Open-access “PRA SER HOMEM TEM QUE TER PÊNIS”: INTERDIÇÕES A POPO VAZ E THAMMY MIRANDA

“TO BE A MAN ONE MUST HAVE A PENIS”: INTERDICTIONS ON POPO VAZ AND THAMMY MIRANDA

“PARA SER HOMBRE, HAY QUE TENER PENE”: INTERDICCIONES A POPO VAZ Y THAMMY MIRANDA

Resumo

Este estudo examina práticas de interdição à masculinidade direcionadas a Popo Vaz e Thammy Miranda, ambos homens trans, em interações no Facebook. A pesquisa emprega a metodologia arqueogenealógica para cartografar uma rede discursiva caracterizada pela regularidade em meio a uma dispersão mais ampla de enunciados que deslegitimam os corpos trans, retratando-os como anormais e desalinhados com as normas cis-heteronormativas. Além disso, o estudo usa a Análise do Discurso foucaultiana para interrogar as estruturas discursivas sexistas e binaristas que perpetuam regularidades contrárias às identidades trans de Popo e Thammy em quatro postagens selecionadas do Facebook e respectivos comentários. Os achados indicam que, a priori, persiste um sistema de dominação e subjugação legitimado por aparatos governamentais, que reforçam o preconceito contra corpos dissidentes, apesar da existência de leis no Brasil contra a discriminação LGBTQIA+.

Palavras-chave:
Corpo; Transexualidade; Discurso; Norma; Subjetividade

Abstract

This study examines practices of masculinity interdiction targeting Popo Vaz and Thammy Miranda-both transgender men-within Facebook interactions. The research employs an archeogenealogical methodology to map a discursive network characterized by regularity amidst a broader dispersion of statements that delegitimize trans bodies, portraying them as abnormal and misaligned with cisheteronormative norms. Furthermore, the study utilizes Foucauldian Discourse Analysis to interrogate the sexist and binary discursive structures that perpetuate regularities opposing the trans identities of Popo and Thammy across four selected Facebook posts and their respective comments. The findings indicate that-a priori-a system of domination and subjugation persists, legitimized by governmental apparatuses that reinforce prejudice against dissident bodies, despite the existence of anti-LGBTQIA+ discrimination laws in Brazil.

Keywords:
Body; Transsexuality; Discourse; Norm; Subjectivity

Resumen

Este estudio examina las prácticas de interdicción a la masculinidad dirigidas a Popo Vaz y Thammy Miranda, ambos hombres trans, en interacciones en Facebook. La investigación emplea una metodología arqueogenealógica para trazar una red discursiva caracterizada por la regularidad en medio de una mayor dispersión de enunciados que deslegitiman los cuerpos trans, retratándolos como anormales y desalineados con las normas cisheteronormativas. Además, el estudio utiliza el Análisis del Discurso foucaultiano para interrogar las estructuras discursivas sexistas y binarias que perpetúan regularidades contrarias a las identidades trans de Popo y Thammy a través de cuatro publicaciones seleccionadas de Facebook y sus respectivos comentarios. Los hallazgos indican que, a priori, persiste un sistema de dominación y subyugación legitimado por aparatos gubernamentales que refuerzan el prejuicio contra cuerpos disidentes, a pesar de la existencia de leyes en Brasil contra la discriminación LGBTQIA+.

Palabras clave:
Cuerpo; Transexualidad; Discurso; Norma; Subjetividad

1 INTRODUÇÃO

É dia de trevas e de escuridão
Dia de mistério e de negridão
O fogo devora, arde uma chama
O céu estremece e as trava proclama
Restituição, dá condição de besta
A qual me foi atribuída, aqui estou
Como intercessora, com os joelhos feridos
(Ventura Profana)

Para sujeitos dissidentes, cuja expressão de sexo e gênero diverge da normalidade cis-heteronormativa, a luta para serem vistos e ouvidos é constante. As trevas, a escuridão da alma, a falta de uma conduta aceita socialmente é parte de uma mecânica de controle que condena o sujeito dissidente à morte, bem como à negação de sua condição humana. Como proclama Ventura na epígrafe, descrevemos e analisamos interdiscursivamente neste estudo os processos de silenciamento dos corpos resistentes à polarização de gênero e denunciamos a morte simbólica - e física, no caso de Popo Vaz - de dois sujeitos invisibilizados por serem homens trans.

Com este trabalho, problematizamos algumas práticas de interdição à masculinidade de Popo Vaz e Thammy Miranda, extraídas de comentários encontrados em postagens do Facebook a partir do recorte de algumas séries enunciativas. Destarte, ao pôr em cena publicações originadas nas redes sociais, pleiteamos um debate acerca do dispositivo da sexualidade voltado à transexualidade.

Em suma, nossa investigação focaliza uma perspectiva de perscrutação da materialidade enunciativa, na qual os efeitos de sentido do que é dito tangenciam uma realidade analítica primária e, conforme Courtine (1999, p. 19), “constituem os efeitos imaginários próprios do discurso direto”. Sob a égide do jamais-dito, cria-se, nos termos do autor, “uma camada espessa de citações e de retornos ao interior de extratos discursivos” (Courtine, 1999, p. 19).

Conheçamos, agora, os homens trans mobilizados, visando destacar fragmentos de sua existência numa ordem discursiva contemporânea que inflaciona a visibilidade e a esfera pública, cujos efeitos são pseudodemocráticos, pois a exposição pode ser dada à negação dos corpos dissidentes. Popo Vaz (Paulo Vaz) foi um influenciador digital dedicado à problematização de pautas LGBTQIA+, em especial aos repertórios identitários dissidentes de sujeitos trans homossexuais, que trabalhava na Polícia Civil do estado de São Paulo e era casado com um influenciador digital que também milita por direitos dessa comunidade. Após uma sequência de ataques pessoais, cometeu suicídio em março de 2022. Thammy Miranda, filho da cantora Gretchen e sobrinho da cantora Sula Miranda, foi ator e repórter e, hoje em dia, atua como político. Durante sua trajetória de vida, oportunizou debates sobre a paternidade e a constituição de famílias divergentes da matriz hegemônica da cis-heteronomatividade.

Apresentados alguns traços desses sujeitos trans, pretendemos, a partir de um processo de cartografia discursiva, delimitar regularidades discursivas que sustentam efeitos de verdade. Não pretendemos aqui exaurir o debate acerca do escamoteamento da identidade de Popo e Thammy, mas sistematizar e operacionalizar algumas séries enunciativas capazes de demonstrar a negação da masculinidade de ambos.

