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CENÁRIO DO DRAMA E ZONA DE GUERRA: SENTIDOS DO ESPAÇO EM TEMPOS DE COVID-19

Drama Setting and War Zone: Senses of Space in Covid-19 Times

Escenario del drama y zona de guerra: sentidos del espacio en tiempo de Covid-19

Resumo

O presente trabalho visa a analisar, a partir dos pressupostos teóricos e metodológicos da Análise de Discurso materialista (PÊCHEUX, [1969] 2019; [1975] 2009), o modo como o espaço é significado através de práticas discursivas concernentes à pandemia de Covid-19: peças publicitárias estatais e o termômetro infravermelho. Compreende-se, desta forma, que há o funcionamento de dois modelos de gestão do espaço: o cenário do drama, relacionado ao poder disciplinar e à biopolítica (FOUCAULT, [1975] 2010; [1978] 2008); e a zona de guerra, relacionada à sociedade de controle (DELEUZE, 1992) e à necropolítica (MBEMBE, 2018). Observa-se ainda que a regulação do espaço, no âmbito do combate à pandemia, é diferenciada em relação às categorias de classe, sexo, gênero e raça.

Palavras-chave:
Discurso; Espaço; Disciplina; Necropolítica; Covid-19

Abstract

From the theoretical and methodological perspective of the Materialistic Discourse Analysis (PÊCHEUX, [1969] 2019; [1975] 2009), this article aims to analyze how the space is signified through discursive practices concerning the Covid-19 pandemic: the State advertising and the infrared thermometer. This way, we comprehend that there are two models of space management: the drama setting, related to disciplinary power and biopolitics (FOUCAULT, [1975] 2010; [1978] 2008); and the war zone, related to the society of control (DELEUZE, 1992) and to the necropolitics (MBEMBE, 2018). In addition, it is possible to observe that space regulation, in the context of fighting the pandemic, has a differential in relation to the categories of class, sex, gender, and race.

Keywords:
Discourse; Space; Discipline; Necropolitics; Covid-19

Resumen

Ese trabajo tiene el objetivo de analizar, desde los supuestos teóricos y metodológicos del Análisis del Discurso materialista (PÊCHEUX, [1969] 2019; [1975] 2009), el modo como el espacio es significado a través de prácticas discursivas concernientes con la pandemia de Covid-19: piezas publicitarias estatales y el termómetro infrarrojo. De esa manera, se comprende que hay funcionamiento de dos modelos de gestión del espacio: el escenario del drama, relacionado con el poder disciplinario y con la biopolítica (FOUCAULT, [1975] 2010; [1978] 2008); y la zona de guerra, relacionada con la sociedad de control (DELEUZE, 1992) y con la necropolítica (MBEMBE, 2018). Aún se observa que regulación del espacio, en el ámbito del combate a la pandemia, es diferenciada en relación con categorías de clase, sexo, género y raza.

Palabras clave:
Discurso; Espacio; Disciplina; Necropolítica; Covid-19

1 ESPAÇOS DE SENTIDOS: O OBJETO DA AD

Pêcheux, em Discurso: estrutura ou acontecimento (2008PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni P. Orlandi. 5. ed. Campinas: Pontes, [1983] 2008. [1983]), chama atenção para uma frase de Nietzsche, segundo a qual “todo fato já é uma interpretação” (PÊCHEUX, 2008PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni P. Orlandi. 5. ed. Campinas: Pontes, [1983] 2008. [1983], p. 44). O que se tem vivenciado, desde o final de 2019 em diversas partes do mundo, e no Brasil de forma mais contundente, desde março de 2020, torna isso bastante tangível. O “real” da pandemia de Covid-19 não é acessível a partir de um soberano olhar neutro, objetivo, que a tudo devassa; o que verificamos são disputas de sentido em torno do “real”, disputas essas que se constituem no interior de uma tensão ideológica que tem sido a realidade nacional desde as eleições de 2014. “Mortadelas” e “coxinhas”, “petralhas” e “bolsominions”, “comunistas” e “fascistas” encontram-se agora atualizados sob a forma da disputa entre “quarenteners” e “cloroquiners” (TAVARES, 2020TAVARES, J. Guerra entre “cloroquiners” e “quarenteners” reinventa polarização na pandemia. Folha de S.Paulo, São Paulo, ano 100, n. 33.250, p. A6, 15 abr. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/guerra-entre-cloroquiners-e-quarenteners-reinventa-polarizacao-na-pandemia.shtml. Acesso em: 1 jun. 2020.
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020...
). De um lado, os que defendem o isolamento social irrestrito como forma de combate à pandemia; de outro, os que defendem o uso da cloroquina como tratamento à infecção por Covid-19 e o fim da quarentena como forma de não afetar a economia. De um lado, estão aqueles que vêm se opondo às políticas do Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, na condução do país em meio ao acontecimento; de outro, aqueles que o apoiam, apesar de tudo - ou, talvez, por causa de tudo.

Se todo fato já é interpretação, cabe-nos observar que cada interpretação seria também um fato e, assim, estaríamos diante de fatos diferentes. Para uns, uma calamidade sem proporções na história recente, que põe em risco a vida de todos e explicita as fragilidades dos direitos sociais em todo o mundo; para outros - cito agora declarações do presidente (UOL, 2020) - “uma pequena crise” ou “fantasia” (10 de março de 2020), “histeria” (17 de março), “uma gripezinha” (20 de março) e até mesmo um... “E daí?” (28 de abril).

Estamos diante de um acontecimento, do “encontro de uma atualidade e uma memória” (PÊCHEUX, 2008PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni P. Orlandi. 5. ed. Campinas: Pontes, [1983] 2008. [1983], p.17), que potencializa, na linguagem, essa emergência de um mundo “não-logicamente-estável” (PÊCHEUX, 2008 [1983], p. 43), essa evidenciação de que todo fato já é interpretação e que, por isso, demanda toda uma forma social de administração dos sentidos. É sobre isso que se debruça a Análise de discurso materialista (AD): esse ponto de articulação entre a história e o simbólico, entre ideologia e linguagem, o discurso como “efeito de sentido entre [interlocutores]” (PÊCHEUX, 2019 [1969], p. 39).

Interessam-nos, no presente trabalho, os sentidos produzidos acerca do espaço e de sua administração, durante a pandemia, em tensão com a memória discursiva. O geógrafo afro-brasileiro Milton Santos (2012SANTOS, M. Pensando o espaço do homem. 5. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, [1982] 2012. [1982]), ao atentar para a simbolização do espaço e, de certa forma, a espacialização dos símbolos, observa que “[a] paisagem, certo, não é muda, mas a percepção que temos dela está longe de abarcar o objeto em sua realidade” (SANTOS, 2012SANTOS, M. Pensando o espaço do homem. 5. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, [1982] 2012. [1982], p. 35). Disso decorre que o espaço seja objeto de discursos que o interpretam e significam, ou seja, que o espaço é ele mesmo discurso. Conforme De Certeau,

Um lugar é […] uma configuração instantânea de posições. Implica uma indicação de estabilidade.

