Resumo
Neste artigo, discutimos sobre como os rastros da Ditadura Militar ainda produzem efeitos, especialmente nas políticas educacionais e discursos sobre sexualidade. A partir da instalação tardia da Comissão Nacional da Verdade e da ausência de responsabilização pelos crimes do regime, é reproduzida a força do autoritarismo remanescente. O artigo aborda o discurso de Jair Bolsonaro durante o impeachment de Dilma Rousseff, onde evocou “a inocência das crianças” como justificativa moral, e sua repercussão em políticas antidemocráticas como Escola Sem Partido. A análise da live de Bolsonaro com uma criança mostra como ambiguidades discursivas expõem menores à sexualização simbólica. Com base em teóricos como Pêcheux, Orlandi e Althusser, o texto denuncia como a escola é instrumentalizada pela ideologia dominante.
Palavras-chave:
Discurso da extrema direita; Escola; Sexualidade; Estado
Abstract
In this article, we discuss how the remnants of the Brazilian Military Dictatorship continue to produce effects, especially in educational policies and discourses on sexuality. Starting from the late establishment of the Comissão Nacional da Verdade [National Truth Commission] and the lack of accountability for the regime’s crimes, the enduring strength of authoritarianism is reproduced. The article examines Jair Bolsonaro’s speech during the impeachment of Dilma Rousseff, in which he invoked “the innocence of children” as a moral justification, and its repercussions in anti-democratic policies such as the Escola Sem Partido [No-Party School]. The analysis of Bolsonaro’s live broadcast with a child reveals how discursive ambiguities expose minors to symbolic sexualization. Drawing on theorists such as Pêcheux, Orlandi, and Althusser, the text denounces how the school is instrumentalized by the dominant ideology to reproduce power.
Keywords:
Far-right discourse; School; Sexuality; State
Resumen
En este artículo, discutimos cómo los rastros de la Dictadura Militar brasileña continúan produciendo efectos, especialmente en las políticas educativas y los discursos sobre la sexualidad. A partir de la tardía instalación de la Comissão Nacional da Verdade [Comisión Nacional de la Verdad] y la falta de responsabilización por los crímenes del régimen, se reproduce la fuerza del autoritarismo persistente. El artículo analiza el discurso de Jair Bolsonaro durante el juicio político a Dilma Rousseff, en el que invocó “la inocencia de los niños” como justificación moral, y su repercusión en políticas antidemocráticas como la Escola Sem Partido [Escuela Sin Partido]. El análisis de una transmisión en vivo de Bolsonaro con una niña revela cómo las ambigüedades discursivas exponen a menores a una sexualización simbólica. Basado en teóricos como Pêcheux, Orlandi y Althusser, el texto denuncia cómo la escuela es instrumentalizada por la ideología dominante.
Palabras clave:
Discurso de la extrema derecha; Escuela; Sexualidad; Estado
1. QUESTÕES INICIAIS
A instalação da Comissão Nacional da Verdade (CNV)1 em 2012 produziu e continua produzindo seus efeitos. Por mais que seu objetivo tenha sido investigar e relatar os crimes cometidos durante a Ditadura Militar do Brasil, sem julgamento e punição dos autores dos crimes, o ato simbólico de sua instalação e a tentativa de recuperação histórica faltava ser registrado e foi, sem dúvida, fundamental. A CNV teve uma criação tardia e, ainda assim, sua instalação não aconteceu sem tensões e tentativas de impedimento: precisou ser obrigada, em termos legais, pela condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Apesar do atraso temporal e histórico, sua criação não deixaria de despertar a reprovação de muitos que não querem deixar ver as atrocidades desse passado e o que dele resta no presente. Os militares que cometeram crimes de assassinato, desaparecimento, tortura e ocultação de cadáveres, anistiados desde 1979, não foram condenados até agora, o que podemos compreender como resultante da força política que este grupo ainda tem na nossa formação social. Mesmo a eleição de governos considerados de esquerda nas três últimas décadas não foi capaz de fazer avançar as consequências jurídicas para o cometimento dos crimes de Estado durante o período da Ditadura, sendo, inclusive, mantida a liberdade dos militares e o recebimento de diferentes benefícios.
Toda essa negação dos militares (os que cometeram crimes e os que se beneficiam até hoje dos privilégios da farda) incide sobre outros negacionismos que determinam a falta de uma educação para memória, verdade e justiça em nosso país, descomprometendo instituições e pessoas com nosso passado.