Ao lançarmos mão das palavras de Courtine (1999), apontamos aqui a filiação a uma Análise do Discurso foucaultiana. Ao problematizar os discursos produzidos nas redes sociais, pleiteamos agir/tencionar acerca dos “jogos estratégicos, de ação e de reação, de pergunta e de resposta, de dominação e de equivalência, como também de luta” (Foucault, 2003, p. 9), visto que são discursos que delimitam regimes de verdade e de produção de identidades controlado por um sistema social - a norma social.

Para dar conta do estudo, analisamos postagens do Facebook nas quais ambos os sujeitos estão inseridos. A partir do sistema de policiamento algorítmico, observamos exclusivamente comentários negativos a respeito de suas expressões de sexo e gênero.

Dito isso, encontramos em duas postagens a possibilidade da sistematização de uma regularidade discursiva presente em todas as postagens analisadas. A primeira postagem, suporte para a extração dos comentários, é a uma manifestação do próprio Thammy Miranda, de forma a mostrar a necessidade de contato com sua esposa. Na postagem, Thammy está dançando com sua esposa e, no texto que acompanha o vídeo, demonstra-se o contato amoroso na família de Thammy. A segunda postagem é uma entrevista cedida por Popo Vaz para o canal do também influenciador digital Matheus Mazzafera. Na entrevista, Popo expõe excertos de sua vida pessoal e profissional.

O artigo foi organizado de forma a discutir sobre a formação de um domínio de memória sexista empregado na formação de uma norma social na segunda seção; abordar algumas problemáticas sobre as redes sociais e a percepção do corpo trans, em especial o corpo de homens trans, na terceira seção; analisar os comentários selecionados para a composição das séries enunciativas na quarta seção; e tecer as considerações finais na última seção.

2 REPRESENTAÇÕES SEXISTA E BINÁRIA DOS CORPOS COMO ACONTECIMENTO REMINISCENTE NO DOMÍNIO DA MEMÓRIA

Foucault (1988), no primeiro volume da História da Sexualidade, postula a existência de uma mecânica de poder que interpela sujeitos discursivamente por meio de uma rede de saberes. Assim, agenciam-se os sujeitos inseridos em sociedade à docilidade dos corpos, de forma a torná-los úteis, adestrados e previsíveis a um sistema socialmente homogeneizante. Esse efeito de uniformização foi observado inicialmente pelo autor a partir do conceito de anátomo-política do corpo, homem-corpo, mecanismo disciplinar de vigilância do corpo individual por meio de um esquadrinhamento e decifrações das gestualidades para governar como se pode e deve materializá-las biologicamente nos séculos XVII e XVIII (Foucault, 2005).

Conforme Foucault (1988), cabe ao domínio de ação da anátomo-política uma rede de técnicas e sanções orgânicas que agem, sobretudo, no modo de vida, identificação e socialização com outros da mesma espécie, controlando gestualidades corporais pelo esquadrinhamento fisiognomônico, pela distribuição espacial e pelo controle temporal. Em suma, o equipamento da anátomo-política está intimamente ligado aos regimes disciplinares, ao biopoder, cuja tônica é o corpo-indivíduo.

O repertório de investimentos corporais propõe um trabalho de controle disciplinar vinculado diretamente a instituições formais, e condições dos processos de subjetivação. Assim, há um domínio de saber homogeneizante, que aponta o que pode ou não o corpo.

As materialidades discursivas demarcam um processo de segregação e classificação, no qual “a sexualidade torna-se um dispositivo de controle - de corpos, de modos de existência e de populações” (Cassal; Garcia; Bicalho, 2011, p. 466). Outrossim, direcionamos nosso olhar ao debate foucaultiano acerca dos domínios do corpo, em especial, dos domínios de saber e poder sobre a sexualidade de sujeitos, capazes de engendrar a materialidade dos corpos. Ora, na realização de uma leitura foucaultiana, depreendemos a noção de dispositivo a partir de

um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos (Foucault, 1988, p. 244).

Com base no conceito postulado por Foucault (1988), concebemos o dispositivo da sexualidade e da segurança a partir de um recorte enunciativo que seleciona regulamentos, normas, diretrizes, ditos e não ditos que convencionam um saber coletivamente difundido acerca do que é vontade de verdade que reorganiza, fomenta e redistribui saberes por meio de técnicas de poder para a problematização do sexo e da segurança do sujeito.

Contudo, ao citarmos a proposta analítica foucaultiana sobre a anátomo-política do corpo, com o objetivo de controlar vontades, desejos e garantir segurança, num sistema capitalista e neoliberal com foco na produtividade, consideramos importante mobilizar a existência de uma biopolítica da população. Essa biopolítica tem por função maior gerir grandes grupos de forma que o estabelecimento da norma e das sanções de controle e disciplina sejam utilizados não somente pelos sujeitos que discursivamente são clivados pelo direito ao departamento do governamento brasileiro1 (Veiga-Neto, 2002), mas por todos os sujeitos envolvidos em um mesmo território.

Na teoria foucaultiana, a biopolítica se consolida pela concepção de um poder que tem por função controlar institucionalmente a população, com recursos sociais, políticos e biológicos. Esses recursos selecionam quem deve viver e quem pode ser deixado à morte, como indivíduos invisibilizados por serem partícipes de uma comunidade minorizada, de baixa representatividade em diversas instâncias sociais (Foucault, 1988; 2005; 2008). Assim, de acordo com Foucault (2005 p. 300), “a sexualidade está exatamente na encruzilhada do corpo e da população. Portanto, ela depende da disciplina, mas depende também da regulamentação”. A sexualidade, conforme a concepção foucaultiana, incide diretamente em uma maquinaria de controle disciplinar que regula e governa modos de vida e de condução da população.

Em conjunto, os processos de delimitação de objetos de saber e instituições de poder configuram uma rede de técnicas que incidem diretamente na subjetividade por um processo de regulação de verdades que regem comportamentos e regulamentos. De acordo com Guattari e Rolnik (2010, p. 42), “o modo pelo qual os indivíduos vivem sua subjetividade oscila entre dois extremos: uma relação de alienação e opressão, na qual o indivíduo se submete” a um regime de conduta que constrói “uma relação de expressão e de criação. Nessa relação, o indivíduo se reapropria dos componentes da subjetividade”, a partir de uma normalização social do que é aceito ou negado. No caso do sexo, há uma normalização cis-heteronormativa.

