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A (in)distinção entre dialogismo e intertextualidade

The (in)distinction between dialogism and Intertextuality

La (in)distinción entre dialogismo e intertextualidade

RESUMO

O uso do termo intertextualidade em lugar de ou como sinônimo de dialogismo tem suscitado algumas reflexões e críticas. Para adentrar nesta discussão, propõe-se relembrar a origem da noção de intertextualidade no contexto francês das décadas de 1960 e 1970, a partir do qual foi difundida. Seguindo essa retomada histórica, chega-se aos posicionamentos de estudiosos bakhtinianos brasileiros, que têm, atualmente, tanto discordado veementemente do emprego da expressão intertextualidade (BEZERRA, 2011 [2010]) quanto procurado entendê-la ou acomodá-la em outros quadros teóricos (FIORIN, 2006). No âmbito desses posicionamentos diversos, pretende-se neste artigo fomentar essa discussão ao se propor que a distinção entre relações dialógicas internas e relações dialógicas externas pode ser um princípio para diferenciar dialogismo de intertextualidade, o que também permitirá reafirmar, em outras bases, o juízo de que intertextualidade não é um adequado vocábulo para representar o dialogismo.

Palavras-chave:
Dialogismo; Intertextualidade; Relações dialógicas

ABSTRACT

For the discussion about intertextuality, term sometimes used instead of or as a synonym of dialogism, it is important to bring back the origins of the first term, which was conceived and diffused during the 1960's and 1970's, in France. Through this historical recall, we come to the position of some Brazilian scholars who have been studying Bakhtin's works. Some of them completely disagree with the use of the expression intertextuality (BEZERRA, 2011 [2010]), while others (try to understand it or) fit it in other theories (FIORIN, 2006). On the scope of these diverse positions, the intension of this article is to promote this discussion by bringing the proposal that the distinction between internal and external dialogical relationships can be a principle to distinguish dialogism and intertextuality. It will also allow us to reaffirm that intertextuality is not a suitable term to represent dialogism.

Keywords:
Dialogism; Intertextuality; Dialogical relationships

RESUMEN

El uso de la palabra intertextualidad, en lugar de o cómo sinónimo de dialogismo, tiene evocado algunas reflexiones y críticas. Para adentrar en esta discusión, se propone rememorar el origen de noción de intertextualidad en el contexto francés de las décadas de 1960 y 1970, a partir del cual fue difundida. Siguiendo esa retomada histórica, se llega a los posicionamientos de estudiosos brasileños de Bakhtin, que tienen, actualmente, tanto discordado vehementemente del empleo de la palabra intertextualidad (BEZERRA, 2011 [2010]), cuanto procurado entenderla o acomodarla en otros cuadros teóricos (FIORIN, 2006). En el ámbito de eses posicionamientos diversos, se pretende, en este artículo, fomentar esa discusión al proponer que la distinción entre relaciones dialógicas internas y relaciones dialógicas externas puede ser un principio para diferenciar dialogismo de intertextualidad, lo que también permitirá reafirmar, en otras bases, el juicio de que intertextualidad no es una palabra adecuada para representar el dialogismo.

Palabras-clave:
Dialogismo; Intertextualidad; Relaciones dialógicas

Duas vozes são o mínimo da vida, o mínimo da existência. (BAKHTIN)

1 INTRODUÇÃO

Os estudos bakhtinianos são perpassados por polêmicas, entre as quais: (i) a disputada autoria de alguns textos, que são tributados a Bakhtin ou a outros membros do Círculo, como Voloshinov ou Medviédev (BRAZINOV, 2012 [2011]; BRONCKART, BOTA, 2012BRONCKART, J.; BOTA, C. Bakhtin desmascarado: história de um mentiroso, de uma fraude, de um delírio coletivo. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola, 2012.; GRILLO, 2012GRILLO, S. V. C. Prefácio. In: MEDVIÉDEV, P. V. (1928). O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Trad. Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Vieira Grillo. São Paulo: Contexto , 2012, p. 19-38.; ARÁN, 2014ARÁN, P. O. A questão do autor em Bakhtin. Bakhtiniana, São Paulo, Número Especial: Jan./Jul. 2014, p 4-25.); (ii) questões de tradução e de recepção das obras bakhtinianas no Ocidente (LIMA, 2005 [1997]); (iii) além das disputadas intepretações de alguns conceitos bakhtinianos como polifonia e dialogismo. Na esteira dessas questões, no presente artigo, pretende-se discutir o controverso emprego do termo "intertextualidade" como (praticamente) sinônimo da ideia bakhtiniana de dialogismo.

Procura-se, para isso, recuperar o contexto de surgimento do termo "intertextualidade" bem como alguns caminhos pelos quais se popularizou no contexto acadêmico internacional e brasileiro. A propósito, no caso do Brasil, a noção de intertextualidade chega até mesmo ao âmbito de documentos oficiais como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de Língua Portuguesa - Terceiro e Quarto Ciclos do Ensino Fundamental (BRASIL, 1998), ecoando, assim, em materiais didáticos e práticas de ensino de língua.

Passando por estudiosos da área, cuja recepção vai desde uma assimilação mais flexível, como a de Fiorin (2006FIORIN, J. L. Interdiscursividade e intertextualidade. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2006, p. 161-193.), até a negação radical da pertinência do termo "intertextualidade" quando usado para representar o pensamento bakhtiniano (BEZERRA, 2011 [2010]), discorre-se neste texto sobre a (im)possibilidade de se tomar indistintamente os conceitos de intertextualidade e de dialogismo como correlatos.