Existe espaço sempre que se tomam em conta vetores de direção, quantidades de velocidade e a variável tempo. O espaço é um cruzamento de móveis. É de certo modo animado pelo conjunto dos movimentos que aí se desdobram. Espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflituais ou de proximidades contratuais. (DE CERTEAU, 1998DE CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Trad. Ephraim F. Alves. 3. ed. Petrópolis: Vozes, [1980] 1998. [1980], p. 202)

Podemos dizer que o lugar estaria para a forma e para a função, como o espaço estaria para o sentido e para o funcionamento. A AD se constitui, de certa forma, como uma disciplina que tem por objeto o(s) espaço(s) dos sentidos. Uma série de seus conceitos basilares se apropria da metáfora do espaço como meio para sua conceptualização: interdiscurso, entremeio, formação discursiva etc. Em suma, conceitos-espaços e fronteiras que ajudam o analista de discurso a “situar” e a descrever os deslocamentos e delimitações dos sentidos1 1 Retomo aqui o título do artigo de Pêcheux, “Delimitações, inversões e deslocamentos” (PÊCHEUX, [1982] 1990). .

O próprio emprego do termo “sentidos”, em detrimento de significação, explicita essa relação com a questão do movimento, da direcionalidade que o processo discursivo impõe à interpretação de textos. É essa movimentação que interessa ao analista de discurso, uma vez que se compreende que os enunciados produzem um efeito de significação (de sentido sedimentado) a partir de suas relações com as posições-sujeito. Em física mecânica, movimento é a variação de posição espacial de um objeto em relação a um referencial no decorrer do tempo; em AD, o efeito de sentido é produto da perspectiva de uma posição-sujeito na história.

Assim, o interdiscurso (PÊCHEUX, 2009PÊCHEUX, M. Semântica e discurso. Trad. Eni P. Orlandi et al. 4. ed. Campinas: Editora da Unicamp, [1975] 2009. [1975]) é esse espaço não estratificado de circulação dos sentidos, em velocidade infinita - algo que podemos aproximar do plano de imanência de que tratam Deleuze e Guattari:

O movimento tomou tudo, e não há lugar nenhum para um sujeito e um objeto que não podem ser senão conceitos. O que está em movimento é o próprio horizonte […] O que define o movimento infinito é uma ida e volta, porque ele não vai na direção de uma destinação sem já retornar sobre si. (DELEUZE; GUATTARI, 1992DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Ed. 34, 1992., p. 54)

É o interdiscurso, portanto, espaço da memória, onde os sentidos estão sempre-já-lá, sem autoria, sem referência, recuperados na atualização da produção discursiva. E por ser ele próprio horizonte, o interdiscurso como um todo não pode ser apreendido, mas apenas reconhecido, nos textos analisados, a partir do modo como nele se inscrevem as formações discursivas diversas. Maingueneau, por isso, define interdiscurso como “um espaço de trocas entre vários discursos convenientemente escolhidos” (MAINGUENEAU, 2008MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Trad. Sírio Possenti. São Paulo: Parábola Editorial, 2008., p. 20) pelo analista, de acordo com a hipótese de sua pesquisa, e operacionaliza seu conceito abstrato dividindo-o em três níveis: universo discursivo, campo discursivo e espaço discursivo - que é o conjunto construído pelo analista para fins de análise, ou seja, aquilo que ele “seleciona” ou “recorta” do campo discursivo.

O interdiscurso é a base do princípio teórico-analítico de que o sentido sempre pode ser outro e, por isso, deve ser administrado, limitado, organizado. Assim, o “como” do sentido (linha em movimento) é apreendido como “o quê” (ponto em repouso, significado evidente e natural).

Há uma força produzida pela ideologia para “normalizar” esse fluxo constante, que torna o “como” em “o quê”. E a ideologia geral, como teorizou Althusser (1996 [1970]), não possui exterior, assim como o interdiscurso, mas se particulariza em ideologias. Se não há um “fora” da ideologia, isso significa que ela não é tomada, pela AD, como ocultamento da verdade, mas como um processo de produção de evidências, que faz com que a interpretação de um fato seja tomada como o próprio fato.

O que a ideologia oculta é o próprio processo de interpretação necessário, que ela impõe ao sujeito. Sentido e sujeito emergem concomitantemente como efeito ideológico. Voltando à física mecânica, se os sentidos se deslocam em velocidade infinita no interdiscurso, a ideologia é a força da gravidade - invisível - que faz com que eles assentem (provisória, ou melhor: aparentemente) em determinada posição, sempre relativa a.

Essa composição de forças (velocidades infinitas e gravidade) produz sítios de significância, que funcionam como a matriz de sentidos - as formações discursivas, caracterizadas pelo modo como se inscrevem no interdiscurso. É a partir de sua entrada em uma formação discursiva que o sujeito pode atribuir sentido e produzir enunciados, dotados de sentido, exercendo a função-autor. Essa compreensão está na raiz dos dois esquecimentos de que nos fala Pêcheux ([1975] 2009): um deles diz respeito ao ocultamento da ideologia, produzindo a ilusão de que somos a origem de nosso dizer, quando remetemos sempre a sentidos preexistentes; o outro diz respeito ao ocultamento do simbólico, produzindo a ilusão de que há uma relação direta entre palavra, pensamento e mundo.

“Quarenteners” e “cloroquiners” são remetidos, assim, a duas formações discursivas diferentes, em relação polêmica, dentro de um espaço discursivo, a partir das quais são produzidos enunciados e sentidos em torno desse “real” da pandemia. Em cada uma delas, temos um fato, uma interpretação diferente para uma mesma realidade, inacessível diretamente.

Imaginemos uma situação alegórica: dois vizinhos, cada um em seu sítio (de significância), que brigam através da cerca que separa as propriedades na qual estão alojados, de onde adquirem sua identidade. A cerca é feita de estacas de madeira fina, ligadas por arame farpado - se pode ver mais ou menos o que existe do outro lado, mesmo que com distorções, promovendo aquilo que Maingueneau (2008MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Trad. Sírio Possenti. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.) chama de interincompreensão; um elemento pode passar de um espaço ao outro; e, o mais importante, a cerca pode ser deslocada. A alegoria da cerca indica ainda um aspecto central na configuração das formações discursivas, o fato de elas serem definidas não tanto pelo seu interior, mas por suas fronteiras.

“Quarenteners” e “cloroquiners” caracterizam-se, portanto, pelo modo como vão delimitar essas fronteiras que os separam, pelo modo como se diferenciam um do outro. Consideramos como um dos muitos pontos de contato e separação a interpretação/fato da pandemia de Covid-19. De acordo com Pêcheux,

O sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição [acrescentaríamos, de um fato] etc., não existe “em si mesmo” (isto é, em sua relação transparente com a literalidade do significante), mas, ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico (PÊCHEUX, 2009PÊCHEUX, M. Semântica e discurso. Trad. Eni P. Orlandi et al. 4. ed. Campinas: Editora da Unicamp, [1975] 2009. [1975], p. 146).

No curso da história recente, essa cerca mudou de lugar algumas vezes - nada substancial, nada que tornasse os dois sítios uma única comunidade, mas pequenos deslocamentos. Do “Não há motivo de pânico”, em 6 de março de 2020, a “O vírus está aí. Vamos ter que enfrentá-lo, mas enfrentar como homem, porra. Não como moleque”, em 29 de março (VANNUCHI, 2020VANNUCHI, C. A pandemia de Covid-19 segundo Bolsonaro: da “gripezinha” ao “e daí?” UOL Notícias, 30 abr. 2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/camilo-vannuchi/2020/04/30/a-pandemia-de-covid-19-segundo-bolsonaro-da-gripezinha-ao-e-dai.htm. Acesso em: 1 jun. 2020.
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), a impressão que se tem é que “quarenteners” e “cloroquiners” passaram a compartilhar alguns centímetros de terra. Parece ter havido algum consenso quanto ao fato, ainda que não quanto ao modo de encará-lo. A interincompreensão e a identificação de uma formação discursiva na relação com a outra se estabelece por uma espécie de jogo de traduções: se para “quarenteners” há motivo para pânico, para “cloroquiners” não há; se para “quarenteners” o enfrentamento à pandemia se dá pela quarentena extensa e intensiva, para “cloroquiners” isso seria “enfrentar como um moleque o vírus”. Esse funcionamento indica o caráter vazado, aberto das fronteiras, ao mesmo tempo que a determinação ideológica dos sentidos a partir de posições-sujeito diferentes: aquilo que é visto de um lado como algo, é visto de outra maneira do outro.