A normalização está diretamente ligada à moral social. Em linhas gerais, a moral demarca normas sociais que regem o sistema de condutas e regula os corpos, criando um grande operador social de vigilância e dominação contra os deslizamentos considerados anormais (Foucault, 2001). Nos regimes de olhares, nos jogos de verdade, nos contratos sociais, a norma classifica a díade normal-anormal sobre o corpo individual e sobre o corpo social, do corpo-indivíduo ao corpo-espécie, coletividade esta que é massificada. As normas reduzem o sujeito desviante à anormalidade e “permitem individualizar incessantemente e, ao mesmo tempo, tornam comparável” num projeto de “medida comum, que se institui na pura referência de um grupo a si próprio” (Ewald, 1993, p. 86). No estabelecimento do normal, da educação por meio dos valores éticos e morais, as normas estabelecem uma padronização social de corpos e sexualidades considerados socialmente aprazíveis.

A percepção moral, assim, passa a servir como ferramenta para a operacionalização do exame, que mede, compara e classifica o normal e o anormal (Foucault, 2001). Ainda, o processo de normalização da sexualidade cis-heteronormativa instaura contratos sociais de negação e processos de exclusão a corpos dissidentes desta matriz com efeito de estabilidade. Ao mobilizar o sistema de controle biopolítico, a exclusão se efetua em processos de desqualificação da condição humana a partir da ridicularização, da exposição.

Sobre isto, Foucault (2005, p. 300-301) aponta que

[...] a sexualidade, quando é indisciplinada e irregular, tem sempre duas ordens de efeitos: um sobre o corpo, sobre o corpo indisciplinado que é imediatamente punido por todas as doenças individuais que o devasso sexual atrai sobre si [...]. Uma sexualidade devassa, pervertida, etc., tem efeitos no plano da população, uma vez que se supõe que aquele que foi devasso sexualmente tem uma hereditariedade [...].

Por intervir na organização de uma sociedade, o sujeito que pratica uma sexualidade discursivizada como anormal é excluído, por meio da decifração de seu corpo considerado dissidente. Trata-se de um esquadrinhamento biológico (orgânico) - anátomo-político - que descreve gestualidades insurgentes num procedimento que destoa dos efeitos de homogeneização cis-heteronormativos, devassos, contrários ao que se instituiu. Especialmente pela formação discursiva da moral cristã, apresenta-se como ascetismo fundamental à ordem saudável, governada, também, pela monogamia, cuidado de si que conduz o corpo à condição saudável, interpelando-o a estar distante de doenças venéreas. Daí o fazer viver emergente da normalização das condutas produtivas da economia da sexualidade por esse dispositivo que recalca desejos sexuais exteriores ao contrato matrimonial e também os que deslizam da considerada ordem polarizada da sexualidade: feminino em conjunção com o masculino, condição discursivizada como natural biologicamente devido à procriação. As ressonâncias das vozes desse corpo em redenção quanto à agenda da unificação das fisiognomonias são apagadas, ou, pelo menos, silenciadas, sob a égide avaliativa da anormalidade, da monstruosidade e da perversão. Suas imagens são regularmente organizadas para despertar, pela história das sensibilidades, o pathos do espanto, numa tentativa de eliminar a presença daquilo que não pode ser compreendido ou que não consegue se alinhar ao sistema de produção corporal taxionomizado como condição de possibilidade normal. Nesta percepção biopolítica, ao se excluir o anormal, garantem-se socialmente mecanismos de escamoteamento de subjetividades que levam às mortes identitária, cultural e subjetiva.

As práticas discursivas, o corpo e a sexualidade são convertidos a uma tecnologia de governo na qual se objetiva uma gestão da vida, de forma a estabelecer um controle (máximo) entre as significações de existência possíveis para a validação de um sujeito, a partir da operacionalização do dispositivo da sexualidade e da segurança.

Pela via das preconizações foucaultianas, Agamben observa o dispositivo a partir da seleção/organização que operacionaliza um regime de verdade, de ditos e não ditos. Esses regimes carregam a função de “capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes” (Agamben, 2009, p. 13), a partir da regularização do que pode ou não pode um corpo/sujeito.

Em linhas gerais, conforme Foucault (1988) e Agamben (2009), o dispositivo possibilita a) formas heterogêneas, não hierárquicas e cronológicas de observação de um determinado referente no mundo; b) a organização de um conjunto de discursos que sistematiza-se a partir de atos institucionais, regulamentos, leis, enunciados científicos e não científicos, ditos compartilhados, entre outros; e c) a irrupção de formas do discurso que, em um determinado momento, têm por função construir objetos de saber e técnicas de poder para a construção da conduta de uma população.

O acontecimento reminiscente (no domínio da memória) regulariza a sociedade organizada de modo polarizado sexualmente, em relação ao status e aos papéis sociais possibilitados a partir do domínio dos saberes que circulam por meio dos poderes sobre como se pode e se deve ser homem/mulher.

Sob a égide de uma definição com base na metodologia foucaultiana, o acontecimento discursivo estabelece

“regra[s] de exterioridade” do enunciado, que se aloca[m] entre o “discurso para o seu núcleo interior” permitindo a “aparição de [uma] regularidade” enunciativa, pensada por suas” condições externas de possibilidade, àquilo que dá lugar à série aleatória [...] e fixa suas fronteiras” dentro das possibilidades de recorte do objeto e das manifestações discursivas possíveis (Foucault, 2014, p. 49, aspas no original).

Ao operacionalizar as descrições e a análise do acontecimento discursivo, procuramos estabelecer uma rede enunciativa que vai além da pureza do enunciado, da procura de uma origem de determinado discurso. Perscrutamos a operacionalização de uma rede de significações que, em primeira instância, possibilita o estabelecimento de condições enunciativas, assim como algumas regularidades de emergência do discurso. Debatemos, ainda, o domínio de memória sobre o preconceito como vontade de verdade pejorativa sobre os sujeitos trans, emergindo, assim, uma cadeia de significações capazes de tensionar um sistema complexo de produção de saberes e estabelecimento de poderes em nossa sociedade.

