Resumo
Este artigo apresenta o relato de uma pesquisa realizada no âmbito do Programa Interações, iniciativa voltada à superação dos efeitos das enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul em 2024. A pesquisa-ação teve como objetivo ressignificar os vínculos sociais afetados pela catástrofe, abrangendo as dimensões do Eu, do Outro, da Comunidade, dos Espaços e da Natureza. Fundamentado na Comunicologia Doltoniana, o programa buscou identificar e compreender as percepções de adolescentes de um município gaúcho sobre seus vínculos no contexto pós-enchente. A metodologia incluiu observação, grupos focais e entrevistas em profundidade. Os resultados revelam o imaginário social dos adolescentes - com destaque para angústias e esperanças - e mostram como suas elaborações simbólicas moldam a realidade e as relações interpessoais. O artigo enfatiza a importância de políticas públicas voltadas a essa faixa etária, considerando suas especificidades e o contexto de vulnerabilidade simbólica em que se encontram.
Palavras-chave:
Catástrofe; Imaginário; Adolescente
Abstract
This article presents the account of a research project conducted within the scope of the Programa Interações (Interactions Program), an initiative aimed at overcoming the effects of the floods that struck Rio Grande do Sul in 2024. The action-research project sought to reframe social bonds affected by the catastrophe, encompassing the dimensions of the Self, the Other, the Community, Spaces, and Nature. Grounded in Doltonian Communicology, the program aimed to identify and understand the perceptions of adolescents from a municipality in the state regarding their bonds in the post-flood context. The methodology included observation, focus groups, and in-depth interviews. The results reveal the adolescents’ social imaginary-highlighting both anguish and hope-and show how their symbolic elaborations shape reality and interpersonal relationships. The article emphasizes the importance of public policies targeted at this age group, considering their specificities and the context of symbolic vulnerability in which they find themselves.
Keywords:
Catastrophe; Imaginary; Adolescent
Resumen
Este artículo presenta una investigación desarrollada en el marco del Programa Interações (Programa Interacciones), iniciativa orientada a superar los efectos de las inundaciones que afectaron a Rio Grande do Sul en 2024. La investigación-acción buscó resignificar vínculos sociales impactados por la catástrofe, abarcando las dimensiones del Yo, del Otro, de la Comunidad, de los Espacios y de la Naturaleza. Basado en la Comunicología Doltoniana, el programa investigó las percepciones de adolescentes de un municipio del estado sobre sus vínculos en el contexto posinundación. La metodología incluyó observación, grupos focales y entrevistas en profundidad. Los resultados revelan el imaginario social de los adolescentes, destacando angustias y esperanzas, y muestran cómo sus elaboraciones simbólicas configuran la realidad y las relaciones interpersonales. El artículo resalta la necesidad de políticas públicas dirigidas a esta franja etaria, considerando sus especificidades y el contexto de vulnerabilidad simbólica en el que están insertos.
Palabras clave:
Catástrofe; Imaginario; Adolescente
1. INTRODUÇÃO
O objetivo deste artigo é apresentar um relato de uma pesquisa promovida pelo Programa Interações, destacando seus principais resultados. Criado em maio de 2024, o Programa visou contribuir, por meio da pesquisa-ação, para a superação das emergências causadas pelas enchentes que afetaram o estado do Rio Grande do Sul.
Pela parceria entre a ComCrianças: Comunicação com Crianças e o Grupo de Pesquisa Imaginário e Cotidiano do PPGCL da Unisul, com o apoio da Prefeitura Municipal e da Secretaria de Saúde, Assistência Social e Habitação do município de Colinas, RS, a iniciativa contou com o financiamento coordenado pela empresa Conexões e Redes, de Santa Catarina, que atuou para promover ajuda humanitária aos gaúchos.
Em momentos de catástrofes, interações e vínculos são profundamente desafiados, acionados, entrelaçados, fortalecidos e mesmo desconectados. O principal objetivo do Programa Interações foi promover a ressignificação desses vínculos, compreendidos em diferentes dimensões: o Eu (consciência de si), o Outro (relações de proximidade, diferenças e semelhanças), a Comunidade (dinâmicas coletivas e suporte social), os Espaços e Territórios (as novas relações com o espaço e a necessidade de reconfiguração territorial) e a Natureza (conscientização ecológica e climática, além da compreensão das causas e consequências desses eventos extremos). A fundamentação técnico-científica da iniciativa se insere na perspectiva da Comunicologia Doltoniana, proposta teórico-prática desenvolvida por Juliana Tonin (2024), que reconhece o sujeito como interlocutor, busca uma escuta atenta e respeitosa, e valoriza a expressão simbólica bem como a promoção de vínculos saudáveis.
Para o desenvolvimento do Programa, realizado diretamente no município gaúcho parceiro, a municipalidade disponibilizou servidores de suas equipes de Saúde e Educação, além de abrir espaços para observação e diálogos in loco, favorecendo a identificação do ponto focal ideal para o projeto, uma vez que havia possibilidade para atuação intergeracional. A hipótese inicial era a de que o trabalho com adolescentes poderia contribuir e reverberar nas faixas etárias anteriores e posteriores, uma vez que o Programa dinamizaria duas etapas com esses sujeitos: uma de pesquisa e outra de ação.