Cabe referir aqui, de forma breve, que os efeitos de uma política de memória baseada na reprodução do discurso dominante, calcada no silenciamento de posições de resistência, podem ser identificados cotidianamente no Brasil. Citamos o caso “Amarildo”, que foi preso e torturado por policiais militares em 2012. Seu corpo ainda não foi encontrado. Além disso, o retorno da extrema direita ao poder, após 30 anos da promulgação da Constituição Federal, é mais um dos efeitos da falta de uma política de memória que coloca em circulação as contradições próprias de qualquer formação social dita democrática.
Amarildo, Genivaldo dos Santos, Marielle, Anderson… são nomes desta história que sempre resta, assim como poderíamos elencar outras práticas que mostram que até hoje convivemos com a Ditadura em seus rastros, levando-nos a colocar em suspenso o próprio sentido de Democracia, enquanto lugar conquistado e, então, supostamente garantido.
É pensando em como esse passado encontra o presente de diferentes maneiras que colocaremos em discussão neste artigo o modo como ataques que professores e escola têm sofrido encontram sentidos autoritários que vêm pela memória da Ditadura e dizem do que se espera da educação hoje. Para isso, partimos de uma discussão sobre projetos antidemocráticos (Daltoé, 2022) que têm atingido a escola, organizados a partir de uma pauta moral e de costumes, e deles recortamos a questão da sexualidade, uma recorrente nestes projetos, para tentar investigar o modo como o Estado se coloca neste debate. Para a análise, estabelecemos uma relação entre o voto de Bolsonaro na sessão da Câmara dos Deputados por ocasião do Golpe de 2016, quando o à época deputado apela à “inocência das crianças em sala de aula”, e uma das lives do ex-presidente em 2020, que contou com a presença de uma criança de 10 anos.
2. UM ACONTECIMENTO QUE DÁ O TOM
Para a discussão que pretendemos desenvolver, voltamos ao episódio do golpe contra a Presidenta Dilma Rousseff, ocorrido em 2016 (Daltoé; Marques, 2017), que redundaria na vitória de Bolsonaro em 2018. Durante a votação pela abertura do processo de “impeachment” ocorrida na Câmara dos Deputados, dia 17 de abril de 2016, o então deputado federal (PSC-RJ) Jair Bolsonaro declara seu voto nos seguintes termos:
Perderam em 1964, perderam agora em 2016. Pela família e pela inocência das crianças em sala de aula, que o PT nunca teve. Contra o comunismo. Pela nossa liberdade. Contra o Foro de São Paulo. Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff. Pelo exército de Caxias. Pelas Forças Armadas. Por um Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos, o meu voto é sim2.
Neste pequeno trecho, Bolsonaro anuncia o rumo que seu mandato tomaria como presidente. As palavras-chave estavam ditadas aí, e talvez pudéssemos elegê-las como pista do funcionamento do discurso da extrema direita, que torturou e matou durante a Ditadura, e agora se atualiza, marcando o período do performativo em política, como traz Pêcheux (2011 [1979], p. 89): “quando o dizer equivale a fazer”, numa atividade imaginária que se parece ao sonho acordado.
Como vemos, o voto não trata da corrupção em nenhum momento, como foi a bandeira levantada a partir do argumento das “pedaladas fiscais”, mas é construído em torno de sentidos ligados à Ditadura, filiando-se, usando palavras de Dunker (2022, p. 17), a “uma política não apenas conservadora, mas fascista em termos discursivos”.
Esse jogo performativo nos convida a pensar sobre o dito em relação a questões enunciativas, em que o dizer envolve um conjunto de sentidos referidos aos lugares enunciativos a partir dos quais os efeitos de sentido se produzem, pois, com base em Zoppi-Fontana (2017, p. 69), entendemos que o lugar de enunciação deve ser definido “em relação ao funcionamento da interpelação ideológica que constitui o sujeito do discurso”. Por isso, o então deputado federal, do lugar enunciativo constituído ideologicamente, convoca a pensar sobre o que diz em relação à produção do enunciado em determinadas condições de produção, as quais remetem à ausência de uma política de memória e de justiça que, por falta, autoriza a comemoração deste período ou mesmo a aclamação de um militar assassino e torturador como herói.