Voltando ao debate, os sujeitos em geral posicionam-se conforme um binarismo sexual (masculino e feminino) que circula com mais veemência sócio-historicamente, normalizando a cristalização da horizontalidade discursiva quanto ao sexo-gênero e apagando a pluralidade de gênero. Para Grossi (2012. p. 164), o “binarismo do gênero, ou seja, a ideia de que as pessoas são contempladas por uma representação masculina ou feminina, de perto é uma lógica perversa que procura normatizar e normalizar os corpos”. Para Butler (2015), em consonância com a teoria foucaultiana, a categoria sexo-gênero no investimento técnico-populacional dado pela biopolítica passa a validar uma relação intrínseca e unilateral entre o sexo biológico e a identidade de gênero. Isso ocorre de forma a interpelar aspectos biológicos, sociais e psicológicos no controle das populações e a interditar deslocamentos da condição anátomo-política engendrada socialmente como natural na constituição orgânica do corpo. Os deslizamentos da norma biológica são subjetivados como anormalidades de corpos classificados como monstruosos, efeito patológico de descontrole da relação entre a natureza do corpo e sua performance social de gênero resistente ao sexo inato.

Imerso numa tecnologia de controle disciplinar, o corpo “lido” no nascimento - também nos ultrassons intrauterinos e nos chás de revelação do sexo dos bebês - como feminino ou masculino deve preservar as características fisiognomônicas que taxionomizam a vontade de verdade pelos saberes sobre condutas binárias de reconhecimento identitário da feminilidade e masculinidade corporal. O sujeito descrito regularmente como pertencente ao sexo feminino deve prezar pelo cuidado, pela sutileza, pelas práticas de embelezamento, pelo cuidado de si via estética (como maquiagem, depilação, cuidados com as unhas etc.) e pela maternidade. O sujeito descrito como pertencente ao sexo masculino deve se projetar por meio de um efeito homogeneizante, cujas técnicas se aplicam pelos saberes e pelos poderes sobre o corpo de um homem, como um ser viril, detentor de pelos corporais, patriarca que tem controle sobre os pagamentos/gastos de sua casa/morada. Bento (2006, p. 7) destaca algumas significações acionadas na decifração de corpos pertencentes ao sexo feminino: “vagina - mulher - emoção - maternidade - procriação - heterossexualidade” e a significantes impostos a sujeitos, esquadrinhados pelo domínio da memória, interdiscursivamente de modo dominante, como próprios do sexo masculino “pênis - homem - racionalidade - paternidade - procriação - heterossexualidade”.

Na composição/permanência de sujeito nos binarismos de sexo-gênero se aglutina a ideia de que há, por necessidade de procriação/constituição de uma família, a vinculação/casamento/junção entre dois sujeitos de sexo e gênero opostos. Essa medida de condução dos corpos pelo biopoder é uma normalização que se legitima, de acordo com Foucault, em um plano de gestão. Esse plano tem o objetivo de “assegurar o povoamento, reproduzir a força de trabalho, reproduzir a forma das relações sociais; em suma, proporcionar uma sexualidade economicamente útil e politicamente conservadora” (Foucault, 2018, p. 38). Destarte, como salienta Butler (2015, p. 16), “nas articulações históricas e sociais”, corrobora-se um sistema de controle e disciplina que, quando pensado pelo dispositivo da sexualidade e da população, apresenta “na heterossexualidade a matriz que confere inteligibilidade aos gêneros”.

No caminho de uma definição do binarismo sexual feminino x masculino, encontramos um efeito de relação lógica de microrrelações que, por uma biopolítica da população, regula e monitora corpos em um determinado território. Pela lente de problematizações sobre a norma social, o trânsito entre os padrões binários de sexo-gênero produz uma esteira de significações que expurga, em primeira instância, os sujeitos que transitam ou que negam a binaridade do sexo-gênero. Por este caminho, conforme Bento (2006, p. 17), “outros níveis constitutivos da identidade também se liberam para comporem arranjos múltiplos fora do referente binário dos corpos”. Nesses outros caminhos possíveis, o corpo entra em conflito com padrões biopolíticos de normalização da heteronormatividade e da padronização da classificação primária de sexo-gênero atribuído ao sujeito (cissexualidade).

Em analogia, ao refletirmos acerca do controle disciplinar, envolto no processo de normalização social, o corpo aceito (ou plausível para ser cuidado e a ele assegurada a vida) é personificado na imagem de um sujeito cis+heterossexual (cis-heterossexual). Pelo sistema de condução dos corpos e da normalização social administrada em uma arte de governo biopolítico, corpos transexuais são apontados como doentes, via patologização de um transtorno aplicado à identidade de gênero de pessoas trans.

Para o debate acerca de um domínio de memória, recorremos ao discurso médico sobre a transexualidade. No Brasil, até o ano de 2018, o Código Internacional das Doenças (CID 10) demarcava a transexualidade a partir da rotulação F64.0, sob a perspectiva de transtornos relacionados à identidade sexual. No CID 10, a transexualidade figurava na tipologia transexualismo2. Ainda, no Manual de Diagnósticos e Estatísticas de Distúrbios Mentais, a transexualidade, outrora considerada um transtorno de identidade de gênero, foi reclassificada e relacionada à figura de uma disforia de gênero.

Relativamente à materialidade sócio-histórica do Brasil, a dissidência do binarismo de gênero provocada pelo trânsito identitário da transexualidade englobou, até o ano de 2018, a perspectiva das doenças psicológicas-sexuais. Ao observarmos o sistema de organização social-biopolítico, e a mudança de paradigma no trato discursivo com a transexualidade, notamos um domínio de memória, no qual, como acontecimento de longa data, os sujeitos transexuais são tratados como seres doentes, para além do estado de anormalidade. Ainda, pelo recorte de um acontecimento de longa duração, pelo dispositivo da sexualidade e da segurança, interpela-se o sujeito transexual, que adquire sobre sua imagem a figura daquele que desconverte a linha da moralidade do gênero e da sociedade “tradicional”.

Em relação à materialidade discursiva de um domínio de memória de rotulação da anormalidade, da transexualidade, também como doença, Bento (2006) preconiza que os sujeitos sofrem um duplo processo de escamoteamento de sua subjetividade ao se identificarem como transexuais. O primeiro se vale na negação interior de si, para a constituição de uma outra identidade que transita pelos padrões sociais. Nesta transição, os corpos transexuais escamoteiam-se novamente, pois, pelo aparato da biopolítica, a população garante um governo de subjetividades que tem por função a morte identitária, cultural e subjetiva do corpo que está em movência. A respeito, vejamos a seguir a problematização do objeto de estudo (transexualidade masculina e redes sociais).