Os principais resultados da pesquisa com os adolescentes serão compartilhados neste artigo, com o objetivo de estimular a reflexão e a compreensão sobre o que evoca seu “universo” a partir de suas próprias vozes, além de oferecer pontos-chave para a criação e a promoção de políticas públicas específicas para essa faixa etária. Podemos afirmar que se trata de uma pesquisa de/sobre o imaginário social de um grupo, uma vez que as elaborações imaginárias, ou seja, o universo das configurações simbólicas, organizam o real, o cotidiano, e modulam a visão de si e as relações com o outro e com o mundo. Posto isso, é possível compreender como cada época ou grupo lida com seus temores e esperanças, narra suas angústias e alegrias. Em síntese, há um caráter simbólico da vida social que representa sua unidade de forma sensível aparente nas narrativas, criando uma aura coletiva (Moraes, 2019).
2. CATÁSTROFES: O EXTRAORDINÁRIO NA VIDA COTIDIANA
Edgar Morin (2003, p. 64) propõe uma perspectiva relevante para pensar catástrofe.
O big bang é na verdade uma subnoção que esconde em uma onomatopeia de grande bum a problemática de uma formidável transformação. Seguramente, o interesse do big bang é de nos evocar uma explosão térmica. Sua insuficiência é de reduzir a origem à dimensão única de explosão térmica. É preciso, portanto, ultrapassar o big bang em uma noção verdadeiramente teórica: a noção de catástrofe.
A partir do sentido do termo catástrofe atribuído à René Thom, Morin enfatiza a ampliação de seu sentido, antes concentrado em aspectos geofísicos e climáticos tradicionais, para evocar um entendimento topológico, mantendo a essência de ser um evento que congrega simultaneamente desintegração e gênese. Conforme argumenta, uma catástrofe carrega em si a ideia de um Acontecimento (mudança/ruptura de forma, em condições de singularidade irredutível) e de cascata de acontecimentos (2003, p. 64).
Quando analisa a relação do homem com a natureza, Morin destaca que “o homem alçou-se ao topo da natureza, mas permanece no interior da natureza [...], tornou-se o subjugador global da biosfera, mas por isso mesmo subjugou-se a ela”. E agora se está diante de uma “problemática ecológica” local, regional, nacional, continental, pois diz respeito à biosfera da humanidade (2001, p. 95). Segundo o vigésimo relatório do Fórum Econômico Mundial, publicado em 2025, o risco que lidera a perspectiva dos próximos 10 anos é justamente o das catástrofes climáticas. Elas deixam de ser risco para um futuro distante e passam a configurar uma realidade urgente (Elsner et al., 2025).
Em maio de 2024, o Rio Grande do Sul enfrentou uma catástrofe climática provocada por enchentes. Segundo levantamento do governo do Estado, dos 497 municípios do estado, 478 foram afetados, resultando em mais de 2 milhões de pessoas atingidas, 806 feridos, 27 desaparecidos e 183 mortes confirmadas (Rio Grande do Sul, 2025). Sem dúvidas, foi um Acontecimento que provocou uma cascata de acontecimentos. Não apenas houve perdas humanas, materiais, laborais, pessoais e coletivas, com efeitos complexos e diversos em cada localidade; mas também emergiu a solidariedade, expressa por meio de doações, criação, adaptação e promoção de ações, projetos e programas de ajuda humanitária em múltiplos níveis.
No início das atividades do Programa, no dia 24 de junho, o pequeno município de 2.530 habitantes1 enfrentava sua quarta enchente em menos de um ano. Estava na fase de atenção para a “cascata de acontecimentos” decorrentes da enchente de maio, a maior de todas. A cidade, cuja economia é predominantemente voltada à agricultura e à pecuária - com destaque para a criação de gado leiteiro, suínos, frangos, aves poedeiras e o cultivo de milho e soja - obtém mais de 80% de sua receita de ICMS a partir dessas atividades. As enchentes afetaram diretamente 56% do seu território. Embora o município não tenha registrado desaparecimentos ou óbitos, as perdas estruturais foram profundas.
Devido a esse contexto, a primeira etapa do Programa - a fase de pesquisa - foi concluída em dezembro de 2024, mas a segunda etapa - a fase de ação - precisou ser suspensa. Observou-se que, embora uma ação fundamentada nesses princípios teórico-metodológicos seja crucial para grupos de adolescentes, ela se mostra inoperante para períodos de contingência e de reconstrução após desastres. Ademais, houve significativa sobreposição de tensões em função do período eleitoral no município. Concluímos, com base no cenário e nos dados da pesquisa, que, em um contexto de pós-catástrofe, seria recomendável implementar ações direcionadas aos profissionais das equipes de saúde e assistência, entre outros. Para os adolescentes, mais diretamente, sua implementação efetiva se tornaria mais adequada e viável em períodos de “normalidade”, a fim de potencializar vínculos e resiliência de forma preventiva, antes de catástrofes.
3. IMAGINÁRIOS DA ADOLESCÊNCIA
Segundo Groppo (2017), a sociologia da juventude desenvolve teorias sobre jovens e juventudes desde o século passado. Atenta às complexas interações entre ciência, educação e políticas públicas, ela analisa as contribuições dessas áreas para as concepções de juventude derivadas de teses e discursos que orientam políticas sociais, instituições e alimentam o senso comum. Além disso, contempla a identificação de tensões e influências entre diversos campos do saber, como as ciências sociais, a psicologia, a pedagogia e o serviço social.