É também desse modo que reaparece o argumento do comunismo, que viria novamente para tomar o Brasil, o chamado “inimigo externo”; ao lado da eleição do que a partir daí seria o inimigo interno, os professores, que estariam acabando com a “inocência das crianças em sala de aula” - enunciado este sobre o qual passaremos a desenvolver nossa análise: os sentidos relacionados à educação de uma posição ideológica que, como veremos, se dá a partir do conservadorismo (e a pauta dos “costumes”), aliado ao neoliberalismo enquanto política econômico-ideológica.
Na declaração de Bolsonaro, escola e Ustra encontram os significantes Ditadura e educação. Não por acaso que, principalmente depois do Golpe de 2016, a escola passou a ser alvo de projetos antidemocráticos (Daltoé, 2022) como o Escola Sem Partido, Homeschooling, Escola Cívico-Militar, entre outros que pregam, em comum, o ódio às diferenças. São projetos que, trazendo Dunker (2022, p. 18), trabalham no sentido de “reconhecer zonas de insatisfação e intensificar afetos como ódio e ressentimento”, instrumentalizando o ódio como técnica de poder.
Em comum, esses projetos antidemocráticos colocam em circulação sentidos relacionados ao desmerecimento da escola como espaço democrático e os professores como doutrinadores; apregoam a neutralidade como princípio didático e metodológico; e negam, sob os mais variados argumentos, as diferenças sociais.
Mounk (2019, p. 26), ao falar do modo como as democracias liberais vêm sendo suplantandas no mundo, mostra como as elites se esforçam para manter o homem comum anestesiado, o que convoca a atuação do político no campo da educação. Segundo o autor, “se a inquietação do povo crescer a ponto de ignorar o sábio conselho oferecido pelas elites, ele deve ser educado, ignorado ou intimidado a obedecer” (Mounk, 2019, p. 26). Obedecer, nesse enunciado, pode ser interpretado como reproduzir os sentidos advindos da ideologia dominante (a ideologia da classe dominante, a ideologia jurídico-burguesa) e, para isso, é necessário um trabalho de inculcação (Orlandi, 2006), que pode ser principalmente reproduzido no âmbito do aparelho ideológico escolar (Althusser, [1971] 1985) pelas políticas de ensino determinadas pelo discurso dominante.
Daí toda “atenção” da extrema direita à escola, tentando transformá-la em um laboratório de experimentos de domesticação dos corpos e de despolitização dos princípios democráticos por meio da implantação de políticas educacionais conservadoras. Para Althusser (1985, p. 80), o aparelho escolar é certamente, dentre os aparelhos ideológicos do Estado, aquele que conta com mais tempo de audiência obrigatória de nossa vida, por isso sua eficácia na reprodução das relações de produção capitalistas, encoberta e dissimulada por uma “Escola como neutra, desprovida de ideologia (uma vez que é leiga)”.
Mesmo reconhecendo o momento sócio-histórico em que Althusser propõe esse funcionamento do aparelho ideológico escolar, nos cabe reivindicar esses sentidos em relação a uma nova temporalidade ligada a um determinado regime performativo, que nos convoca a pensar sobre os efeitos do político no escolar.
Compreendemos, da nossa posição teórica, que a escola deveria ser um lugar que encaminha para a transformação das relações de produção. Contudo, ela ainda segue reproduzindo a ideologia dominante, que apaga os efeitos da luta de classes e garante o privilégio de poucos em seu funcionamento. Mesmo assim, sob a ameaça de alguma revolta em seu interior (e em 2013 começa um movimento neste sentido com a ocupação de escolas por alunos do Ensino Médio no Brasil), a classe política, numa espécie de “contrarrevolução preventiva” (Dunker, 2022, p. 18), começa a colocar em jogo seu projeto de destruição da escola como bem público, sob diferentes argumentos. Um deles, e sobre o qual nos dedicaremos a seguir, já estava presente no voto de Bolsonaro em 2016: a defesa da “inocência das crianças em sala de aula”, que convoca todo um conjunto de dizeres anteriores sobre a sexualização das crianças e nos leva a perguntar: como os sentidos sobre sexualidade circulam em discursos referidos ao Estado?