3 A ORDEM FALOCÊNTRICA NA CARTOGRAFIA E DECIFRAÇÃO DOS CORPOS TRANS MASCULINOS NO FACEBOOK

As redes sociais na pós-modernidade ou hipercultura apresentam uma infinidade de funções atribuídas e operacionalizadas pelo sujeito como compartilhamento de fotos, de comentários, de informações, de contatos, entre outros. Assim, o espaço das redes sociais é, por funcionalidade, um recorte que revela o acontecimento da atuação das tecnologias de controle disciplinar, na produção de objetos de saber e técnicas de poder.

De acordo com Barbosa (2013), as redes sociais conquistam gradativamente um locus de dizibilidade no qual os sujeitos passam a produzir discursos de controle do outro a partir de uma produção de si, a ocupar a si, para vigiar o outro. Quando combinamos a concepção de Barbosa (2013) com a de Foucault (Vigiar e Punir), notamos a incidência da configuração de uma redoma de controle disciplinar (panóptico) que, de “todos os cantos”, atua nas subjetividades dos outros, de forma a garantir o máximo de disciplina com o mínimo de esforço de controle possível.

Em linhas gerais, as redes sociais, pelo efeito da globalização da informação, possibilitam aos seus usuários um processo gradativo do cuidado de si e do cuidado reiterante com as normas sociais em um efeito de duplo espelhamento de técnicas. Destarte, podemos asseverar que as redes sociais organizam um sistema de possibilidade de controle das subjetividades dos outros, a partir de um escamoteamento algorítmico (código computacional) do que “não pode ser dito” e de uma propagação “daquilo que deve ser dito/visto”. Notamos, neste ponto, um sistema de inteligibilidade no qual é imprescindível a visão de um arrolamento de representações elencadas nas redes sociais como um sistema social de regulação biopolítica.

No tocante às tecnologias utilizadas pelo sistema biopolítico de condução/controle de condutas, Foucault (2009) identifica tecnologias de cuidado, a saber:

(1) tecnologias de produção, que permitem produzir, transformar ou manipular as coisas; (2) tecnologias dos sistemas de signos, que permitem utilizar signos, sentidos, símbolos ou significação; (3) tecnologias de poder, que determinam a conduta dos indivíduos e os submetem a certos fins ou dominação, objetivando o sujeito; (4) tecnologias de si, que permitem aos indivíduos efetuar, com seus próprios meios ou com a ajuda de outros, um certo número de operações em seus próprios corpos, almas, pensamentos, conduta e modo de ser, de modo a transformá-los com o objetivo de alcançar um certo estado de felicidade, pureza, sabedoria, perfeição ou imortalidade (Foucault, 2009, p. 323-324).

Essas tecnologias de controle estão, em certa medida, evidenciadas no sistema de organicidade das redes sociais. Nelas, há necessidade de produção de conceito para crescimento da conta vinculada à rede social, via algoritmos de validação e impulsionamento de certas materialidades discursivas em detrimento de outras, de forma a permanecerem “ativas” socialmente. Nas redes, os usuários devem utilizar determinado conjunto de enunciados que fazem parte de um domínio discursivo específico do sujeito normal. Nas redes, sujeitos visíveis e, por isso, mais lidos, são padronizados em relação a gestualidade, organicidade, cronicidade e posicionalidade. Nas redes, não são todos os sujeitos que podem e devem operacionalizar determinadas regularidades discursivas, pois podem ser invisibilizados e permanecerem no limbo. Assim, nem todos podem assumir determinadas subjetividades/identidades - as deslocadas dos efeitos de normalidade.

Neste estudo, ao abarcamos termos/conceitos como identidade e subjetividade, sistemas biopolíticos e pós-modernidade (ou hipercultura), corroboramos e adicionamos argumentos à problematização foucaultiana. Em nossa sociedade, as redes sociais apresentam como efeito um sistema de “jogos, de procedimentos” que levam a “favorecer relações sociais” (Foucault, 1994, p. 739). Esses jogos demarcam discursivamente saberes e poderes a partir de um processo de histerização do corpo, por uma dedução fisiognomônica, que possibilita a “criação de novas formas de vida, de relações, de amizade, na sociedade, na arte, na cultura, novas formas de se instaurarem através de nossas escolhas sexuais, éticas e políticas” (Foucault, 1994, p. 736). Tal criação propiciada também pelas redes sociais assume por função, num sistema biopolítico, demonstrar quais sujeitos devem ser vistos, apreciados e cuidados e quais sujeitos devem ter sua honra atacada, e sua subjetividade questionada e deixada de lado, para o esquecimento, o adoecimento, a morte. Há, portanto, uma pseudodemocratização da pluralidade dos corpos nas redes sociais.

Quando nos remetemos ao dispositivo da sexualidade e às práticas de subjetivação por meio das identidades, as práticas discursivas mobilizadas nas redes sociais fazem emergir uma rede de significações. Nessas redes, como Prado-Filho (2019, p. 116) postula, acaba-se por “constituir uma tradição identitária à medida que se volta para o sujeito como objeto” de operacionalização das tecnologias de poder. Isso projeta um sistema de remissão constante do sujeito que enuncia e que “deposita [no dizer] sua marca identitária de autoria” em posts encontrados nas redes sociais.

É fundamental investigar as formas de discursividade emergentes de nosso objeto de estudo: as interdições da transexualidade masculina em materialidades enunciativas de redes sociais. O corpo transexual, o corpo que transita do gênero feminino ao masculino (constituição subjetiva de um homem trans) organiza um sistema de representações no qual, segundo Goellner (2015, p. 137), o “gênero não é algo que está dado”. Isso ocorre porque a identidade de gênero é construída diariamente de forma a estabelecer fisionomias que ratificam padrões representativos “construídos social e culturalmente” num repertório cultural capaz de envolver um processo de (de)marcação do corpo com base em identificações do “ser masculino e/ou feminino.”

Nas redes, o corpo sancionado por uma norma social - no caso, o masculino - precisa demonstrar certa virilidade, uma fisiognomonia dada historicamente pela memória discursiva ao investir sua existência cotidiana. O sujeito em trânsito identitário para a definição de uma outra identidade de gênero - no caso uma identidade masculinizada - deve, por um padrão normativo, demonstrar um nível de virilidade que valide sua existência tal como representa para sua formação identitária.

Conforme Sibilia (2016), organiza-se um processo de curadoria do eu, no qual o sujeito filtra tudo o que pode ou não ser visibilizado em suas redes sociais. Sorrisos, beijos, abraços e demonstrações de afeto com a família (marido, esposa e filhos) passam a ser ferramentas recorrentes nos perfis de homens trans. A partir da regularidade enunciativa da afirmação do masculino, as variáveis aplicadas à posição do sujeito entram em cena, de forma a estabelecer o nicho de publicação da vida pessoal, ou, pelo menos, dos momentos vividos e passados pela curadoria do sistema de produção de uma representação de si para a sociedade (Sibilia, 2016).