Conforme Groppo (2017, p. 10):
A principal característica atribuída à juventude é a de ser uma transição entre a infância e o mundo privado e as concepções pré-lógicas e a vida adulta e o mundo público e as concepções racionalmente legitimadas: a juventude interessa menos pelo que ela é, e mais pelo que será ou deveria ser quando seus membros se tornarem adultos.
Groppo evoca dois grandes temas que orbitam as mentalidades sobre as juventudes: a socialização e a delinquência. Ambos os temas decorreriam dos momentos em que as pessoas ampliam suas socializações, correndo “risco de desenvolver comportamentos anômicos, ingressar em grupos desviantes e protagonizar disfunções sociais” (2017, p. 10). Em torno desses aspectos, consolidam-se as teorias tradicionais da juventude.
Contudo, a literatura sociológica contemporânea propõe uma renovação do olhar. Ela constata que os marcadores tradicionais da entrada na idade adulta: saída da escola, entrada no mercado de trabalho, união conjugal, saída da casa dos pais ou responsáveis e experiências de maternidade ou paternidade; “implodiram”. Tornaram-se “labirínticos e reversíveis” (Groppo, 2017, p. 11). Assim, de um “processo de transição” concebido como linear, tem-se uma socialização múltipla e ativa. A passagem da modernidade para a pós-modernidade desempenha papel essencial nesse sentido, uma vez que a percepção de tempo se transforma. As mudanças passam a parecer e a ser rápidas (econômicas, tecnológicas, políticas e culturais), e o passado deixa de se repetir naturalmente no presente. Surgem novos ideais, valores e considerações sobre experiências significativas. Por isso, a adolescência baseada num modelo de socialização de transmissão de experiências entre gerações com a finalidade de “domesticar o futuro” cede espaço para um modelo baseado em aprendizados entre grupos etários. Frente a um “mundo mutante, jovens e adultos se veem diante de desafios e dilemas semelhantes, ainda que enfrentados com diferentes experiências de vida acumuladas” (2017, p. 11).
Groppo (2017) identifica que tanto as correntes sociológicas tradicionais quanto as contemporâneas influenciam as políticas públicas brasileiras, assim como os programas sociais e educacionais formais e não formais atuais. Ao mesmo tempo em que, de um lado, há crítica de noções limitadas sobre as juventudes; por outro, há manutenção do alinhamento com concepções tradicionais. As políticas públicas e as instituições socioeducativas sociais do Brasil operam em dois extremos: a juventude como problema social e os jovens como sujeitos sociais. Dessa forma, consolidam-se imagens da adolescência que permeiam os discursos e as práticas escolares, prevalentemente voltadas para temas como perigos, drogas, promiscuidade e violência.
Para Groppo (2017), a imagem central que predomina, explícita ou implicitamente, nas ações e políticas é a do jovem como problema - a chamada “juventude perigosa”. Consequentemente, muitos programas teriam surgido com o objetivo de canalizar a energia dessa “juventude perigosa”.
Já a imagem do jovem como sujeito social estimula ações que buscam ouvir, compreender e valorizar suas vozes, reconhecendo sua importância na escola, no trabalho e na política. Todavia, essa perspectiva se desdobra em duas vertentes. A primeira é a do protagonismo juvenil, conceito originado no mundo empresarial para incentivar os jovens a realizarem ações comunitárias, como varrer e pintar escolas, conforme exemplifica Groppo (2017, p. 12). Nessa perspectiva, os jovens são considerados em aspectos secundários das políticas ou projetos, permanecendo excluídos do campo decisório, como, por exemplo, na avaliação da necessidade dessas mesmas ações. A segunda vertente é a do jovem reconhecido como cidadão ativo e participativo. Contudo, o autor considera que essa abordagem ainda reflete mais uma postura teórica do que uma prática metodológica e ética, especialmente no cotidiano. Isso exige a capacidade de refletir e considerar posições e ações, configurando um processo de aprendizagem que demanda três esforços: autorreflexão, distanciamento e autocrítica.
Para Groppo (2017), a despeito de ser oriunda de teorias tradicionais a concepção de adolescência como fase de transição figura como um meio termo entre os polos. Essa visão tende a ser hegemônica nos contextos escolares e, quando combinada com a imagem da juventude-perigo, reforça o poder das instituições e dos adultos sobre os jovens, muitas vezes tratados como seres vulneráveis, incapazes, incompletos ou em formação. Ou seja, os mesmos aspectos que a Sociologia da Infância evoca em relação à compreensão do que é ser criança continuam a se manifestar nas juventudes.
Bourdieu (1983, p. 2) aponta estereótipos historicamente atribuídos à adolescência, também presentes na filosofia, especialmente aqueles que a associam ao amor, à transição para a maturidade e à ambição. Contudo, destaca que há complexas diferenças entre idade social e idade biológica:
Considerar de fato os jovens como se fossem uma unidade social, um grupo constituído, dotado de interesses comuns, e relacionar estes interesses a uma idade definida biologicamente já constitui uma manipulação evidente. Seria preciso pelo menos analisar as diferenças entre as juventudes [...]”.
