Resumo
A pandemia de Covid-19 (2020-2023) provocou um grande impacto sobre a saúde física e mental das populações. Nesse contexto, foram inúmeras as publicações que tentaram compreender o que se passava, buscando dar sentido a uma experiência cujas dimensões e consequências eram ainda desconhecidas. Interessando-se por essa malha discursiva e situando-se na interseção entre a Análise de Discurso Crítica e a Linguística Cognitiva (Charteris-Black, 2004), analisam-se neste trabalho metáforas conceptuais (Lakoff; Johnson, 1980) em seis capas da revista Vida Simples publicadas durante os seis primeiros meses da pandemia. Observou-se que os mapeamentos metafóricos empreendidos apontam para - e ao mesmo tempo criam - uma realidade na qual o indivíduo é aquele responsável por sua saúde, corroborando uma visão de mundo de cunho neoliberal-capitalista de cuidado de si.
Palavras-chave:
Análise de Discurso Crítica; Mapeamentos metafóricos; Sociocognição; Covid-19; Saúde Mental
Abstract
The Covid-19 pandemic (2020-2023) had a significant impact on the physical and mental health of populations. In this context, there were numerous publications that attempted to understand the events unfolding, seeking to make sense of a new experience, whose dimensions and consequences were still unknown. Interested in this discursive framework and situated at the intersection between Critical Discourse Analysis and Cognitive Linguistics (Charteris-Black, 2004), this paper aimed to analyze conceptual metaphors (Lakoff; Johnson, 1980) in six covers of the brazilian magazine Vida Simples published during the first six months of the Covid-19 pandemic. It was observed that the undertaken metaphorical mappings point to-and create-a reality in which the individual is responsible for their own health, corroborating a neoliberal-capitalist worldview of self-care.
Keywords:
Critical Discourse Analysis; Metaphorical mappings; Social cognition; Covid-19; Mental Health
Resumen
La pandemia de Covid-19 (2020-2023) provocó un gran impacto en la salud física y mental de las poblaciones. En este contexto, se publicaron numerosos materiales que intentaron comprender lo que estaba ocurriendo, buscando dar sentido a una experiencia cuyas dimensiones y consecuencias aún eran desconocidas. Interesándose por esta red discursiva y situandose en la intersección entre el Análisis Crítico del Discurso y la Lingüística Cognitiva (Charteris-Black, 2004), este trabajo analiza las metáforas conceptuales (Lakoff; Johnson, 1980) en seis portadas de la revista Vida Simples [Vida Simple] publicadas durante los primeros seis meses de la pandemia. Se observó que los mapeos metafóricos realizados apuntan hacia (al mismo tiempo que crean) una realidad en la cual el individuo es el responsable de su propia salud, corroborando una visión del mundo de corte neoliberal-capitalista sobre el cuidado de sí mismo.
Palabras clave:
Análisis Crítico del Discurso; Mapeos metafóricos; Sociocognición; Covid-19; Salud Mental
1 INTRODUÇÃO
A pandemia de Covid-19 inscreve-se no conjunto de acontecimentos que provocaram uma importante ruptura nas sociedades globais. Na época de sua deflagração, muitas comparações foram realizadas com outras epidemias, como as dos vírus da SARS e H1N1, na China, e do Ebola no continente africano. Diferentemente, entretanto, o impacto da Covid-19 se deu ao redor do globo e de maneira acelerada, algo que não se via desde a Gripe Espanhola.
Diante desse quadro, os avanços tecnológicos e a organização social permitiram respostas sanitárias rápidas, com efeitos significativos sobre as populações. A primeira e mais importante delas foi a declaração de lockdown imposta pela quase totalidade dos países ao redor do globo, inclusive com fechamento de fronteiras. Iniciado em março de 2020 na maior parte das cidades do Brasil, o lockdown teve como objetivo frear a contaminação em massa de brasileiras e brasileiros, tal como se vinha fazendo em outras partes do mundo.
Foi assim que, pela primeira vez, muitos se viram confinados em suas próprias casas, a fim de proteger a si mesmos e a outros de uma ameaça ainda pouco conhecida, cuja letalidade ainda estava por investigar. Contudo, se a duração dessa medida estava prevista para pouco mais de duas semanas inicialmente, o que se testemunhou foi uma prolongação do confinamento por vários meses.
O psicanalista Benilton Bezerra (2020) reconhece na pandemia o grande evento que marca a entrada do Ocidente no século XXI, por considerar que, mais do que o calendário, são os acontecimentos que sinalizam a passagem do tempo nas sociedades. De fato, a ameaça global e as tentativas de contenção provocaram uma profunda transformação na dinâmica das populações, equiparável à da Primeira Guerra Mundial, que teria inaugurado o século XX. Nesse contexto incerto, o mundo presenciou uma expansão acelerada do uso de tecnologias de informação e comunicação. Contudo, o que trouxe “um campo de possibilidades inédito” foi também responsável por “um conjunto de novos problemas para a humanidade” (Bezerra, 2020, p. 496) nos campos econômico, social, educacional, dentre outros.
O clima era, portanto, de incertezas: Que ameaça real representava esse novo patógeno? Que consequências o lockdown traria para a sociedade? Quanto tempo ele de fato duraria? Como conciliar segurança econômica e segurança sanitária, em nível familiar, local ou nacional? Que novo futuro se apresentava para nós? O que seria o “novo normal”?
No Brasil, o cenário de dúvidas parecia agravar-se, sobretudo em razão das políticas pouco eficazes e muitas vezes confusas e contraditórias adotadas pelo Estado brasileiro à época, chefiado pelo então presidente Jair Messias Bolsonaro. E isso não veio sem consequências para a saúde mental de brasileiras e brasileiros. Nas palavras de Bezerra Junior (2020, p. 246),
a realidade se mostrou muito perturbadora. Alguns tentam exorcizar a angústia ocultando o real assustador com a peneira da fantasia onipotente - o maior exemplo é o negacionismo da “gripezinha”. Outros têm sua normatividade psíquica abalada a ponto de sucumbirem a sintomas psíquicos ou somáticos. O distanciamento social e a quarentena têm aproximado pessoas antes afastadas no cotidiano, mas também têm aumentado a pressão emocional sobre laços afetivos instáveis, o que se pode constatar no aumento de transtornos mentais ou no relatado incremento de pedidos de divórcio na Wuhan pós-Covid-19.