Com o termo “curadoria do eu” procuramos, como Sibilia (2016), estabelecer uma rede de sentidos que sistematizam o domínio de condução dos corpos e das representações de forma a constituir um regime próprio de verdade por meio de certos saberes sobre a vida do sujeito que a publica. Neste percurso, salientamos a existência de um cuidado de si em reforço para os sujeitos trans masculinos: seu corpo e sua identidade são questionados e negados a todo momento.

A identidade trans masculina esboçada nas redes sociais produz, de certa forma, um malfazer da verdade do sujeito, de forma que se estabelece uma vontade de verdade priorizada pelo sistema de condução dos corpos pela sociedade e/ou o sistema de representatividades ao qual o sujeito é associado. Tanto postagens realizadas quanto aquelas autorizadas pelos sujeitos passam por um sistema de condução das representações de forma que a amergir somente o que é necessário para a validação de sua identidade e de sua perspectiva.

Posto isso, passamos à análise.

4 ANÁTOMO-POLÍTICA DO CORPO MASCULINO TRANS E PRECONCEITO DE GÊNERO

Dedicamos esta seção ao debate de três séries enunciativas organizadas a partir de comentários de quatro postagens encontradas no Facebook. Para a seleção, filtramos as publicações destinadas a apresentar/problematizar a identidade de Paulo Vaz e Thammy Miranda como homens, considerando a organização algorítmica do Facebook.3

Vejamos a primeira série enunciativa selecionada:

Primeira Série enunciativa: Discurso de ódio atravessado pelo discurso religioso

Comentário 1: “Ela desfez da criação divina. Agora só quem pode julgar é Deus, e o juízo final se aproxima. Vamos deixar nas mãos de Deus.

Comentário 2: “Infelizmente se ela não pedir perdão a Deus não procurar se redimir vai queimar no inferno por ter mudado algo que Deus fez. Deus deu a vocês mulheres o don da vida podendo gerar outra vida de dentro de vocês e ela teve vergonha de ser mulher como pode uma pessoa assim ter uma cabeça boa?”

Comentário 3: “Ele n, ela, pra Deus ela e ela e pronto,só prós cego q n enxergar a vdd”

Comentário 4: “Você pode mudar sua capa, colocar barba, eliminar os seios. Pode mudar tudo que o dinheiro pode pagar.... Mas jamais deixarás de ser uma mulher!. Nada nem niguem desfaz o que DEUS fez!!!” [...]

Fonte: Comentários extraídos do Facebook de Thammy Miranda.

Na primeira série - composta por comentários que utilizam os itens lexicais “ela” e “mulher” para se referirem ao homem trans Thammy - reconhecemos a negação do corpo trans como regularidade discursiva, consoante uma percepção binarista de gênero alinhada exclusivamente com o sexo biológico de nascimento.

No comentário 1, a sequência enunciativa “ela desfez da criação divina” põe em cena uma rede discursiva de questionamento sobre a naturalidade deslocada do corpo orgânico de Thammy. Note-se que o usuário mobiliza um fazer verdadeiro que, permeado pelo sexo adâmico original, estabelece um elo entre a norma do binarismo sexual e a impossibilidade de existência de qualquer trânsito corporal revogado pela descontinuidade de padrões atrelados ao sexo, ao gênero e à orientação sexual.

Independentemente de qualquer materialidade histórica, social e cultural, os comentários dessa série evocam uma inteligibilidade social em que preceitos judaico-cristãos (ditos presentes na bíblia cristã) ditam uma vontade de verdade minimamente regulada em enunciados presentes no Facebook. Observe-se como a condição de existência de Thammy é penalizada a partir de preceitos bíblicos que condenam sujeitos transgressores à danação eterna. Deus onipotente, modalização lexical regular em todos os comentários, é o juiz que condena o desrespeito ao corpo orgânico, segundo as interpretações ressonantes em todas as tramas discursivas nesta série enunciativa.

Os comentários 1 e 4 podem ser observados em conjunto. No primeiro, notamos o reconhecimento de que Thammy, ao se transformar, “desfez” uma construção divina estabelecida pelo sexo biológico de seu nascimento. Em contrapartida, o quarto comentário assevera a impossibilidade de se “desfazer” a construção divina do sexo de nascimento. As contradições discursivas corroboram um mesmo sistema de configuração de verdade. O primeiro comentário afirma que, ao se transformar fisicamente, Thammy “deformou” seu corpo “material” de forma a desfazer sua imagem de sujeito feminino. O quarto comentário reconhece a mudança corporal de Thammy, mas materializa a impossibilidade de transição do sexo biológico estabelecido no nascimento, porque Deus permaneceria reconhecendo o corpo como feminino: mesmo “colocando barba” e “eliminando os seios”, Thammy nunca mudará sua essência feminina, nunca será considerada, de fato, um homem. Ambos os enunciados se aproximam tematicamente pelo atravessamento do discurso cristão, ao afirmarem que Deus reconhece Tammy como corpo feminino (“ela”, “mulher”). Seja o caso, Thammy é um sujeito pecador.

O terceiro comentário, também no caminho do não reconhecimento da condição masculina do corpo de Thammy, aponta que “para Deus é ela e não ele”. O comentário reitera uma vontade de verdade amparada pelo discurso cristão/religioso. Thammy sempre será um anormal por procurar para si o reconhecimento de uma identidade masculina. Trata-se de um indivíduo a ser corrigido por tentar escapar da predestinação, da sacralização corporal, dos desígnios de Deus.

No segundo comentário, notamos a referência direta à discussão sobre a anulação da naturalidade do corpo trans. Essa discussão reverte uma lógica biologizante do corpo, ao qual somente se permite a perpetuação da espécie humana e/ou a (re)produção de mão de obra para a sociedade.

Acerca da sexualidade, Foucault (1988, p. 37) preconiza a averiguação de uma rede discursiva onde se procura “assegurar o povoamento, reproduzir a força de trabalho, reproduzir a forma das relações sociais; em suma, proporcionar uma sexualidade economicamente útil e politicamente conservadora”. Em conformidade com o já-dito, ao (re)produzir um grupo familiar destoante da matriz cis-heterossexual, a vida de Thammy passa a ser questionada, de forma que tal interdição seria chancelada por um fazer verdadeiro atrelado a uma interpretação da vontade de um Deus judaico-cristão cistematizado4 pelo texto bíblico cristão.

