Resumo
O objetivo deste trabalho é analisar a narrativa de vida de duas irmãs apátridas que vieram do Líbano para o Brasil, a fim de apreender as dificuldades relatadas por elas tanto no país de partida quanto no país de chegada e verificar se elas tiveram ou não apoio do Estado brasileiro em seu acolhimento e integração. A narrativa, que integra o livro Entre-lugares. Trajetórias de migrantes, refugiados e apátridas (Dornelas; Nunes, 2019), é examinada à luz da Análise do Discurso de linha francesa (ADF), a partir dos seguintes planos da semântica global de Maingueneau (2005): temas, vocabulário, dêixis enunciativa e modo de enunciação (éthos). Os resultados mostram o caminho percorrido pelas irmãs em busca da nacionalidade brasileira, bem como a solidariedade da sociedade civil (voluntários, igreja) na recepção aos sujeitos deslocados.
Palavras-chave:
Apatridia; Discurso; Narrativa de vida; Semântica global
Abstract
The aim of this work is to analyze the life narrative of two stateless sisters who came from Lebanon to Brazil, in order to understand the difficulties they reported both in the country of departure and in the country of arrival, as well as to verify whether or not they received support from the Brazilian State in their reception and integration. The narrative, which is part of the book Entre-lugares. Trajetórias de migrantes, refugiados e apátridas (Dornelas; Nunes, 2019), is examined in the light of French Discourse Analysis (FDA), based on the following planes of Maingueneau’s (2005) global semantics: themes, vocabulary, enunciative deixis and mode of enunciation (ethos). The results highlight the sisters’ journey in pursuit of Brazilian nationality, as well as the solidarity of civil society (volunteers, church) in welcoming the displaced individuals.
Keywords:
Statelessness; Discourse; Life Narrative; Global Semantics
Resumen
El objetivo de este trabajo es analizar la narrativa de vida de dos hermanas apátridas que vinieron del Líbano a Brasil, con el fin de comprender las dificultades que han relatado en el país de salida como en el país de llegada y verificar si ellas tuvieron el apoyo del Estado brasileño en su acogida e integración. Se examina esa narrativa, que está en el libro Entre-lugares. Trajetórias de migrantes, refugiados e apátridas (Dornelas; Nunes, 2019), con un enfoque metodológico del Análisis del Discurso francés (ADF), a partir de estos planos de la semántica global de Maingueneau (2005): temas, vocabulario, deixis enunciativa y modo de enunciación (ethos). Los resultados muestran el camino que las dos hermanas han recorrido en busca de la nacionalidad brasileña, así como la solidaridad de la sociedad civil (voluntarios, iglesia) en la acogida de esos sujetos desplazados.
Palabras clave:
Apatridia; Discurso; Narrativa de vida; Semántica global
1 INTRODUÇÃO
As últimas décadas (final do século XX/início do século XXI) assistiram a uma intensificação e diversificação da circulação de populações no mundo. Trata-se de um dos maiores fluxos migratórios da história contemporânea, o que tem levado não apenas as mídias e o setor político, mas também pesquisadores como Clochard (2007), a postularem uma “migração de crise”, resultante de uma série de guerras e tensões econômicas, sociais, políticas e étnicas que vêm abalando o planeta.
Quando o assunto são os movimentos migratórios, é costume distinguir dois grandes tipos de migração: a forçada, que diz respeito aos refugiados, e a voluntária, ligada aos migrantes1. Se aqueles são os que mudam de país para escapar de conflitos armados, perseguições (política, étnica, religiosa etc.) ou violações de direitos humanos, estes partem por vontade própria, buscando, em geral, melhores condições de vida em outro país.
De acordo com o ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), até o final de 2023 mais de 117 milhões de pessoas em todo o mundo foram forçadas a se deslocar, representando um aumento de 8% em relação ao ano anterior (um acréscimo de 8,8 milhões de pessoas), o que dá continuidade a uma tendência de aumento anual há 12 anos2. No Brasil, foram contabilizadas, em 2023, 58.628 solicitações de reconhecimento da condição de refugiado, com destaque para os venezuelanos, responsáveis por 29.467 (50,3%) dos pedidos (Refúgio em Números/2024)3. Já a cifra de migrantes internacionais elevou-se de 77 milhões, no meio dos anos 1970, a 271 milhões nos dias de hoje (Wenden, 2020).