Muitas foram as tentativas de compreender o que se passava tanto com os humanos quanto com o mundo: páginas de internet dedicadas à saúde mental, livros, filmes e séries sobre pandemias passadas, entrevistas de especialistas. Todos pareciam buscar algum alento diante do inusitado e do imprevisível.
Inéditas ou já consagradas, diversas publicações buscaram responder às angústias do momento, ainda que as perguntas também parecessem pouco claras, dada a novidade da situação. Nesse quadro, destacamos o segmento jornalístico das revistas de bem-estar e de qualidade de vida, com temas apontados pela Associação de Editores de Revista (ANER) como de grande interesse para o público brasileiro (Perfeito, 2016).
Ora, num contexto de abalo mundial, em que os cuidados com a saúde física e mental ganhavam centralidade no debate público, publicações desse gênero pareciam assumir uma importância particular. Mais do que isso, revistas e jornais contribuíram para compor a malha discursiva que buscou dizer a pandemia - no caso, como forma de lidar com o extraordinário na perspectiva da saúde e do bem-estar. Ora, essa malha discursiva é de grande interesse para os estudos da linguagem, em especial os que se inclinam sobre as relações entre língua e sociedade.
Uma dessas vozes se destaca no âmbito dos periódicos de bem-estar e saúde. Trata-se da revista Vida Simples, publicação brasileira mensal impressa e on-line que afirma ter como propósito “inspirar as pessoas na busca por algo que faça sentido para si, promovendo um bem maior para o mundo”1 (Vida Simples, edições 218 a 223, p. 59, grifos da revista).
Com base em Perfeito (2016, p. 4), observamos que a revista em questão tem características físicas e gráficas que a singularizam diante das demais voltadas para o nicho de saúde e bem-estar:
papel do tipo offset, de alta lisura, brancura e opacidade, diferentemente dos papéis laminados e brilhantes característicos das revistas comerciais; e diagramação de estilo bem simples, isto é, clean, com bastantes espaços vazios ou respiros, sem boxes, fios ou campos e subcampos delimitados por cores muito variadas. De fato, é simples, mas de uma simplicidade alcançada por um trabalho de diferenciação do que geralmente identificamos em outras revistas do mesmo segmento.
A fim de compreender uma das inúmeras faces dessa relação entre língua e sociedade, voltamos nosso olhar para as capas da revista em questão publicadas durante os primeiros seis meses da pandemia no Brasil. Com isso, buscamos apreender como a revista se inscreve nessa malha discursiva, sendo contemporânea de um fenômeno tão decisivo para a humanidade.
Para dar conta desse objetivo, apresentamos, na próxima seção, a fundamentação teórica norteadora da análise proposta. Na terceira seção, expomos os procedimentos metodológicos adotados na análise, desenvolvida e discutida na quarta seção.
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
São diversas as maneiras de tratar da articulação entre língua e sociedade. Aqui, lançamos mão das reflexões da chamada Análise de Discurso Crítica (ADC), para a qual a linguagem desponta como uma dimensão da prática social, estudando “textos e eventos em diversas práticas sociais, propondo uma teoria e um método para descrever, interpretar e explicar a linguagem no contexto sócio-histórico” (Magalhães, 2005, p. 3). Contudo, não se concebe a linguagem como mero reflexo da sociedade. Como lembra Irineu (2020, p. 13), a ADC admite que
agimos e interagimos no mundo, por meio de gêneros discursivos, nas relações de poder que nos constituem como agentes atuando com pessoas e sobre elas; também representamos e projetamos o mundo por meio de discursos particulares, nas representações/saberes que nos constituem como agentes de conhecimento, e, por fim, nos identificamos e identificamos a outrem e ao mundo, por meio de estilos, nas relações éticas que constituem nossos agenciamentos como seres de ação moral.
Com forte influência marxista, a ADC põe em questão o papel das ideologias nessa mediação entre realidade e língua. Trata-se, portanto, de admitir a não correspondência direta entre o linguístico e o “real”. Mais do que apontar uma realidade preexistente, a língua seria antes aquela responsável por criar essa realidade, agindo sobre ela.
Nesse momento, é possível acompanhar Stockwell (2000), que enxerga na Linguística Cognitiva (LC), em especial em sua abordagem das metáforas, um caminho metodológico para a ADC - situando os estudos linguísticos na interseção entre língua, cognição humana e sociedade.
Concebemos aqui a metáfora na forma dos mapeamentos metafóricos propostos por George Lakoff e Mark Johnson (1980). Para os autores, tais mapeamentos remetem menos a uma figura de linguagem, e mais àquilo que permite à cognição humana compreender um domínio mais abstrato em termos de outro, mais concreto. Para isso, lança-se mão das experiências sensório-corpóreas dos indivíduos, de modo a viabilizar o conhecimento humano, “atribuindo a este um caráter imaginativo” (Vereza; Cavalcanti, 2022, p. 95). A novidade proposta por Lakoff e Johnson, contudo, encontra-se na preocupação dos autores em depreender os mapeamentos metafóricos subjacentes a expressões metafóricas (Stockwell, 2000, p. 514), que permitem dar forma ao mundo e organizar a experiência humana.
