Open-access “MONSTRO DE OLHOS VERDES”: UMA ANÁLISE PRAGMÁTICO-COGNITIVA DA MANIPULAÇÃO DE IAGO EM OTELO, DE SHAKESPEARE

“GREEN-EYED MONSTER”: A PRAGMATIC-COGNITIVE ANALYSIS OF IAGO’S MANIPULATION IN SHAKESPEARE’S OTHELLO

“MONSTRUO DE OJOS VERDES”: UN ANÁLISIS PRAGMÁTICO-COGNITIVO DE LA MANIPULACIÓN DE IAGO EN OTHELLO DE SHAKESPEARE

Resumo

Este artigo examina o diálogo em Otelo, o Mouro de Veneza, no qual Iago usa a metáfora do ciúme como um “monstro de olhos verdes” para intensificar o sofrimento de Otelo diante da possibilidade de infidelidade de Desdêmona. A pesquisa considera a interação à luz das noções de conciliação de metas, conforme proposta por Rauen, e de relevância, conforme desenvolvida por Sperber e Wilson, além do modelo de Santos e Godoy para a interpretação emocional dos estímulos comunicativos. O estudo descreve como as estratégias retóricas de Iago, combinadas com as fragilidades emocionais de Otelo, contribuem para o desfecho trágico da peça de Shakespeare. Além disso, ao destacar a sinergia entre razão e emoção na produção e interpretação dos enunciados, aponta para os benefícios de uma abordagem multifacetada para os estudos literários e linguísticos.

Palavras-chave:
William Shakespeare; Otelo; Conciliação de Metas; Relevância; Emoções

Abstract

This article examines the dialogue in Othello, the Moor of Venice, in which Iago uses the metaphor of jealousy as a “green-eyed monster” to intensify Othelo’s suffering at the possibility of Desdemona’s infidelity. The research considers the interaction in light of the notions of goal conciliation, as proposed by Rauen, and relevance, as developed by Sperber and Wilson, as well as the model of Santos and Godoy for the emotional interpretation of communicative stimuli. The study describes how Iago’s rhetorical strategies, combined with Othello’s emotional vulnerabilities, contribute to the tragic outcome of Shakespeare’s play. Furthermore-highlighting the synergy between reason and emotion in the production and interpretation of utterances-points to the benefits of a multifaceted approach to literary and linguistic studies.

Keywords:
William Shakespeare; Othello; Goal Conciliation; Relevance; Emotions

Resumen

Este artículo examina el diálogo en Otelo, el moro de Venecia,en el cual Yago utiliza la metáfora de los celos como un “monstruo de ojos verdes” para intensificar el sufrimiento de Otelo ante la posibilidad de la infidelidad de Desdémona. La investigación considera la interacción a la luz de las nociones de conciliación de metas, según lo propuesto por Rauen, y de relevancia, según lo desarrollado por Sperber y Wilson, además del modelo de Santos y Godoy para la interpretación emocional de los estímulos comunicativos. El estudio describe cómo las estrategias retóricas de Yago, combinadas con las vulnerabilidades emocionales de Otelo, contribuyen al desenlace trágico de la obra de Shakespeare. Además, al destacar la sinergia entre razón y emoción en la producción e interpretación de los enunciados, señala los beneficios de un enfoque multifacético para los estudios literarios y lingüísticos.

Palabras clave:
William Shakespeare; Otelo; Conciliación de metas; Relevancia; Emociones

IAGOO, beware, my lord, of jealousy;
It is the green-eyed monster which doth mock
The meat it feeds on; that cuckold lives in bliss
Who, certain of his fate, loves not his wronger;
But, O, what damned minutes tells he o’er
Who dotes, yet doubts, suspects, yet strongly loves!
OTHELLO
O misery!
William Shakespeare’s Othello, the Moor of Venice1.

INTRODUÇÃO

O diálogo entre Iago e Otelo no Ato III, Cena III de Otelo, o Mouro de Veneza - no qual Iago utiliza a metáfora do ciúme como um “monstro de olhos verdes” - representa um dos momentos mais decisivos da peça de William Shakespeare. A força deste excerto transcende sua complexidade linguística e argumentativa, e revela a maestria com que Shakespeare explora as sutilezas das interações humanas em cenários de manipulação e desconfiança. Ao transformar o ciúme em uma entidade monstruosa, Iago não apenas descreve um sentimento destrutivo, mas o apresenta como uma ameaça insidiosa que cresce e devora quem o nutre. O que torna a passagem ainda mais impactante é a habilidade com que Iago trabalha, de maneira sugestiva, as vulnerabilidades emocionais de Otelo. Trata-se de um exemplo primoroso de como o manejo de intenções ocultas, a tensão emocional e o jogo psicológico se entrelaçam de maneira imersiva na obra, intensificando seu apelo dramático e aprofundando a tragédia que se desenrola.

Antes desse momento decisivo, Iago já começara a semear dúvidas em Otelo, valendo-se de suas inseguranças sobre sua posição social e seu relacionamento com Desdêmona. O ciúme, ainda velado, começa a se enraizar gradualmente, enquanto Otelo passa a ser progressivamente moldado pela desconfiança que Iago, com astúcia, cultiva. Esse diálogo representa o ponto de virada: as dúvidas, antes sutis e passageiras, agora corroem a confiança de Otelo. À medida que o “monstro de olhos verdes” torna-se recorrente em sua mente, Otelo é levado a matar a esposa. Quando, finalmente, descobre as artimanhas de Iago e a inocência da amada, a tragédia culmina com seu suicídio.

Reconhecendo a importância desse diálogo para o enredo, este estudo propõe uma análise pragmático-cognitiva, de caráter exploratório e qualitativo, interessada em como as estratégias discursivas são mobilizadas para influenciar os interlocutores. O objetivo deste artigo é examinar a interação linguística entre Iago e Otelo nesta cena, para demonstrar como as manipulações de Iago e as fragilidades emocionais de Otelo se articulam para moldar o drama. Nesse sentido, a teoria de conciliação de metas, proposta por Rauen (2014, 2018, 2020, 2021), será aplicada na segunda seção para analisar os enunciados de Iago como parte de um plano de ação intencional em direção à consecução de suas metas práticas. Na sequência, a teoria da relevância de Sperber e Wilson (1986, 1995), juntamente com o modelo de interpretação racional-emocional de Santos e Godoy (2020, 2021, 2022), será utilizada na terceira seção para investigar como Otelo interpreta os enunciados de Iago e como sua reação sugere a heteroconciliação das metas do antagonista. Por fim, na quarta seção, serão tecidas as considerações finais do trabalho.