2 CONTEXTO HISTÓRICO: SURGIMENTO E DIFUSÃO DO TERMO "INTERTEXTUALIDADE"

Segundo Fiorin (2006FIORIN, J. L. Interdiscursividade e intertextualidade. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2006, p. 161-193., p. 161, grifo do autor):

A palavra intertextualidade foi uma das primeiras, consideradas como bakhtinianas, a ganhar prestígio no Ocidente. Isso se deu graças à obra de Júlia Kristeva. Obteve cidadania acadêmica, antes mesmo de termos como dialogismo alcançarem notoriedade na pesquisa linguística e literária.

O prestígio da palavra "intertextualidade", a propósito, não se releva apenas nas práticas acadêmicas, pois no Brasil o termo vem sendo empregado em contexto educacional há algum tempo. Nos PCN de Língua Portuguesa, já se lia que à "relação entre o texto produzido e os outros textos é que se tem chamado intertextualidade" (BRASIL, 1998, p. 21). Aliás, pela expressão "se tem chamado" é de se acreditar que o termo "intertextualidade" não se apresentava, mesmo em 1998, como uma novidade, pois seria uma expressão que já vinha sendo utilizada.

Nesse documento oficial não se encontra nenhuma ocorrência da palavra "dialogismo", embora obras do Círculo sejam citadas1 1 As obras bakhtinianas diretamente citadas nas referências bibliográficas dos PCN são o livro Marxismo e filosofia da linguagem e a coletânea de textos Estética da criação verbal. Além disso, também figuram nas referências bibliográficas trabalhos de debatedores da obra bakhtiniana - João Wanderley Geraldi, Carlos Alberto Faraco, Roxane Helena Rodrigues Rojo, para mencionar alguns. . Assim, a observação de Fiorin (2006FIORIN, J. L. Interdiscursividade e intertextualidade. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2006, p. 161-193.) pode ser estendida também ao ensino: se termos como "dialogismo" ainda não gozam de grande reconhecimento na esfera político-pedagógica, a palavra "intertextualidade" há muito figura, com certo valor, nesse meio social e discursivo.

Fatos como esse contribuem para instigar os ânimos daqueles que não veem o pensamento bakhtiniano (corretamente) representado pelo termo "intertextualidade", pois "na obra bakhtiniana, não ocorrem os termos interdiscurso, intertexto, interdiscursivo, interdiscursividade, intertextualidade" (FIORIN, 2006FIORIN, J. L. Interdiscursividade e intertextualidade. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2006, p. 161-193., p. 162, grifo nosso).

Paulo Bezerra, por exemplo, mostra-se um crítico severo do emprego do termo "intertextualidade", o que se daria no contexto de uma "adaptação" bastante empobrecedora das ideias bakhtinianas.

No Brasil, essa "adaptação" vem contribuindo para a deformação do pensamento bakhtiniano em escala temível. Citemos ao menos um exemplo. No livro Intertextualidades (Belo Horizonte: Lê, 1995), de G. Paulino, I. Walty e M. Z. Curry, lemos: "a intertextualidade foi estudada primeiramente pelo pensador russo Mikhail Bakhtin" (p. 21). E as autoras citam minha tradução de PPD [Problemas da poética de Dostoiévski] como fonte bibliográfica. Em que página do livro aparece o termo "intertextualidade", caríssimas caras-pálidas, que eu, o tradutor, nunca o encontrei? (BEZERRA, 2011 [2010], p. xx-xxi)

Bezerra refuta o uso do termo "intertextualidade" como sinônimo de dialogismo. Para o tradutor, a palavra "intertextualidade" estaria entre aqueles "deméritos" de Kristeva, responsável por uma "deturpação do pensamento e da teoria de Bakhtin" (BEZERRA, 2011 [2010], p. xii).

Assim como Bezerra, Fiorin entende que o termo "intertextualidade" ganha projeção a partir do texto A palavra, o diálogo e o romance de Kristeva (2012 [1967])2 2 Tanto Fiorin quanto Bezerra indicam que o texto A palavra, o diálogo e o romance viria a ser o capítulo 4 da obra Introdução à Semanálise (KRISTEVA, 2012 [1969]). Contudo na mais recente edição brasileira, o texto a que se referem aparece como capítulo 7. , em que aparece "a noção de intertextualidade como procedimento real da constituição do texto" (FIORIN, 2006FIORIN, J. L. Interdiscursividade e intertextualidade. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2006, p. 161-193., p. 163). Para alguns, porém, a noção de dialogismo não estaria bem representada pelo vocábulo "intertextualidade" empregado por Kristeva; vocábulo esse que foi difundido a partir do texto da autora.

Para prosseguir na discussão, observem-se palavras da própria Kristeva (2012 [1967], p. 142, grifo do autor), segundo a qual:

[...] uma descoberta que Bakhtin foi o primeiro a introduzir na teoria literária: todo o texto se constrói com mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto. Em lugar da noção de intersubjetividade, instala-se a noção de intertextualidade, e a linguagem poética lê-se pelo menos como dupla.