Para Bourdieu, empregar um termo único que englobe todos os jovens é usar a linguagem de forma abusiva, pois deixa de captar diferentes tipos de existência. Alternativamente, comparar condições de vida, mercado de trabalho, orçamento do tempo, coerções econômicas, família, alimentação, moradia, lazer, bem como diferenciar jovens que já trabalham daqueles que são estudantes, possibilita uma compreensão mais ampla. Além disso, o autor enfatiza a importância de perceber uma tensão entre dois polos que produzem diferentes sentidos para a juventude: o de ser adulto para algumas coisas e criança para outras. Assim, os jovens “jogam em dois campos”, vivendo um “status temporário, meio-criança, meio-adulto” que, segundo ele, é um fato social relevante: “parece que um dos efeitos mais poderosos da situação de adolescente decorre desta espécie de existência separada que os coloca socialmente fora do jogo” (1983, p. 3).
Para Pais (1990), culturas juvenis costumam ser associadas a um conjunto de valores, símbolos, normas e práticas. Todavia, elas podem ser tanto inerentes à fase da vida como derivados e assimilados, seja de gerações anteriores, ou de trajetórias de classe social. Para ele, há diferentes sentidos para o termo juventude quando analisados os comportamentos cotidianos, modos de pensar e agir, perspectivas de futuro, representações, identidades sociais. O autor nomeia essas diferenças como paradoxos da juventude. Definir uma cultura juvenil, para ele, é “como qualquer mito, uma construção social que existe mais como representação social do que como realidade. Alguns jovens reconhecer-se-ão parte integrante desse mito, outros não” (p. 140-145).
Bourdieu, ao analisar a condição estudantil e a ampliação do acesso ao ensino, identifica que esse processo contribui para um distanciamento entre a juventude e o mundo adulto. Esse afastamento se ancora em uma concepção de adultidade vinculada ao ingresso no mundo do trabalho e à conquista da autonomia econômica. Assim, ser reconhecido como adulto passa a estar associado ao trabalho e à obtenção de renda, gerando efeitos distintos conforme a classe social: desde o mal-estar das classes populares diante da escolaridade prolongada - que desejam sair da “situação de estudante” para ingressar no mundo adulto - até o acesso a “todos os diplomas que se possa imaginar” por parte dos adolescentes das classes burguesas (1983, p. 5).
Ainda assim, há paradoxos:
Pode-se estar muito bem no sistema escolar para não fazer parte do mundo do trabalho, sem no entanto estar tão bem para encontrar um trabalho em função dos títulos escolares. [...]. Pode-se estar situado de forma muito infeliz no sistema escolar, sentir-se completamente estranho a ele e apesar de tudo participar desta espécie de subcultura escolar, dos grupos de alunos que se encontram nos bailes, que têm um estilo de estudantes, que estão suficientemente integrados nesta vida a ponto de se sentirem afastados de suas famílias (que eles já não compreendem e que não os compreendem mais. “Com as oportunidades que eles têm!”) e, por outro lado, ter uma espécie de sentimento de confusão, de desespero, diante do trabalho. De fato, esta separação em relação ao próprio círculo é acompanhada, apesar de tudo, pela descoberta confusa daquilo que o sistema escolar promete a alguns; a descoberta confusa, mesmo através do fracasso, de que o sistema escolar contribui para reproduzir os privilégios (Bourdieu, 1983, p. 5-6)
Esse cenário suscita um questionamento mais amplo sobre o papel do sistema escolar na estruturação das trajetórias juvenis e revela a coexistência de distintos sistemas de aspirações. Aqueles formados na época dos pais, quando certos bens, como possuir um carro, representavam um privilégio extraordinário, “tornaram-se estatisticamente banais”, destaca Bourdieu. O autor considera que muitos conflitos entre gerações decorrem das diferenças entre esses sistemas de aspirações (p. 7).
Groppo (2017, p. 13), por sua vez, destaca tendências positivas:
Primeiro, o apelo de sociólogos da juventude e da educação para um diálogo mais aberto e franco entre as escolas de ensino médio e as culturas juvenis. Por meio deste diálogo, os educadores poderiam deixar de ver as vivências dos jovens para além da educação formal como mera barreira ao aprendizado ou desvio, bem como poderiam considerar a riqueza das criações juvenis como veículo para a construção de conhecimentos escolares mais significativos. Segundo, pelos mesmos pensadores, mas também reconhecida, ao menos retoricamente, pelos líderes políticos: a importância das vozes ativas dos sujeitos jovens na construção das políticas sociais para a juventude, em particular, e na vida pública, em geral.
Pais (1990) acrescenta que a “cultura juvenil requer um espaço social próprio. As carências e dificuldades nos domínios da habitação, do emprego e da vida afetivo-sexual podem converter-se numa fonte aguda de conflitos e problemas” (1990, p. 142).
Segundo Groppo (2017), com o surgimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 1990, inicia-se no Brasil uma nova concepção mobilizada por redes jurídicas e institucionais: a que reconhece crianças e adolescentes como sujeitos de direitos. Embora ressalte a necessidade de diferenciar crianças, adolescentes e juventudes, ele argumenta que isso representa um importante avanço para um projeto civilizatório.