2 O PLANO DE AÇÃO INTENCIONAL DE IAGO

O objetivo desta seção é analisar os enunciados de Iago à luz da metodologia descritivo-explanatória desenvolvida por Rauen (2021). Para tanto, é importante apresentar a arquitetura da teoria de conciliação de metas (TCM) que sustenta esses procedimentos, destacando conceitos centrais como conciliação de metas, confirmação de hipóteses, auto e heteroconciliação, e comunicação como um conjunto sinérgico de intenções práticas, informativas e comunicativas.

A TCM é uma abordagem abdutivo-dedutiva da agência humana que, inspirada na teoria da relevância de Sperber e Wilson (1995), destaca o papel do falante nas interações comunicativas. Em síntese, a teoria concebe enunciações como ações que habilitam a heteroconciliação de metas práticas. Para isso, fornece uma arquitetura em quatro estágios, os três primeiros abdutivos e os três últimos dedutivos (Figura 1)2. Assim, ações humanas envolvem a projeção de uma meta Q, seguida pela formulação, execução e checagem de uma hipótese abdutiva antefactual ótima PQ, que conecta uma ação antecedente plausível P à consecução do estado consequente projetado Q3.

Figura 1:
Arquitetura abdutivo-dedutiva da teoria de conciliação de metas

Uma primeira decorrência dessa arquitetura é a noção de conciliação de metas, que denomina a teoria. Conforme a TCM, há conciliação de metas sempre que o estado Q’ satisfaz a meta Q projetada pelo agente e há inconciliação de metas sempre que isso não ocorre. Ademais, dado que a execução da ação antecedente é opcional, podem-se admitir conciliações e inconciliações ativas e passivas (Figura 2).

Figura 2:
Tipos de conciliação e de inconciliação de metas

Em segundo lugar, conforme o agente confie na eficácia da ação antecedente P, as hipóteses abdutivas são categóricas, bicondicionais, condicionais, habilitadoras ou tautológicas (Figura 3). Dito isso, estímulos comunicacionais são ações habilitadoras P⟵Q, pois são necessários, mas podem ser insuficientes para alcançar a meta Q.

Figura 3:
Tipos de Hipóteses Abdutivas Antefactuais

Em terceiro lugar, há auto e heteroconciliações de metas conforme elas ocorram individual ou colaborativamente. Posto isso, enunciados são ações antecedentes heteroconciliáveis com as quais o falante acredita ser capaz de habilitar a consecução de suas metas práticas mediante a colaboração do ouvinte.

Em quarto lugar, dada a ascendência da meta sobre a ação antecedente habilitadora heteroconciliável, trocas comunicacionais mobilizam três camadas de intenções, de modo que intenções práticas superordenam intenções informacionais e comunicacionais. Assim, intenções práticas regem intenções informativas de, conforme Sperber e Wilson (1995), tornar conjuntos de informações {I} manifestos ou mais manifestos; intenções informativas regem intenções comunicativas de tornar mutuamente manifestos ou mais manifestos, para falante e ouvinte, que o falante torna conjuntos de informações {I} manifestos; e intenções comunicativas regem a enunciação dos estímulos ostensivos.

Apresentadas as noções centrais da teoria, volta-se a atenção para o macroplano da ação intencional de Iago, que supostamente orienta os microplanos de elaboração de seus enunciados. Nesse processo, o primeiro passo é esclarecer a emergência da meta estratégica Q, de nível superior, que estrutura esse macroplano. Para isso, argumenta-se que o rancor de Iago contra Otelo decorre de, pelo menos, duas razões principais: a nomeação de Cássio como tenente, cargo que ele crê ser seu por direito, e a suspeita - embora sem provas - de que Otelo se envolvera com Emília.

No Ato I, Cena I, Iago expressa a Rodrigo sua frustração:

[...]. Três pessoas [...] vieram falar com ele [...] para que fizesse de mim o seu tenente. [...] Tenho consciência do que valho; não mereço posto menor. Ele, todavia, [...] furtou-se [...]. “Pois já escolhi meu oficial”, lhes disse. E quem é ele? [...] Um grande aritmético, um tal Miguel Cássio, um florentino [...] que nunca comandou nenhum soldado em campo de batalha e que conhece tanto de guerra como uma fiandeira [...]. No entanto, meu senhor, foi o escolhido; enquanto eu [...] continuarei sendo o alferes do Mouro (tradução dos autores).

Na Cena III, ele menciona em solilóquio sua suspeita sobre Emília:

[...]. Odeio o Mouro. Há quem murmure que ele já fez o meu trabalho em meus lençóis. Se é certo, ignoro-o. Pelo sim, pelo não, pretendo agir como se, realmente, assim tivesse sido. (tradução dos autores).

Posto isso, conjectura-se que essas duas razões atuam como premissas para a emergência da meta estratégica de vingança:

S1 - Otelo nomeou injustamente Cassio em vez de Iago para o cargo de tenente;

S2 - Otelo traiu Iago com Emília;

S3 - Iago deve vingar-se das ofensas de Otelo (conclusão por modus ponens conjuntivo S1(S2⟶S3 ≡ emergência da meta estratégica Q)4.

Dado o caráter manipulador de Iago, seu plano de ação intencional demanda conquistar a confiança de Otelo. Assim, é razoável supor que ele abduz a hipótese de que se ele obtiver a confiança de Otelo, então ele poderá se vingar das ofensas do Mouro.

S4 - Se Iago obtiver a confiança de Otelo, então Iago provavelmente poderá vingar-se das ofensas de Otelo (S1-S3⟶(S4⟵S3)5 ≡ abdução da hipótese antefactual habilitadora P1).