No entanto, a partir do momento em que se produz: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?”, 28 de abril (VANNUCHI, 2020VANNUCHI, C. A pandemia de Covid-19 segundo Bolsonaro: da “gripezinha” ao “e daí?” UOL Notícias, 30 abr. 2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/camilo-vannuchi/2020/04/30/a-pandemia-de-covid-19-segundo-bolsonaro-da-gripezinha-ao-e-dai.htm. Acesso em: 1 jun. 2020.
https://noticias.uol.com.br/colunas/cami...
), é como se “quarenteners” e “cloroquiners” resolvessem transformar essa cerca de madeira e arame em um muro de pedra. Nada que não possa ser derrubado, nada que impeça completamente a visão, mas um muro de pedra.

Claro que essa alegoria é esquemática e não dá conta da complexidade do problema sobre o qual se dedica a AD, mas nos permite compreender um pouco do funcionamento discursivo. Enquanto havia a produção de enunciados polêmicos disputando sentido acerca do fato, havia uma configuração; a partir do momento em que se percebe que não se discute tanto o fato, mas valores em torno da vida e do dinheiro, a relação é transformada. Há dois sistemas-mundo em conflito, cujas matrizes ideológicas de significação divergem profundamente.

É na cadeia discursiva, longitudinalmente, que o analista constrói a representação das formações discursivas: o espaço é função no tempo. Esses sítios de significância são apenas representações conceituais que recobrem um momento, um tipo de interação, produzido a partir da hipótese de trabalho do analista - trata-se de “espaços”, de algo constituído de movimentações, na sua relação com o tempo; não de “lugares” estáveis, mas de “posições”, relativas e transitórias. Nessa análise, também a posição do analista é um elemento importante, por isso há a necessidade de um dispositivo teórico-metodológico que vise a dessubjetivação ao máximo da interpretação dos fatos (PÊCHEUX, 2019PÊCHEUX, M. Análise automática do discurso. Trad. Eni P. Orlandi e Greciely Costa. Campinas: Pontes, [1969] 2019. [1969]) e não dos dados. Como observa Zoppi-Fontana,

[a] noção de fato permite desnaturalizar a relação com a realidade empírica, questionando a possibilidade de ter um acesso direto a dados “puros”, independentemente da abordagem teórica assumida. Trabalhar na análise com a noção de fato implica partir do pressuposto de que todo recorte do real se constitui já como uma leitura, realizada a partir de uma determinada matriz teórica. (ZOPPI-FONTANA, 1998ZOPPI-FONTANA, M. G. Cidade e discurso: paradoxos do real, do imaginário, do virtual. Rua, Campinas, n. 4, p. 39-54, 1998., p. 40)

Essa alegoria dos sítios - esquemática como toda alegoria - nos permite traçar paralelos com aquilo que nos interessa aqui analisar: os sentidos do espaço, o modo como os enunciados, em tempos de pandemia, fizeram emergir significações e atribuições de sentido naturalizadas - significações e sentidos que, podemos adiantar, são compartilhados por “quarenteners” e “cloroquiners”. Isso faz da pandemia um acontecimento discursivo, o encontro disruptivo de uma atualidade com uma memória discursiva (PÊCHEUX, 2008PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni P. Orlandi. 5. ed. Campinas: Pontes, [1983] 2008. [1983]), essa dos sentidos normalizados em torno do espaço - da casa, da rua, do aeroporto, do que privado e do público…

De certa forma podemos compreender esse acontecimento como uma revolução, uma vez que “concerne por diversas vias ao contato entre o visível e o invisível, entre o existente e o alhures, o não-realizado e o impossível, entre o presente e as diferentes modalidades por ausência” (PÊCHEUX, 1990PÊCHEUX, M. Delimitações, inversões, deslocamentos. Trad. José Horta Nunes. Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, v.19, p.7-24, [1982] 1990. [1982], p. 8). Em suma, acontecimento que põe a descoberto esses deslocamentos e delimitações inerentes à linguagem, em sua relação com o histórico.

Quando falamos “revolução” falamos em transformação profunda, em deslocamento de um estado de coisas, mas principalmente falamos em algo que “revolve, agita, movimenta” o que está aparentemente sedimentado, estabilizado; algo que coloca em xeque o “mundo semanticamente normal” (PÊCHEUX, 2008PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni P. Orlandi. 5. ed. Campinas: Pontes, [1983] 2008. [1983], p. 34) produzido por esse processo ideológico básico de que a AD tanto fala.

Devemos compreender, porém, que - aproveitando a física, como o fizemos antes - uma força que, aplicada a um objeto, pode fazer com que um objeto em repouso entre em movimento se depara com uma força diametralmente oposta, uma resistência. Há essa propriedade geral da matéria (a inércia), segundo a qual há uma tendência de não se alterar o estado de um objeto. Por isso, pudemos fazer a alegoria do muro anteriormente: esse movimento de reação parece tornar a relação entre as formações discursivas em pauta muito mais esquemáticas e com fronteiras muito mais nítidas.

Nesse jogo discursivo em que sentidos diversos entram em confronto, há uma tendência à conservação. Tem-se falado em “novo normal”, mas ele é muito mais normal (regularizado, sedimentado historicamente) do que novo (disruptivo, acontecimental). Em AD não se costuma falar em novo sentido ou sentido antigo, mas em sentido outro. E a ideia de que o normal é estável contraria a concepção vitalista de Canguilhem (2011CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Trad. Maria Thereza R. C. Barrocas. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, [1966] 2011. [1966]). De acordo com o autor, apenas a doença é verdadeiramente conservadora; o normal vital exige a mudança e a constante adaptação. Da mesma forma, Hardt e Negri (2001HARDT, M.; NEGRI, A. Império. Trad. Berilo Vargas. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.) defendem o conservadorismo do sistema capitalista de produção:

A história das formas capitalistas é sempre, necessariamente, uma história reativa: entregue a seus próprios expedientes, o capital nunca abandonaria um regime de lucro. Em outras palavras, o capitalismo só se submete a transformações sistêmicas quando é obrigado, e quando o regime atual se torna insustentável. (HARDT; NEGRI, 2001HARDT, M.; NEGRI, A. Império. Trad. Berilo Vargas. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001., p. 289)

O que esse acontecimento da pandemia do novo coronavírus nos permite, através do movimento de revolução que impõe, é que nós possamos perceber aquilo que não está adequado, que assenta mal2 2 Os movimentos antirracistas que se disseminaram, nos Estados Unidos, a partir das últimas semanas de maio de 2020, após a morte de George Floyd por um policial do Minnesota, são um indicativo do modo como o acontecimento da pandemia potencializa um deslocamento, uma “revolução”. . Não é apenas o vírus, corpo estranho, que impõe um meio e uma realidade aos indivíduos; o vírus nos permite ver instâncias conservadoras outras que nos são impostas e que lutam para se manter.