De acordo com o ECA, a infância encerra-se aos 12 anos, e a adolescência vai dos 12 aos 18 anos. Contudo, é possível segmentar a adolescência propriamente dita entre 12 e 14 anos, reservando o período dos 15 aos 17 anos para a juventude. Esses recortes buscam diferenciar a fase da puberdade, mais próxima da infância, daquela de maior interação com o mundo adulto. No Programa Interações, todavia, adotamos o termo “adolescentes” para todos os entrevistados, com idades entre 13 e 17 anos, pois é assim que eles reconhecem e nomeiam essa fase da vida.
4. ONDE ESTÃO OS ADOLESCENTES?
Embora a municipalidade contasse com projetos voltados ao público adolescente, a situação emergencial levou à suspensão dessas iniciativas, fazendo com que muitos jovens revivessem a experiência de “ficar em casa” e de “aulas on-line” - em uma dinâmica que remete à pandemia de 2020. Diante desse contexto, a pesquisa foi direcionada aos 192 indivíduos de 13 a 17 anos residentes no município.
A metodologia adotada, de abordagem qualitativa, envolveu diferentes técnicas de coleta de dados. Realizaram-se grupos focais com 28 adolescentes matriculados no 8º e 9º anos do Ensino Fundamental em duas escolas - uma municipal e outra estadual - o que representa aproximadamente 15% da população-alvo. Além disso, foram realizadas entrevistas em profundidade com seis adolescentes desses grupos, que aceitaram participar de conversas mais individualizadas.
Com o intuito de compreender o contexto mais amplo das interações e vínculos no município pós-catástrofe, também foram conduzidas entrevistas em profundidade com o prefeito e com os secretários das pastas de Saúde; Assistência Social e Habitação; Educação, Cultura, Turismo e Desporto; Obras, Viação, Serviços Urbanos e Trânsito; e Administração e Fazenda, bem como com as diretorias das duas escolas participantes.
Complementarmente, promovemos uma roda de conversa com os adolescentes dos 8º e 9º anos e realizamos incursões etnográficas na comunidade, cujos registros foram sistematizados no diário de campo das pesquisadoras. Todos os participantes assinaram os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido, assim como o Termo de Ciência e Concordância para a realização da pesquisa, emitido pela Prefeitura Municipal.
A partir da análise dos dados, destacamos três pontos-chave emergentes como resultados centrais da pesquisa: o isolamento, as percepções sobre ser adolescente e a relação com a escola e o mundo do trabalho.
4.1 ISOLAMENTOS
A pesquisa revelou um halo multifacetado de isolamento entre os adolescentes, manifestado em diversos aspectos. A partir da observação e análise dos dados, foi possível identificar, em um primeiro nível, percepções frequentemente segmentadas desse grupo, definidas segundo critérios como ano escolar, nível de ensino, escola frequentada, inserção no mercado de trabalho e como participante de um grupo geracional específico.
Em um segundo nível, as mudanças nas atividades favoreciam o contato com alguns adolescentes e o distanciamento de outros, determinado pela rotina de presencialidade escolar ou não. Dessa forma, os adolescentes do município deixavam de ser vistos como um todo e eram classificados conforme seu ano escolar. Assim, a escola foi identificada como o espaço-chave para acessá-los, evidenciando a ausência de outro espaço coletivo ou instituição onde pudessem ser encontrados.
Dois espaços passaram a ser centrais para os adolescentes: a casa (individual e familiar) e a escola (coletivo e social). Acompanhamos a atuação das equipes de saúde, que tinham como objetivo oferecer apoio socioemocional a esse grupo, identificando dificuldades, devido, em parte, à interdependência com as atividades escolares. O sucesso dessa iniciativa foi alcançado apenas com poucos grupos.
Em um terceiro nível, após a realização de rodas de conversa com adolescentes do 8º e 9º anos e a proposta da fase de ação com a sistematização dos encontros do Programa, os estudantes inicialmente aderiram à proposta durante as conversas, indicando dias e horários mais favoráveis e assinando uma lista de interesse. Contudo, quando a mobilização efetiva para o início das atividades foi realizada, a maioria desses estudantes cancelou sua participação, restando apenas um interessado. A equipe relatou uma justificativa frequente: “Não queremos mais falar sobre as enchentes”.
Assim, compreendemos que o isolamento se manifesta de duas formas: uma sistêmica e outra autodeterminada, ambas acentuadas pelas condições adversas do pós-catástrofe e seus impactos na vida dos adolescentes. Além disso, a tentativa de ação do Programa foi diretamente associada à temática das enchentes, o que gerou desconforto.
A pesquisa investigou esse fenômeno e revelou dois aspectos fundamentais: (a) a recusa em falar sobre as enchentes funcionou como um mecanismo de proteção diante da limitação em compreender a catástrofe apenas como perdas materiais; e (b) a exaustão e o excesso de atividades levaram os adolescentes a priorizar o lazer e o entretenimento em detrimento do engajamento em alguma ação, sem interesse em “fazer revoluções”. Havia um pedido implícito por tranquilidade, tornando qualquer plano que envolvesse “sacrifício em nome de uma causa” inoperante, tanto física quanto emocionalmente.
