólico de lutos de amores não resolvidos:

Se um tal objeto sexual deve ou tem de ser abandonado, não é raro sobrevir uma alteração do Eu, que é preciso descrever como estabelecimento do objeto no Eu, como sucede na melancolia [...]. De todo modo, o processo é muito frequente, sobretudo nas primeiras fases do desenvolvimento, e pode possibilitar a concepção de que o caráter do Eu é um precipitado dos investimentos objetais abandonados, de que contém a história dessas escolhas de objeto. (Freud, 1923/2011FREUD, S. (1923). “O eu e o isso”. In: Obras completas, Vol. 16. Tradução P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p. 36)

Para tanto, Freud recorre à significação descrita em Luto e Melancolia, onde aborda como a melancolia seria uma reação psíquica à perda de um objeto investido libidinalmente (seja alguém, uma ideia, uma concepção de si mesmo) na qual o objeto perdido seria internalizado, constituindo parte de si mesmo. Tal internalização do objeto de amor seria ambivalente, uma vez que toda a reação de agressão ou ódio contra tal objeto (e contra a sua perda) se transforma em uma agressão do eu contra si mesmo. Se no luto ocorre a internalização do objeto perdido, que pode, então, ser declarado morto, havendo uma finalização desse processo; na internalização melancólica ocorreria a manutenção da existência do objeto perdido, mantido vivo no interior do eu, o que configura uma situação sem fim. Assim, a melancolia incorpora a perda, mas recusa o luto que reconheceria essa mesma perda.

Tomando para si tal teoria, Butler defende que parte das identificações sexuais do eu com objetos de amor é recusada pelas normas masculinistas e heterossexistas, resultando disso uma identificação de gênero melancólica. Já que tais identificações e perdas não podem ser reconhecidas, o luto não pôde ser completo:

Se a suposição da feminilidade e a suposição da masculinidade procedem da consumação de uma heterossexualidade sempre tênue, podemos entender que a força dessa consumação determina o abandono dos apegos homossexuais ou, talvez de modo mais incisivo, inviabiliza a possibilidade do apego homossexual, uma forclusão da possibilidade que coloca a homossexualidade na categoria de paixão inviável e perda não pranteada. Essa heterossexualidade se produz não só implementando a proibição do incesto, mas também, antes disso, impondo a proibição da homossexualidade. (Butler, 2017BUTLER, J. “A vida psíquica do poder – teorias da sujeição.” Tradução R. Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica, 2017., p. 144)

Como a concepção de sujeito para Butler refete esse sujeito de desejo não coerente, já que cindido entre identificações assumidas e outras melancolicamente repudiadas, podemos pensar que o sistema masculinista heterossexual não abole a homossexualidade, mas a preserva internamente enquanto proibida: “O ato de renunciar à homossexualidade, portanto, fortalece a homossexualidade de modo paradoxal, mas a fortalece precisamente enquanto poder de renúncia” (Butler, 2017BUTLER, J. “A vida psíquica do poder – teorias da sujeição.” Tradução R. Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica, 2017., pp. 151-152). Sendo assim, a negação da homossexualidade é fundamental para a formação de uma determinada versão heterossexual dos sujeitos, a versão hegemônica.

Quando certos tipos de perda são impostos por um conjunto de proibições culturalmente predominantes, podemos esperar uma forma de melancolia culturalmente predominante que sinaliza a internalização do investimento homossexual não pranteado e não pranteável. [...] É claro, não admira que quanto mais hiperbólica e defensiva a identificação masculina, mais feroz o investimento homossexual não pranteado. (Butler, 2017BUTLER, J. “A vida psíquica do poder – teorias da sujeição.” Tradução R. Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica, 2017., pp. 147-148)

Com isso, a matriz heterossexista produz o repúdio ou a expulsão do eu de algumas formas de identificação, reservando a certas identidades de gênero o lugar de “abjeto”. Haveria, então,

um encadeamento entre a homossexualidade e a abjeção, de fato, uma possível identificação com uma homossexualidade abjeta no coração da identificação heterossexual. Essa economia de repúdio sugere que a heterossexualidade e a homossexualidade são fenômenos mutuamente excludentes, que só podem coincidir desde que um seja culturalmente viável e o outro um assunto passageiro e imaginário. (Butler, 2019BUTLER, J. “Corpos que importam – os limites discursivos do ‘sexo’.” Tradução V. Daminelli e D. Y. Françoli. São Paulo: N-1 edições, 2019., pp. 197-198)