Para tanto, observaremos como o espaço se configura a partir dos regimes de poder disciplinar e biopolítico, em peças publicitárias desenvolvidas pelo poder público, fazendo emergir uma determinada forma de organização política do público e do privado; em seguida, analisaremos o termômetro infravermelho, como um dos mecanismos da sociedade de controle, atrelado à necropolítica. Ao longo da análise, observa-se a manutenção de uma série de divisões e controles sociais diferentemente distribuídos, dentro do espectro raça/classe/nacionalidade, que se mobilizam a partir de duas imagens: a de “cenário de um drama” e a de “zona de guerra”.

2 SENTIDOS DO ESPAÇO: A CASA E A RUA, O PRIVADO E O PÚBLICO

Pêcheux afirma que existe uma necessidade universal - no sentido de geral, não no sentido de uma característica essencial do ser humano - de um “mundo semanticamente normal” (PÊCHEUX, 2008PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni P. Orlandi. 5. ed. Campinas: Pontes, [1983] 2008. [1983], p.34). Trata-se daquele efeito ideológico de estabilização dos sentidos, normatizador por excelência, que nos faz pensar que tudo é como tem que ser, que todo sentido é o único sentido. Ele vai dizer ainda que

[...] essa necessidade universal de um “mundo semanticamente normal”, isto é, normatizado, começa com a relação de cada um com seu próprio corpo e seus arredores imediatos (e antes de tudo com a distribuição de bons e maus objetos, arcaicamente figurados pela disjunção entre alimento e excremento). (PÊCHEUX, 2008PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni P. Orlandi. 5. ed. Campinas: Pontes, [1983] 2008. [1983], p. 34)

Essa estabilização dos sentidos focaliza, inicialmente, repetimos, “o corpo e os arredores imediatos”, o corpo e o espaço que ele ocupa. Esse é também o ponto onde começa a sua desestabilização, no caso do acontecimento da pandemia de Covid-19. A facilidade e velocidade de contágio do vírus e os sintomas que desencadeia promovem uma série de discursos sobre o corpo e o espaço, pondo em xeque a “mundialização” e a dissolução das fronteiras políticas e econômicas a ela relativas, assim como a arraigada proclamação da “liberdade” e do “Estado mínimo”, que atravessa o discurso neoliberal.

O corpo e o espaço que ele ocupa são o alvo e o meio mobilizados tanto pelas estratégias de poder, como aponta Foucault (2010FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito. Trad. Márcio A. Fonseca e Salma T. Muchail. São Paulo: Martins Fontes, [1982] 2010. [1975]; 2008 [1978]), quanto pelo processo capitalista de produção, como apontava Marx (2017MARX, K. O Capital - Livro I: O processo de produção do capital. Trad. Rubens Enderle. 2. ed. São Paulo: Boitempo, [1867] 2017. [1867]). De acordo com este autor, na economia industrial o trabalho, como potência corporificada no proletário, produzia, através da administração de seu tempo no interior da fábrica, mais-valia para o dono dos meios de produção. Nessa forma de produção, a relação tempo/espaço é extremamente esquadrinhada por uma administração detalhista do empregador, de modo a extrair mais-trabalho e, consequentemente, mais-produto e mais-valia.

Essa análise marxista sobre a jornada de trabalho se aproxima da noção de regime disciplinar teorizada por Foucault (2010FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito. Trad. Márcio A. Fonseca e Salma T. Muchail. São Paulo: Martins Fontes, [1982] 2010. [1975]), como aponta o geógrafo David Harvey (2013HARVEY, D. Para entender O Capital, livro I. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013.). Ele defende que toda a reflexão marxista sobre o trabalho interno à fábrica, a organização do tempo de jornada de trabalho e a utilização do corpo do trabalhador como meio de produção está em consonância com as reflexões de Foucault acerca da sociedade disciplinar. Diz esse que “[a] disciplina procede em primeiro lugar à distribuição dos indivíduos no espaço” (FOUCAULT, 2010FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito. Trad. Márcio A. Fonseca e Salma T. Muchail. São Paulo: Martins Fontes, [1982] 2010. [1975], p. 137), seja pela criação de espaços cercados e vigiados, diferenciados de todos os outros, seja pelo que ele chama de quadriculamento:

Cada indivíduo no seu lugar; e em cada lugar, um indivíduo. Evitar as distribuições por grupos; decompor as implantações coletivas; analisar as pluralidades confusas, maciças e fugidias. O espaço disciplinar tende a se dividir em tantas parcelas quan[t]o corpos ou elementos há a repartir. […] A disciplina organiza um espaço analítico. (FOUCAULT, 2010FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito. Trad. Márcio A. Fonseca e Salma T. Muchail. São Paulo: Martins Fontes, [1982] 2010. [1975], p. 138)

Essa organização do espaço permite uma vigilância e um processo de normatização dos comportamentos dos indivíduos, a partir de uma rede descentralizada do poder. Todos ocupam seus lugares, todos são categorizados a partir de seus lugares e o poder não está em um lugar, mas em toda parte: na relação entre os indivíduos, na docilização dos corpos, na relação consigo através da governamentabilidade, compreendida aqui como “uma ética do sujeito definido pela relação de si para consigo” (FOUCAULT, [1982] 2010, p. 225).

A “norma” exerce aqui uma função determinante que vai organizar essas posições institucionais e atuar no processo de subjetivação. Os indivíduos são categorizados dentro de um continuum quantitativo, baseado em um modelo de normalidade, e sobre eles se gera uma série de registros. No entanto, a norma também vai servir ao controle dos fluxos dos indivíduos. Atrelado ao regime disciplinar, há o biopoder. Se o primeiro se dirige ao corpo individualizado, este último dirige-se ao corpo social, ao controle da população.

Pode-se dizer que o elemento que vai circular entre o disciplinar e o regulamentador [biopoder], que vai se aplicar, da mesma forma, ao corpo e à população, que permite a um só tempo controlar a ordem disciplinar do corpo e os acontecimentos aleatórios de uma multiplicidade biológica, esse elemento que circula entre um e outro é a “norma”. (FOUCAULT, 2010FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito. Trad. Márcio A. Fonseca e Salma T. Muchail. São Paulo: Martins Fontes, [1982] 2010. [1976], p. 212-213)

Se a norma, no âmbito do poder disciplinar, comporta-se como uma lei - do lado da moralidade e do discurso do direito -, no âmbito do poder regulamentador, comporta-se como outra lei - do lado da natureza e do discurso da biologia. Se, no poder disciplinar, importam sobretudo a fábrica, o quartel, a escola, a prisão e o hospital, no poder regulamentador a rua, as estradas e as fronteiras são focalizados. Se, no poder disciplinar, é a inscrição dos corpos no espaço que importa, no poder regulamentador é a distribuição de fluxos e variáveis que interessa.

As duas formas de poder são mobilizadas no tratamento de uma epidemia. Para tanto, observaremos o que Foucault fala sobre o tratamento da peste e da varíola, em Segurança, território, população (2008FOUCAULT, M. Segurança, território, população. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, [1978] 2008. [1978]).

Trata-se, inicialmente, de quadrilhar as regiões, as cidades no interior das quais existe a doença. Em 26 de fevereiro de 2020, o Ministério da Saúde confirmou o “primeiro caso de coronavírus no Brasil”, “em São Paulo” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2020a); em 5 de março, surgem oito casos confirmados em cidades de três estados (SANARMED, 2020); em 11 de março, já são oito estados com casos confirmados; em 19 de março, vinte estados e o distrito federal. Não basta, porém, observar o número de contagiados no interior dos estados, é preciso saber as cidades e, nas cidades, os bairros. O espaço vai sendo quadriculado de modo que se possam estabelecer medidas disciplinares. A partir disso, começa-se a indicar “às pessoas quando podem sair, como, a que horas, o que devem fazer em casa, que tipo de alimentação devem ter, proibindo-lhes este ou aquele tipo de contato” (FOUCAULT, [1978] 2008, p. 14).