Assim, a percepção comum de que os adolescentes, por “natureza”, isolam-se, confirmou-se durante a entrada em campo, motivada de forma convergente por fatores sistêmicos e autodeterminados. A concepção de que os adolescentes são “rebeldes” ou “revolucionários”, por sua vez, não se confirmou, já que esse grupo almejava uma vida cotidiana simples, regular e repetível. Pode-se interpretar que as experiências de catástrofes sanitárias e climáticas vividas na infância tenham despertado a necessidade de buscar “normalidade e previsibilidade”, em vez de promover mudanças ou efervescências na ordem estabelecida. A percepção que esses adolescentes têm de si mesmos é a de que não dispõem de uma “zona de conforto”, em um sentido amplo.
Essas constatações dificultaram a implementação da ação, mas, ao mesmo tempo, tornaram-se dados significativos para os resultados da pesquisa. Seja em casa ou na escola, o isolamento social dos adolescentes revelou, por um lado, o poder da estrutura institucional sobre a vida cotidiana e, por outro, a fragilidade das suas interações nesse contexto. Além disso, evidenciou seus desejos de definir e consolidar cenários de normalidade e estabilidade na vida.
4.2 SER ADOLESCENTE
Para o grupo de adolescentes, ser adolescente é uma definição complexa e muitas vezes confusa: “não sei se a gente já é adolescente [...] a gente tem mais responsabilidade…” (8º EF, 2024). A associação da adolescência ao aumento das responsabilidades é uma percepção comum entre todos os participantes, geralmente apontada em comparação com a infância e com a iminente chegada à vida adulta:
[...] Acredito eu que todo mundo aqui, quando era criança, pensava em ser adolescente e tal, e a gente não vê isso, ‘ah, amanhã eu vou virar adolescente’, não é isso. Tu vai adquirindo isso, e quando tu vê, não é o mar de rosas como a gente pensava na infância. (9º EF, 2024).
[...] Ser criança é a parte que tu quer explorar o mundo, que tu quer brincar, que tu quer aprender, que tu quer se sentir como uma pessoa, que tu quer sentir como é que tu aproveita bem a vida, como é que tu pode fazer a sua infância ser feliz. Assim, como é que tu seja bem feliz. Agora, a vida adulta é…[...] (9º EF, 2024).
[...] Eu sou até agora um adolescente. Daí... As pessoas também julgam muito. Não tem tempo! [...] (8º EF, 2024).
Ser adulto… a parte boa é que tu é responsável por si mesmo. A parte ruim é que tu é responsável por si mesmo. (8º EF, 2024).
As meninas do Ensino Fundamental indicaram que a adolescência começa com a menarca e está associada ao início de turbulências emocionais consideradas tipicamente femininas. Já os meninos não associaram, em momento algum, mudanças corporais ou sinais da puberdade para caracterizar a adolescência. Apenas um adolescente, de 17 anos, mencionou que a mentalidade comum entre seus pares é a prática de sexo sem relacionamento afetivo com as meninas, atitude que pessoalmente criticou.
Os jovens que participaram da pesquisa compartilham uma visão tradicional de gênero e papéis sociais. Eles manifestaram concordância e expectativas relacionadas a esses papéis: para o homem, ser pai, sustentar e proteger; para a mulher, ser mãe, cuidar e educar. Ao refletirem sobre questões de gênero ligadas à sexualidade, indicaram uma percepção de perda de referenciais atuais, atribuindo à tecnologia o papel de disseminação dessas ideias:
Eu sabia que eu era homem, que eu ia namorar com uma menina. Tipo, hoje em dia uma criança de 3 anos, ela abre o celular dela, vai ter o vídeo de um homem fantasiado de mulher, quando o homem é fantasiado de outro. O que que as crianças vão pensar, sabe? (2º EM, 2024).
Você vai falar o que você acha de sexual (2º EM).
Os adolescentes que participaram da pesquisa demonstram, além da percepção de estarem vivenciando uma fase de transição no ciclo da vida, a consciência de pertencerem a uma transição geracional, marcada pela passagem de uma era analógica para a digital:
Eu acho que muito hoje em dia também se descobrem mais novas doenças. Porque antigamente, a gente brincava na terra, brincava de chuva, na chuva uma monte de coisa, a gente criava imunidade. Agora as crianças não, elas só ficam dentro de casa (2º EM, 2024).
Hoje em dia é muito difícil, tipo, querer brincar. Nossa, era todo dia, eu e outro colega meu. [...]. Cara, todo dia nós jogávamos bola. Todo dia, quase. (3º EM, 2024).
E hoje em dia não brinca ninguém. Eu brinquei com a pessoa todo dia, era verão, nós ficávamos lá brincando bola (2º EM, 2024).
Eu acho que a gente é a última geração que não teve contato com o celular muito antes (2º EM, 2024).
Em seus relatos, afirmam que passam mais tempo em casa entretidos com dispositivos móveis, em vez de brincar na rua. Eles não mencionam questões como a violência urbana, provavelmente porque o pequeno município não apresenta índices ou experiências que tornem essa questão relevante no território.
Jovens do Ensino Médio revelam outros elementos que compõem a fase:
Comparar com outras pessoas, tem mais, tem menos, eles conseguiram ir para a cidade, eles não conseguiram... (2º EM).
Exatamente, a comparação é a pior coisa que tem agora (1º EM).
A vida começa a ser injusta agora. A vida é injusta (2º EM).
Quando é pequeno, calma, [...] A vida começa a ser dura, não injusta. (2º EM).