No âmbito dos estudos sobre esse grande volume de deslocados, pouco se fala de uma categoria específica: os apátridas. O Artigo 1º da Convenção da ONU de 1954 sobre o Estatuto dos Apátridas define como apátrida “toda a pessoa que não seja considerada por qualquer Estado, segundo a sua legislação, como seu nacional”. De acordo com o ACNUR, a apatridia ocorre por diversos motivos: discriminação contra minorias na legislação nacional; conflitos de leis entre países; falha em reconhecer todos os residentes do país como cidadãos quando esse país se torna independente (secessão de Estados), entre outros. No final de 2023, o ACNUR relatou que 4,4 milhões de pessoas no mundo eram apátridas ou tinham nacionalidade indeterminada.
O apátrida, não raro, torna-se um problema invisível porque as pessoas nessa condição podem não ser capazes de ir à escola, conseguir um emprego, abrir uma conta bancária, comprar uma casa ou até mesmo casar-se. Logo, não seria demais afirmar que elas “inexistem” no meio social. Como o direito à nacionalidade está previsto no Artigo XV da Declaração Universal dos Direitos Humanos, sua violação é considerada um atentado à dignidade de qualquer pessoa.
Ainda de acordo com o ACNUR, atualmente há avanços em direção à erradicação da apatridia. Por exemplo, quase 350 mil apátridas adquiriram a nacionalidade em diversos países (Quênia, Tailândia, Rússia, Suécia, Vietnã e Filipinas, entre outros); 25 nações aderiram às duas Convenções da ONU sobre Apatridia, totalizando 94 países que agora fazem parte da Convenção de 1954 relativa ao Estatuto dos Apátridas; e 75 países que assinaram a Convenção de 1961 sobre a redução da Apatridia, como Albânia, Armênia, Estônia, Islândia e Luxembugo, mudaram a legislação para conceder mais facilmente a nacionalidade a crianças nascidas em seus territórios, que, de outra forma, seriam apátridas.
O Brasil, por sua vez, tem assegurado procedimentos de determinação da apatridia, bem como mecanismos para facilitar a naturalização de pessoas reconhecidas como apátridas, o que lhes propicia um status legal que permite residência e garante o usufruto dos direitos humanos básicos, como acesso aos serviços públicos4.
Em consonância com o que diz o ACNUR/Brasil, Dornelas e Nunes (2019) comentam que a Lei da Migração (Lei n. 13.445, de 24 de maio de 2017)5, regulamentada pelo Decreto n. 9.199, de 20 de novembro de 2017, e complementada pela Portaria Interministerial n. 5, de 27 de fevereiro de 2018, trouxe inovações importantes quanto aos procedimentos necessários para que o apátrida adquira a nacionalidade brasileira6.
O Artigo 1º da referida lei define apátrida como “pessoa que não seja considerada como nacional por nenhum Estado, segundo a sua legislação, nos termos da Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas, de 1954, promulgada pelo Decreto nº 4.246, de 22 de maio de 2002, ou assim reconhecida pelo Estado brasileiro”. No Capítulo II, há uma seção específica (Seção II) que trata da proteção ao apátrida e da redução da apatridia. O Artigo 26 dessa seção traz a seguinte informação: “Aplicam-se ao apátrida residente todos os direitos atribuídos ao migrante relacionados no artigo 4º”. São eles, entre outros: direitos e liberdades civis, sociais, culturais e econômicos, assim como o direito à liberdade de circulação em território nacional; acesso a serviços públicos de saúde e de assistência social e à previdência social, nos termos da lei; direito de sair, de permanecer e de reingressar em território nacional, mesmo enquanto esteja pendente o pedido de autorização de residência; direito à educação pública, sendo vedada a discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória.
Apesar desses avanços, no Brasil e no exterior, para que o apátrida deixe de viver à margem da sociedade e tenha seus direitos reconhecidos, há um longo caminho a percorrer. Assim, meu principal objetivo neste artigo é verificar como se dá, de fato, o acolhimento/integração do apátrida à sociedade brasileira, considerando que nem sempre benefícios e garantias “no papel” funcionam na prática. Além disso, pretendo investigar até que ponto as práticas de acolhimento dependem mais de redes locais e iniciativas individuais (voluntárias) do que de uma “política de hospitalidade” a cargo do Estado, questão levantada por Agier (2018) em relação ao contexto francês.