3. A SEXUALIDADE EM DISCURSO
A questão da sexualidade nesses projetos antidemocráticos é recorrente: no Escola Sem Partido, a prescrição de que a temática deva ser tratada apenas em torno do sexo biológico, feminino/masculino, homem/mulher; assim também nos Projetos de Proibição do Gênero Neutro, etc. Nas justificativas de tais projetos, estão presentes os valores da “família de bem” sob ameaça dos professores que estariam estimulando as crianças para uma sexualidade precoce ou mesmo para a troca de sexo: lembramos de toda a campanha em torno do chamado “Kit Gay”, em 2018; a história da “mamadeira de piroca” que os professores estariam distribuindo nas creches, também no mesmo ano; e, na campanha das eleições de 2022, a polêmica em torno dos banheiros unissex.
Os sentidos relacionados à sexualidade, no discurso da extrema direita, ganham força a partir dos projetos que trazemos e é importante afirmar que não faltou adesão de muitos pais. Afinal, numa sociedade bastante conservadora como a nossa, não seria difícil a pauta em torno da decência da família funcionar, naquilo que Dunker (2022, p. 148) chama de “simulacro de pureza moral”. Ou, como traz Orlandi (2023, p. 75): “A estratégia argumentativa da extrema-direita é injetar sutilmente elementos arcaicos em uma conjuntura moderna (família tradicional, valores estagnados, piadinhas de para-choque de caminhão etc.)”.
Como não pensar, desse modo, nos questionamentos de Althusser (2008, p. 111): não seria o que se passa nas famílias “muito mais ‘inquietante’ para nossos bons Censores do que o que se passa nas escolas”? Um “grande alarido” sobre a desordem da escola para não falar da desordem dentro de casa? O que a escola não pode saber do que acontece dentro de casa?
Safatle (2024), em Alfabeto das Colisões, ao discorrer sobre o verbete amor, problematiza a distinção entre afetos da alma e afetos do corpo, o que facilitaria a objetificação do corpo. Para ele, o que é da ordem do sexual não estaria dissociado das experiências mais profundas do sujeito, a não ser como patologia social. Nesse sentido, o autor faz ver a relação entre sexualidade e política:
[...] nos últimos anos, vimos o poder falando compulsivamente de sexo. Falando todos os dias, de forma jocosa, sarcástica, ameaçadora, apocalíptica. Falando por meio de piadas preconceituosas ou de pregações sobre o fim do mundo, promovido a galope por crianças que ‘não sabem ler, mas sabem usar camisinha’ (Safatle, 2024, p. 66).
Para o autor, isso não foi diferente com os alemães na década de 1930, “quando eram exortados a desenvolver aversões contra o que se chamava à época ‘bolchevismo sexual’ e suas perversões” (2024, p. 66). E, para nós, isso não foi diferente na Ditadura, em especial, como as torturas foram cometidas contra as mulheres. Os militares introduziam baratas e tocos de madeiras nas suas vaginas e ânus, aplicavam choques em seus mamilos, estupravam-nas. Amelinha Teles, ex-presa política, sofreu essas violências e diz que o estupro era constante no DOI-Codi. Em seu livro, fala que “o uso da violência, exercida pela autoridade masculina sobre as mulheres e meninas, se dá em relações desiguais de poder, nas quais prevalece o poder masculino sobre o controle da sexualidade e dos corpos femininos” (Teles, 2022, p. 104).
Há, portanto, uma prática de tortura, mas também um lugar de perversão que busca sadicamente mortificar um corpo que subverte, que se impõe como resistência e, por isso, precisa ser eliminado e/ou servir de lição. Um corpo, que, supostamente livre demais, gozaria mais do que o sujeito que tortura, como encontramos em Dunker (2022, p. 103), citando Reich: “isso explicaria por que os regimes totalitários precisam perseguir minorias e práticas sexuais. Elas são símbolos do ‘excesso de prazer’, que lhes teria sido retirado”.
Segundo Safatle (2024, p. 64), recuperando episódios do séc. XIX na Europa, quando corpos ocupavam as ruas em manifestações populares, já funcionava “ensinar a submissão à norma sexual e a desconfiança perpétua em relação à polimorfia confusa de nossos desejos” para conter a insubmissão dos corpos nas ruas. Ainda para o autor, o poder sabe o que faz, pois conter a questão da sexualidade é tentar evitar que se questione o direito aos nossos desejos, que se questionem as relações de gênero, a responsabilidade do poder público com creches, a igualdade salarial entre homens e mulheres, o direito ao divórcio e ao aborto, a descriminalização das relações homoafetivas, as pensões, a divisão de bens, etc.