Sem prejuízo à consideração de outras metas táticas, como destruir a reputação de Otelo e Cássio ou manipular as demais personagens, este estudo se concentra no ataque ao matrimônio de Otelo. Assim, conjectura-se que as suposições S5-7, a seguir, funcionam como premissas a partir das quais Iago abduz a hipótese de que se ele gerar uma discórdia irreparável entre Otelo e Desdêmona, ele poderá vingar-se do Mouro S8.

S5 - Otelo ama Desdêmona intensamente;

S6 - Dúvidas sobre fidelidade conjugal são insuportáveis para homens honrados6;

S7 - A discórdia entre Otelo e Desdêmona causará sofrimento a ambos;

S8 - Se Iago gerar discórdia irreparável entre Otelo e Desdêmona, então Iago provavelmente poderá vingar-se das ofensas de Otelo (S5-S7⟶(S8⟵S7) ≡ P2)7.

Antes do excerto, Iago realiza várias ações para semear a discórdia no casal. No Ato I, Cena I, manipula Rodrigo para que o auxilie e, no Ato II, Cena I, já em Chipre, instiga-o a provocar Cássio, preparando o terreno para sua queda. No Ato II, Cena III, embriaga Cássio e provoca uma briga entre ele e Rodrigo, levando-o a perder seu posto de tenente, e no Ato III, Cena III, convence Cássio a buscar a intercessão de Desdêmona para recuperar o cargo, enquanto insinua a Otelo que há algo suspeito entre os dois8.

É precisamente nessa Cena III que Iago instiga a curiosidade de Otelo com insinuações vagas e evasivas, que se recusa a desenvolver. Nessa atmosfera de mistério e inquietação, mesmo pressionado, finge relutância; diz “não querer” perturbar a paz de espírito de Otelo. Essa postura de falsa moderação e preocupação aumenta a ansiedade do Mouro, que insiste para que ele revele o que sabe. Sugerindo que a verdade pode ser percebida por indícios sutis, Iago aconselha-o a “observar” Desdêmona e Cássio.

Considerando essas insinuações e reticências, conjectura-se que pelo menos as suposições S9-12, a seguir, agiram como premissas a partir das quais Iago abduziu a hipótese de que, se ele insinuasse9 a Otelo a possibilidade de infidelidade, ele conseguiria gerar a desejada discórdia no casal S8. Noutras palavras, Iago está induzindo Otelo a sentir-se emocionalmente inseguro e alerta, para que o Mouro passe a reinterpretar as ações da esposa mediante o filtro do ciúme.

S9 - Sugestões sutis podem ser mais eficazes do que acusações diretas;

S10 - O ciúme é um sentimento poderoso e destrutivo;

S11 - Otelo é vulnerável emocionalmente ao ciúme10;

S12 - Desdêmona intercedeu por Cássio;

S13 - Se Iago insinuar a Otelo a possibilidade de infidelidade de Desdêmona com Cássio, então Iago provavelmente poderá gerar discórdia irreparável entre Otelo e Desdêmona (S9-S12⟶(S13⟵S8) ≡ O1).

Nesse contexto, a hipótese deste estudo é que, ao interpretar os comportamentos ansiosos de Otelo como sinais de conciliação de sua meta de insinuar infidelidade, Iago passa a intensificar o sofrimento de Otelo como segunda meta (Figura 4). É justamente em torno dessa segunda meta que se analisam os quatro enunciados do antagonista.

Figura 4
Macroplano de ação intencional de Iago no Ato III, Cena III

Com o primeiro enunciado, “Cuidado, meu senhor, com o ciúme”, Iago recomenda (informa, comunica, enuncia) ao Mouro, hipocritamente, que ele tome cuidado com o ciúme, num contexto em que ajudou a incapacitá-lo para isso (Figura 5)11.

Figura 5
Microplano de ação intencional do primeiro enunciado de Iago

Ao associar o ciúme a “um monstro de olhos verdes que zomba da presa de que se nutre”, Iago revela sua perversidade no segundo enunciado (Figura 6). A busca incessante por evidências e confirmações, num ciclo vicioso de sofrimento emocional e desconfiança obsessiva, reflete a própria condição de Otelo, alimentada pelas insinuações do Alferes. A sutileza está justamente no fato de que, como amigo zeloso, Iago sugere que Otelo se previna racionalmente do ciúme; como seu algoz manipulador, aposta que, vulnerável emocionalmente pela suspeita, ele se sinta impotente para seguir essa recomendação.

Figura 5
Microplano de ação intencional do segundo enunciado de Iago

Os próximos enunciados visam criar um dilema emocional pelo contraste de duas situações inconciliáveis (Figura 7). No terceiro, “Vive feliz o corno12 que, certo de seu destino, não ama a infiel”, Iago sugere - sabendo que Otelo ama Desdêmona - que um marido traído pode ser feliz, desde que não ame a esposa. No quarto, “Mas, que minutos infernais sofre aquele que adora, mas duvida; suspeita, mas ama intensamente!”, sugere que é impossível ser feliz quando se ama e suspeita. Em ambos os casos, Iago manipula Otelo, convencendo-o de que, impotente diante do ciúme, está destinado à infelicidade.


Microplano de ação intencional do terceiro e quarto enunciados de Iago

Examinada a emergência dos enunciados, a sua produção gera em Iago um conjunto de expectativas de conciliação que dependem da resposta de Otelo. Esta resposta, por sua vez, depende de como ele processa as informações, como será visto na próxima seção.

3 A INTERPRETAÇÃO DE OTELO

Para dar conta de como Otelo interpreta os enunciados de Iago, serão primeiramente mobilizadas nesta seção as ferramentas descritivo-explanatórias da teoria da relevância (TR), de Sperber e Wilson (1986, 1995). Em breves palavras, a TR é uma abordagem pragmático-cognitiva de caráter ostensivo-inferencial que se apoia no conceito de relevância como uma propriedade potencial dos inputs direcionados à cognição.