Por um lado, Kristeva corretamente entende que uma das possibilidades de manifestação do dialogismo são as relações entre um texto e outro texto; por outro lado, é bastante problemática a assunção de que em lugar da intersubjetividade se possa colocar a noção de intertextualidade. O dialogismo talvez possa parecer "exteriormente" ou à primeira vista como uma relação entre textos, uma relação "intertextual". Porém, da perspectiva bakhtiniana, as relações dialógicas, antes de serem apenas relações entre textos, são entendidas como relações entre vozes e essas vozes pertencem a sujeitos - sejam estes passíveis de identificação ou não3 3 [...] todo enunciado tem uma espécie de autor, que no próprio enunciado escutamos como seu criador. Podemos não saber absolutamente nada sobre o autor real, como ele existe fora do enunciado. As formas dessa autoria real podem ser muito diversas. Uma obra qualquer pode ser produto de um trabalho de equipe, pode ser interpretado como um trabalho hereditário de várias gerações, etc., e, apesar de tudo, sentimos nela uma vontade criativa única, uma posição determinada diante da qual se pode reagir dialogicamente. A reação dialógica personifica toda enunciação à qual ela reage. (BAKHTIN, 2011 [1929/1963], p. 210). . Assim, em qualquer relação dialógica se estabelece uma relação entre sujeitos, em algum sentido uma relação "intersubjetiva", daí porque é realmente equivocado opor intersubjetividade à intertextualidade.

Ainda segundo Kristeva (2012 [1967], p. 145, grifo do autor):

[...] o dialogismo bakhtiniano designa a escritura simultaneamente como subjetividade e como comunicatividade, ou melhor, como intertextualidade; face a esse dialogismo, a noção de "pessoa-sujeito da escritura" começa a se esfumaçar para ceder lugar a uma outra, a da ambivalência da escritura.

Embora reconheça o dialogismo "simultaneamente como subjetividade e como comunicatividade" (grifo nosso), a perspectiva da subjetividade vem a ser apagada se "a noção de 'pessoa-sujeito da escritura' [...] se esfumaçar". O entendimento de Kristeva, assim, é oposto à valorização bakhtiniana da autoria da voz, à valorização de que as relações dialógicas se estabelecem entre vozes pertencentes a determinados sujeitos, já que a voz é "expressão da posição do falante individual em uma situação concreta da comunicação discursiva" (BAKHTIN, 2003 [1952-1953], p. 289). No viés bakhtiniano, pensar em dialogismo, em relações dialógicas, significa considerar os sujeitos (discursivos) implicados no processo de comunicação. As relações dialógicas se forjam na assunção explícita ou implícita, consciente ou não, de vozes alheias.

Aliás, é importante lembrar que as ponderações de Kristeva estão, em algum sentido, influenciadas pelas estéticas (pré)futuristas. O futurismo é justamente o movimento literário que dará ensejo, em grande medida, ao desenvolvimento do formalismo russo. As concepções do formalismo russo, por sua vez, seriam diretamente refutadas pelos membros do Círculo.

Tanto o formalismo russo quanto as concepções de Kristeva parecem estar impressionados pelas "inovações" do futurismo, que vinha contestando diversos aspectos do fazer literário e poético. É no bojo dos experimentos futuristas que se chegará a crer ser possível desvincular a obra de arte de qualquer realidade, inclusive do autor.

Nesse sentido, é relevante observar que Kristeva dialoga com outros intelectuais do ambiente francês do final da década de 1960, em especial Barthes, que chegou a decretar "A morte do autor" (BARTHES, 1993 [1968]).

Veja-se, por exemplo, que a declaração de Kristeva acerca do "esfumaçamento" da "pessoa-sujeito da escritura" se reflete na afirmação de Barthes (1993 [1968], p. 63, tradução nossa) de que "a escritura é destruição de toda voz, de toda origem"4 4 "l'écriture est destruction de toute voix, de toute origine". . Para Barthes (1993 [1968], p. 66, tradução nossa), "o texto moderno [...] é agora feito e lido de tal sorte que nele, em todos os níveis, o autor é ausente5 5 "le texte moderne [...] est désormais fait et lu de telle sorte qu'en lui, à tous ses niveaux, l'auteur s'absente". ".

Ou seja, nesse contexto francês vinha-se questionando o que seria um autor e foi nessa conjuntura que as ideias do Círculo foram recebidas e assimiladas. A difusão de ideias do Círculo na França caberá a Kristeva, como assinala Barthes em "A estrangeira" (1993 [1970]), texto que é uma espécie de elogio àquela que teria introduzido o conceito de linguagem "dialógica - noção colocada em uso por Julia Kristeva a partir de Bakhtin, que ela nos fez descobrir"6 6 "dialogique - notion mise à jour par Julia Kristeva à partir de Bakhtine, qu'elle nos a fait découvrir". (BARTHES, 1993 [1970], p. 212, grifo do autor).

Introduzidos por Kristeva, certos conceitos bakhtinianos serão assimilados a partir da orientação particular dada pela semanticista. Em assunções como a que segue, é possível ver Barthes influenciado pela noção de intertextualidade, com a qual, de algum modo, Kristeva "traduz" dialogismo:

O intertextual em que é tomado todo texto, pois é ele próprio o entretexto de outro texto, não se pode confundir com qualquer origem do texto: pesquisar as "fontes", as "influências" de uma obra, é satisfazer ao mito da filiação; as citações de que é feito um texto são anônimas, indiscerníveis e, no entanto, já lidas: estas são citações sem aspas (BARTHES, 1993 [1971], p. 76, grifo do autor, tradução nossa)7 7 "L'intertextuel dans lequel est pris tout texte, puisqu'il est lui-même l'entre-texte d'un autre texte, ne peut se confondre avec quelque origine du texte: rechercher le "sources", les "influences" d'une œuvre, c'est satisfaire au mythe de la filiation; les citations dont est fait un texte sont anonymes, irrepérables et cependant déjà lues: ce sont des citations sans guillemets". .