Essa aproximação entre ADC e LC é viável, de acordo com Stockwell (2000), porque ambas estão interessadas, de forma distinta, nas estruturas profundas que se manifestam em expressões linguísticas com traços metafóricos. De um lado, a ADC busca compreender como enunciados são expressões de práticas discursivas ideológicas; de outro, a LC se pergunta como tais enunciados são expressões de metáforas conceituais - e, portanto, permitem compreender o mundo através de nossa experiência sensório-corpórea. Nessa concepção, Stockwell (2000, p. 512) alinha-se com Fairclough (1995, p. 131), para quem “[a]mbas as tradições apontam que convenções linguísticas não são apenas exemplos de práticas sociais, mas que o uso da linguagem é igualmente ‘constitutivo’ da prática social”2 (tradução nossa).
No caso das metáforas, como apontam Vereza e Cavalcanti (2022, p. 88, grifo das autoras), “é na interação, e não na comparação entre possíveis semelhanças pré-existentes entre ‘A’ e ‘B’, que o efeito cognitivo é produzido”. Ou seja, a realidade não precede a língua - antes seria um efeito dela na cognição humana. Já para a ADC, a metáfora despontaria como elemento de interesse porque há implicação “em formar uma visão coerente da realidade”3 (Charteris-Black, 2004, p. 28, grifo no original), atravessada, por sua vez, por estruturas ideológicas.
Partindo desses dois caminhos, analisamos algumas das metáforas conceptuais subjacentes nas capas da revista Vida Simples durante os primeiros meses da pandemia de Covid-19. Com isso, indagamo-nos sobre os atravessamentos ideológicos que poderiam ser identificados através das metáforas ativadas pela revista.
Devido ao caráter multimodal das capas da Vida Simples, aliamos esses dois caminhos aos recursos descritivos da Gramática do Design Visual, de modo a explorar seus aspectos verbo-pictóricos. Segundo Kress e van Leeuwen (2006, p. 15),
o design visual, como todos os modos semióticos, cumpre três funções principais. Para usar os termos de Halliday, toda semiótica cumpre tanto uma função “ideacional”, uma função de representar “o mundo ao nosso redor e dentro de nós”, quanto uma função “interpessoal”, uma função de encenar interações sociais como relações sociais. Todas as entidades de uma mensagem - textos - também tentam apresentar um “mundo do texto” coerente, o que Halliday chama de função “textual” - um mundo no qual todos os elementos do texto são coerentes internamente, e que, por sua vez, é coerente com o seu ambiente relevante. Quer participemos numa conversa, produzamos um anúncio ou toquemos uma peça musical, estamos simultaneamente a comunicar, a fazer algo para, por ou com outros no aqui e agora de um contexto social (trocar notícias com um amigo; persuadir o leitor de uma revista a comprar algo; entreter o público) e representar algum aspecto do mundo “lá fora”, seja em termos concretos ou abstratos (o conteúdo de um filme que vimos; as qualidades do produto anunciado; um estado de espírito ou sentimento melancólico ou energia exuberante transmitida musicalmente) e unimos essas atividades em um texto coerente ou evento comunicativo4.
Assim, a partir de conceitos da Linguística Sistêmico-Funcional, especificamente as metafunções de Halliday (Halliday; Matthiessen, 2014[1985]), Kress e van Leeuwen (2006) propõem a descrição das produções multimodais com base nos significados representacional, interativo e composicional, a saber:
a) significado representacional- concerne à identificação e à descrição dos participantes da cena representada (pessoas, lugares ou coisas) no ato semiótico. Kress e van Leeuwen (2006, p. 48) distinguem participantes representados na fala, escrita ou imagem (pessoas, lugares ou coisas, incluindo coisas abstratas) e participantes interativos, aqueles que participam do ato de comunicação (observadores/ouvintes/leitores) e interagem com os participantes representados;
b) significado interativo- envolve “a interação social entre os participantes representados na imagem e os s interativos, ou seja, observador/leitor dos textos” (Vicentini, 2023, p. 88). Nessa concepção, a modalidade visual é estruturada para “convocar os observadores/leitores a uma interação e sugerir algumas atitudes, ações” (Vicentini, 2023, p. 88).
Outro parâmetro interativo tomado na análise é a distância social: “recurso que indica uma interação imaginária de maior ou menor proximidade social entre os participantes do ato semiótico” (Vicentini, 2023, p. 89), dentro do espaço imagético simulado em diferentes planos (fechado, médio, aberto). Ainda ligada ao significado interativo, a GDV trabalha com o recurso da construção de perspectiva, a partir do “modo como os participantes representados são retratados pelo produtor da imagem” (Vicentini, 2023, p. 91), estabelecendo um ponto de vista sobre os participantes representados horizontal e/ou verticalmente. Esses ângulos podem revelar atitudes subjetivas ou objetivas.
c) significado composicional- consiste na “forma como os elementos representacionais e interativos se relacionam entre si, a forma como são integrados num todo significativo” (Kress; van Leeuwen, 2006, p. 176). Essa composição ocorre com base (a) no valor informativo, ligado à posição dos elementos na produção multimodal (esquerda-direita, superior-inferior, centro-margem); (b) no enquadramento, relacionado à presença ou à ausência de elementos que criam linhas divisórias, ou de linhas de enquadramento reais; (c) na saliência, gerada por elementos como participantes e/ou sintagmas representacionais e interativos, que atraem a atenção do público-alvo/ internautas; (d) na modalidade, concernente ao “valor de verdade ou credibilidade” dos atos semióticos “sobre o mundo”5 (Kress; van Leeuwen, 2006, p. 155).
Na abordagem crítica adotada aqui, os recursos descritivos da GDV podem ser aliados aos estudos de Forceville (2006) sobre metáforas multimodais, em que fonte e alvo são renderizados em diferentes modos ou modalidades. Forceville (2006, p. 382) define modo ou modalidade como “um sistema de signos interpretável por causa de um processo de percepção específico”6, a saber: “(1) sinais pictóricos; (2) sinais escritos; (3) sinais falados; (4) gestos; (5) sons; (6) música; (7) cheiros; (8) sabores; (9) toque”7 (Forceville, 2006, p. 383).