Butler utiliza parte da teoria freudiana para denunciar como tal repúdio e produção de corpos abjetos é reproduzida pelo sujeito via a formação do supereu, resultado do fim do complexo de Édipo. Se o supereu configura a instalação das normas sociais na psique individual, sendo o “lugar psíquico” de sanções, controles, valorizações e tabus, podemos dizer que “O Eu só se torna moralizado por causa da perda não pranteada” (Butler, 2017BUTLER, J. “A vida psíquica do poder – teorias da sujeição.” Tradução R. Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica, 2017., p. 194). O supereu garante a reprodução em nível individual de normas discursivas hegemônicas baseadas em afirmações de algumas e no repúdio melancólico de outras expressões sexuais, pretendendo consolidar por repetição o poder vigente. Assim, o supereu

é instrumental na consolidação bem-sucedida da masculinidade e da feminidade [...] A melancolia da identificação de gênero que “responde” ao dilema edipiano deve ser entendida, portanto, como a internalização de uma diretriz moral interna, que adquire sua estrutura e energia a partir de um tabu externamente imposto. (Butler, 2003BUTLER, J. “Problemas de gênero – feminismo e subversão da identidade.” Tradução R. Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003., pp. 96-99)

Assim, expusemos o segundo nível de relação de Butler com a psicanálise, demonstrando a teoria freudiana sobre a melancolia de gênero e a formação ex-stática do eu por sucessivas identificações com a alteridade. Tais trechos pensados por Freud são, então, tomados como aliados de uma epistemologia feminista não binária justamente por demonstrarem como o sujeito é desde sempre cindido, já que as identificações homossexuais ocorreriam simultaneamente às heterossexuais: ambas mantêm sua presença ativa na psique, por mais que as heterossexuais tenham sido reconhecidas por si mesmo e pela sociedade e as homossexuais tenham sido rejeitadas pelo eu e alocadas no inconsciente, ganhando a forma de identificações melancólicas. Tais pensamentos são importantes para outros encaminhamentos teóricos de Butler, como, por exemplo, a relação com a noção de formação ex-stática e reconhecimento via a interpretação de Hyppolite sobre a dialética do senhor e do escravo da Fenomenologia do espírito hegeliana, ou ainda nas considerações de como os desejos heterossexuais e homossexuais se cruzam em seus respectivos circuitos, não estando separados em sua gênese nem expressão.

Dessa forma, podemos nos voltar para o terceiro eixo de debate com a psicanálise empreendido por Butler, o uso da contraposição interna entre Freud e Lacan, o que nos levará diretamente para o quarto eixo, a saber, a potência crítica da psicanálise que, ao se centrar na resistência inconsciente e corporal ao construtivismo discursivo, torna-se uma peça-chave na elaboração de uma outra epistemologia feminista.

Retornando à leitura que Butler faz de Lacan, lembremos que, para este último, a lei da linguagem marcaria a entrada dos sujeitos no simbólico, de forma que a norma da diferença sexual fundaria as posições binárias de gênero. Se já repassamos a crítica bluteriana ao posicionamento substancializado que o nível simbólico adquire em Lacan, agora avançamos ao salientarmos como Butler reforça a necessidade de historicização da norma simbólica discursiva ao criticar a própria distinção, produzida por este, entre as ordens simbólica e imaginária na diferenciação sexual. Uma vez que é a própria norma, ao ser repetida, que produz os corpos sexuais no momento mesmo de sua citação, não há como haver uma substancialização do simbólico: não há nada por trás dessa esfera que atue em sua força impositiva, mas é ao citarmos o conteúdo da lei que ela produz efeitos no corpo. Tal lógica volátil do que apenas aparenta ser um aparato repressivo estruturado mostra como, nos atos isolados de sua repetição, os discursos seriam inevitavelmente deformados, reordenados. O poder do simbólico lacaniano cai por terra e, com ele, desfaz-se também a hierarquia esboçada pelo autor entre o simbólico e o imaginário.