Um input é relevante quando os efeitos cognitivos positivos de seu processamento compensam os esforços cognitivos empregados para obtê-los. Isso ocorre quando o input fortalece ou contradiz suposições cognitivas prévias, ou quando gera implicações verdadeiras ao interagir com elas. Assim, iguais as condições, a relevância é maior quando os efeitos cognitivos são maiores e/ou quando os esforços são menores.

A TR se organiza em torno de dois princípios: o princípio cognitivo de relevância de que a mente maximiza os inputs que processa, e o princípio comunicativo de relevância de que estímulos comunicacionais geram expectativas precisas de relevância.

Segue do princípio comunicativo uma presunção de relevância ótima e, dessa presunção, um procedimento de compreensão orientado para a relevância. Dito isso, um estímulo comunicacional é presumido como otimamente relevante quando é ao menos relevante o suficiente para merecer o esforço de processamento do ouvinte, e o mais relevante possível conforme as habilidades e as preferências do falante. Assim, sendo instado a processar estímulos ostensivos fornecidos pelo falante, cabe ao ouvinte seguir um caminho inferencial de esforço mínimo na computação de efeitos cognitivos, considerando interpretações em ordem de acessibilidade e encerrando o processamento quando sua expectativa de relevância ótima é satisfeita (ou abandonada)13.

Conhecidas as noções, pode-se conjecturar como Otelo interpreta os enunciados de Iago. Presumindo relevância ótima, ele encaixará a forma linguística desses enunciados numa forma lógica e os desenvolverá inferencialmente, quando necessário, até alcançar significados explícitos (explicatura), que usará como premissas para inferir conclusões implicadas (implicaturas), sempre que pertinente.

3.1 “CUIDADO, MEU SENHOR, COM O CIÚME”

Para Sperber e Wilson (1995, p. 72), uma forma lógica é “uma fórmula bem-formada, um conjunto estruturado de constituintes que sofrem operações lógicas formais determinadas por sua estrutura”. Cada um dos constituintes de formas lógicas é acessível por entradas lexicais, lógicas e enciclopédicas. Assim, conforme Rauen (2021), compreender enunciados implica atribuir entradas enciclopédicas às entradas lógicas, para alcançar (ou, eventualmente, abandonar a tentativa de alcançar) uma interpretação - ou um conjunto restrito de interpretações - que satisfaça a presunção de relevância ótima. Nesse processo dinâmico, com revisões e retroalimentações, as entradas lexicais atuam como pistas, que serão enriquecidas pragmaticamente até que se construa uma forma lógica plenamente proposicional, capaz de receber um valor de verdade - a explicatura.

Posto isso, sem prejuízo a outras interpretações, o enunciado “Cuidado, meu senhor, com o ciúme” - com o qual Iago introduz o ciúme como algo perigoso e destrutivo - sugere as seguintes explicaturas (1c)-(1e) - a segunda, considerando o respectivo ato de fala (ou submeta prática operacional, conforme Rauen).

(1a) Cuidado [...] com o ciúme (forma linguística, entradas lexicais);

(1b) alguém tome algo de algo (forma lógica, entradas lógicas);

(1c) otelo tome cuidado com o ciúme* (explicatura, entradas enciclopédicas)14;

(1d) alguém recomenda a alguém que P (forma lógica com ato de fala);

(1e) iago recomenda a otelo que p (explicatura com ato de fala).

Antes de avançar, observe-se que a entrada enciclopédica para a entrada lexical ‘ciúme’ foi representada por ciúme* na explicatura (1c), pois o significado que Otelo provavelmente constrói nessa interpretação é mais restrito do que o conceito semântico dicionarizado de ciúme, tal como, por exemplo, “sentimento negativo provocado por receio ou suspeita de que a pessoa amada dedique seu interesse e/ou afeto a outrem” (Michaelis, 2025). Em vez disso, trata-se de um conceito ad hoc volátil, que representa um sentimento negativo específico de receio ou suspeita de que Desdêmona dedique seu afeto a Cássio e que incorpora as vulnerabilidades cognitivo-emocionais do Mouro.

À luz do plano de Iago, se Otelo assume (1c) como uma suposição factual ou verdadeira (um efeito cognitivo positivo, portanto), Iago heteroconcilia suas metas (L1-M1) de comunicar e informar a necessidade de cuidado; e se ele assume (1e) como factual, ele heteroconcilia sua meta prática N1 de recomendação dessa necessidade. Contudo, a recomendação visa impingir sofrimento, e isso só ocorre se Otelo inferir, no contexto da heteroconciliação das insinuações de Iago, que não está em condições de prevenir-se do ciúme* que sente. Ou seja, a recomendação “desinteressada” de Iago e a possibilidade de traição têm de funcionar como premissas a partir das quais, o Mouro deve concluir sua impotência diante do ciúme* - a implicatura desejada por Iago.

S1 - Iago recomenda a Otelo que Otelo tome cuidado com o ciúme* (explicatura do ato de fala de Iago);

S2 - Desdêmona possivelmente traiu Otelo com Cássio (premissa implicada intensificada a partir das insinuações de Iago);

S3 - Otelo está (ou sente-se) possivelmente impotente diante do ciúme (conclusão implicada por modus ponens conjuntivo S1(S2⟶S3).

Inspirados na teoria da relevância, Santos e Godoy (2021) propõem um modelo de arquitetura do processamento cognitivo que integra razão e emoção. Segundo esse modelo, o desejo atua como uma ponte entre a razão, que avalia representações contextuais, e as emoções, que atribuem valências afetivas a essas representações.

Nesse sentido, os estados emocionais15 de Iago e Otelo emergem de um complexo movimento afetivo-cognitivo que é produto do processamento das emoções básicas negativas de tristeza, raiva e medo de ambos (Damásio, 2004)16. Santos e Godoy (2021) descrevem o desejo como a força motriz da ação cognitivo-psicológica no processamento de enunciados. Para os autores, há dois tipos de desejo: o desejo pelo conhecimento e o desejo pelo bem-estar. O primeiro orienta a interpretação racional, contribuindo para a formação da memória enciclopédica, enquanto o segundo, derivado das satisfações afetivas associadas às representações conceituais, molda as experiências emocionais.