Não é apenas a injunção à quarentena, também uma série de comportamentos são explicitados. Aquilo que seria de ordem privada, que não gerava anteriormente uma intervenção tão clara do Estado e da mídia, começa a ser visibilizado. Recebemos informações sobre os alimentos que fortalecem o sistema imunológico, sobre a maneira correta de lavar as mãos, sobre a forma como devemos nos comportar quando voltamos para casa após ir à rua, sobre como limpar a casa.

Na Figura 1, observa-se a presença desse poder individualizado, que se opera no corpo e na dimensão particular do indivíduo. No enunciado “Saiba como proteger você e sua família”, há um efeito de performatividade (INDURSKY, 1998INDURSKY, F. A prática discursiva da leitura. In: ORLANDI, Eni P. ( Org.). A leitura e os leitores. Campinas: Pontes, 1998. p. 189-200.) que implica uma posição-sujeito de poder e uma posição-sujeito subalternizada, ignorante acerca dos cuidados envolvidos na doença e que tem uma família. O caráter estatal da peça publicitária e a pessoalização da mensagem - “você”, “sua família” - indicam que a questão particular é de interesse e da ordem de gestão do estado, mas também que as questões do país também são de interesse e da ordem de gestão individual.

Figura 1
Peça publicitária estatal: “Saiba como proteger você e sua família”

A família é o objeto do poder disciplinar e, como tal, deve obedecer a determinadas normas. Há uma regulamentação da casa, aliada a uma interdição da rua. O instrumento de coerção é baseado, não no poder da lei socializada, mas no poder do medo: a necessidade de “proteger” implica sujeitos desprotegidos. Com isso, a casa e a família - que eram “problema meu”, “minha vida”, “meu castelo”, “minha fortaleza” - deixam de ser algo da ordem particular, privada ou íntima. Na verdade, nunca foram, haja vista as lutas constantes em torno de tópicos que beiram a relação entre o público e o privado: a criminalização dos usuários de drogas, a legalização do aborto, a união civil homossexual, o uso de nomes sociais por pessoas transexuais. O que a revolução da pandemia produz é essa necessidade de trazer à tona aquilo que parecia sedimentado e estava “invisível” na superfície: a ausência de uma divisão entre público e privado, na esfera das estratégias do poder disciplinar.

Acessando o site indicado na peça publicitária da Figura 1, encontramos diversos links sob o título “O que você precisa saber”, como podemos observar na Figura 2. Esses links, distribuídos em caixas, oscilam entre a primeira e a segunda pessoas: “Como se proteger”, mas “Se eu ficar doente”, e encaminham o visitante do site para uma lista de recomendações que possuem um efeito performativo de ordens ou de sugestões, dependendo da formação discursiva em que se posiciona o sujeito-leitor.

Dentre esses enunciados destacamos alguns, como em “Evite abraços, beijos e apertos de mãos. Adote um comportamento amigável sem contato físico, mas sempre com um sorriso no rosto”; “Higienize com frequência o celular e os brinquedos das crianças”; “Evite circulação desnecessária nas ruas, estádios, teatros, shoppings, shows, cinemas e igrejas. Se puder, fique em casa” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2020b).

Figura 2
Interface do site do Ministério da Saúde: “Coronavírus: o que você precisa saber”

Os enunciados com efeito-performativo de ordem ou de sugestão não apenas se dirigem a cuidados imediatos com a saúde e a transmissão do vírus, mas ao modo como as pessoas se relacionam entre si. Além disso, ele apresenta, como pré-construído, isto é, como aquilo que “corresponde ao ‘sempre-já-aí’ da interpelação ideológica que fornece-impõe a ‘realidade’ e seu ‘sentido’ sob a forma da universalidade” (PÊCHEUX, 2009PÊCHEUX, M. Semântica e discurso. Trad. Eni P. Orlandi et al. 4. ed. Campinas: Editora da Unicamp, [1975] 2009. [1975], p.151) algo que funciona como uma norma individual. Essa norma, porém, compreende apenas um segmento da população, que também se replicará na Figura 3 (cf. infra).

Além disso, verificamos em “Evite circulação desnecessária […] Se puder, fique em casa” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2020b) uma contraditória relação entre necessidade e possibilidade. Os lugares elencados se configuram, em sua maioria, como espaços de lazer: “estádios, teatros, shoppings, shows [em lugar de casas de espetáculo], cinemas e igrejas”, com exceção de “ruas”. Haveria a presença de um discurso-transverso, efeito do interdiscurso, que atualiza aí uma polarização entre lazer e cultura como algo possível, mas não necessário, e trabalho como algo necessário. Ainda que fuja ao percurso realizado neste trabalho, é válido observar como o estado se mobilizou apenas no sentido de reabrir, dentre esses lugares elencados, apenas as igrejas, ainda que o índice de contágio pelo vírus não tivesse atingido níveis seguros, mas não os outros espaços de lazer.

Em relação às normas individuais que excluem grande parte da população, seria interessante analisar a Figura 3, por reforçar os elementos já presentes nos enunciados a que o site do Ministério da Saúde nos levou.

Figura 3
Peça publicitária estatal: “Como aproveitar o isolamento para fortalecer os vínculos familiares”

Essa peça publicitária, assim como um dos enunciados do site, “Adote um comportamento amigável sem contato físico” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2020b), se preocupa com o “bem-estar” nas relações interpessoais, no caso familiares. A administração do espaço/tempo é o elemento principal dessa disciplinarização da vida privada, da vida “dos outros”.

O coronavírus provocou uma situação de emergência em alguns lugares, mudando o ritmo de vida habitual e influenciando o estado de espírito geral. Nesse cenário, é importante que as famílias estejam serenas, tomem as devidas precauções e se unam de forma leve e otimista. Pensando nisso, sugerimos algumas ideias para tirar grandes aprendizados desse momento desafiador.

Organize o seu tempo.

Reserve um tempo para o casal.

Mantenha a rotina diária…

...criar momentos de bom humor e diversão em família.

Esse enunciado, como os outros aqui trazidos, indica uma “publicização da vida privada”, na maneira como o gerenciamento do tempo no espaço privado e nas relações íntimas tornam-se assunto público, merecendo o cuidado do estado. Nas sequências discursivas recortadas, não se apresenta nenhum indicativo desse espaço da intimidade da casa, mas sua ausência produz sentido. Primeiramente, não é falado “em casa”, “na sua residência” porque isso é dado como óbvio: talvez baste que o título da peça publicitária - “Como aproveitar o isolamento” - indique isso, ou que se fale em família, cuja casa seria o espaço privilegiado. No entanto, outros espaços - físicos ou imaginários - exteriores são evocados: “em alguns lugares” representa esse espaço quadriculado do desenvolvimento da pandemia, enquanto “cenário” representa o espaço transformado pela situação, espaço cênico, do drama - e, no caso, do drama burguês.

De acordo com Szondi (2004SZONDI, P. Teoria do drama burguês. Trad. Luiz Sérgio Repa. São Paulo: Cosac Naify, 2004.), o drama burguês apresenta personagens individualizados a partir de suas relações dentro da família e centra-se na experiência privada. A pandemia como cenário, que observamos ser de um drama burguês, compreende os problemas advindos para a ordem familiar das imposições externas de manutenção da unidade do espaço cênico: a casa. Szondi observa ainda que, no drama burguês, mesmo quando a esfera pública sobressai, importam sobretudo os efeitos de sua ação na esfera privada.