Metáforas multimodais são desdobramento do trabalho de Lakoff e Johnson (1980), devido à visão experiencialista da metáfora conceptual, como forma de pensamento, e não somente um mecanismo linguístico. Nessa concepção, os recursos descritivos da GDV complementam a abordagem da metáfora multimodal de Forceville, na medida em que capas de revista, como um ato sociossemiótico composto de imagens e textos, também ativam mecanismos conceptuais.
Sintetizados os conceitos norteadores da análise, passamos aos caminhos metodológicos.
3 CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS
Primeiramente, selecionamos um conjunto de seis revistas publicadas entre abril e setembro de 2020, isto é, num intervalo de seis meses após o decreto do início do lockdown na maior parte do Brasil. Excluímos a edição de março de 2020 por considerar que a revista de abril - cujo processo de editoração se deu no mês anterior - teria sido a primeira edição com matéria central sobre as consequências da pandemia de Sars-Cov-2.
Optamos, neste trabalho, por analisar somente as capas das edições selecionadas, uma vez que (a) poderiam constituir um chamariz para seu consumo por potenciais leitores - on-line, através de compartilhamento em redes sociais, ou mesmo pela visualização in loco em bancas de jornais, quando possível no contexto do confinamento; (b) apresentam um design diferente da maioria das revistas, em termos da quantidade de informação e espaços em branco.
Expomos, na Figura 1, a capa da edição de abril de 2020, cujos aspectos multimodais descrevemos adiante, com as áreas de texto demarcadas por retângulos, com números e letras para referência ao longo da análise.
Como podemos observar, as informações são distribuídas nas áreas superior, central e inferior. Assim, para tratar da chamada principal publicada em abril de 2020, remetemos ao código 1A; para a edição de maio de 2020, 2A e assim por diante. A fim de facilitar a análise, os enunciados verbais trabalhados foram elencados no Quadro 1.
Estabelecidos os critérios metodológicos, apresentamos a análise das capas na próxima seção.
4 VIDA SIMPLES: METÁFORA E MULTIMODALIDADE
O primeiro dado que salta aos olhos no recorte do material é que não há, nos 24 enunciados observados, qualquer remissão direta explícita à doença, ao vírus ou a seus sintomas. A julgar tão somente pelas seis capas analisadas, nada de anormal estaria acontecendo no mundo - ou pelo menos nada que requeresse uma atenção especial ou diferenciada - de modo a afetar o “bem-viver” proposto pela revista.
É possível observar nas capas analisadas, contudo, duas chamadas para matérias que poderiam ser associadas aos efeitos da pandemia sobre os indivíduos. Os enunciados 1A, sobre “incertezas”, diante dos recentes acontecimentos, e 5C, sobre home office, aceleradamente difundido e aprimorado desde o início do confinamento8 ecoariam, a nosso ver, os acontecimentos da atualidade, posicionando a revista como instância minimamente atenta a essas questões, de modo a atrair leitores interessados nos rumos e consequências da pandemia em outras dimensões de sua vida.
Algumas matérias de seções internas, escritas por colunistas, abordaram a pandemia em seus textos, mas a revista manteve predominantemente a tendência do período pré-pandemia9, em particular no que diz respeito a suas capas.
Em segundo lugar, chama a atenção a profusão de verbos de tipo diretivo, tais como “saiba”, “veja”, “cultive”, “não deixe”, entre outros. Além desses, em pelo menos três edições repetem-se estruturas de pergunta indireta encabeçadas pelo advérbio “como”: “como lidar”, “como nos conectarmos” e “como cultivar”. Essas duas características remetem a um posicionamento de caráter “pedagógico”, através do qual a revista se apresenta como aquela apta a fornecer ensinamentos ao leitor. Esse dado irá ao encontro das análises das metáforas conceptuais que empreenderemos.
Com efeito, identificamos nos 24 enunciados três metáforas conceptuais principais, cujos mapeamentos serão recuperados a seguir: vida é jornada, mente é jardim e vida é instituição de ensino. Sua análise aponta para implicações ideológico-discursivas, que abordaremos adiante, ao tratarmos da relação texto-imagem das capas selecionadas.
A primeira metáfora conceptual, vida é jornada, foi identificada através dos seguintes enunciados:
1A Enfrentar as dificuldades do caminho
2A Enxergar outros horizontes
2A Algumas portas se fecham
2A Lidar com os desafios
2A Encontrar novas oportunidades
3B Um caminho de reconexão
4A Em busca de equilíbrio
4A O caminho para a harmonia
4D Encontrar a nossa própria receita de realização
5A Procura pela vida perfeita
5C A busca por qualidade de vida
6A Um caminho para viver de uma forma mais íntegra e verdadeira
Amplamente exemplificada na literatura ligada ao tema - tendo sido inclusive abordada em Metaphors We Live by, de Lakoff e Johnson (1980), a metáfora evocada permitiria ao interlocutor compreender o conceito abstrato vida em termos de uma jornada. No caso, é o que deixam entrever as seguintes expressões metafóricas: em 1A, as contingências são dificuldades no caminho a ser percorrido; em 2A, essas contingências são concretizadas na imagem de uma porta fechada que impede o acesso a algum lugar, algum objetivo (o bem-estar?); em 4A, 5A e 5C, determinados valores (ligados à felicidade) são objeto de uma busca/procura/encontro. Se é verdade então que vida é jornada, o interlocutor potencial da revista desponta metaforicamente como o viajante, destinado a percorrê-la.
A segunda metáfora, mente é jardim, foi observada em 1A (“cultivar um balanço interno”), 3A (“cultive o amor-próprio”) e 3B (“cultivar a humildade e o olhar de aprendiz”). Nas três ocorrências, é possível perceber que o domínio-alvo abstrato mente (perceptível através dos processos mentais “balanço interno”, “amor-próprio” e “humildade e olhar de aprendiz”) é compreendido em termos do domínio-fonte concreto jardim, evidenciado pelo emprego do verbo cultivar. Tais processos mentais despontam, portanto, como plantas passíveis de cuidado - um cuidado diário e atencioso por parte do leitor, que figura metaforicamente como o jardineiro responsável por esse cuidado.