Se Barthes (1993 [1968], p. 67, tradução nossa), por um lado, reconhece haver relações entre os textos, até mesmo porque, como já havia notado, "o texto é um tecido de citações, a partir dos mil focos da cultura"8 8 "le texte est un tissu de citations, issues des mille foyers de la culture". , por outro, assevera que o "único poder" do autor "é misturar os escritos, de os contrariar uns pelos outros, de modo a nunca tomar apoio sobre um deles9 9 "est de mêler les écritures, de les contrarier les unes par les autres, de façon à ne jamais prendre appui sur l'une d'elles". " (BARTHES, 1993 [1968], p. 67). Caberia, perguntar: mesmo que não seja possível encontrar a ascendência de uma voz, mesmo quando as "citações de que é feito um texto são anônimas", isso significaria a morte do autor? Como explicar, então, o enunciado, ainda que fosse possível concebê-lo apenas como organização de discursos alheios, de "citações sem aspas"? Para Bakhtin (2003 [1952-1953], por exemplo) não há enunciado sem autor.

Muitas vezes é realmente difícil saber se uma palavra é citada, especialmente quando vem "sem aspas", como se pertencesse a todos e a cada um. Ainda, assim, isso não significa ser essa palavra um ente abstrato, apartado de qualquer autoria.

Influenciados pela estética pré e futurista, muitos do contexto francês parecem ter caído no erro que Medviédev (2012 [1928], p. 144) aponta no formalismo russo: "[...] a teoria da linguagem poética dos formalistas foi uma transferência acrítica de uma concepção estreita das estruturas poéticas, assimilada a partir dos futuristas, para a língua e suas formas".

Segundo Medviédev (2012 [1928]), um dos problemas do formalismo russo foi derivar todos seus postulados do futurismo. Ao concentrar suas atenções na estética futurista, o formalismo russo, em algum sentido, dela se tornou refém, conseguindo explicar características dessa corrente literária, mas incapaz de formular conceitos que dessem conta de outras escolas literárias.

As inovações da estética futurista, seu modo peculiar de conceber a escrita, podem ter cegado os formalistas, que acreditaram que a linguagem poética procura subverter modelos, entre os quais o "modelo" de autoria ou de autor.

Assim, as colocações de Barthes lembram os objetivos dos "formalistas [que] insistem em afirmar que estudam uma obra literária com um dado objetivo independente da consciência e da psique subjetivas do criador e dos receptores" (MEDVIÉDEV, 2012 [1928], p. 211).

Se curvar à "psique" do autor (ou do leitor) pode ser um problema, caso se pretenda explicar toda a obra em função da subjetividade e, talvez por extensão, da vida do autor. Porém o radicalismo inverso também é nocivo, quando se procurar compreender a obra separada de seu criador, buscando certo "purismo" de um texto que não mais fosse contaminado pelo autor, por sua vida e, claro, pelo contexto social em que foi concebido.

Nota-se, desse modo, certa ligação entre a estética futurista, o formalismo russo e o contexto francês de recepção da obra bakhtiniana. Na estética futurista procurou-se subverter - melhor seria dizer, modificar - certos princípios da escrita literária. As inovações futuristas levaram os formalistas russos a separar a obra da vida e, consequentemente, a obra do autor. Também foi nesse sentido de distanciamento entre obra e autor que, no contexto francês, propôs-se a morte do autor. Nessa conjuntura, alguns apontamentos bakhtinianos são assimilados e utilizados a propósito, inclusive, de atestar o fim do autor.

Acontece, porém, que, em muitos pontos, o Círculo de Bakhtin se opunha à análise literária conduzida pelos formalistas russos. Para o Círculo não pode haver relação entre os textos sem considerar os sujeitos que se relacionam através dos textos. Conforme observa Medviédev (2012 [1928], p. 219): "Não são as obras que interagem, e sim as pessoas, porém elas interagem por meio das obras e, com isso, colocam as obras em inter-relações refletidas".

De certo modo, portanto, é um contrassenso imaginar que a partir das concepções do Círculo se possa pensar em relações intertextuais como relações entre textos, cujos sujeitos enunciadores pouco importassem.

3 ALGUMAS RECEPÇÕES ATUAIS DA NOÇÃO DE INTERTEXTUALIDADE

Como dito antes, como o conceito de intertextualidade se estabelece no contexto francês de fins da década de 1960 e na década de 1970 pelas mãos de Kristeva, a partir de sua intepretação das postulações bakhtinianas, propõe-se agora observar como a noção de intertextualidade vem sendo assimilada no contexto brasileiro mais atual.

Segundo Bezerra (2011 [2010], p. xvii), a intepretação de Kristeva do "dialogismo bakhtiniano como intertextualidade", em que "a noção de pessoa-sujeito da escritura começa a se esfumaçar", está "em flagrante contradição com o pensamento de Bakhtin, que sempre enfatiza o papel do sujeito". Isso porque, para Bakhtin, "o texto é um enunciado, o diálogo entre textos é um diálogo entre enunciados, e por trás do enunciado existe o falante, o sujeito dotado de consciência" (BEZERRA, 2011 [2010], p. xvii). Realmente a perspectiva de Kristeva é confusa, pois sua noção de intertextualidade se fundamenta no apagamento do sujeito, como se fosse possível a relação apenas entre textos, tomados como entes abstratamente relacionáveis. Isso é oposto ao pensamento bakhtiniano, uma vez que o autor é inerente ao texto, condição indispensável ao enunciado ou à voz. As relações dialógicas precisam de sujeitos que selecionem, citem ou procurem apagar as vozes com as quais se relacionam.