A escola ainda hoje luta por uma educação sexual comprometida com as questões de gravidez na adolescência, diferença salarial, relações de gênero, abusos etc. Nunca se tratou de estimular crianças à sexualidade, mas, numa formação social patriarcal, segundo Dunker (2022, p. 103), “é preciso a permanente sexualização do discurso em torno das relações de dominação e obediência”. Essa tentativa encontra Pêcheux (2006, p. 30, grifos no original) no que o autor chama de:
‘técnicas’ de gestão social dos indivíduos: marcá-los, identificá-los, classificá-los, compará-los, colocá-los em ordem, em colunas, em tabelas, reuni-los e separá-los segundo critérios definidos, a fim de colocá-los no trabalho, a fim de instruí-los, de fazê-los sonhar ou delirar, de protegê-los e de vigiá-los, de levá-los à guerra e de lhes fazer filhos…
Para nós, a escola está servindo a esta técnica de gestão do espaço administrativo, e dos corpos, atuando a partir de uma lógica disjuntiva (Pêcheux, 2006), referida ao funcionamento das políticas públicas escolares, as quais produzem o efeito de que o binarismo de gênero próprio do discurso da direita organiza o que pode e deve ser dito sobre sexualidade na escola.
4. “A INOCÊNCIA DAS CRIANÇAS” E SEUS EFEITOS NA LIVE DE BOLSONARO
Conforme trouxemos anteriormente, o tema da sexualidade foi capturado, canalizado como um motivo contundente de alimentar o ódio aos professores e à própria escola. Em torno desse sentido, o voto de Bolsonaro em 2016 já se erigia aclamando o enunciado “inocência das crianças em sala de aula”.
É recorrente a temática da sexualidade em suas falas (piadas homofóbicas, dizeres preconceituosos, misóginos, etc.). Contudo, interessa-nos aqui discutir sobre como essa questão perpassou uma das lives do ex-presidente, referente ao dia 10 de setembro de 2020, da qual participou também uma criança de 10 anos. Esta criança, inclusive, já havia participado, momentos antes, de uma reunião ministerial como jornalista, em que Bolsonaro sussurrava perguntas para ela fazer aos Ministros.
Na live, o ex-presidente está acompanhado de uma intérprete de libras, além de dois homens posicionados atrás dele; pressupomos que também estão presentes no ambiente um operador de câmera e assessores/apoiadores. Além desses adultos, ao lado de Bolsonaro, está a menina chamada Esther (E. C.), vestida de branco com um chapéu de cowboy.
A live inicia com Bolsonaro fazendo piada sobre ser gordo, ser nordestino, ser negro e, à altura dos 3min49s do vídeo, recupera o episódio em que uma senhora o acusa de ser misógino. Bolsonaro diz, então, que nem sabia o que significava isso à época. Tudo isso acontece com a menina ao seu lado. Ele se dirige a uma das pessoas que está atrás da câmera com a pergunta:
J. B.: Você é misógino, Mora? [Mora responde, ao fundo, mas o áudio não captura sua resposta] Você não gosta de mulher, você não gosta de homem, então, é isso?
O episódio em questão se refere a uma audiência pública sobre o “Kit Gay”, quando uma senadora do Pará, segundo Bolsonaro, não teria gostado de sua presença no evento e o teria chamado de misógino. Ele continua a fala dirigindo-se à menina:
J.B.: Se eu não gosto de mulher, é sinal que eu gosto de homem. Quem não gosta de mulher, gosta de homem, é isso?
Sem entender do que se tratava exatamente, Esther diz:
E. C.: Ah, mas é feio isso aí [Bolsonaro começa a rir]. Eu não gost... Ó, Tem que ser certinho, gente, para vocês terem um futuro bem legal lá na frente. Eu, por exemplo: eu comecei cedo; meus pais também…
E o “diálogo” segue:
J. B.: Você começou cedo, como é, que que é?
E. C.: Eu e meus pais.
J. B.: Começou cedo? Como assim, começou cedo? [Bolsonaro ri]
E.S.: Eu comecei com seis anos.
J. B.: Ah conversou, conversou.
E. C.: Não, eu comecei a minha carreira de repórter com 6 anos, e meus pais, com 13 anos, eles começaram a trabalhar.
Quando a criança tenta reforçar que começou a trabalhar cedo, Bolsonaro para de rir e envereda para o incentivo ao trabalho infantil.