Para cumprir esses objetivos, analiso, à luz da Análise do Discurso de linha francesa (ADF)7, a narrativa de vida a duas vozes das irmãs Souad e Maha Mamo, que vieram do Líbano para o Brasil e hoje residem em Belo Horizonte (MG). As duas irmãs, além de falarem por si, falam também pelo irmão Eddy, já falecido. A narrativa em foco integra o livro Entre-lugares. Trajetórias de migrantes, refugiados e apátridas (Dornelas; Nunes, 2019)8.
Pretendo, assim, dar a palavra a pessoas apátridas para que elas contem sua própria história, de modo a resgatar, no espaço público, essas “vozes marginais” que são abafadas, silenciadas em favor daqueles que ocupam os lugares de autoridade (governos, mídias, especialistas) e que, não raro, transformam os sujeitos em situação de vulnerabilidade em números, cifras e porcentagens, esquecendo-se de que estão falando de pessoas que têm nomes, sentimentos e uma trajetória de vida.
2 ALGUMAS REFLEXÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS
A ADF é uma teoria interdisciplinar, o que me permite buscar “diálogos” produtivos com outras teorias/disciplinas, sem perder de vista seu enraizamento na linguística discursiva. É o que faço aqui com a (Etno)sociologia.
Assim, a expressão récit de vie ou “narrativa de vida”, em tradução livre de Machado (2020, 2021) (que assumo neste trabalho), foi utilizada pelo sociólogo Daniel Bertaux pela primeira vez em 1976, na França. Para ele, há narrativa de vida desde que um sujeito conte a uma outra pessoa (pesquisador ou não) um episódio qualquer de sua experiência vivida (no caso deste trabalho, a experiência da apatridia). Logo, na narrativa de vida, predomina a primeira pessoa do singular: trata-se de um eu que (se) conta ao outro.
O autor esclarece que, ao estudar a narrativa de vida, assume uma concepção minimalista que a distingue, portanto, de um outro gênero9 próximo - a autobiografia -, que, incidindo sobre a totalidade da história de uma pessoa, seria uma narrativa de vida completa (Bertaux, 2005). A narrativa de vida, por outro lado, aproxima-se do testemunho, já que testemunhar implica que alguém esteve no lá (e no então) e que, portanto, no aqui (e no agora) pode recontar, restituir o que viu, ouviu ou viveu. Nesse sentido, defendo que a narrativa de vida é dotada de um inegável teor testemunhal que pode, dessa forma, funcionar como um discurso de resistência frente aos discursos instituídos, aos estereótipos atribuídos àqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade, à invisibilidade (e à consequente inaudibilidade) social.
Neste estudo, o dispositivo de análise compreenderá quatro planos da semântica global de Maingueneau (2005), entendida como o sistema de restrições que incide, de forma integrada, sobre os vários planos do discurso, tanto na ordem do enunciado quanto na ordem da enunciação: os temas; o vocabulário, a dêixis enunciativa e o modo de enunciação10. Esses quatro planos serão utilizados de forma mais ampla do que faz Maingueneau (2005), como explicarei adiante.
Entendendo por tema aquilo que intuitivamente podemos exprimir como “do que isso fala?”, Maingueneau (2005) explica que os temas estão integrados semanticamente a um dado discurso por meio do sistema de restrições que o rege. O autor os divide em dois subconjuntos: impostos (aqueles que não podem faltar a um dado discurso para que ele seja bem aceito) e específicos (aqueles que são próprios a um dado discurso). Os temas, além disso, podem ser explicitados ou silenciados. Assim como fiz em trabalhos anteriores (Lara, 2021a, 2023), proporei eixos temáticos para dar direcionamento à análise, como se verá.
No que se refere ao vocabulário, é importante observar como as palavras, em função de seus usos, comportam-se nos discursos, chamando umas às outras, polemizando, opondo-se; em suma, formando “redes”. Logo, concordo com Maingueneau (2005, p. 84) quando considera que “a palavra em si mesma não constitui uma unidade de análise pertinente”. Por essa razão, o vocabulário será examinado de forma integrada aos demais planos, sobretudo ao plano dos temas/eixos temáticos, e incluirá, de maneira mais ampla, nomeações/designações, índices de avaliação, modalidades etc.