De qualquer modo, a noção de intertextualidade é bastante corrente no Brasil e, se há estudiosos que, como Bezerra (2011 [2010]), negam veementemente qualquer reconhecimento à expressão "intertextualidade", há também aqueles que, como Fiorin (2006FIORIN, J. L. Interdiscursividade e intertextualidade. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2006, p. 161-193.), esforçam-se para compreender a noção de intertextualidade a partir dos escritos do Círculo.

Segundo Fiorin (2006FIORIN, J. L. Interdiscursividade e intertextualidade. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2006, p. 161-193., p. 181, grifo do autor):

Há claramente uma distinção entre as relações dialógicas e aquelas que se dão entre textos. Por isso, chamaremos qualquer relação dialógica, na medida em que é uma relação de sentido, interdiscursiva. O termo intertextualidade fica reservado apenas para os casos em que a relação discursiva é materializada em textos. Isso significa que a intertextualidade pressupõe sempre uma interdiscursividade, mas que o contrário não é verdadeiro. Por exemplo, quando a relação dialógica não se manifesta no texto, temos interdiscursividade, mas não intertextualidade.

Da explanação de Fiorin, é possível depreender dois aspectos: (i) há uma relação de abrangência entre dialogismo (ou "interdiscursividade") e intertextualidade: toda relação intertextual é dialógica, mas nem toda relação dialógica é intertextual; (ii) as relações dialógicas podem ser "não mostradas", "não explícitas", já a intertextualidade aparece sempre "materializada em textos", "manifesta no texto".

Para sustentar seu ponto de vista, Fiorin traz alguns exemplos, entre os quais uma análise do poema Satélite, de Manuel Bandeira, transcrito a seguir:

SATÉLITE Fim de tarde. No céu plúmbeo A Lua baça Paira. Muito cosmograficamente Satélite. Desmetaforizada, Desmitificada, Despojada do velho segredo de melancolia, Não é agora o golfão de cismas, O astro dos loucos e enamorados, Mas tão somente Satélite. Ah! Lua deste fim de tarde, Desmissionária de atribuições românticas; Sem show para as disponibilidades sentimentais! Fatigado de mais-valia, gosto de ti, assim: Coisa em si, - Satélite. (Bandeira, 1973, p. 232 apud FIORIN, 2006FIORIN, J. L. Interdiscursividade e intertextualidade. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2006, p. 161-193., p. 182).

Segundo Fiorin (2006FIORIN, J. L. Interdiscursividade e intertextualidade. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2006, p. 161-193., p. 183, grifo do autor), neste poema é possível ver "dois pontos de vista a respeito da lua: um que a vê como uma fonte e um repositório de sentimentos, de mitos e de metáforas; outro que a considera em sua realidade nua indicada pela palavra satélite".

Por pretender ver a Lua apenas como "satélite", a posição de Bandeira seria contrária à concepção de Lua como repositório de sentimentos, mitos e metáforas. Há, assim, duas vozes contrárias: uma vê que a Lua como algo poético e místico, outra que nega esse misticismo. Ou o contrário: uma voz segundo a qual a Lua é apenas satélite e outra voz que vê a Lua para além dessa realidade física, concreta.

No embate entre essas duas perspectivas, Fiorin vê um exemplo de interdiscursividade, mas não de intertextualidade. Só haveria intertextualidade quando há uma "relação explícita" com a palavra do outro. Para ilustrar essa diferença, Fiorin recorre ao poema Plenilúnio de Raimundo Correa:

Plenilúnio Além nos ares, tremulamente, Que visão branca das nuvens sai! Luz entre as franças, fria e silente; Assim nos ares, tremulamente, Balão aceso subindo vai... Há tantos olhos nela arroubados, No magnetismo do seu fulgor! Lua dos tristes e enamorados, Golfão de cismas fascinador! Astro dos loucos, sol da demência, Vaga, noctâmbula aparição! Quantos, bebendo-te a refulgência, Quantos por isso, sol da demência, Lua dos loucos, loucos estão! Quantos à noite, de alva sereia O falaz canto na febre a ouvir, No argênteo fluxo da lua cheia, Alucinados se deixam ir... Também outrora, num mar de lua, Voguei na esteira de um louco ideal; Exposta aos euros a fronte nua, Dei-me ao relento, num mar de lua, Banhos de lua que fazem mal. Ah! quantas vezes, absorto nela, Por horas mortas postar-me vim Cogitabundo, triste, à janela, Tardas vigílias passando assim! E assim, fitando-a noites inteiras, Seu disco argênteo n'alma imprimi; Olhos pisados, fundas olheiras, Passei fitando-a noites inteiras, Fitei-a tanto que enlouqueci! Tantos serenos tão doentios, Friagens tantas padeci eu; Chuva de raios de prata frios A fronte em brasa me arrefeceu! Lunárias flores, ao feral lume, - Caçoilas de ópio, de embriaguez - Evaporavam letal perfume... E os lençóis d'água, do feral lume Se amortalhavam na lividez... Fúlgida névoa vem-me ofuscante De um pesadelo de luz encher, E a tudo em roda, desde esse instante, Da cor da lua começo a ver. E erguem por vias enluaradas Minhas sandálias chispas a flux... Há pó de estrelas pelas estradas... E por estradas enluaradas Eu sigo às tontas, cego de luz... Um luar amplo me inunda, e eu ando Em visionária luz a nadar. Por toda parte louco arrastando O largo manto do meu luar... Raimundo Correia (1948 [1898], p. 23-25)10 10 Em sua exposição, Fiorin (2006) não transcreve todo o texto de Raimundo Correia.