Para muitos, foi só mais uma repercussão “de um jeito meio fanfarrão de ser”; para nós, uma situação séria de exposição da criança diante de piadas sexistas e abusivas. Quem o defende inclusive se apoia na língua para justificar o ocorrido, afinal, ele teria confundido “começou” com “conversou”: uma ambiguidade por homofonia.
Como analistas do discurso, interessa-nos o funcionamento da ambiguidade, mas não enquanto efeito de uma “confusão” que teria causado um problema de interpretação da palavra correta. Interessa-nos a ambiguidade aí no non sense que engendra: o “começou cedo” para a criança não coincide com o sentido colocado em circulação pelo “começou cedo” do Presidente; logo não parece ser um problema de escutar “conversou” por “começou” apenas por uma questão de proximidade sonora.
Com Leandro-Ferreira (2021), podemos pensar sobre os diferentes tipos de ambiguidade, tal como a ambiguidade referencial, em que a um enunciado, em seu caráter elíptico, pode-se sempre acrescentar algo para precisar, modificar; ou em uma ambiguidade semântica, ligada à indeterminação da palavra. No entanto, a partir daí, conforme a autora, redundaria num problema de comunicação. E não parece ser disso que se trata o caso do começou/conversou.
Se houve um problema de comunicação, a tentativa de desambiguização de Bolsonaro não resolve o problema; pelo contrário, é justamente a tentativa de desambiguizar o começou da menina pelo seu começou cedo que denuncia o excesso que fala e abusa. Conforme Leandro-Ferreira (2021, p. 70):
a ambiguidade, quando se manifesta e é percebida, é sempre reveladora e tem a ver diretamente com o modo de ser da língua [...] um reduto em que o sentido está constantemente em perigo, na divida entre o sentido e o não-sentido, entre a clareza e a obscuridade, entre o necessário e a falta, entre a unidade e a multiplicidade.
Quando a criança diz começou cedo, Bolsonaro não espera a pausa, interrompe a fala da menina e, ao questioná-la com Você começou cedo, quê, como é, que que é?, coloca em circulação sentidos que derivam para a iniciação sexual, mesmo falando com uma criança. Quando a menina diz que começou cedo, a ausência do complemento verbal objeto direto produz o efeito de sentido de que se está falando de começar a ter relações sexuais. A elipse do complemento no verbo começar remete a algo que não pode ser dito, ou seja, algo como comecei a fazer sexo ou comecei a ter relações sexuais. É algo da ordem do não-dito, que pode proporcionar a emergência de ambiguidades que, no caso aqui analisado, conduz ao trabalho do humor. A elipse do complemento permite que o verbo seja complementado com significantes quaisquer, os quais, no funcionamento aqui em discussão, são referidos à sexualidade, tanto pela forma como essa formulação costuma circular, quanto pela temática referida a “gostar de homens e não gostar de mulheres” levantada na conversa sobre a palavra “misógino”.
Bolsonaro captura o começar da criança, o interrompe e o conduz para o efeito do sexual, produzindo um efeito metafórico que permitirá a piada. Nessa interlocução, o “adulto” comanda a cena; e a criança não entende o sentido que ele quer imprimir, o que não deixará de produzir algum efeito: o pior de todos, marcado por algo que ela ainda não pode entender exatamente, mas já desconfia que é feio isso aí.
A voz “adulta” não deixa a menina completar a frase e insere algo que não é dela, mas que se organiza numa cadeia significante no todo do diálogo, interpelando a criança a responder à questão, que é dele: se não gosta de mulher; gosta de homem. Eu gosto de homem? A menina, sem entender direito, só diz: Mas é feio isso aí. Eu não gost.... E é, em meio a um riso desproporcional do ex-presidente e dos outros homens presentes na cena, tanto em frente quanto atrás das câmeras, e em meio a falas preconceituosas e de cunho sexual, que a menina continua ali, exposta àquela conversa. Queria ela dizer que começou a trabalhar desde cedo, como seus pais, mas é impedida de terminar a frase. E, como neste espaço de interdito, o silêncio não é vazio, ele “é. Ele significa”; “ele está ‘lá’” conforme Orlandi (2007, p. 31, 45), fica um resto desse “diálogo” que pode reverberar de modos diferentes, resultado de um abuso que chega pela elipse, chega do modo mais perverso: nas bordas das palavras, da respiração, do riso desproporcional de homens diante de uma criança.