Finalmente, a metáfora vida é instituição de ensino foi identificada através das seguintes ocorrências:
1C histórias que ensinam e curam
2D a alimentação diz muito sobre nossos sentimentos
5D exercitar um olhar gentil
6C o que o mar ensina
6C as águas nos falam sobre respeito, humildade e fé
6D aprender com elas [as falhas]
Podemos observar que, em 1C, 2D, 6C e 6D, entidades não humanas aparecem personificadas e identificadas como agentes de ações ligadas ao ensino (ensinar, dizer sobre, falar sobre, aprender com). Assim, se coisas podem ensinar (ou se com elas é possível aprender), seria plausível sua identificação com o papel concreto de professor. E se isso é verdade, o interlocutor da revista, que aprende e ouve, assumiria metaforicamente a posição de aluno, pertencente à instituição de ensino (concreta) vida (abstrata).
Cabe apontar que, em 5D, a revista convida esse mesmo interlocutor a exercitar um olhar - tal como quem exercita uma habilidade ou determinado conteúdo aprendido. Não por acaso, a revista possui um segmento extra, adquirível separadamente, intitulado Caderno de Exercícios, o que, somado aos verbos diretivos supracitados, amplia a metáfora escolar e contribui para a visão de uma vida onde se enseja o autoaprimoramento.
Como afirmamos, é possível identificar certo grau de convencionalidade nas metáforas. Acompanhando Charteris-Black (2004, p. 14), compreendemos metáforas convencionais como aquelas para as quais “uma determinada leitura se tornou socialmente estabelecida - restringindo assim outras leituras e exigindo menos processamento cognitivo”10. Esse atributo nos parece particularmente importante, na medida em que metáforas convencionais “fornecem excelentes exemplos [de] representações socialmente pungentes” (Charteris-Black, 2004, p. 24). Com efeito, de acordo com o autor, “[i]sso ocorre porque essas ideias - ou ideologias - cujos pressupostos podem ser ignorados se não tivermos consciência delas, constituem evidência verbal para um sistema subjacente delas”11 (p. 24).
Esse sistema, conforme sustentamos, seria ao mesmo tempo cognitivo e ideológico. Cognitivo, porque daria as bases para a formação de conceitos; ideológico porque atravessado por determinada perspectiva do que seja a realidade.
Parece-nos, portanto, que o pressuposto que permite a existência dessas metáforas é o de uma preocupação individual do sujeito sobre sua própria vida, perpassado por um apagamento das ações coletivas. Logo, o que está em jogo é uma criatividade advinda da experiência única, pessoal. Em outras palavras, para que existam tais enunciados, que apontam para determinadas metáforas conceptuais, destinadas a organizar o caos do mundo sensível, é preciso torná-las pressupostas - e, portanto, de certa maneira, (re)criá-las no momento da enunciação. Uma realidade em que o individual prevaleça sobre o social.
Nesse momento, relembramos a definição de formação discursiva de Foucault, tão caro à ADC. Como aponta Fischer (2001), Foucault inaugura esse conceito reconhecendo nele um princípio “segundo o qual se ‘sabe’ o que pode e o que deve ser dito, dentro de determinado campo e de acordo com certa posição que se ocupa nesse campo” (p. 203). Assim, para a pesquisadora, o dito se inscreve “no interior de algumas formações discursivas e de acordo com um certo regime de verdade, o que significa que estamos sempre obedecendo a um conjunto de regras, dadas historicamente, e afirmando verdades de um tempo” (2001, p. 204). Essa “verdade de um tempo” nos parece essencial diante das capas das revistas analisadas. Que resposta cabe diante do desconhecido, do inusitado e do perigoso?
A revista fornece a solução: o cuidado individual de si. Sem aludir em suas capas à dimensão coletiva dos acontecimentos recentes, a revista enuncia uma realidade na qual a atitude de saúde e bem-estar a se tomar perante a pandemia é comparável à de cultivar uma planta, empreender uma jornada pessoal, educar-se. Ou seja, a existência das seis capas analisadas, isto é, a dispersão dos mapeamentos metafóricos analisados, só é possível tendo essa realidade como dada, uma realidade em que o indivíduo é o responsável sobre si, mesmo no contexto de um problema de saúde global.
Esse indivíduo é, também, um ser incompleto: observa-se no corpus uma constante injunção ao autoaprimoramento (corroborada pelas ideias de cultivo, aprendizado, busca). A condição sócio-histórica que confere existência aos enunciados analisados se aproxima, assim, de uma ideologia capitalista segundo a qual o individual prevalece sobre o social - e que muito lembra o self-made man norte-americano, capaz de gerenciar sua vida por si só.
O design diferenciado das capas da revista Vida Simples espelha essa proposta de que cada leitor deve buscar melhor qualidade de vida por meio do autoaprimoramento, logo, por uma mudança de perspectiva iniciada pelo indivíduo em relação a si mesmo, que, no entanto, repercutirá coletivamente. Essa concepção pode ser observada nas imagens das capas das Figuras 2a-2f, na medida em que ilustram objetos únicos. Assim, há um único balanço para tratar do balanço da vida; uma janela para o vislumbre de um recomeço; uma flor em formato de coração, protegida por uma redoma de vidro, por sua delicadeza ou fragilidade excessiva, para cultivo do amor-próprio; um monociclo para exercitar a busca do equilíbrio; uma casa isolada para valorização da felicidade pessoal; uma concha, de onde normalmente sai uma pérola, dentro de uma caixa de joia para representar coisas verdadeiramente importantes.