Tal decorrência tem um forte significado para a epistemologia feminista não binária justamente porque, para o autor, as identificações não heterossexuais se encontrariam fora do domínio da lei simbólica, estando situadas no terreno do imaginário. Isso quer dizer que, para Lacan, a possibilidade de resistências localizadas no imaginário

por vezes, contesta a esfera do simbólico, mas é finalmente rendida como ilegítima pela força da lei. [...] A homossexualidade não é de todo repudiada porque ela é considerada, mas sempre permanecerá vista como “entretenimento”, apresentada como a representação do “fracasso” do simbólico em sua tarefa de constituir de forma plena ou final seus sujeitos sexuados, porque também sempre é apresentada como uma rebelião subordinada que não tem poder para rearticular os termos da lei em vigência. (Butler, 2019BUTLER, J. “Corpos que importam – os limites discursivos do ‘sexo’.” Tradução V. Daminelli e D. Y. Françoli. São Paulo: N-1 edições, 2019., p. 197)

Com isso, ainda para Lacan, o fracasso da imposição simbólica em nível do imaginário

não altera em si mesma a estrutura da demanda que a lei faz [...], a lei – o simbólico – é deixada intacta mesmo quando se põe em questão sua autoridade para obrigar uma submissão estrita às “posições” que estabelece. [...] Embora a resistência constitua um escape temporário do poder constituinte da lei, ela não pode entrar na dinâmica por meio da qual o simbólico reitera seu poder e, assim, não pode alterar o sexismo e a homofobia estruturais de suas demandas sexuais. (Butler, 2019BUTLER, J. “Corpos que importam – os limites discursivos do ‘sexo’.” Tradução V. Daminelli e D. Y. Françoli. São Paulo: N-1 edições, 2019., p. 190)

A leitura de um simbólico performativo produzida por Butler desfaz a hierarquia entre simbólico e imaginário por esvaziar a “força de lei” substancial do simbólico lacaniano, o que permitiria a infiltração de elementos do imaginário na própria ordem simbólica. Assim, veríamos a ressignificação de sexualidades homossexuais reformulando parte das normas simbólicas, atravessando os circuitos de inteligibilidade hétero e homossexuais, permitindo a produção de corpos não binários. Com isso, não só a homossexualidade, em seu efeito imaginário corporal, poderia entrar no terreno simbólico discursivo da norma, mas também o faria alterando suas estruturas.

Para tanto, Butler baseia-se em uma leitura de Freud segundo a qual o eu poderia ser tomado como uma projeção da superfície corporal, configurando-se como uma morfologia imaginária, superfície que recebe inscrições normativas. Com isso, o eu não passaria de uma projeção espacial de um limite corporal, o que forneceria a sensação de contorno estável do eu – por mais que seja neste mesmo corpo “onde se materializam as contradições do gênero, que não deixam de permanecer em constante tensão” (Sabsay, 2012SABSAY, L. “De sujeitos performativos, psicoanálisis y visiones constructivistas” In: Soley-Beltran e Sabsay (eds.), 2012, pp. 135-169., p. 151).

Nesse sentido, o que se mostra como fantasioso não seria exatamente a homossexualidade imaginária que encontramos em Lacan; em tal lugar fantasioso, Butler coloca o corpo coeso e identitário de gênero e sexualidade unívocos. Nesse sentido, lembremos da frequente citação que Butler faz de Jacqueline Rose:

a dimensão crítica do inconsciente, o qual, como sede da sexualidade recalcada, ressurge no discurso do sujeito como a própria impossibilidade de sua coerência. Como destaca Rose muito claramente, a construção de uma identidade sexual coerente, em conformidade com o eixo disjuntivo do feminismo/masculino, está fadada ao fracasso; as rupturas dessa coerência por meio do ressurgimento inopinado do recalcado revelam não só que a “identidade” é construída, mas que a proibição que constrói a identidade é ineficaz (a lei paterna não deve ser entendida como uma vontade divina determinista, mas como um passo em falso perpétuo a preparar o terreno para insurreições contra ela). (Butler, 2003BUTLER, J. “Problemas de gênero – feminismo e subversão da identidade.” Tradução R. Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003., p. 51)