Esses adolescentes manifestam um princípio de consciência de classe, percebendo diferenças educacionais, profissionais, além das distinções geográficas e territoriais entre eles e seus futuros. Eles demonstram uma percepção das desigualdades, embora limitada às suas experiências pessoais, sistemas de aspirações e trajetórias familiares. Contudo, não operam por meio de autoclassificações dicotômicas, como privilegiados versus vítimas ou superiores versus inferiores. Para eles, a motivação reside na busca por uma vida estável, pautada em seus valores. Em vez de discursos centrados em injustiças, evocam sentimentos pessoais e coletivos de medo, gerados pela transição para a vida adulta e pelo cenário de incertezas.
Eu tenho medo. (2º EM, 2024).
Eu acho que é. (2º EM).
Eu também. É só o medo de ser assim. Eu não acho que é assim (3º EM).
Eu não tenho medo. Mas eu tenho uma responsabilidade (2º EM).
Medo, insegurança, consciência das responsabilidades e frustrações típicas da fase de transição entre a infância - entendida como um período de alegrias e liberdade - e a vida adulta - marcada por tarefas, trabalho e falta de diversão devido à necessidade de garantir a sobrevivência - caracterizam a compreensão que esses jovens têm de si mesmos. Majoritariamente filhos de agricultores e moradores da zona rural, eles possuem consciência de uma diferença significativa em relação aos seus pais, especialmente pelo acesso à Educação e pela conclusão do Ensino Médio, o que influencia suas relações com a escola e suas projeções para o mundo do trabalho.
4.3 ESCOLA E MUNDO DO TRABALHO
A roda de conversa com os adolescentes do 8º e 9º anos do Ensino Fundamental revelou aspectos importantes sobre sua relação com a escola. A análise identificou dois aspectos desfavoráveis predominantes, seguidos por aspectos favoráveis.
O primeiro ponto negativo refere-se à percepção dos adolescentes sobre a falta de voz e escuta por parte dos professores e da administração escolar. Eles manifestaram uma sensação generalizada de exclusão, destacando que suas opiniões e ideias não são suficientemente valorizadas. O desejo por maior participação nas decisões escolares foi frequentemente reiterado. Expressões como “dar mais voz aos alunos” e “escutar a opinião dos alunos” foram comuns, evidenciando um apelo claro por uma educação mais democrática e inclusiva, na qual as contribuições dos estudantes sejam efetivamente consideradas nas mudanças e melhorias da escola.
O segundo ponto desfavorável relaciona-se diretamente à sobrecarga de tarefas escolares, que se revelou uma grande fonte de frustração entre os jovens. Confirmada nos grupos focais, onde adolescentes estimaram realizar cerca de 60 tarefas por mês, essa rotina intensa contribui para um elevado nível de exaustão física e mental. Essa situação gera também conflitos familiares, principalmente porque seus pais, em sua maioria agricultores com baixo nível de escolaridade, não compreendem o impacto dessa carga de trabalho escolar. Entre eles, prevalece a ideia de que “escola não cansa”, enquanto o cansaço físico por “trabalhos braçais” é reconhecido. Os jovens destacam esse descompasso, já que seu cansaço é predominantemente mental e emocional.
A sobrecarga é agravada pela rotina doméstica, pois todos os adolescentes participantes auxiliam nas tarefas de casa - limpeza, preparo de refeições, cuidados com a família, plantações e animais. Muitos mantêm vínculo com o mercado de trabalho, seja formal ou informalmente, intensificando a sensação de falta de tempo, frequentemente associada à transição para a vida adulta. Eles veem o excesso de tarefas como um reflexo das futuras responsabilidades, encarando essa exigência como uma preparação inevitável para o futuro.
Esse contexto é alvo de ironia por parte dos jovens, ao refletirem sobre as recomendações voltadas à adolescência, como evitar álcool, drogas e riscos diversos: “a gente nem tem tempo de usar drogas nesta cidade!”, seguido de muitas risadas. Além da associação entre vida adulta e excesso de atividades, há uma conexão direta entre a rotina escolar e o mundo do trabalho.
Os aspectos favoráveis revelam uma visão otimista quanto ao papel da escola em suas vidas. O primeiro envolve o desejo por uma educação de qualidade, com ênfase na valorização da formação docente e na oferta de cursos técnicos, considerados essenciais para prepará-los para o futuro. Também mencionam a necessidade de ampliar e diversificar o acervo da biblioteca, buscando tornar o ambiente escolar mais estimulante.
De modo enfático, destacam a importância da oferta de atividades de entretenimento, arte, esportes e viagens sociointegrativas, para que a escola se configure como um espaço capaz de promover equilíbrio e bem-estar. Para esses adolescentes, a escola não deve ser apenas um local de aprendizado acadêmico, mas também um ambiente que proporcione momentos de lazer e descontração, fundamentais para o desenvolvimento integral.
Outro aspecto favorável em relação à escola decorre da percepção de que ela funciona como espaço de preparação para o mundo do trabalho. Embora apenas dois adolescentes tenham manifestado o desejo de cursar uma faculdade, a maioria reconhece nos cursos técnicos e de empreendedorismo uma importante via para sua formação profissional. Para eles, empreendedorismo não está necessariamente ligado à exigência de ensino superior, mas sim à criação de produtos e serviços, visando abrir um comércio próprio ou dar continuidade às atividades familiares, como a agricultura.