Na cena que se pode visualizar pela gravação disponível no YouTube, cabe destacar que, de um lado, está a menina, vestida de branco, em lado oposto da intérprete de libras, vestida de preto; além de Bolsonaro, outros dois homens brancos aparecem no vídeo, ambos com roupas formais. Adicionalmente, há pessoas atrás da câmera. Não é possível dizer quem são essas pessoas, mas todas as que respondem às perguntas de Bolsonaro são homens. Podemos compreender que a menina está sozinha em um local de homens. Quando Bolsonaro questiona pelo verbo começar, há, na pergunta, o questionamento sobre o sentido do complemento ausente. A pergunta não pode ser compreendida como o desejo de preencher o complemento ausente, mas de provocar o riso entre os outros homens presentes na cena. Nesse sentido, a diferença entre começar a trabalhar e começar a ter relações sexuais é o que provoca o humor entre aqueles homens, calcado na forma como a menina de 10 anos é reconhecida, ali, como um ser passível de ter relações sexuais. Da posição da qual Bolsonaro fala, na relação entre lugar enunciativo e identificação, é possível reconhecê-la como um ser que poderia ser sexualmente ativo.
Apesar de se posicionar contra a falácia do Kit Gay, os sentidos que são colocados em circulação através da simples pergunta pelo complemento verbal são direcionados para a sexualização de menores de idade, colocando em cena o papel da contradição como determinante na forma como os processos discursivos funcionam.
No voto a favor do Golpe de 2016, o apelo à inocência das crianças como lugar-comum de adesão à moral e bons costumes. A educação é destruída sem que se tenha que resolver seus reais problemas. As causas indígena, racial, LGBTQIAPN+, de gênero e todas aquelas que dizem respeito às minorias foram sendo ignoradas e destruídas em termos de políticas públicas, duramente conquistadas; no lugar, falas homofóbicas, xenófobas, misóginas, aporofóbicas... São pistas de uma política do performativo, conforme trouxemos de Pêcheux (2011, p. 92), operando o registro da ficção, que “parece hoje deixar, na política, cada vez mais lugar ao parecer (isto é um simulacro do real): o especular está esvaziando o imaginário...”.
Que preocupação todas essas práticas demonstram com a “inocência das crianças”? Fica a pergunta.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No percurso que aqui desenhamos, tentamos mostrar como a Ditadura encontra a educação em práticas de autoritarismo e tentativa de controle dos corpos, por isso a questão da sexualidade se coloca como central. Em torno desse discurso, legisladores têm feito da pauta moral seu único mote de trabalho, passando longe de propor projetos que decisivamente ajudem a resolver os problemas que a escola enfrenta, por exemplo.
Voltando ao performativo em Pêcheux, seria o dizer para não ter o que fazer, mas há de se ressaltar que isso não deixa de produzir efeitos práticos, pois esta política do performativo trabalha em determinada direção: um fazer andar as políticas neoliberais em todas as suas atrocidades, que, no caso da educação, já sinalizam para a privatização das escolas, ou a destinação de dinheiro público para a iniciativa privada com a compra de vaga em creches ou universidades particulares.
A live em questão desnuda a “preocupação” com a inocência das crianças do pronunciamento no dia do Golpe de 2016 e mostra, conforme Courtine ([1994] 2011, p. 117, grifo do autor), o espetáculo político contemporâneo, em que “governar é aparecer”, numa verdadeira “reciclagem dos corpos dos homens públicos: pedagogia do gesto, trabalho da voz, técnicas do sorriso, embuste generalizado das aparências” (Courtine, 2011, p. 118).
Para nós, a cena com a criança não pode causar graça nenhuma e, trazendo palavras de Orlandi (2023, p. 75-76), não pode asfixiar a “possiblidade de dizer o Mal”, afinal:
Há sempre as outras palavras. É preciso não despolitizar o dizer. Saber se antecipar, dividir, contrapor, argumentar, dividir, trabalhar equívocos, Inventar. Produzir discursos capazes de confrontarem-se à dessignificação, a dar concretude à imaterialidade do Mal. Torná-la visível. Deslocá-la. Produzir ruptura e movimento.
Foi um pouco disso que tentamos tratar aqui.
REFERÊNCIAS
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
22 Set 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
04 Abr 2025 -
Aceito
06 Jun 2025