Assim, o inconsciente do desejo porta uma potencialidade crítica: aquilo que fora afastado do eu na formação sexual do sujeito em nome das normas masculinistas e heterossexistas acaba invariavelmente retornando do recalcado, denunciando a impossibilidade da coerência autoidêntica do sujeito, performando no terreno discursivo simbólico.3 3 Uma vez que, conforme o exposto, um dos nossos objetivos é o de desenvolver a hipótese que faz da psicanálise um modelo de confrontação crítica e subversiva de Butler relativamente aos feminismos binários que a antecederam, nosso texto se compromete a seguir a leitura que Butler faz de Lacan, que, em sua maior parte, se restringe a textos iniciais do psicanalista, notadamente os do Seminário 5 “As formações do Inconsciente”, de 1957-1958. Em sua leitura, ela se centra, juntamente com nomes como Gayle Rubin, Monique Wittig e Eve Segwick, na produção de uma crítica ao falocentrismo e à primazia do Nome-do-Pai na normalização simbólica do desejo em Lacan. Por isso, não incluímos em nosso texto os desenvolvimentos lacanianos posteriores, especificamente os dos Seminários 20 “Mais, ainda” (1972-1973) e 23 “O Sinthoma” (1975-1976), uma vez que estes não são diretamente confrontados pela autora. Isso não quer dizer que a teoria lacaniana que pensa as nomeações não mais em termos fálicos, mas em termos de gozo, não constitua considerações importantes relativamente ao papel subversivo da psicanálise em relação às produções sexuais. Podemos, inclusive, nomear este um dos pontos cegos da visão que Butler tem de Lacan. Esta seria a perspectiva de Fajnwaks, para quem “é apenas ao preço de uma grande deriva ou uma franca traição dos conceitos, de uma leitura mal orientada e de um desconhecimento determinado e decidido que se pode supor à psicanálise de orientação lacaniana uma defesa de normas ou de identidades heterocentradas” (2020, p. 18). Nesse sentido, há muito a ser dito. Para além da própria possibilidade da clínica psicanalítica como escuta da sexualidade desestabilizada, sabemos que Lacan deixa de situar a sexualidade a partir do simbólico, passando a pensar a teoria da sexuação a partir da não identidade ontológica que acompanha uma leitura do Real como lugar do impossível e contingente – esta última sendo uma leitura bastante próxima daquela produzida por Butler. Além disso, citamos ainda a teoria lacaniana dos quatro discursos desenvolvida no fim dos anos 1960, segundo a qual o autor designa o homem e a mulher como semblantes, que guarda traços de similaridade com a teoria butleriana da performatividade. Por isso, se nos limitamos a apenas citar em notas tais perspectivas de Butler com Lacan, é porque visamos debater a leitura (mesmo que incompleta) de Butler sobre a psicanálise, deixando para outra ocasião o desenvolvimento do ponto de vista lacaniano das “verdadeiras e falsas divergências” com as teorias queer.

E aqui delimitamos o aspecto subversivo da psicanálise, que compreende os conteúdos manifestos mediante a interpretação daquilo que não se mostra completamente presente. É nas fissuras das normas que se encontram as promessas de reorganização do discurso normativo e de uma epistemologia feminista não binária. As proibições impostas pelo poder produzem o que foi repudiado para o inconsciente. Esse inconsciente como abjeto porta uma potencialidade crítica, pois guarda em si tudo o que foi renegado na formação do eu e que permanece atuando como potência de subversão, forçando o fracasso da identidade, abalando possíveis estabilidades de gênero. Por isso, as performatividades de gênero também “reinstituem corpos sexuados de formas variáveis uma vez que atravessam as fronteiras de gênero. Ao cruzar essas fronteiras, tais identificações morfogênicas reconfiguram o mapeamento da própria diferença sexual” (Butler, 2019BUTLER, J. “Corpos que importam – os limites discursivos do ‘sexo’.” Tradução V. Daminelli e D. Y. Françoli. São Paulo: N-1 edições, 2019., p. 157).

Considerações finais

Em nosso texto, destacamos como nas epistemologias feministas binárias permanece atuante a matriz heterossexual via a construção discursiva que naturaliza os corpos a partir da compreensão de um sexo estável. Já a teoria queer, que introduz o paradigma não binário no interior da teoria feminista, promove um alargamento desta pelo questionamento do corpo como naturalmente dado: o sujeito feminista não precisa ser mais a mulher que nasceu com uma vagina, mas pode ser abarcado também pelas mulheres trans. Como diz Butler:

Penso que muitos entendem que, para o feminismo proceder como prática crítica, ele deve basear-se na especificidade sexual do corpo da mulher. Ainda que o sexo esteja sempre reinscrito como gênero, ainda se deve presumir esse sexo como ponto de partida irredutível para as várias construções sociais que deve sustentar. Tal suposição da irredutibilidade material do sexo parece ter legitimado e autorizado epistemologias e éticas feministas, assim como análises de gênero de diversos tipos. Em um esforço de substituir ou modificar os termos desse debate, gostaria de perguntar como e por que a “materialidade” se tornou um sinal, uma prova, de irredutibilidade. Ou seja, de que forma hoje a materialidade do sexo é entendida como algo que apenas carrega construções culturais e, portanto, não poderia ser também uma construção? (Butler, 2019BUTLER, J. “Corpos que importam – os limites discursivos do ‘sexo’.” Tradução V. Daminelli e D. Y. Françoli. São Paulo: N-1 edições, 2019., p. 62)

Com isso, a dicotomia entre feminino e masculino sofre um profundo abalo, o que levará a uma modificação na relação entre construtivismo discursivo e gênero, transformando também a epistemologia feminista.