O desenvolvimento de ações nesse espaço, ou seja, do aproveitamento do tempo nele - e o tempo tem um papel crucial nas sociedades capitalistas, assim como a família - é reiterado de diversas maneiras: “momentos”, “rotina”, “ritmo”. Ele também é dividido: o tempo externo do “momento desafiador” e da “[mudança do] do ritmo de vida habitual” e o tempo interno, almejado, dos “momentos de bom humor” e do “tempo para o casal”.

Evidencia-se também em que espaço privado o poder busca atuar, qual é a casa/família que funciona aí como um pré-construído, ou seja, como um construto tratado como neutro, mas determinado sócio-historicamente. O desenho nos dá uma pista: a família branca com um casal heterossexual jovem, dois idosos e um casal de filhos, em que a menina veste rosa e o menino veste azul (o modelo da família burguesa do drama burguês). Por isso, há possibilidade de enunciar, como no site: “Higienize os brinquedos das crianças” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2020b), ao invés de algo mais genérico, como “Higienize objetos de uso pessoal”, ou um enunciado modalizado, “Caso tenha crianças em casa, higienize seus brinquedos”.

Porque se volta ao espaço (casa onde habita, se relaciona a família normatizada) e não apenas ao lugar (cf. DE CERTEAU, supra), as “dicas” da peça publicitária concernem (1) ao tempo de trabalho - “esse tempo de reclusão não é férias” -, (2) ao casal, (3) à subsistência anímica - que também faz parte da construção dessa jornada de trabalho da sociedade capitalista -, (4) aos filhos e (5) aos avós.

Não se trata só de um efeito-leitor heterossexual jovem, mas de um efeito-leitor de classe média ou alta, para quem o isolamento pode funcionar como sinonímia contextual de casa e para quem o trabalho pode ser feito em casa (não é um operário, uma faxineira, um garçom, um porteiro que pode organizar sua rotina de trabalho em isolamento). É a essa classe média, onde se dá o consumo de bens culturais, com filhos e que exerce trabalhos ligados ao terceiro setor, que se voltam as campanhas. Por isso, a imagem do “cenário” remete ao drama burguês, recupera sentidos estabelecidos entre “quarenteners” e “cloroquiners”, mas não compreende toda a população.

O “Fique em casa” das campanhas sobre a pandemia é excludente, por vários motivos: primeiro, porque nem todos podem ficar em casa devido à natureza de seu trabalho; segundo, porque nem toda casa é sinônimo de isolamento; terceiro, porque nem todos têm casa. O “cenário” evocado na Figura 3, cenário que reportamos ao drama, é burguês, porque contempla os desdobramentos da pandemia apenas para determinado grupo social, adequado às normas vigentes na sociedade disciplinar.

Figura 4
Campanha em redes sociais: “#Fiqueemcasa”

Nessa campanha da Figura 4, veiculada nas redes sociais, temos uma série de trabalhadores: uma aeromoça, um bombeiro, dois oficiais de polícia (um homem e uma mulher), um médico, uma enfermeira, um operário da construção civil e uma professora (!) - todos brancos, todos obedecendo a uma lógica de divisão do trabalho por gêneros na ordem heteronormativa, com exceção da policial. Invisibilizam-se as pessoas negras e as ocupações consideradas menos nobres, principalmente dos trabalhadores uberizados.

A “publicização do privado” é acompanhada de seu reverso, uma “privatização da questão pública”, como se vê nessa figura. A quarentena é tomada como uma opção pessoal, de foro íntimo, quando as relações de trabalho e, por conseguinte, as relações de classe são invisibilizadas na construção dessa responsabilidade civil de combate à disseminação da Covid-19. Se antes se apelava para uma questão pessoal, íntima - “Saiba como cuidar de você e da sua família” - agora se trata de cuidar do outro, daqueles que não podem ficar em casa, mas não de todo outro.

O espaço limitado da casa, focalizado pelo poder disciplinar, tem sua contraparte no espaço móvel da rua, focalizado pelo biopoder. Ao mesmo tempo que se observa onde há contágio, observa-se também por onde os portadores do vírus passaram. Naquela primeira notícia sobre um caso confirmado de Covid-19, em São Paulo, afirmava-se que “[a] SES/SP e SMS/SP estão realizando a identificação dos contatos no domicílio, hospital e voo” (MISTÉRIO DA SAÚDE, 2020a).

No biopoder, ou poder regulamentador, não se focaliza tanto a família, mas a população, buscando observar: “quantas pessoas pegaram [a doença], com que idade, com quais efeitos, qual a mortalidade, quais as lesões ou quais as sequelas, […] quais os efeitos estatísticos sobre a população em geral” (FOUCAULT, 2008FOUCAULT, M. Segurança, território, população. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, [1978] 2008. [1978], p. 14). A importância das estatísticas encontra-se na esfera desse poder que visa os indivíduos enquanto membros da espécie, possibilitando a produção do “E daí?” (UOL, 2020) do Presidente da República, uma vez que ela promove o que Anders (apudGROS, 2018GROS, F. Desobedecer. Trad. Célia Euvaldo. São Paulo: Ubu Editora, 2018.) chama de “desrealização”:

O tratamento de massa aniquila a imaginação do semelhante e destrói a sensibilidade para com o próximo, que estão na raiz da compaixão, do sentimento de humanidade. Os números são mudos, fechados em si mesmos, remetem-se a uma parte de cálculo puramente racional e frio em nós. (ANDERS apudGROS, 2018GROS, F. Desobedecer. Trad. Célia Euvaldo. São Paulo: Ubu Editora, 2018., p. 117)

O efeito do biopoder é lidar com a população como um todo, mantê-la em equilíbrio nos números de nascimento e morte; enfoca-se não o indivíduo, mas a espécie, a multidão - por isso a rua e o território, com suas fronteiras, são tão importantes. É necessário observar esses fluxos de grande número de pessoas como forma de controlar os processos biológicos.

Observemos aí a centralidade que o espaço ocupa tanto na disciplina, quanto no biopoder e o modo como ele adquire uma visibilidade especial em situações de epidemia. Em Salvador, algumas vezes por dia, circula um carro de som com a seguinte gravação:

Atenção! Vá pra casa. O coronavírus está causando mortes em todo o mundo. A única vacina é o isolamento. Vá pra casa, não fique na praça, nem na rua. Não coloque em risco a sua vida nem a da sua família. Fique em casa. Prefeitura e você contra o coronavírus. (recolhido pelo autor)

Mais uma vez encontramos a relação casa-isolamento, mas agora observamos também a dicotomização casa X praça/rua/mundo e ir X ficar. Não se trata mais de gerenciar o espaço privado da casa, mas de gerenciar o espaço público da rua e da praça. No entanto, há uma “privatização do público”, porque esse espaço afeta a vida individual e a família. Essa imbricação entre público e privado se torna ainda mais evidente pela última sentença da gravação: “Prefeitura e você contra o coronavírus”.

Não estamos mais diante do cenário do drama burguês, mas da zona de guerra, de combate. Essa zona de guerra, estabelecida pelo acionamento do medo como dispositivo, é compartilhada por compromissos advindos da “publicização do privado” e da “privatização do público”. Se por um lado há a disciplinarização da casa e da família, por outro há o controle, a regulamentação da rua e da praça, a partir de dois agentes. O efeito-leitor aqui não é o mesmo das campanhas do “fique em casa”, ela não se dirige àqueles que podem ficar em casa, como uma “escolha” - ela produz um efeito performativo de outra ordem. Se antes, “você pode ficar em casa”, agora, “você deve ficar em casa”.