Quanto à dêixis enunciativa, o autor explica que, em sua dupla modalidade espaçotemporal [aqui-agora vs. lá-então], a dêixis “delimita a cena e a cronologia que o discurso constrói para autorizar sua enunciação” (Maingueneau, 2005, p. 93, grifos do original). No presente artigo, a exemplo dos trabalhos anteriores já citados, (re)incluo a categoria de pessoa, pois, em se tratando do gênero “narrativa de vida”, a projeção de um eu que (se) conta ao outro é um aspecto fundamental.
O último plano da semântica global que mobilizo em meu dispositivo de análise é o modo de enunciação, ou seja, “uma maneira de dizer específica”, que se manifesta no “tom” do texto (de crítica, de indignação, de melancolia etc.), bem como na escolha das palavras, dos argumentos etc. (Maingueneau, 2005, p. 94). Essa “maneira de dizer específica”, que remete a “uma maneira de ser”, é associada em trabalhos posteriores do autor à noção retórica de éthos, ou seja, à imagem de si que o orador constrói no/pelo discurso (ver, por exemplo, Maingueneau, 2006; 2008; 2020).
Do ponto de vista metodológico, o trabalho se divide em duas etapas que, embora distintas, serão implementadas concomitantemente: a análise da narrativa de vida selecionada, a partir das categorias descritas acima; e a comparação das dificuldades e percalços que as irmãs Souad e Maha relatam com o que consta no discurso oficial (ACNUR, Estatuto do Apátrida etc.) relativo à acolhida e à integração de sujeitos apátridas.
3 A NARRATIVA DE VIDA DE SOUAD E MAHA MAMO
Por que as irmãs Mamo são consideradas apátridas? Maha relata que seus pais são sírios, mas que a religião e a lei na Síria impediam o casamento entre uma muçulmana e um cristão. Para resolver esse impasse, eles se mudaram para o Líbano, país vizinho, casaram-se e tiveram três filhos: Souad, Maha e Eddy. A questão é que há dois sistemas legislativos para a concessão da nacionalidade: o jus sanguinis (direito de sangue) e o jus solis (direito de solo), obtido em função do território onde se nasce. Tanto o Líbano quanto a Síria adotam o chamado jus sanguinis patrilinear, em que a nacionalidade é transmitida de forma hereditária apenas pelo pai. Nessa perspectiva, as crianças não puderam receber a nacionalidade libanesa porque o pai era sírio, e tampouco a nacionalidade síria, porque o casamento de Kifah Nachat e Jean Mamo não era registrado pelo Estado.
Como veremos no relato de Maha, os Mamo levaram muito tempo para entender que a situação em que se encontravam tinha um nome: apatridia. Ela relata que sentia haver algo diferente, visto que, embora se destacasse nos esportes e nos estudos, enfrentava muitos entraves para acessar serviços básicos, como saúde e educação, e para usufruir do direito de se deslocar livremente. Por exemplo, como jogadora de basquete, ela nunca pôde viajar para outro país ou outra cidade para competir porque não dispunha de nenhum documento que atestasse sua ligação oficial com o Estado.
Para o exame dos temas, primeira categoria do dispositivo de análise, proponho três eixos: Eixo Temático 1 (ET1) - a vida no Líbano e a difícil busca de uma nacionalidade; Eixo Temático 2 (ET2) - a mudança para o Brasil: acolhimento e adaptação; e Eixo Temático 3 (ET3) - a busca da nacionalidade brasileira e a visibilização da apatridia. Nessa abordagem, destaco alguns temas “menores” que considero relevantes para a questão da apatridia e do deslocamento, separando-os, sempre que possível, em temas impostos e específicos.
Assim, em ET1, ficamos sabendo que a família Mamo levava uma vida relativamente tranquila no Líbano até a eclosão da Guerra Civil (que durou de 1975 a 1990). No final do conflito, a mãe, Kifah Nachat, tentou sem sucesso matricular os filhos em várias escolas. Depois de muita “peregrinação”, apenas uma instituição armênia, em Beirute, concordou em receber as crianças indocumentadas. Posteriormente, quando Maha decidiu cursar Medicina, esbarrou novamente no problema da falta de documentação: foi necessária uma autorização especial do Ministro da Educação para que ela pudesse submeter-se ao exame nacional (similar ao ENEM) que lhe daria acesso ao ensino superior. Ela conta:
T1 - Eu fiz, passei, mas meu sonho era fazer Medicina. Na primeira universidade que eu fui, eles exigiram a documentação. Tentei explicar minha situação para eles, mas não consegui. Depois disso, me inscrevi em todas as universidades do Líbano e coloquei uma atrás da outra até conseguir (Dornelas; Nunes, 2019, p. 204).