Destarte, observamos na primeira série enunciativa uma regularidade discursiva de aproximação da existência de Thammy a uma deformidade social que deve ser punida pelo “julgamento divino”. Há um panóptico repleto de técnicas de controle e de vigilância dos corpos. Ao destoar dos efeitos de homogeneização, a punição não acontece mais pelo suplício físico, mas pela publicidade da contestação ética e moral remetida à nova configuração rechaçada do corpo trans. A partir da regularidade demonstrada nos comentários selecionados, observamos a sistematização de uma rede de verdade. Essa rede conjura a constituição de um objeto de saber que, por via da tradição judaico-cristã, chancela o ódio contra comunidades divergentes da norma, a partir do rótulo da “liberdade religiosa”. Ainda, os comentários negam o sexo-gênero como algo construído socialmente. Trata-se de algo já dado pelo discurso cristão escrito/produzido há mais de dois mil anos.

Quando observamos os comentários em postagens que abordam a vida de Popo Vaz, contemplamos a circulação de enunciados que representam a mesma materialidade enunciativa presente na primeira série enunciativa. Notamos a organização de uma técnica de ordenação discursiva que tem por objetivo a produção de efeitos de verdade negando a identidade de sujeitos trans com base em dogmas religiosos.

Diferindo dos comentários sobre Thammy, as publicações sobre Popo Vaz mostram discursos que, além do preconceito religioso, questionam ou confundem sexo, gênero e orientação sexual. Como mencionado anteriormente, Popo Vaz se considerava um homem trans gay. Ele se sentia atraído por sujeitos do sexo masculino. Ao se autonomear dessa forma, Popo reconhece que seu gênero, assim como a percepção do gênero dos sujeitos por quem se sentia atraído, pertencia à mesma “classificação”, sendo, portanto, masculino. Miremos a segunda série enunciativa:

Segunda série enunciativa: Identidade em trânsito, um corpo errado

Comentário 1: “Mas se ele gosta de homem porque não continuou sendo mulher”;

Comentário 2: “Ou seja por fora é homem, mas por dentro é mulher. Mas só a pessoa não percebe que isso é uma verdade e prefere se iludir com a aparência.”

Comentário 3: “Mente doente! Quer homem e continua fazendo sexo hetero é bizarro!”

Fonte: Comentários extraídos do Facebook de Matheus Mazzafera

A expressão de sexo e gênero de Popo Vaz gerou comentários recorrentes que questionam sua subjetividade, após ele revelar sentir atração por homens em uma entrevista. Atentando à problematização efetuada por Jaqueline de Jesus (2016), contemplamos a produção de uma desestabilização da norma social. Em resumo, a expressão de sexo e gênero de Popo é escamoteada de duas formas: por um lado, seu corpo, antes considerado como feminino, desconstrói uma identidade passada; por outro lado, recria uma subjetividade em trânsito.

Paulo Vaz se compreendia como um sujeito gay. O corpo transformado de Paulo, mesmo não integrado pela norma social, é representado pela figura de um homem anormal, que “deformou” sua identidade para a assimilação de outra identidade. Como efeito de uma técnica de normalização, ao negar o corpo feminino forçando a transição a um corpo masculino, evidenciou sua orientação sexual, que somente poderá ser a do desejo voltado para o corpo feminino. Com Popo, o sistema de rotulação dado por uma mecânica de poder aplicada por meio de técnicas de normalização social fracassou duplamente, quando propôs uma agenda fisiognomônica homogeneizante cis-sexual e investindo em procedimentos gestuais vinculados ao domínio de saber voltado à orientação heteronormativa.

Os comentários arrolados na segunda série enunciativa demarcam um desvio do poder dissidente do corpo trans sobre a identidade e a sexualidade de Popo Vaz e a reivindicação da normalidade cis-heteronormativa. Nos comentários da segunda série, há uma tentativa de deslegitimar o corpo trans, com ataques que desqualificam sua existência. Notamos um campo discursivo de sacralização do corpo biológico por meio da predestinação sexual orgânica, uma necessidade de alinhamento com a norma heterossexual. Um sujeito como ele não está autorizado a ser duplamente deslocado dos efeitos de normalidade. O comentário 3, ao enunciar “continua fazendo sexo hetero”, invisibiliza o corpo trans. O interesse gay é apagado e permanece a consideração do sexo adâmico, inato, em relação ao Popo: feminino. O interesse gay também é apagado no comentário 1, pois não se pode desejar um corpo masculino para se relacionar sexualmente com outro corpo masculino, de acordo com esse enunciado machista. A heteronormatividade é reforçada para reafirmar a normalidade do corpo cis e das relações entre sexo feminino e masculino. O comentário 2 reitera essa prática preconceituosa contra o corpo trans ao condenar as transformações físicas, que não podem modificar a “essência” feminina, o caráter, uma predestinação considerada imutável psiquicamente, cognitivamente, mentalmente, conforme a subjetividade materializada para deslocar a configuração do corpo trans.

A transição de gênero é questionada incessantemente, associando-a a supostas patologias humanas. Entretanto, algo que encontramos apenas em postagens direcionadas a Popo Vaz é o questionamento acerca da sua orientação sexual. Popo, um sujeito que no início da vida foi apontado erroneamente como mulher (por ele não se identificar com o corpo feminino), assume para si uma orientação sexual que, com a permanência da identidade feminina estabelecida pelo sexo biológico de nascimento, poderia enquadrá-lo em uma norma de controle disciplinar de conduta. Porém, ao se tornar Popo, é rechaçado tanto por se tornar homem quanto por se interessar por homens. Em suma, se Popo mantivesse a identidade cisfeminina atribuída ao nascer, não seria visto como “anormal”, e a sociedade não tentaria controlar sua subjetividade. Por serem deslizantes do corpo cis, os corpos trans são apagados nos enunciados mobilizados neste estudo.

Terceira série enunciativa: Preconceito contra o corpo trans

Comentário 1: “Na hora de dar é mulher kkk”

Comentário 2: “Belo exemplo de propaganda enganosa 🤣🤣🤣🤣🤣🤣”

Comentário 3: “na hora h queria saber como funciona. será que tem que usar um membro de mentira? casamento assim logo vai pro ralo. não tem putaria que substituia o membro que falta”

Comentário 4: “O problema foi o namorado que gostava de **** e ele não tinha, por isso viviam numa relação aberta e isso causou uma serie de criticas e problemas entre os dois.”