De acordo com Fiorin (2006FIORIN, J. L. Interdiscursividade e intertextualidade. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2006, p. 161-193., p. 183), no texto de Bandeira, as "expressões 'golfão de cismas' e 'astros dos loucos enamorados' remetem-nos" à segunda "estrofe do poema Plenilúnio de Raimundo Correia". Esse, sim, seria um caso de intertextualidade.

Para Fiorin (2006FIORIN, J. L. Interdiscursividade e intertextualidade. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2006, p. 161-193., p. 184), o poema de Bandeira se estrutura a partir de negações da "poesia que idealiza a realidade". Porém, entre essas negações, só "pode ser considerada intertextualidade a negação explícita dos versos de Raimundo Correia. As outras negações são da ordem da interdiscursividade" (FIORIN, 2006FIORIN, J. L. Interdiscursividade e intertextualidade. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2006, p. 161-193., p. 184, grifo nosso).

Assim, na concepção de Fiorin, a intertextualidade está ligada a certa exposição da palavra alheia, que deve ser reconhecida como alheia. As relações dialógicas não explícitas seriam do campo da interdiscursividade.

A posição de Fiorin, porém, pode levar a certos embaraços, uma vez que sob a concepção de estar "explícito" distingue-se uma noção de reconhecimento. Para entender a intertextualidade como uma relação dialógica "explícita" com a voz do outro, é preciso que o ouvinte ou leitor (re)conheça a voz alheia. Essa noção de intertextualidade leva a um conceito de relação entre enunciados em que é necessária a identificação de uma voz como pertencente ao outro. Se o leitor, por exemplo, não conhecesse o poema Plenilúnio, de Raimundo Correia, não se estabeleceria a intertextualidade com o texto de Bandeira?

Não parece ser através desse critério de "explicitude" que se pode diferenciar a intertextualidade das demais relações dialógicas, que não seriam explícitas. Aliás, a dificuldade de se divisar o que seriam relações dialógicas explícitas e mostradas ou relações dialógicas "implícitas" compromete, até mesmo, o próprio intuito de opor interdiscursividade, como algo mais amplo, genérico, "não-mostrado", à intertextualidade, como um fenômeno mais específico, talvez mais concreto e textualmente marcado.

4 RELAÇÕES DIALÓGICAS INTERNAS E EXTERNAS: UM PRINCÍPIO PARA DIFERENCIAR DIALOGISMO DE INTERTEXTUALIDADE

Dado que não se considera possível distinguir intertextualidade e dialogismo por certo princípio de "explicitude", propõe-se avançar nessa discussão ao se observar uma importante questão: algumas relações dialógicas podem se dar internamente¸ outras externamente.

Essas relações se dariam internamente, quando, por exemplo, há relações entre as vozes de personagens e narrador em um texto literário. A propósito, partindo das indicações lançadas por Bakhtin (2011 [1929/1963]), quando de sua análise da prosa dostoievskiana, é possível assinalar fenômenos de interesse para o debate da questão.

Possivelmente o mais evidente exemplo de relações dialógicas internas são os diálogos representados nas narrativas. Nesse caso, há relações dialógicas entre os sujeitos, as personagens, participantes do diálogo - além, claro, da interação dialógica com a voz do narrador/autor que organiza e representa esse diálogo.

A título de exemplo, destaca-se um trecho de O idiota de Dostoiévski. Na passagem, relata-se uma conversa entre as personagens Míchkin e Rogójin. Eles se encontram no quarto de Rogójin, que assassinou Nastácia Filíppovna, mulher que ambos amavam. Segue um excerto:

O príncipe [Liev Nikoláievitch Míchkin] olhava e sentia que quanto mais olhava mais morto e silencioso ficava o quarto. Súbito zuniu uma mosca que acordava, passou voando sobre a cama e calou-se à cabeceira. O príncipe estremeceu. - Vamos sair! - tocou-lhe o braço de Rogójin. [...] - Pelo que vejo, estás tremendo, Liev Nikoláievitch - pronunciou finalmente Rogójin [...] O príncipe ouvia atentamente, fazia todos os esforços para compreender e perguntando tudo com o olhar. - Foste tu11 11 O príncipe Míchkin pergunta a Rogójin se foi ele quem matou Nastácia. ? - pronunciou finalmente, fazendo um sinal de cabeça para o reposteiro. - Fui... eu... - murmurou Rogójin e baixou a vista. (DOSTOIÉVSKI, 2010 [1869], p. 674, grifo nosso).

Veem-se nesse diálogo relações dialógicas entre duas personagens. Vê-se uma representação das relações dialógicas. Há dois sujeitos representados, há duas vozes em interação dialógica. A pergunta de Míchkin, "Foste tu?", é respondida por Rogójin: "Fui... eu". Assim, há elos dialógicos, pois o enunciado de um se dirige, enquanto resposta, ao enunciado de outro. Mostra-se, desse modo, que na representação literária é possível simular, no interior do texto, um confronto dialógico. Trata-se, portanto, de relações dialógicas internas na medida em que a voz de Míchkin se dirige a Rogójin, que responde àquele. É enquanto partícipes da narrativa, no diálogo interior desta, que se tecem as relações dialógicas entre essas personagens. Relações dialógicas internas, pois circunscritas ao romance.

Aliás, além das relações entre personagens, o diálogo entre narrador e personagem ilustra também como as relações dialógicas podem ser internas a um texto. Veja-se, por exemplo, o caso do "discurso provocante" (BAKHTIN, 2011 [1929/1963]), quando o narrador provoca a personagem, valendo-se das próprias palavras dela.