Os objetos visuais simples também espelham o nome da revista, escrito em letra minúscula, como uma marca de simplicidade, assim como o slogan ser conviver transformar12, situado abaixo do nome Vida Simples, em letras maiúsculas, porém bem menores. Esse slogan passou a ser usado a partir da edição 200, de outubro de 2018, substituindo os anteriores, a saber: para quem quer viver mais e melhor e relações mais éticas-transformação pessoal-ideias inovadoras-sustentabilidade já13. Em termos estruturais, os slogans passam de uma oração, a sintagmas e a palavras, caminhando para uma composição visual gradativamente mais simples em termos visuais e textuais ao longo dos anos.
Nas Figuras 3a-3d ilustramos as áreas das capas com e sem slogans.
Podemos observar em transformar (3d) uma retomada de transformação pessoal (3b), que, em conjunto com ser e conviver, verbaliza a missão da revista em relação a seus leitores. Por meio do nome e do slogan é expressa a tese defendida pela revista, consubstanciando seu perfil de publicações voltadas para autoajuda.
Assim, as capas consistem em atos semióticos cujos elementos verbais e visuais, com formas linguísticas diretivas e imagens, ligadas às matérias destacadas, convidam o público-alvo a realizar ações e adotar posicionamentos pessoais, em prol de reflexões e momentos de alívio para alcançar um bem-estar frente aos desafios em geral, e, em especial, nos meses iniciais de isolamento físico durante a pandemia. Com base nos recursos da Gramática do Design Visual (GDV), em termos de significado representacional, podemos tomar a revista como um participante representado que aponta ações e processos de mudança a serem realizados por seus leitores, os participantes interativos desse ato semiótico.
Podemos considerar um significado representacional narrativo, porque envolve um processo verbal, na medida em que a capa da revista “fala” com o público-alvo por meio de elementos verbais injuntivos e imagens a cada edição. A interação entre os processos de ação e mudança apontados nas capas da Vida Simples e seus leitores é estabelecido em termos de significado interacional da (GDV), por meio de um contato imaginário, criado por demanda entre a orientação da revista e a imagem, ligada à matéria central destacada na capa, e seu público-alvo, com quem estabelece uma afinidade social.
Embora o plano aberto da composição visual das capas da revista expresse uma relação impessoal entre os participantes do ato semiótico, a perspectiva, criada pelos ângulos horizontal e vertical de plano imagético, estabelece a interação de intimidade, devido ao ângulo frontal, e igualdade, porque a informação central se encontra no nível dos olhos. Essa combinação de perspectiva subjetiva íntima e igualitária em uma relação impessoal pode estar ligada à natureza geral dos processos verbais demandados pela revista e à forma como a imagem é disposta em relação ao fundo.
Para o valor informativo do significado composicional, propomos a configuração de um tríptico vertical - estruturado a partir de dois cortes horizontais (Kress; van Leeuwen, 2006, p. 197ss) - distribuindo a informação textual em três áreas (Figura 4).
Na porção superior, o título da revista e o slogan consistem em uma informação dada que destaca a publicação já conhecida por seus leitores/público-alvo como um ideal a ser alcançado. Nessa parte, encontramos a “promessa do produto”, nos termos de Kress e van Leeuwen (2006, p. 186). Trata-se da missão/tese defendida pela Vida Simples, ou seja, como a vida poderia ser. Na parte inferior, apresenta-se a informação nova, a realidade, ligada a assuntos relevantes tratados nas matérias assinaladas como destaques secundários da capa. Essa parte mostra como a vida é, por meio das reflexões suscitadas pelos assuntos discutidos nos textos.
Entre essas duas dimensões espaciais, observamos a chamada para a matéria principal, que é acompanhada de uma imagem, no centro da capa, sobreposta ao fundo em uma única cor fosca, com letras bem maiores que as das matérias secundárias. Esse elemento central desempenha um papel sociossemiótico de mediador entre a busca por uma vida simples e a realidade que leva à discussão de temas que podem ajudar no autoaprimoramento de cada leitor, para que todos possam ser, conviver e (se) transformar.
Em termos de enquadramento, observamos nas capas uma separação entre os objetos ilustrados e o fundo com espaços livres de texto, o que gera uma sensação de fluxo contínuo de cima para baixo, visto que não há moldura separando esses elementos. A ausência de linhas de moldura também expressa uma sensação de leveza e de um cenário clean que atrai os leitores, convidando-os a reflexões sobre temas voltados para uma vida mais feliz.
Dessa forma, a composição visual leve e pouco preenchida com texto caracteriza o recurso composicional da saliência, porque atrai a atenção. As ilustrações, no que tange à modalidade, podem ser descritas como naturalísticas, porque os objetos únicos são representados pictoricamente em detalhes realísticos. Assim, as ilustrações integram-se ao texto da matéria principal, reforçando a importância (o valor verdade) dos temas abordados pela revista.
Até aqui, abordamos os aspectos recorrentes, ligados aos significados representacional, interativo e composicional da descrição sociossemiótica das capas. Passamos, a seguir, à descrição detalhada do significado composicional de cada capa, que se somará aos aspectos já apontados, no que tange à matéria principal das edições selecionadas.
A capa da edição 218 apresenta como matéria central um texto que aborda as incertezas trazidas pela quarentena, necessária à proteção contra a epidemia de Covid-19, que chegou ao Brasil no início de 2020. A imagem do balanço dialoga com o texto (fazer um balanço, exame, ajuste), que convida os leitores a, entre outros aspectos, se serenar no balanço que a vida trouxe, como é expresso na última frase da matéria texto. As flores presas às cordas do balanço, combinadas ao fundo rosa, uma cor reconfortante que representa carinho e cuidado (Santos, s.d.; Thiel, 2019; Raphael, 2023), enfatizam o momento delicado da quarentena, devido às incertezas quanto ao futuro próximo. Essa simbologia dialoga com texto, em que várias atitudes mentais positivas são incentivadas para lidar com o distanciamento físico14.
Uma das postulações de Forceville (2006, 2008, 2017) é que, em produções multimodais, como propagandas e, incluímos, capas de revista, o público-alvo pode ser persuadido por metáforas multimodais do tipo visual a é verbal b (Forceville, 2017, p. 29). Nessa concepção, o pensamento metafórico não se vale do concreto para entender o abstrato, ambos os termos metafóricos podem ser concretos, materializados na capa.