No caso em tela, a emoção básica de raiva pela não promoção a oficial desencadeia em Iago um estado emocional de baixa autoestima, que ele interpreta como ofensa. Santos e Godoy (2021) explicam que sentimentos negativos surgem quando não conseguimos atingir nossos objetivos, satisfazer nossos desejos ou quando nossa autoestima é ameaçada. É nesse contexto que desperta em Iago o desejo de vingança contra seu senhor.

Já em Otelo, o ciúme - estado emocional derivado da emoção básica de medo, segundo Santos e Godoy (2020) - decorre da percepção de ameaça à posse da pessoa amada. Hülshoff (2000, p. 13) observa que a raiva pode se transformar em inveja ou ciúme quando envolve a posse, ainda que suposta, de outra pessoa. Nesse cenário, pode-se conjecturar que o desejo de Otelo de manter sua honra e preservar a fidelidade conjugal entra em conflito com as emoções negativas despertadas pelas sugestões de Iago. Assim, as insinuações que antecedem o diálogo geram um conflito - e, mais adiante, um dilema - entre o desejo de amar e confiar em Desdêmona e o desejo de preservar a honra e evitar a humilhação de marido traído17.

3.2 “O CIÚME É UM MONSTRO DE OLHOS VERDES”

No segundo enunciado, argumentou-se que Iago associa o ciúme a um “monstro de olhos verdes que zomba da presa de que se nutre” para intensificar o sofrimento de Otelo. À sombra do monstro, Iago leva Otelo a não somente conjecturar que é incapaz de se prevenir contra o ciúme, mas também a se perceber como uma vítima impotente de um sentimento incontrolável.

Desde a Antiguidade, o verde simboliza tanto a renovação quanto aspectos negativos, como a inveja ou a doença. Na medicina hipocrática medieval e renascentista, a cor estava associada à bílis, cujo excesso era tomado como responsável por um temperamento melancólico e instável. Shakespeare incorpora esse simbolismo e o amplifica ao representar o ciúme como um “monstro” que consome e zomba de sua vítima. Em Otelo, essa figura monstruosa encarna não apenas a autodestruição do ciumento, mas também a manipulação de Iago, que explora as inseguranças do Mouro enquanto o ridiculariza. Além disso, essa figura pode ser interpretada como um reflexo das ansiedades de Otelo e das pressões sociais que o cercam.

Em teoria da relevância, a interpretação de metáforas não requer um mecanismo cognitivo especial. Em vez disso, Sperber e Wilson (2012) argumentam que a metáfora é compreendida através de um ajuste ad hoc da extensão dos conceitos comunicados. Esse ajuste envolve estreitamentos (narrowing) ou alargamentos (broadening) lexicais com os quais o ouvinte busca um equilíbrio ótimo de efeitos cognitivos positivos maximizados e esforços de processamento minimizados (cf. Carston, 2002; Wilson, 2004).

Santos e Godoy (2022) explicam que o estreitamento e o alargamento conceitual envolvem a reconfiguração da extensão de um conceito codificado, seja por meio da restrição de seu alcance a um subconjunto mais específico, seja pela ampliação para incluir elementos contextualmente relevantes que compartilham propriedades com os itens originalmente abrangidos pelo conceito.

No caso do estreitamento, as implicações se aplicam apenas a uma parte da extensão do conceito codificado [...]. No caso do alargamento, as implicações se aplicam não apenas aos itens internos à extensão do conceito codificado, mas também a itens contextualmente salientes externos à extensão, mas que compartilham com os itens internos da extensão propriedades que determinam essas implicações [...] (Sperber; Wilson, 2012, p. 107, tradução nossa).

Segundo o modelo de Santos e Godoy (2022), a metáfora “monstro de olhos verdes” atribuída por Iago ao ciúme de Otelo é um caso típico de metáfora criativa, posto que ela não está linguisticamente lexicalizada. Para os autores, o significado oriundo da metáfora criativa requisita a projeção de um conceito de natureza provisória específico de ocasião ou ad hoc. No caso específico, as propriedades lógicas do conceito ciúme* se correlacionam com propriedade lógicas do conceito monstro de olhos verdes, tal que se estabelece uma relação de implicações de propriedades lógicas semelhantes entre ambos os conceitos.

Em essência, conforme a TR, a metáfora do “monstro de olhos verdes” desencadeia uma nova recategorização por estreitamento conceitual, agora da entrada enciclopédica ad hoc ciúme* do primeiro enunciado (até então restrita ao receio de Otelo diante da possibilidade de infidelidade de Desdêmona), que, conforme Santos e Godoy (2021), amplifica o efeito cognitivo-emocional do conceito. O resultado é um conceito emergente ciúme** cognitivamente estreitado e emocionalmente ampliado - um sentimento monstruoso, doentio (associado à cor verde da bílis), zombeteiro, obsessivo e insaciável, que transcende a insegurança inicial de Otelo e reforça seu tormento18. Este é o significado metafórico que Iago ostensivamente comunica a Otelo quando disse o que disse e da maneira que disse.

Veja-se:

(1a) Iago afirma a Otelo que o ciúme gerado pela possibilidade de infidelidade de Desdêmona com Cassio é um monstro de olhos verdes, [tal que] esse monstro de olhos verdes zomba das dúvidas e inseguranças de Otelo e esse monstro dos olhos verdes vive das dúvidas e inseguranças de Otelo.

(1b) Iago afirma a Otelo que o ciúme* é um ciúme**.

Para Santos e Godoy (2022), o significado de Iago foi implicitamente comunicado por ostensão metafórica para produzir efeitos contextuais (informativos) relevantes. O efeito emocional, derivado das emoções básicas tristeza, raiva e medo, desencadeia em Otelo uma gama de sentimentos negativos, tais como decepção, vergonha, insatisfação, frustração, irritação, aborrecimento, fúria, ódio, ameaça, intimidação, ansiedade e, logicamente, ciúme (cf. Santos; Godoy, 2021). Nesse sentido, Iago recorreu à metáfora para enfatizar sua intenção informativa e ampliar os efeitos contextuais (cf. Sperber; Wilson, 2012), como parte de sua intenção prática de intensificar o sofrimento de Otelo diante da possibilidade de infidelidade de Desdêmona (cf. Rauen, 2014). Destarte, a metáfora “monstro de olhos verdes” funciona como um gatilho ostensivo ad hoc para esse efeito, pois intensifica a intenção informativa do falante.