3 ESPAÇOS E NÃO-LUGARES: CONTROLE E NECROPOLÍTICA

Os sentidos de espaço público e privado, da casa e da rua vão sendo evidenciados como espaços contínuos também. A rua afeta a casa, a casa afeta a rua; o Estado interfere na casa e a casa interfere no bem-estar público… Estamos não apenas sob o poder disciplinar e o biopoder, mas no funcionamento daquilo que Deleuze chama de “sociedade de controle” (DELEUZE, 1992DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Ed. 34, 1992.), porque, ainda que haja confinamento, há uma forma de controle contínuo que borra as barreiras, controle esse promovido pela comunicação constante e instantânea. “O controle é de curto prazo e de rotação rápida, mas também contínuo e ilimitado, ao passo que a disciplina era a longa duração, infinita e descontínua” (DELEUZE, 1992, p. 228).

A rede social como espaço de transmissão acelerada de informações (falsas e verdadeiras), espaço de hibridização do público e do privado, do lazer e do trabalho é o símbolo dessa forma de poder, que se exerce 24 horas por dia, que promove lucro 24 horas por dia, que focaliza os corpos enquanto repositórios de atenção. Podemos ver nisso aquilo que Pasolini (2020PASOLINI, P. P. O artigo dos vaga-lumes. In: PASOLINI, P. P. Escritos corsários. Trad. Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Ed. 34, [1975] 2020, p. 162-169. [1975]) aborda n’ “O artigo dos vagalumes”: a existência de um “novo poder, poder mais que totalitário porque violentamente totalizante” (PASOLINI, [1975] 2020, p.167), teorizado na ideia de financeirização da economia e do trabalho imaterial (LAZZARATO, 2013LAZZARATO, M. O ciclo da produção imaterial. In: LAZZARATO, M. Trabalho imaterial: formas de vida e produção de subjetividade. Trad. Monica J. Cesar. 2. ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2013. p. 64-73.). De acordo com esse modelo, o trabalho interno à fábrica, cujos espaço e tempo são administrados e seccionados em partes, dá lugar ao trabalho externo, coletivizado, em que a circulação de fluxos de informação e o consumo são o próprio elemento que gera a produção da mais-valia.

Nesse contexto, a homogeneização da arquitetura dos aeroportos tem um papel de destaque. Como aponta Marc Augé (1994AUGÉ, M. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Trad. Maria Lúcia Pereira. 4. ed. Campinas: Papirus, 1994.), os aeroportos funcionam como não-lugares, porque promovem uma disruptura nos limites aparentemente bem definidos das fronteiras nacionais e das relações territoriais. Trata-se de espaços que não se individualizam em si mesmos, mas que funcionam apenas como espaços de fluxo. Esse funcionamento de não-lugar se replica nos duplos virtuais das lojas e dos estabelecimentos, quando se dá check-in nas redes sociais ou quando tais lugares são marcados em fotos.

Da mesma maneira, nas guerras atuais, em que mísseis são lançados por satélite, há uma fronteira entre não-lugar e espaço habitado. Os combatentes não precisam sair de casa, operam tudo a partir de um não-lugar virtual para um outro não-lugar, a zona de guerra visualizada por tela, mas esses não-lugares virtuais são os espaços reais de vida de outras pessoas. Na zona de guerra contra o coronavírus, a maneira prescrita para se vencer a guerra é igualmente a permanência dos “soldados” em suas casas, no cenário do drama burguês; no entanto, pessoas vivem e ocupam esses espaços reais.

No aeroporto, também existem dois “foras”: um que é espaço, a cidade depois da alfândega e da polícia federal; outro que é igualmente não-lugar, o avião e sua “região internacional”. Na passagem de um para outro, temos o controle do fluxo: quem chega e quem sai, tomado como números, senhas, como apontado por Deleuze (1992DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Ed. 34, 1992.).

A pandemia inseriu um novo instrumento, além das sofisticadas máquinas de raio-x, nessa passagem do não-lugar ao lugar do aeroporto: o termômetro infravermelho. Em estudo anterior (SILVA, 2015SILVA, L. F. A. Cartografias da normalização: discursos da heterossexualidade masculina. 2015. 161 f. Dissertação (Mestrado em Letras) - Instituto de Letras, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.), analisamos o termômetro analógico e como ele era determinado e determinante da sociedade disciplinar em que foi criado. Trata-se de um instrumento de “interpretação” do corpo, que retira do corpo uma informação, para indicar procedimentos de “normalização” aplicados a ele. Esse instrumento tem uma relação direta com o espaço físico, isto é, precisa ser colocado em seu espaço vizinho e apresenta um visor que explicita um continuum que tem a normalidade como padrão (os 37o C).

O termômetro infravermelho, instrumento da sociedade de controle, mede a temperatura à distância, apresenta como resultado apenas um número (uma cifra) assim como o indivíduo medido é considerado; mais um número, além do número do passaporte, do cartão de crédito... Além disso, ele serve não tanto à normalização do corpo doente, mas à transformação dos seus fluxos - caso o termômetro indique que alguém está com febre, essa pessoa é deslocada de seu trajeto esperado.

No entanto, o que chama mais atenção no termômetro infravermelho que vem sendo utilizado é sua forma. Se o termômetro analógico mimetiza a régua, instrumento da lei e da medida do padrão de normalidade, o termômetro infravermelho mimetiza uma arma.

É significativo que grande parte das imagens de aeroportos em que estão sendo usados os termômetros infravermelhos apresentem pessoas negras ou não-brancas como alvo desses dispositivos3 3 Apresentamos outros quatro exemplos (com a finalidade de não sermos exaustivos), nos quais se pode observar a recorrência de as fotos apresentadas em portais de notícias mostrarem pessoas racializadas sendo “alvejadas” pelo termômetro infravermelho digital em formato de arma. 1) TERMÔMETROS Digitais começam a ser usados em Aeroporto Senador Nilo Coelho. G1, 23 mar. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/pe/petrolina-regiao/noticia/2020/03/23/termometros-digitais-comecam-a-ser-usados-em-passageiros-no-aeroporto-senador-nilo-coelho.ghtml. Acesso em: 20 nov. 2021. 2) USO de termômetro infravermelho enfrenta resistência na Grande Florianópolis. NSC Total, 5 set. 2020. Disponível em: https://www.nsctotal.com.br/colunistas/renato-igor/uso-de-termometro-infravermelho-enfrenta-resistencia-na-grande-florianopolis. Acesso em: 20 nov. 2021. 3) NOTÍCIA falsa: o laser infravermelho do termômetro faz mal! UFRGS, 3 set. 2020. Disponível em: https://www.ufrgs.br/coronavirus/base/artigo-noticia-falsa-o-laser-infravermelho-do-termometro-faz-mal/. Acesso em: 20 nov. 2021. 4) MEDIR a temperatura no pulso não adianta, diz especialista que explica o porquê. Vix, 22 jan. 2021. Disponível em: https://www.vix.com/pt/saude/593656/medir-a-temperatura-no-pulso-nao-adianta-diz-especialista-que-explica-o-porque. Acesso em: 20 nov. 2021. . Isso produz um paralelo com as batidas e blitz que vêm sendo responsáveis, em parte, pelo genocídio do povo negro, a que Abdias Nascimento (2016NASCIMENTO, A. O genocídio do povo negro. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2016.) chamava atenção desde a década de 1970, e com as cenas de coerção dos países do Norte global contra a imigração de africanos e árabes, alvos também da guerra high-tech.