Podemos postular esse mecanismo para a capa da edição 218, em que a composição texto-balanço aponta para a metáfora, contextualizada na capa, balanço é incerteza, já que o balanço (visual a - alvo), evoca as incertezas (verbal b - fonte) com que se precisará lidar com a chegada da Covid-19. Esse tipo de metáfora também foi proposto para as demais edições (219 a 223).
Na manchete da edição 219, de maio de 2020, Saiba recomeçar, há uma chamada para uma matéria que aborda o relato de uma pessoa que perdeu a chance de cursar a faculdade escolhida devido à morte do pai, mas, depois de um tempo sofrendo, encontrou outra carreira para recomeçar. A ilustração da janela abre-se para cenário claro sobre um fundo azul arroxeado, que, por ser uma combinação de azul e roxo, pode ser associado à firmeza, à confiança, à sabedoria (azul), à espiritualidade e à criatividade (roxo). Azuis fortes estimulam pensamentos claros (Santos, s.d.; Thiel, 2019; Raphael, 2023). A janela pode ser associada à expressão janela de oportunidades, que, por sua vez, dialoga com portas fechadas, referindo-se à perda de uma oportunidade. Para a relação entre imagem e manchete, podemos postular a metáfora contextualizada janela é recomeço.
A ilustração da flor vermelha em formato de coração, dentro de uma redoma de vidro, da edição 220 (junho de 2020), dialoga com o amor-próprio a que se refere a chamada da matéria em foco na capa. O texto trata de como os problemas de sobrepeso podem afetar a autoestima, devido às implicações ideológicas quanto ao padrão corporal valorizado culturalmente. Exemplos de superação são citados e atitudes psicológicas são apresentadas com vistas ao reforço no amor-próprio. O fundo verde, além de símbolo da esperança (Heller, 2021), remete à natureza, à paz, à segurança e ao conforto (Santos, s.d.; Thiel, 2019; R. Raphel, 2023), sentimentos que podem ser alcançados quando se cultiva o amor-próprio, simbolizado pela flor vermelha, cor ligada à audácia, à energia, à paixão e à coragem. Daí a postulação da metáfora coração em flor é amor-próprio.
O fundo amarelo da edição 221 (julho de 2020) remete à confiança, à criatividade, à simpatia e ao otimismo; é uma cor alegre que pode aumentar a energia, animando o espírito (Santos, s.d.; Thiel, 2019; R. Raphel, 2023). Essa cor, fundo para um monociclo, materializa a matéria sobre a busca de equilíbrio, mesmo diante de acontecimentos que podem causar desequilíbrio. O controle das emoções, abordado na matéria, pode ainda ser relacionado ao significado da cor roxa, predominante no monociclo, ligada à espiritualidade e à reflexão (Santos, s.d.; Thiel, 2019; R. Raphel, 2023). Para esse cenário verbo-pictórico, postulamos a metáfora monociclo é equilíbrio, visto que andar de monociclo requer equilíbrio.
A capa da edição 222 (agosto de 2020) apresenta um fundo rosa claro, cor associada ao cuidado e ao carinho, porque se trata de uma cor reconfortante, e a ilustração de uma casa, em meio a um chão claro, dialogando com a manchete da matéria central, em que se defende que felicidade é construção. Essa visão metafórica de construção da felicidade depende de autoconhecimento e de atitudes mentais positivas diante da vida, daí a adequação da ilustração de uma casa. Considerando a relação entre ilustração e texto da manchete, podemos postular a metáfora casa é contêiner para felicidade, por sua vez relacionada à metáfora conceptual mente é contêiner, visto que a mente é interpretada como a parte do corpo responsável pelo controle (individual) de tudo que possa ameaçar o equilíbrio.
Na edição 223 (setembro de 2020) encontramos um fundo azul esverdeado, sobre o qual figura uma caixa de joia vermelha aberta com uma concha branca/off white, que aparece ilustrando uma espécie de brilho, devido às duas estrelas que a ladeiam. A tonalidade do fundo reúne características de azul e verde, estimulando a reflexão, a introspecção, com foco em pensamentos e sentimentos, por isso está ligada à autoestima e ao amor-próprio.
Como o vermelho é uma cor associada ao estímulo às ações porque desperta paixão e coragem (Santos, s.d.; Thiel, 2019; R. Raphel, 2023), a caixa de joia simboliza a valorização do que realmente importa. A concha pode ser interpretada como o que há de mágico na vida, já que, no texto, o fato de estarmos vivos deve ser celebrado. A lenda do nascimento de Afrodite, saída de uma concha, remete à fecundidade, à prosperidade e à sorte (Chevalier; Gheerbrant, 1989, p. 270), daí sua relação com celebração da vida. Esse caráter mágico da vida aparece no início do texto, quando uma frase de Ailton Krenak é citada: “a vida é uma dança cósmica”. Essa visão é reforçada pela concha que transforma um organismo agressor em uma pérola.
Assim, ao longo do texto, são propostas várias reflexões sobre como se deve vivenciar a bem-aventurança de estar vivo, buscando o que realmente importa. A composição verbo-pictórica da capa chama a atenção para essa matéria em destaque, convidando os leitores a ler a revista. Podemos postular essa composição visual por meio da metáfora pérola é vida plena.
Com base em Vereza (2013), podemos considerar as metáforas verbo-pictóricas do tipo visual a é verbal b como situadas, devido a sua natureza local, episódica e deliberada. Esse tipo de metáfora “conduz, cognitiva e discursivamente, todo um desdobramento, ou mapeamento textual, on-line, episódico, construindo [...] um ponto de vista, de uma maneira deliberada” (Vereza, 2013, p. 6). Assim, no contexto das capas, as metáforas multimodais situadas resultam do significado composicional construído pelos idealizadores com vista a convencer o público-alvo a aderir a uma vida simples.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dar conta de um fenômeno tão complexo quanto o que foi a pandemia de Covid-19 no mundo seria uma tarefa impossível. Em razão de sua relevância diante da história, suas consequências ainda estão por conhecer: na economia, na saúde coletiva, nos avanços tecnológicos, na educação...