Note-se que essa intensificação ocorre às custas das vulnerabilidades de Otelo. Ao assumir o “monstro de olhos verdes” como descrição de seu sentimento, ele se coloca como sua vítima indefesa. Se já lhe era angustiante a sensação de impotência diante do ciúme*, enfrentar o ciúme** - agora monstruoso, cruel e insaciável - é insuportável.

Em suma, a metáfora do “monstro de olhos verdes” não apenas ativa categorias abstratas associadas ao ciúme, mas, sobretudo, orienta inferências alinhadas ao projeto manipulador de Iago. Projetada para desestabilizar a cognição de Otelo, ela o leva a representar - via recategorização conceitual e amplificação do efeito cognitivo-emocional - seu ciúme como uma força monstruosa e devoradora, diante da qual ele se sente insuportavelmente impotente. Assim, longe de operar como uma simples comparação (símile), como argumentam Santos e Godoy (2022), ela cria um campo interpretativo dinâmico e instável, que remodela as disposições cognitivo-emocionais do Mouro.

3.3 UM DILEMA IMPOSSÍVEL

Nesse contexto de impotência diante do monstro de olhos verdes, Iago intensifica o dilema de Otelo ao opor razão e emoção: de um lado, a racionalidade sugere comedimento, mas é impotente diante da dúvida; de outro, a emoção exige provas e reparação, mas leva à ruína.

Do enunciado, Vive feliz o corno que, certo de seu destino, não ama a infiel”, é razoável supor que Otelo infira sua infelicidade, dado que ainda ama Desdêmona.

S1 - Otelo sente-se impotente ante a possibilidade de infidelidade de Desdêmona com Cássio;

S2 - Iago afirma à Otelo que vive feliz o corno que, certo de seu destino, não ama a esposa infiel (explicatura do terceiro enunciado);

S3 - Otelo ainda ama Desdêmona;

S4 - Otelo viverá infeliz (S1-S3⟶S4).

Do enunciado, Mas, que minutos infernais sofre aquele que adora, mas duvida; suspeita, mas ama intensamente!”, é razoável supor que ele anteveja momentos infernais e, um passo adiante, mais uma vez, o mesmo destino.

S1 - Otelo sente-se impotente ante a possibilidade de infidelidade de Desdêmona com Cássio;

S2 - Iago afirma à Otelo que minutos infernais sofre o ciumento tal que esse ciumento adora a esposa, mas esse ciumento duvida da esposa, e tal que esse ciumento suspeita da esposa, mas esse ciumento ama a esposa intensamente (explicatura do quarto enunciado);

S3 - Otelo adora Desdêmona, mas Otelo duvida de Desdêmona (S1(S2⟶S3);

S4 - Otelo suspeita de Desdêmona, mas Otelo ama Desdêmona intensamente (S1(S2⟶S4);

S5 - Otelo contará que minutos infernais (S1-S4⟶S5);

S6 - Otelo viverá infeliz (S5⟶S6).

Em síntese, os últimos enunciados constroem um paradoxo de metas. Iago apresenta duas opções igualmente insuportáveis: a “felicidade” do marido traído que deixou de amar sua esposa; e a tortura daquele que ama, mas vive atormentado pela suspeita. A estratégia de Iago, portanto, é aprisionar Otelo entre o desejo de preservar seu amor por Desdêmona e a necessidade de verificar sua fidelidade - um dilema que, de qualquer forma, leva-o à destruição emocional.

3.4 “MISÉRIA!”

Essa conjunção de impotência diante do sentimento de ciúme e da expectativa de uma vida infeliz e infernal justifica a reação fatalista de Otelo: “Miséria!”. A expressão, carregada de exclamatividade, sugere a externalização de um estado interno que mistura dor, angústia e reconhecimento do sofrimento iminente. Otelo dá indícios de que assumiu o ciúme como um destino cruel, inevitável e incontrolável. Ele internaliza a tortura descrita nos enunciados de Iago. Vulnerável, não questiona a veracidade das insinuações do antagonista. Tudo indica que está propenso a preferir a certeza de uma traição à dúvida constante - uma ameaça emocional à sua estabilidade.

Além disso, mais do que manter a confiança em Desdêmona, obter a verdade (ou seja, encontrar algo que confirme sua dúvida) torna-se sua prioridade - aspecto que Iago habilmente explora ao plantar o lenço de Desdêmona entre os pertences de Cássio. Ele aceita cada vez mais a possibilidade de que a situação apresentada por Iago é inevitável, reforçando uma sensação de impotência diante das emoções e sentimentos que acredita não conseguir controlar. Enfim, sua resposta leva a inferir que ele teme estar destinado a sofrer exatamente como Iago descreve: dividindo-se entre amor e desconfiança.

Confiante, na sequência do Ato III, Cena III, Iago continua a insinuar a infidelidade de Desdêmona de forma vaga e evasiva, aconselhando Otelo a observar o comportamento dela e de Cássio. Mais adiante, no Ato III, Cenas III e IV, ele planta o lenço de Desdêmona entre os pertences de Cássio. No Ato IV, Cena I, inventa que ouviu Cássio mencioná-la em sonho; arma uma conversa com ele sobre Bianca, mas faz Otelo acreditar que estão falando de Desdêmona; incentiva-o a matar a esposa; leva-o a um colapso emocional que resulta em desmaio; e instiga-o a chamar Desdêmona publicamente de prostituta. No Ato V, Cena I, manipula Rodrigo para tentar assassinar Cássio e, diante do fracasso do plano, fere Cássio e mata Rodrigo para eliminar uma testemunha perigosa. Já no Ato V, Cena II, convence Otelo de que estrangular Desdêmona é a única forma de restaurar sua honra. Quando Emília revela a verdade sobre o lenço e expõe suas artimanhas, Iago a mata para evitar que seu esquema seja desmascarado. No desfecho da peça, contudo, a verdade vem à tona e ele é capturado, mas se recusa a confessar seus crimes.