As aspirações desses jovens concentram-se em realizar uma atividade de que gostam, receber uma remuneração adequada e, principalmente, conquistar mais tempo para coisas simples, como dormir ou ter um momento para si mesmos.
Em síntese, os adolescentes apresentam uma visão multifacetada da escola e do mundo do trabalho: desejam mais voz, reconhecimento e uma escola inclusiva, ao mesmo tempo em que veem a escola como espaço fundamental para a preparação para o futuro. Também ressaltam a importância da diversão, que tende a diminuir significativamente na transição da infância para a vida adulta, período em que se percebem como estando no meio do caminho.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este texto apresenta um panorama de uma pesquisa conduzida pelo Programa Interações, centrada nas experiências e percepções de adolescentes de um município do Rio Grande do Sul afetado pelas enchentes de 2024. A investigação, de abordagem qualitativa, revelou que, apesar do impacto da catástrofe, os adolescentes demonstram resistência em abordar diretamente o evento. O isolamento, intensificado no contexto pós-catástrofe, manifesta-se tanto de forma sistêmica - por meio da segmentação escolar e social - quanto de maneira autodeterminada, funcionando como mecanismo de proteção contra a exaustão emocional. As consequências do evento climático traumático configuram-se, em crianças e adolescentes, como uma “vulnerabilidade cumulativa” (Fothergill, 2024), ocasionando “múltiplas crises” (Cox, 2024).
A adolescência é percebida pelos jovens como uma fase de transição complexa, marcada por responsabilidades crescentes e incertezas sobre o futuro. De um lado, eles relatam cansaço físico e mental, e expressam medo e insegurança diante da vida adulta; de outro, anseiam por mais espaços de escuta, autonomia, diversão e leveza, desejando menos cobranças que os empurrem prematuramente para a adultez e resultem em silêncio e conformismo.
A pesquisa sobre os imaginários desses adolescentes no contexto pós-catástrofe revelou um cenário complexo, marcado por isolamento, exaustão e resistência em revisitar o trauma. A frase “não queremos mais falar sobre as enchentes” ressoa como um grito silencioso, um pedido de respiro em meio ao processo de reconstrução. Nesse sentido, torna-se essencial repensar políticas públicas e intervenções sociais que criem espaços para o “ser adolescente”, promovendo vínculos de autoestima, identificação e bem-estar - consigo mesmos, com seu grupo e com seu território. Bachelard, citado por Wunenburger (2015), fala de uma “poética ecológica”: um com-sentimento com o lugar, estar em sintonia, vibrar junto.
O ato de silenciar e resguardar um espaço para reflexão e ressignificação no pós-catástrofe também revela um afastamento da análise das causas e impactos do evento. A frase “não queremos mais falar sobre as enchentes” expressa esse distanciamento, que pode resultar na desvinculação da corresponsabilidade, da ação e do engajamento comunitário. Os adolescentes não manifestaram um perfil de lutas e ideais, mas uma busca por uma vida comum e previsível.
O anseio por atividades que proporcionem prazer e criatividade emerge como um antídoto para a exaustão, o desânimo ou essa sensação de invisibilidade. A fruição da vida, por meio de atividades lúdicas, artísticas e esportivas, revela-se como uma importante possibilidade para a reconstrução da autoestima e do bem-estar emocional. Fortalecer a autoestima e o senso de pertencimento pode auxiliar a relativizar a imagem de uma vida em suspense, um limbo entre o lugar simbólico da infância e o da vida adulta.
A ressignificação de imaginários é um processo complexo, porém necessário, que é possível por meio dos princípios da comunicação Doltoniana: reconhecimento do sujeito como interlocutor, escuta atenta e respeitosa, valorização da expressão simbólica e promoção de vínculos saudáveis. A reconstrução dos vínculos sociais e a promoção da resiliência dos adolescentes são desafios complexos, mas não impossíveis. É nesse contexto que a pesquisa-ação, realizada por meio do Programa Interações, permitiu identificar e compreender, no território, essa situação-chave da (não)existência dos adolescentes, de suas vidas em suspenso(e).
6. REFERÊNCIAS
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COX, R. Child and Youth Resilience in the Polycrises. Webinar Crianças e catástrofes: uma análise a partir dos estudos com as crianças do Katrina. Rede Marista, 2024. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=R5Gv3LPdt1Q Acesso em: 26 mar. 2025.
» https://www.youtube.com/watch?v=R5Gv3LPdt1Q -
FOTHERGILL, A. Children, Youth and Disasters: Impacts and Challenges. In Webinar Crianças e catástrofes: uma análise a partir dos estudos com as crianças do Katrina. Rede Marista, 2024. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=R5Gv3LPdt1Q Acesso em: 26 mar. 2025.
» https://www.youtube.com/watch?v=R5Gv3LPdt1Q - GROPPO, L. A. Juventudes e políticas públicas: comentários sobre as concepções sociológicas de juventude. Revista Desidades, 2017.
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ELSNER, M.; ATKINSON, G.; ZAHIDI, S. Global Risks Report 2025. World Economic Forum, 15 jan. 2025. Disponível em: https://www.weforum.org/publications/global-risks-report-2025/digest/. Acesso em: 5 jan. 2025
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
22 Set 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
31 Mar 2025 -
Aceito
19 Jun 2025