Os estudos da linguagem têm muito a contribuir nesse debate, em particular aqueles cuja preocupação recai sobre a articulação entre o linguageiro e o social. Muito se disse sobre a pandemia e muito ainda se está por dizer - e compreendê-la parece relevante para avançar nos conhecimentos sobre como nos relacionamos com a própria vida.
Os resultados encontrados nos números analisados apontam na direção de um apagamento da pandemia enquanto tema de uma revista dedicada à saúde em perspectiva integral e ao bem-estar. Ainda assim, permitem refletir sobre uma postura: pode o ser humano lidar sozinho com um problema mundial? Os mapeamentos metafóricos postulados apontam para - e ao mesmo tempo criam - uma realidade na qual o indivíduo responde por sua saúde, corroborando uma visão de mundo de cunho neoliberal-capitalista de cuidado de si.
Partir de uma perspectiva interessada na sociocognição humana nos posiciona diante desse debate. Talvez seja preciso desconfiar de um cuidado que se faz por si mesmo. Não há cuidado - nem língua, nem dizer - que se faça sem o outro.
REFERÊNCIAS
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» https://vidasimples.co/revista/221-2 -
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VIDA SIMPLES. Edição 223. Disponível em: https://vidasimples.co/revista/223-2/. Acesso em: 10 ago. 2023.
» https://vidasimples.co/revista/223-2 -
VIDA SIMPLES. Edição 99. Disponível em: https://vidasimples.co/revista/99-2/. Acesso em: 10 ago. 2023.
» https://vidasimples.co/revista/99-2
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1
O propósito da revista, disponível para assinantes, é apresentado na página 59 das edições analisadas.
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2
No original: Both traditions emphasise that linguistic conventions are not just examples of social practice, but that linguistic usage is also ‘constitutive’ (Fairclough 1995, p. 131) of social practice.
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3
No original: Metaphor is therefore central to critical discourse analysis since it is concerned with forming a coherent view of reality.
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4
No original: [the] visual design, like all semiotic modes, fulfils three major functions. To use Halliday’s terms, every semiotic fulfils both an ‘ideational’ function, a function of representing ‘the world around and inside us’ and an ‘interpersonal’ function, a function of enacting social interactions as social relations. All message entities - texts - also attempt to present a coherent ‘world of the text’, what Halliday calls the ‘textual’ function - a world in which all the elements of the text cohere internally, and which itself coheres with its relevant environment. Whether we engage in conversation, produce an advertisement or play a piece of music, we are simultaneously communicating, doing something to, or for, or with, others in the here and now of a social context (swapping news with a friend; persuading the reader of a magazine to buy something; entertaining an audience) and representing some aspect of the world ‘out there’, be it in concrete or abstract terms (the content of a film we have seen; the qualities of the advertised product; a mood or melancholy sentiment or exuberant energy conveyed musically), and we bind these activities together in a coherent text or communicative event.
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5
Apesar de Kress e Van Leeuwen (2006) tratarem da modalidade como um recurso à parte, adotamos a abordagem de Vicentini e Carmo (2010), que incluem esse recurso entre os significados composicionais, porque se relacionam à disposição de elementos e participantes no texto.
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6
No original: […] a mode is a sign system interpretable because of a specific perception process.
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7
No original: (1) pictorial signs; (2) written signs; (3) spoken signs; (4) gestures; (5) sounds; (6) music; (7) smells; (8) tastes; (9) touch.
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8
A matéria sobre trabalho em casa substituiu outra que tinha sido previamente anunciada na última página da edição 222 (agosto de 2020). Na última página de cada número, são informadas as matérias destacadas nos espaços textuais B, C e D, ligadas ao ser, ao conviver e ao transformar. A matéria sobre incertezas também não foi antecipada na edição de março de 2020.
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9
Foram 14 matérias em um total de 109 seções dos seis números cujas capas foram analisadas.
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10
No original: A conventional metaphor is, therefore, a phrase for which a particular reading has become socially established - thereby constraining other readings and requiring less cognitive processing.
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11
No original: Metaphors that have become conventionalised, both in the media and in academic discourse, are potentially important because they provide excellent examples of these socially poignant representations. This is because they constitute verbal evidence for an underlying system of ideas - or ideology - whose assumptions may be ignored if we are unaware of them.
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12
A depender da cor de fundo da capa, é possível perceber a inserção de uma bolinha entre cada palavra (observação da versão on-line). Uso do termo bolinha deve-se ao fato de esta estar acima da posição normalmente ocupada por ponto final.
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13
Como as edições 106 a 115 não constam do acervo da página da revista, não podemos afirmar que o slogan relações mais éticas-transformação pessoal-ideias inovadoras-sustentabilidade já foi usado apenas nas edições 116 a 118. Embora haja lacunas nas edições do acervo ao longo de todos os anos, percebemos que, dos números 119 a 199, a revista não usou slogan na capa.
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14
Nas matérias completas, páginas de texto são ladeadas por páginas inteiras com ilustrações que retomam (ou dialogam com) o objeto ilustrado na capa. Nesse caso, ilustrações com balanço são alternadas com as páginas de texto. Porém, não será possível, devido à extensão deste artigo, descrever a relação entre texto, imagem da capa e imagens internas. Isso será tratado em outro texto.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
24 Mar 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
08 Ago 2024 -
Aceito
07 Dez 2024





Fonte: Vida Simples, edição 218, abril de 2020 (cf. Referências).
Fonte: Vida Simples, edições 218 a 223, de abril a setembro de 2020 (cf. Referências)
Fonte: Montagem a partir do acervo digital da edições da revista Vida Simples (cf. Referências)
Fonte: Elaboração própria.