Em nossa exposição, utilizamos trechos do debate que Butler trava com a psicanálise freudiana e lacaniana como um tipo de “caso modelo” no qual tais modificações epistemológicas e discursivas poderiam ser analisadas. A psicanálise mostra-se um terreno fértil para a passagem de uma teoria feminista binária para outra não binária por, de início, colocar-se como um dos principais alvos da “segunda onda” feminista, já que se mostra masculinista desde a sua origem freudiana, sendo concebida como um dos pilares de formação dos saberes contemporâneos sobre a sexualidade humana. Em segundo lugar, a psicanálise teria sido também mobilizada a favor da causa feminista, como vimos com a assunção, pelo que é conhecido como o French Feminism, do construtivismo linguístico em Lacan. Ao mesmo tempo, contudo, para Butler, tais feministas não teriam criticado a psicanálise o suficiente, por não atacarem a raiz corporal sexual essencializada que sustentaria a divisão binária entre seres humanos: o gênero feminino seria visto como aquilo que seria culturalmente construído e inscrito unilateral e ativamente por cima da materialidade do sexo, que aparecia, então, somente como uma natureza passiva. Tal ataque à substancialização do sexo teria sido produzido pela teoria queer, a exemplo de Butler, que insere a produção materializada do corpo sexual em uma genealogia histórica e cultural.

A proposta de desconstrução da categoria mulher, ou uma desidentificação com a figura feminina, permitirá a reconstrução de um sujeito do feminismo mais inclusivo:

a categoria das mulheres não se torna inútil com o exercício da desconstrução, são seus usos que deixam de ser reificados como “referentes” e ganham uma chance de abrir-se, de fato, para outras formas de significação que ninguém poderia prever de antemão. Certamente, é preciso ser possível não só usar o termo, [...] mas também sujeitar o termo a uma crítica que interroga as operações de exclusão e relações diferenciais de poder que constroem e delimitam as invocações feministas das “mulheres”. [...] É uma crítica sem a qual o feminismo perde seu potencial democratizante por se recusar a envolver-se com – fazer um balanço de, e se permitir transformar por – as exclusões que o colocam em causa. (Butler, 2019BUTLER, J. “Corpos que importam – os limites discursivos do ‘sexo’.” Tradução V. Daminelli e D. Y. Françoli. São Paulo: N-1 edições, 2019., pp. 63-64)

A concepção de agência que constrói os sujeitos “generificados” é transformada pelo conceito de performatividade, o que permite a análise das condições de surgimento e manutenção do agente, bem como o alcance de sua atuação possível. O conceito de performatividade pretende demonstrar como a força de lei das normas vigentes não passa de um vazio, que só se mostra hegemônico por repetições e citações. É mediante a performatividade que Butler analisa genealogicamente a construção dos corpos sexuais, o que leva a um posicionamento bastante original no interior do debate psicanalista feminista.

Ressaltamos que Butler não recusa a concepção de complexo de Édipo, como alguns autores importantes (Cossi e Dunker, 2017COSSI, R., DUNKER, C. “A diferença sexual de Butler a Lacan: gênero, espécie e família”. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, Vol. 33, 2017, pp. 1-8., por exemplo) defendem. A autora admite a centralidade de tal ideia na formação das sexualidades, dada a hegemonia das configurações familiares e determinações culturais hegemônicas. O que ela faz é tomá-lo para além de suas pressuposições tácitas, desnudando as imposições normativas por trás da naturalidade da heterossexualidade e centralidade fálica edípica. Demonstrar a gênese de tais ideias é suficiente para converter subversivamente o Édipo, já que permite situar os resultados do Édipo negativo homossexual que permanecem atuando no inconsciente, mesmo que melancolicamente identificados. Esta seria uma forma de atuar performativamente sob as normas hegemônicas edípicas, transformando subversivamente o centro teórico do masculinismo e heterossexismo na psicanálise em uma potência crítica, como uma brecha para a produção de uma psicanálise queer.