Segundo Bakhtin, ilustrativo do discurso provocante é o narrador de O duplo que se dirige zombeteiramente a Goliádkin, protagonista da obra, retomando (e reacentuando) as palavras dele. Nesse caso, as relações dialógicas entre o narrador e a personagem se dão nos limites do texto, nos limites da novela. Mesmo que o narrador ou a personagem citassem um texto externo à obra (uma outra obra literária, por exemplo), isso não invalidaria o caráter interno das relações dialógicas estabelecidas entre narrador e personagem. O que importa é que narrador e personagem são figuras da narrativa, confrontam-se e dialogam no interior dessa narrativa. É como participantes dessa narrativa, que a personagem interessa ao narrador e o narrador interessa à personagem.

Para ilustrar essa questão, reproduz-se fragmento da novela O duplo, em que o Goliádkin adentra o baile de Clara Olsúfievna sem ser convidado. No excerto se descreve como a personagem se sente, já no salão do baile, quando se encontra frente à moça:

Sem nenhuma dúvida, sem pestanejar, nesse instante ele teria o maior prazer em sumir como que por encanto; mas o que está feito não volta atrás... não há como voltar atrás. Então, o que fazer? Se fracassas, não desanima; se atinges o objetivo segue firme. O senhor Golyádkin, está claro, não era um intrigante nem um mestre em rapapés... (DOSTOIÉVSKI, 2011 [1846], p. 54).

Esse discurso do narrador ecoa a própria voz de Goliádkin, reproduzida (anteriormente) em outros momentos da narrativa. Conversando com companheiros de sua repartição, Goliádkin afirma:

- Porém vou dizer mais, senhores - acrescentou [Goliádkin], dirigindo-se pela última vez aos senhores registradores -, vou dizer mais; ambos estão aqui olho no olho comigo. Eis, senhores, minhas regras: se fracasso, não desanimo; se atinjo o objetivo, sigo firme, e seja como for nunca armo tramas. Não sou um intrigante e disto me orgulho. (DOSTOIÉVSKI, 2011 [1846], p. 38).

Esse discurso direto de Goliádkin é praticamente reproduzido no discurso indireto do narrador, o que mostra uma grande interação entre o discurso do narrador e o da personagem. É como se o narrador se apropriasse das palavras de Goliádkin, para através delas o caracterizar. Goliádkin expressa enfaticamente suas "regras": "se fracasso, não desanimo; se atinjo o objetivo, sigo firme [...]". Essas palavras são reproduzidas quase exatamente pelo narrador, que apenas realiza a passagem de pessoa verbal, adaptando a fala de Goliádkin da primeira para a segunda pessoa do singular - "Se fracassas, não desanima; se atinges o objetivo segue firme". Além disso, os verbos "desanimar" e "seguir" passam do indicativo presente para o imperativo afirmativo.

O narrador se vale ainda do enunciado da personagem através do qual ela se define ao dizer: "Não sou um intrigante [...]". Realizando mudanças de tempo e pessoa verbais, o narrador transpõe a voz da personagem da primeira para a terceira pessoa, o verbo do presente para o pretérito imperfeito - "[ele] não era um intrigante". É notória, assim, a refração da voz da personagem na voz do narrador; este se apropria da voz daquele, adaptando-a para seus fins narrativos.

Vê-se, portanto, que há interações dialógicas internas ao texto, na medida em que a voz da personagem é retomada pelo narrador. Personagem e narrador são partícipes da novela e é no interior da narrativa, no interior do texto, que suas vozes interagem dialogicamente. As relações dialógicas são internas ao texto, pois as vozes de narrador e de personagens estão circunscritas ao romance, relacionam-se no interior deste.

Não se pretende dizer com isso que as vozes que habitam os discursos de personagem e de narrador não possam ser externos à obra. Basta assinalar, por exemplo, as incontáveis referências que as personagens de Dostoiévski fazem a obras literárias, filosóficas e religiosas.

Assim, quando se fala em dialogismo interno, é para marcar que nem toda relação dialógica se dá entre o texto e uma voz exterior. Nem toda voz de uma personagem dialoga com vozes exteriores ao romance ou à novela, por exemplo. Pode ser que a personagem dialogue com uma voz que já está presente na narrativa. Incontáveis exemplos disso são encontrados nas representações de diálogo que povoam as representações literárias, especialmente as de caráter narrativo.

Já por dialogismo externo se entendem as relações dialógicas de vozes de um enunciado (um romance, uma novela, etc.) com vozes exteriores a esse enunciado. Mesmo que relações dialógicas internas e externas possam, algumas vezes, se sobrepor, as duas não são o mesmo. E o fato de que existam relações dialógicas internas, desconsideradas pela perspectiva da intertextualidade, coloca em xeque essa noção.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em um diálogo cotidiano é evidente a relação de um enunciado com o enunciado exterior do outro. Porém em representações literárias, como as dos romances, novelas e outros gêneros narrativos, o diálogo com o outro pode se circunscrever ao enunciado. Entre personagens e narradores podem se estabelecer relações dialógicas sui generis, relações dialógicas internas, pois se dão no interior de um enunciado. Aliás, cabe ainda ver como outros gêneros - como as reportagens, apenas para citar um exemplo - também se sustentam nesse jogo de relações dialógicas internas e externas, já que internamente há um diálogo entre a voz do jornalista e das pessoas cujas falas são citadas. Externamente a reportagem dialoga com outras vozes.