Fonte: Comentários extraídos do Facebook de Thammy Miranda e Matheus Mazzafera

Em nossa última série enunciativa encontramos uma regularidade discursiva falocêntrica presente em comentários sobre Thammy e Popo. Os enunciados recuperam uma manifestação de negação à existência dos dois homens trans a partir da percepção da falta do pênis “natural” masculino. Essa série se conecta às anteriores, reforçando o preconceito contra homens trans. O discurso cristão, o ascetismo e a norma do corpo biológico negam a validade do corpo trans, julgando-o artificial e desrespeitoso à sacralidade do corpo. Os enunciados “falta um membro”, “gostava de **** e não tinha em casa”, “propaganda enganosa” e “na hora do sexo se porta como uma mulher” apontam uma regularidade discursiva de negação à identidade masculina impressa nos corpos dos sujeitos observados.

Com respeito a essa terceira série, retornamos a Foucault acerca da organização da sociedade. A constituição discursiva dos comentários realizados pelos usuários do Facebook dá suporte a uma capilaridade de saberes e poderes que organizam uma realidade biopolítica, a fim de negar a identidade e a existência de sujeitos que transitam entre o normal e o anormal.

O processo de controle biopolítico se dá na operacionalização de enunciados que, por função, negam o sexo, a família e a identidade de Popo e Thammy, de forma a ridicularizar sua imagem, com ataques de desqualificação das práticas corporais e sexuais dos sujeitos envolvidos.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o empirismo do dispositivo da sexualidade (Foucault, 1985) nos deparamos com a experiência “trans” (Bento, 2006), direcionando nosso olhar para um corpo que não se encontra nas categorias de sentido binário e sexista do sexo-gênero. A experiência “trans” conjura um sistema de representações e condições de conduta capazes de organizar efeitos de verdade sobre o que pode e o que não pode um corpo em sociedade.

Nosso objetivo não foi a revisão pormenorizada acerca da transexualidade masculina. Especificamente, investigamos a formação de séries enunciativas que marcam o preconceito ao excluir corpos trans masculinos e invalidá-los como obstáculos em uma sociedade cis-heteronormativa. Essa normalidade promove a inexistência de uma modulação lexical sobre corpos trans. Apenas corpos cis, que são polarizados como homens e mulheres, baseados em características biológicas inatas, seja pelo viés discursivo cristão e religioso, seja pelo investimento disciplinar de saberes já estabelecidos, são condicionados pelas memórias e pelas condições históricas de produção da visibilidade. Assim, a intericonicidade, pela História das imagens reminiscentes, especifica o que é e pode ser visto, sonhado e imaginado, conforme o conceito desenvolvido por Courtine (1999).

Em todas as menções ao corpo de Thammy e Popo, não há referência ao corpo trans, apenas ao corpo anterior à transformação. Isso reflete as técnicas anátomo-políticas de disciplinamento, que promovem a homogeneidade e a docilidade dos corpos, baseadas na noção de um corpo “natural” e imaculado, conforme a providência divina e a ordem orgânica. O ascetismo atravessa todos os enunciados coletados, preconizando, portanto, a renúncia pessoal ao prazer de se desviar do corpo cuja existência não produz bem-estar a quem deve mantêlo. Repete-se de modo unânime na materialidade verbal a polarização sexual marcada pela dicotomia homem/mulher, ele/ela. Homem trans não é uma possibilidade de qualificação: ela é negada discursivamente nesses comentários. Homem, como categoria de gênero para se referir aos corpos de Thammy e de Popo, sequer é uma alternativa que irrompe em algum enunciado, por não haver, conforme a subjetividade regularmente verificada neles, o reconhecimento de que um corpo pode ser modificado conforme a identidade de gênero mais adequada para o autoconhecimento físico, psíquico, cognitivo e mental de si.

Em suma, a negação dos papéis de sexo-gênero de Popo e Thammy nos permitiu perspectivar um sistema de preconceitos que se reforça ao rejeitar sua subjetividade e apagar sua identidade. Neste sistema de condução de subjetividades, o suicídio de Popo, que não resistiu aos comentários regularmente ofensivos e ao sistema de representações cis-heteronormativas, reitera a morte desse corpo já apagado simbolicamente. Essa morte física demonstra a dificuldade de se manter dissidente numa ordem discursiva cujas técnicas disciplinares em favor do corpo cis e hetero permanece dominante.

Enfim, regido pelo sistema da norma social, como nos alerta Foucault (2018, p. 28), “o corpo é uma realidade biopolítica”. No sistema de controle das condutas administrado pela biopolítica, especialmente visível nas redes sociais, surgem micropoderes sobre o corpo. Nessas plataformas, os corpos de homens trans acabam por gerar um efeito de pseudodemocracia em relação à sua visibilidade. Pela lógica da norma, os corpos trans são implacavelmente aviltados nas redes sociais e seu protagonismo serve especialmente ao acontecimento preconceituoso.

REFERÊNCIAS

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  • FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
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  • FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro; São Paulo: Paz e Terra, 2018.
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    » https://www.youtube.com/watch?v=pfWN48Uxv8A
  • 1
    O enunciado do Governamento, de acordo com a leitura de textos de Foucault, abordada por Veiga-Neto (2002), está vinculada à administração pública, em especial às repartições e ordenamentos do Governo (Governo da República, Governo Municipal, Governo do Estado).
  • 2
    O sufixo ismo, de proveniência grega, acionado no enunciado transexual, denota condição patológica condicionado à ideia de uma doença mental/psicológica. Tal termo (transexualismo) foi retirado de utilização em contextos médicos no Brasil. Contudo, ainda se encontra o termo disforia de gênero, ao qual, novamente, submetem os sujeitos transexuais a um quadro de anormalização de suas subjetividades.
  • 3
    Dado que houve mais de trinta mil comentários potenciais para constituir as séries enunciativas, a escolha de comentários contrários às subjetividades de Paulo e Thammy se deu a partir de uma sondagem detalhada de informações que o Facebook e/ou os “donos” das postagens monitoram constantemente.
  • 4
    Utilizamos o enunciado cistematizado de forma a unir uma ideia de sistema social, gerido pela norma social, consolidado por uma corrente de produção de verdades atreladas à cis-heterossexualidade.
  • Editor de Seção:
    Fábio José Rauen

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Mar 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    09 Ago 2024
  • Aceito
    22 Jan 2025
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