Por isso, a psicanálise lida por Butler torna-se uma aliada do feminismo não binário, ao auxiliar na demonstração da possibilidade de transgressão a cada instante da reinstauração da norma: “É quando todas/os/es nós repetimos gestos tidos como femininos ou masculinos que fundamentamos e ao mesmo tempo transgredimos as normas de gênero, indicando que a estrutura da norma comporta a sua transgressão ali mesmo onde depende da sua repetição” (Rodrigues, 2019RODRIGUES, C. “Para além do gênero: anotações sobre a recepção da obra de Butler no Brasil”. Em Construção, Nr. 5, 2019, pp. 59-72., p. 64). A desconstrução das materialidades corporais, mesmo sendo imaginária, infiltra-se nas grades simbólicas de inteligibilidade via a impossibilidade de total determinação do corpo, do desejo e do inconsciente. Isso acarreta o que Butler chama de uma crise produtiva na reiteração binária, heteronormativa e falogocêntrica dos estudos de gênero, evidenciando como a própria epistemologia feminista é um campo em disputa.

  • 1
    Entre aspas, pois se utiliza a expressão com muitas ressalvas.
  • 2
    Vale lembrar que a crítica ao falocentrismo da teoria freudiana remonta à primeira geração de psicanalistas mulheres, tais quais Hélene Deutsch, Karen Horney, ou ainda Ernest Jones, com as quais Freud debateu ainda em vida, citando-as com certa frequência em seus textos.
  • 3
    Uma vez que, conforme o exposto, um dos nossos objetivos é o de desenvolver a hipótese que faz da psicanálise um modelo de confrontação crítica e subversiva de Butler relativamente aos feminismos binários que a antecederam, nosso texto se compromete a seguir a leitura que Butler faz de Lacan, que, em sua maior parte, se restringe a textos iniciais do psicanalista, notadamente os do Seminário 5 “As formações do Inconsciente”, de 1957-1958. Em sua leitura, ela se centra, juntamente com nomes como Gayle Rubin, Monique Wittig e Eve Segwick, na produção de uma crítica ao falocentrismo e à primazia do Nome-do-Pai na normalização simbólica do desejo em Lacan. Por isso, não incluímos em nosso texto os desenvolvimentos lacanianos posteriores, especificamente os dos Seminários 20 “Mais, ainda” (1972-1973) e 23 “O Sinthoma” (1975-1976), uma vez que estes não são diretamente confrontados pela autora. Isso não quer dizer que a teoria lacaniana que pensa as nomeações não mais em termos fálicos, mas em termos de gozo, não constitua considerações importantes relativamente ao papel subversivo da psicanálise em relação às produções sexuais. Podemos, inclusive, nomear este um dos pontos cegos da visão que Butler tem de Lacan. Esta seria a perspectiva de Fajnwaks, para quem “é apenas ao preço de uma grande deriva ou uma franca traição dos conceitos, de uma leitura mal orientada e de um desconhecimento determinado e decidido que se pode supor à psicanálise de orientação lacaniana uma defesa de normas ou de identidades heterocentradas” (2020, p. 18). Nesse sentido, há muito a ser dito. Para além da própria possibilidade da clínica psicanalítica como escuta da sexualidade desestabilizada, sabemos que Lacan deixa de situar a sexualidade a partir do simbólico, passando a pensar a teoria da sexuação a partir da não identidade ontológica que acompanha uma leitura do Real como lugar do impossível e contingente – esta última sendo uma leitura bastante próxima daquela produzida por Butler. Além disso, citamos ainda a teoria lacaniana dos quatro discursos desenvolvida no fim dos anos 1960, segundo a qual o autor designa o homem e a mulher como semblantes, que guarda traços de similaridade com a teoria butleriana da performatividade. Por isso, se nos limitamos a apenas citar em notas tais perspectivas de Butler com Lacan, é porque visamos debater a leitura (mesmo que incompleta) de Butler sobre a psicanálise, deixando para outra ocasião o desenvolvimento do ponto de vista lacaniano das “verdadeiras e falsas divergências” com as teorias queer.

Referências

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  • BUTLER, J. “A vida psíquica do poder – teorias da sujeição.” Tradução R. Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Ago 2022

Histórico

  • Recebido
    28 Maio 2021
  • Aceito
    12 Fev 2022
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