Sublinhar que dialogismo interno e externo podem coincidir, mas são fenômenos diferentes, ajuda a ver que intertextualidade recobre apenas as relações dialógicas externas - as supostas relações entre textos -, sem considerar que no âmbito de um único enunciado podem se configurar relações dialógicas internas. Porque essas relações dialógicas internas existem - entre personagens, entre narrador e personagens -, não se deve utilizar intertextualidade como se fosse sinônimo de dialogismo. Intertextualidade só parece recobrir - e ainda assim não de modo totalmente bakhtiniano - relações dialógicas externas, ignorando a existência das internas.

O termo "intertextualidade" sugere uma relação externa entre textos e, ao que parece, é nesse sentido que o vocábulo vem sendo usado. Porém, mesmo nesse caso, o termo "dialogismo" ou a expressão "relações dialógicas" são mais apropriados por remeterem à ideia de que não se retomam "textos", como uma unidade abstrata, mas vozes de sujeitos histórica e discursivamente inscritos. Sem sujeitos que os enunciem, os textos não podem se relacionar. Mesmo que se pretendesse tomar a noção de intertextualidade como correlata da ideia de relações dialógicas externas, seria preciso sublinhar que não são os textos por si que se relacionam. Não há, portanto, intertextualidade no sentido proposto por Kristeva.

Em síntese, pode-se dizer que dialogismo não é intertextualidade. Intertextualidade remete ao externo. Sem desconsiderar obviamente o externo - pois o enunciado é um elo na cadeia da comunicação discursiva -, é preciso ver que há um acabamento formal (e momentaneamente conteudístico) em cada texto. Nesse texto, isolado de outros enunciados, há relações dialógicas internas, modos de organizar as vozes, própria(s) e alheia(s). Em textos narrativos, a presença de narrador(es) e personagens pode expor de modo bastante claro essa interação entre vozes circunscritas ao texto. Não significa que o texto não possa ter qualquer interação verbal externa. Isso não seria texto, uma vez que qualquer enunciado se integra na cadeia discursiva, dialoga com outros enunciados.

Ainda assim, em sua composição única, com seu fechamento formal exclusivo, cada texto apresenta um arranjo dialógico interno singular, há uma ordenação específica das relações dialógicas internas. É porque existem relações dialógicas internas que o termo 'intertextualidade' não é bem empregado como sinônimo de dialogismo ou de relações dialógicas. O termo 'intertextualidade' talvez se aproxime - embora, ainda assim, não coincida - ao conceito de relações dialógicas externas, mas é insuficiente para dar conta das relações dialógicas internas.

REFERÊNCIAS

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  • ______. (1969). Introdução à semánalise. Trad. Lúcia Helena França Ferraz. 3. ed. revista e aumentada. São Paulo: Perspectiva, 2012.
  • As obras bakhtinianas diretamente citadas nas LIMA, S. (1997). Tradução: um diálogo às avessas?. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: dialogismo e construção do sentido. Campinas: Ed. da Unicamp, 2005, p. 351-363.
  • MEDVIÉDEV, P. V. (1928). O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica . Tradução Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Vieira de Camargo Grillo. São Paulo: Contexto , 2012.
  • 1
    As obras bakhtinianas diretamente citadas nas referências bibliográficas dos PCN são o livro Marxismo e filosofia da linguagem e a coletânea de textos Estética da criação verbal. Além disso, também figuram nas referências bibliográficas trabalhos de debatedores da obra bakhtiniana - João Wanderley Geraldi, Carlos Alberto Faraco, Roxane Helena Rodrigues Rojo, para mencionar alguns.
  • 2
    Tanto Fiorin quanto Bezerra indicam que o texto A palavra, o diálogo e o romance viria a ser o capítulo 4 da obra Introdução à Semanálise (KRISTEVA, 2012 [1969]). Contudo na mais recente edição brasileira, o texto a que se referem aparece como capítulo 7.
  • 3
    [...] todo enunciado tem uma espécie de autor, que no próprio enunciado escutamos como seu criador. Podemos não saber absolutamente nada sobre o autor real, como ele existe fora do enunciado. As formas dessa autoria real podem ser muito diversas. Uma obra qualquer pode ser produto de um trabalho de equipe, pode ser interpretado como um trabalho hereditário de várias gerações, etc., e, apesar de tudo, sentimos nela uma vontade criativa única, uma posição determinada diante da qual se pode reagir dialogicamente. A reação dialógica personifica toda enunciação à qual ela reage. (BAKHTIN, 2011 [1929/1963], p. 210).
  • 4
    "l'écriture est destruction de toute voix, de toute origine".
  • 5
    "le texte moderne [...] est désormais fait et lu de telle sorte qu'en lui, à tous ses niveaux, l'auteur s'absente".
  • 6
    "dialogique - notion mise à jour par Julia Kristeva à partir de Bakhtine, qu'elle nos a fait découvrir".
  • 7
    "L'intertextuel dans lequel est pris tout texte, puisqu'il est lui-même l'entre-texte d'un autre texte, ne peut se confondre avec quelque origine du texte: rechercher le "sources", les "influences" d'une œuvre, c'est satisfaire au mythe de la filiation; les citations dont est fait un texte sont anonymes, irrepérables et cependant déjà lues: ce sont des citations sans guillemets".
  • 8
    "le texte est un tissu de citations, issues des mille foyers de la culture".
  • 9
    "est de mêler les écritures, de les contrarier les unes par les autres, de façon à ne jamais prendre appui sur l'une d'elles".
  • 10
    Em sua exposição, Fiorin (2006) não transcreve todo o texto de Raimundo Correia.
  • 11
    O príncipe Míchkin pergunta a Rogójin se foi ele quem matou Nastácia.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    26 Maio 2016
  • Aceito
    23 Nov 2016
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