No que se refere à tragédia, a reação de Otelo marca o ponto de não retorno. Certo da infidelidade de Desdêmona, ele se entrega ao monstro de olhos verdes, tornando-se cada vez mais violento. Seu julgamento se obscurece, e ele se torna um instrumento da manipulação de Iago, levando à ruína de Desdêmona, Cássio e, por fim, dele mesmo.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo examinou o diálogo em Otelo, o Mouro de Veneza, no qual Iago utiliza a metáfora do ciúme como um “monstro de olhos verdes” para intensificar o sofrimento de Otelo diante da possível infidelidade de Desdêmona. A pesquisa considerou a interação à luz das noções de conciliação de metas (Rauen, 2014), de relevância (Sperber; Wilson, 1986, 1995) e do modelo de Santos e Godoy (2020) para a interpretação emocional dos estímulos comunicativos. O estudo explorou como a expertise retórica de Iago, aliada ao viés de confirmação e às fragilidades emocionais de Otelo, conduziu o Mouro a uma interpretação distorcida dos eventos, culminando em um erro trágico que atendeu aos objetivos manipulativos do Alferes.

Do ponto de vista do falante, a teoria de conciliação de metas forneceu um modelo para descrever e explicar as ações de Iago como parte de um plano de ação intencional, no qual ele buscou gerar uma discórdia irreparável entre Otelo e Desdêmona, movido pela vingança contra as ofensas do Mouro.

Do ponto de vista do ouvinte, a teoria da relevância, aliada ao modelo de Santos e Godoy, destacou a sinergia entre razão e emoção na interpretação que Otelo faz dos enunciados de Iago. Emocionalmente vulnerável e dominado pelas insinuações do antagonista, ele sucumbe ao ciúme, elevado à condição de um sentimento monstruoso, zombeteiro, insaciável e de olhos biliosos, amargos, corrosivos e doentios.

Os resultados reforçam a eficácia de uma abordagem multifacetada na análise de obras complexas como Otelo, com implicações promissoras para os estudos literários e linguísticos. A integração de perspectivas pragmático-cognitivas possibilitou uma interpretação aprofundada das motivações das personagens, das dinâmicas de poder e do impacto cognitivo-emocional da linguagem. A manipulação linguística de Iago sugere a necessidade de considerar não apenas o conteúdo proposicional das mensagens, mas também o contexto comunicativo e as vulnerabilidades afetivo-emocionais do ouvinte. Além disso, a teoria de conciliação de metas se mostrou eficaz na descrição do processo de planejamento e execução da manipulação de Iago, sugerindo formas de elucidar como as metas dos interlocutores moldam a elaboração e a interpretação de enunciados.

Notadamente, este estudo se alinha aos trabalhos de Wharton e colaboradores no âmbito da teoria da relevância. Conforme discutido por Wharton e Stray (2019), ele revisita a tradicional dicotomia entre razão e emoção, ao enfatizar que as emoções são fundamentais na formação do raciocínio prático. A análise ilustra como as emoções não apenas influenciam a atenção e a memória, mas atuam como mediadoras do raciocínio, conduzindo às decisões trágicas da peça. Em Otelo, longe de operar de maneira independente, a razão está fulcralmente entrelaçada com os estados emocionais, moldando as decisões do protagonista.

A obra de Wharton et al. (2021) sublinha que a relevância é um elemento crucial na interseção entre emoção e comunicação, ideia que encontra ressonância na narrativa de Otelo. Iago, como um manipulador hábil, opera dentro do problema do enquadramento, ao direcionar a atenção de Otelo para informações que corroboram suas suspeitas infundadas. Essa focalização seletiva intensifica as emoções negativas de Otelo, e, sobretudo, altera sua percepção da realidade. Por essa perspectiva, a teoria da relevância não somente esclarece processos cognitivos, mas fornece insights para o estudo das dinâmicas emocionais em contextos dramáticos.

Como argumentam Saussure e Wharton (2020), este estudo revelou a profunda influência dos aspectos não proposicionais na comunicação. A metáfora do “monstro de olhos verdes” destaca como a inefabilidade e a ressonância afetiva moldam a interpretação e exercem um impacto determinante na tomada de decisão das personagens.

A despeito dos avanços apresentados, algumas limitações devem ser consideradas. A análise concentrou-se em um excerto específico do diálogo entre Iago e Otelo no Ato III, Cena III. Pesquisas futuras poderiam explorar outros trechos da peça para ampliar a compreensão pragmático-cognitiva dessas interações e seu impacto na trama, bem como investigar como outras personagens, como Desdêmona, Cássio e Rodrigo, utilizam estratégias pragmáticas e cognitivas em suas interações, de modo a compreender melhor as dinâmicas de poder e manipulação envolvidas.

Além disso, a metodologia poderia ser aplicada à análise da manipulação das fraquezas emocionais em outras obras de Shakespeare, comoMacbetheRei Lear. Isso permitiria comparar as estratégias de persuasão emocional de Lady Macbeth, que incita Macbeth a cometer assassinato, e as traições diretas e enganos de Edmund, que busca usurpar poder, com as insinuações e mentiras sutis de Iago. Para além do universo shakespeariano, a metodologia poderia se estender a outras obras literárias que exploram a manipulação emocional, como1984de George Orwell,O Grande Gatsbyde F. Scott Fitzgerald,Lolitade Vladimir Nabokov,Jane Eyrede Charlotte Brontë,O Morro dos Ventos Uivantesde Emily Brontë,Dom Casmurrode Machado de Assis. Para além da literatura, ela poderia ser testada em contextos de comunicação digital, interações interculturais e situações de conflito, oferecendo, em diferentes cenários, uma compreensão mais ampla das dinâmicas de manipulação emocional.