Figura 5
Termômetro infravermelho em uso

Figura 6
Termômetro infravermelho em uso (2)

O pensador camaronês Achille Mbembe (2018) cunhou o conceito de necropolítica para dar conta dessa outra face do biopoder, aquela que não visa à conservação da vida da espécie, mas que fragmenta o espaço, proíbe o acesso a certas zonas e organiza o poder assassino do Estado que tem como regra o “estado de exceção”, isto é, a guerra continuada. Há uma zona de guerra simbólica ou concreta, estatizada nas forças militares e na militarização da polícia, que se manifesta na inversão do aforismo de Clausewitz proposta por Foucault: “a política é guerra continuada por outros meios” (FOUCAULT, [1976] 2010). A necropolítica compreende essa polarização da sociedade e constrói a figura de inimigos: não só a Covid-19, mas uma parcela da população, a que nem “quarenteners” nem “cloroquiners” dão atenção.

Estamos em guerra uns contra os outros; uma frente de batalha perpassa a sociedade inteira, contínua e permanentemente, e é essa frente de batalha que coloca cada um de nós num campo ou no outro. Não há sujeito neutro. Somos forçosamente adversários de alguém. (FOUCAULT, 2010FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito. Trad. Márcio A. Fonseca e Salma T. Muchail. São Paulo: Martins Fontes, [1982] 2010. [1976], p. 43)

O espaço é a matéria-prima também do poder necropolítico, que se produz através da “dinâmica de fragmentação territorial” (MBEMBE, 2018, p. 43), através de táticas de sítio. Da mesma maneira como, no aeroporto, a arma-termômetro controla a entrada de possíveis agentes infectados pelo coronavírus, as armas policiais nas blitz controlam o fluxo de moradores das periferias das cidades para/nas regiões mais valorizadas.

Como espaços sitiados, as periferias das cidades são esses espaços desqualificados para o poder disciplinar, onde as casas não significam isolamento e as famílias não replicam a norma do drama burguês, que observamos anteriormente. São a zona de guerra em tempos de paz, onde vive a maior parte da população não-branca e negra do país, em virtude das consequências do racismo estrutural e dos mecanismos de manutenção do regime colonial-escravocrata (ALMEIDA, 2018ALMEIDA, S. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.).

A arma de fogo e a correlata arma-termômetro aliam-se, nesse projeto necropolítico, à precariedade dos serviços públicos de saúde, transporte e educação, bem como de moradia, que aumenta consideravelmente a relação casa/habitantes em comparação com outras regiões da cidade.

Enquanto “cloroquiners” e “quarenteners” se ocupam da casa e da rua, dentro do espaço do drama burguês e combatem o vírus de casa, grande parte da população está na zona de guerra, ocupando um outro “não-lugar” - a fronteira entre o direito de viver pretensamente universal e o abandono à morte.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo do presente trabalho, foi possível observar como os regimes de poder e suas correspondentes formas de produção de sentidos do espaço configuram dois modelos - o do cenário do drama burguês e o da zona de guerra -, um dos quais voltado à preservação dos fluxos biológicos e à manutenção da vida, o outro voltado ao arbítrio institucionalizado sobre as vidas que valeriam menos e o direito assassino do Estado.

O geógrafo Milton Santos nos chama atenção para o fato de que “o espaço [é] utilizado […] como veículo do capital e instrumento da desigualdade social, mas [que] uma função diametralmente oposta poderá ser-lhe encontrada” e que acredita “ser impossível chegar a uma sociedade mais igualitária sem reformular a organização do seu espaço” (SANTOS, 2012SANTOS, M. Pensando o espaço do homem. 5. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, [1982] 2012. [1982], p. 74).

O acontecimento da pandemia promove o encontro entre essa atualidade - das organizações diferenciais do espaço, com uma memória discursiva que valoriza uma norma heterossexual-burguesa e ao mesmo tempo mantém as disparidades inerentes à colonialidade. Como também aponta Santos, “a estrutura do espaço é a instância social de mais lenta metamorfose e transformação” (SANTOS, 2012SANTOS, M. Pensando o espaço do homem. 5. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, [1982] 2012. [1982], p. 75). No entanto, se o espaço se encontra, como vimos, entre a história e a atualidade, se ele é produzido, é passível de transformação.

Compreender se a pandemia de Covid-19 se tornará revolução, no sentido de uma transformação profunda desses espaços, só será possível futuramente; afinal, como vimos, há a força da inércia, de preservação de um estado de coisas. Por outro lado, podemos observar que há “revolução” dos sentidos do espaço, que possibilita uma compreensão das desigualdades de classe que se sobrepõem ao caráter “biologicamente” democrático da doença - primeiro passo em direção ao desejo de transformação, como os eventos antirracistas desencadeados a partir de maio de 2020 nos mostram.

REFERÊNCIAS

  • ALMEIDA, S. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.
  • AUGÉ, M. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Trad. Maria Lúcia Pereira. 4. ed. Campinas: Papirus, 1994.
  • CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Trad. Maria Thereza R. C. Barrocas. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, [1966] 2011.
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  • ZOPPI-FONTANA, M. G. Cidade e discurso: paradoxos do real, do imaginário, do virtual. Rua, Campinas, n. 4, p. 39-54, 1998.
  • 1
    Retomo aqui o título do artigo de Pêcheux, “Delimitações, inversões e deslocamentos” (PÊCHEUX, [1982] 1990).
  • 2
    Os movimentos antirracistas que se disseminaram, nos Estados Unidos, a partir das últimas semanas de maio de 2020, após a morte de George Floyd por um policial do Minnesota, são um indicativo do modo como o acontecimento da pandemia potencializa um deslocamento, uma “revolução”.
  • 3
    Apresentamos outros quatro exemplos (com a finalidade de não sermos exaustivos), nos quais se pode observar a recorrência de as fotos apresentadas em portais de notícias mostrarem pessoas racializadas sendo “alvejadas” pelo termômetro infravermelho digital em formato de arma.
    • 1) TERMÔMETROS Digitais começam a ser usados em Aeroporto Senador Nilo Coelho. G1, 23 mar. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/pe/petrolina-regiao/noticia/2020/03/23/termometros-digitais-comecam-a-ser-usados-em-passageiros-no-aeroporto-senador-nilo-coelho.ghtml. Acesso em: 20 nov. 2021.

    • 2) USO de termômetro infravermelho enfrenta resistência na Grande Florianópolis. NSC Total, 5 set. 2020. Disponível em: https://www.nsctotal.com.br/colunistas/renato-igor/uso-de-termometro-infravermelho-enfrenta-resistencia-na-grande-florianopolis. Acesso em: 20 nov. 2021.

    • 3) NOTÍCIA falsa: o laser infravermelho do termômetro faz mal! UFRGS, 3 set. 2020. Disponível em: https://www.ufrgs.br/coronavirus/base/artigo-noticia-falsa-o-laser-infravermelho-do-termometro-faz-mal/. Acesso em: 20 nov. 2021.

    • 4) MEDIR a temperatura no pulso não adianta, diz especialista que explica o porquê. Vix, 22 jan. 2021. Disponível em: https://www.vix.com/pt/saude/593656/medir-a-temperatura-no-pulso-nao-adianta-diz-especialista-que-explica-o-porque. Acesso em: 20 nov. 2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    04 Jun 2020
  • Aceito
    08 Nov 2021
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