Adicionalmente, a metodologia pode ser aplicada ao estudo de outras figuras de linguagem e estratégias de manipulação, como a ironia, a metonímia, a hipérbole, o eufemismo, o paradoxo, a alusão e a ambiguidade. Cada uma dessas estratégias oferece uma maneira distinta de influenciar as emoções e percepções dos interlocutores, e sua análise pode revelar novas camadas de significado e intenção nas interações.

Por fim, é importante reconhecer que a perspectiva pragmático-cognitiva, embora valiosa, não esgota a complexidade da obra. Aspectos socioculturais, como o preconceito racial e a misoginia na sociedade veneziana do século XVI, também contribuem para a vulnerabilidade de Otelo à manipulação de Iago. Pesquisas futuras poderiam explorar como esses fatores socioculturais interagem com as estratégias de manipulação e oferecer, uma visão mais holística das dinâmicas de poder e vulnerabilidade presentes na peça.

Independentemente dessas limitações, o estudo do papel da metáfora do “monstro de olhos verdes” na manipulação de Otelo, conforme desenvolvido neste trabalho, oferece insights valiosos sobre a interação entre razão, emoção e linguagem. Ao adotar uma abordagem pragmático-cognitiva que considera a agência de Iago e a sinergia de aspectos afetivo-emocionais de Otelo, foi possível propor contribuições para a compreensão das sutilezas da comunicação humana e das forças que moldam pensamentos, sentimentos e ações nesta peça de Shakespeare. Ao leitor, como sempre, cabe avaliar a pertinência desta perspectiva para os estudos literários e linguísticos mais amplos.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    Iago: “Cuidado, meu senhor, com o ciúme. É um monstro de olhos verdes que zomba da presa de que se nutre. Vive feliz o corno que, certo de seu destino, não ama a infiel. Mas que minutos infernais sofre aquele que adora, mas duvida; suspeita, mas ama intensamente!” Otelo: “Miséria!” (Tradução dos autores).
  • 2
    Dadas as restrições de espaço, não será possível desenvolver mais extensivamente a teoria. Argumentos em favor dos fundamentos podem ser vistos em Rauen (2014, 2018, 2020, 2021) e Luciano e Rauen (2015).
  • 3
    Logo, independentemente de ser realizada de forma consciente ou inconsciente, toda ação, uma vez que orientada por uma hipótese abdutiva voltada para a consecução de uma meta, é intencional.
  • 4
    O símbolo ≡ representa conversões de cadeias de suposições S1-n em planos de ação intencional.
  • 5
    A formulação S1-S3⟶(S4⟵S3) se lê da seguinte forma. As suposições S1-S3 implicam por modus ponens conjuntivo ⟶ a emergência de uma hipótese abdutiva antefactual habilitadora P⟵Q segundo a qual executar a ação S4 é uma ação necessária, mas não suficiente ⟵ para atingir a meta S3.
  • 6
    Portanto, se Otelo é honrado, a infidelidade será insuportável para ele.
  • 7
    A numeração de hipóteses ou metas é uma conveniência descritiva, sem indicar uma ordem sequencial. A rigor, elas são interdependentes, influenciando-se e sobrepondo-se umas às outras.
  • 8
    Além de, nesta cena, tramar o roubo do lenço que Otelo deu a Desdêmona para plantá-lo entre os pertences de Cássio e apresentá-lo como “prova” da infidelidade da esposa.
  • 9
    Optou-se “insinuar”, em vez de “sugerir”, por exemplo, para destacar a malícia e a dissimulação de Iago.
  • 10
    Iago sabe que Otelo é inseguro quanto à sua origem e status. Ademais, ao casar-se secretamente com uma mulher mais jovem, Otelo desafiou tanto a vontade do sogro, Brabâncio, quanto as convenções de Veneza.
  • 11
    Doravante, assume-se que o leitor é capaz de inferir as cadeias de inferências dos microplanos.
  • 12
    Optou-se por traduzir ‘cuckold’ por ‘corno’, em vez de uma versão mais neutra como “marido traído”, para capturar, a despeito da informalidade, a agressividade de Iago.
  • 13
    Para Rauen (2014), o modelo é uma abdução pósfactual. O ouvinte presume que o falante forneceu um estímulo otimamente relevante e que o procedimento de compreensão gera uma interpretação congruente. Assim, aplica o procedimento e espera deduzir uma interpretação alinhada com essa expectativa.
  • 14
    A representação em versaletes minúsculos destaca que os constituintes das explicaturas são conceptuais.
  • 15
    Emoções e sentimentos se confundem no senso comum. Santos e Godoy (2020, p. 48), porém, explicam que emoções são “reações psico-orgânicas sensíveis a percepções experienciais voláteis, novidadescas, não conscientes, comandadas pela mente, mas não por ela controladas, diante de uma situação excitante repentina”. Já os sentimentos são “a experiência mental subjetiva da excitação emocional perturbadora, isto é, a representação, a vivência, a memória, a consciência da emoção”. Dito por outras palavras: emoções são passageiras, e sentimentos são duradouros. Destarte, ressaltamos que neste estudo os termos “emoções” e “sentimentos” serão usados tanto para as perturbações momentâneas provocadas pelos enunciados quanto aos estados emocionais resultantes dessas perturbações.
  • 16
    Damásio (2004) propõe cinco emoções básicas: alegria, tristeza, medo, raiva e nojo. Dentre elas, apenas a alegria é considerada positiva, enquanto as demais são classificadas como negativas devido ao seu potencial de gerar desconforto ou alerta diante de situações adversas.
  • 17
    Daí a pertinência de ‘cuckold’ no terceiro enunciado como forma de ativar uma preocupação social e pessoal em Otelo: o medo de ser ridicularizado ou desrespeitado.
  • 18
    De acordo com Costa (2010), o ciúme saudável (ou reativo) tende a ser transitório, circunstancial e desaparece pela comprovação das evidências. Já o ciúme obsessivo (ou patológico), oriundo do medo de perda da pessoa amada, por ser crônico, com altos níveis de ansiedade, dúvida e insegurança, amplia os efeitos irracionais/emocionais.

Editado por

  • Editor de Seção:
    Fábio José Rauen

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Set 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    26 Mar 2025
  • Aceito
    21 Maio 2025
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