Os verbos fazer [a prova] e passar, descrevendo ações que, em tese, garantiriam a matrícula numa universidade libanesa, não foram suficientes face à falta de documentação (“exigiram a documentação”; “não consegui”). Apenas uma instituição, entre as 42 existentes no Líbano, aceitou Maha como estudante. Contudo, como não havia Medicina na grade curricular, ela se viu obrigada a escolher outro curso, abortando, portanto, o sonho de se formar médica. Foi assim que ela fez Sistema de Informação de Gestão, seguido de um MBA em Administração de Empresas. Sendo particular, a instituição demandava pagamento, o que era um problema, tendo em vista a situação vivenciada pela família Mamo. Nas palavras de Maha,
T2 - Minha família é uma família bem simples. Meu pai trabalhava como carregador. Nós cinco morávamos em um quarto só. Era preciso trabalhar. Eu trabalhei em uma empresa que todo libanês sonhava, mas precisei sair porque não tinha registro (Dornelas; Nunes, 2019, p. 204-205).
Simples, carregador, (morar em) um quarto só, trabalhar remetem ao tema (específico) da precariedade em que a família vivia. Apesar de Maha ter conseguido emprego em uma boa empresa, ela não pôde ficar: novamente, a ausência de documentos (tema imposto pela própria definição de apatridia) se fez sentir. Embora não fosse difícil para Maha conseguir trabalho, sua situação redundava em alta rotatividade.
Tudo piorou com a Guerra Civil na Síria, iniciada em 2011, que trouxe impactos para o vizinho Líbano: o policiamento aumentou. Para os irmãos Mamo, tornou-se extremamente perigoso transitar. Como diz Maha em T3:
T3 - Se a blitz da polícia me parasse, eu iria para a prisão. Iam falar que eu sou terrorista. Como eu ia sair com documento, se eu não tinha nenhum? A gente andava com medo, e, aí eu falei que precisava de uma solução (Dornelas; Nunes, 2019, p. 206).
Palavras como blitz, polícia, prisão, terrorista formam a rede lexical da violência - tema (imposto) decorrente da situação de guerra (agravada pela condição de “sem documentos” dos irmãos Mamo) - e remetem ao medo, sentimento comum àqueles que estão direta ou indiretamente envolvidos em guerras ou conflitos armados. Lembro que fugir de eventos desse tipo é uma das principais motivações para que os sujeitos atravessem fronteiras em busca de proteção em outro país, o que caracteriza a já mencionada migração forçada.
Tentando encontrar solução para o problema, Maha enviou e-mails para o consulado de vários países, explicando sua situação e pedindo ajuda. Os EUA demonstraram empatia, mas explicaram que não poderiam ajudá-la em se tratando de um caso de apatridia. Ela descobriu, então, que havia um termo específico, um nome para sua condição - o que a levou a escrever novamente para os consulados, explicitando, desta vez, que era apátrida. Apenas o Consulado do México demonstrou interesse pela história de Maha, mas ela não chegou a viajar para o país: uma segunda resposta - negativa - chegou antes da viagem, destruindo as esperanças da moça.
Foi nesse momento que Souad entrou em cena. Repetindo o procedimento da irmã mais nova - enviar e-mails para todos os consulados do mundo -, ela recebeu retorno positivo do Brasil: “Nós estamos solidários com a sua situação. O Brasil está com entrada para sírios [...]” (Dornelas; Nunes, 2019, p. 208). Como destaca Souad, apesar da desconfiança da família de que poderia se tratar de tráfico de pessoas, foi o único “sim” que receberam durante todos os anos de suas vidas. Realizados os trâmites, que duraram apenas algumas semanas, Souad recebeu um laisser-passer (documento de viagem que substitui o passaporte) e a informação de que teria 48 horas para deixar o Líbano.
Para auxiliar a irmã, Maha procurou nas redes sociais pessoas que pudessem acolhê-la no Brasil. Por intermédio de uma amiga que tinha estado na Jornada Mundial de Juventude de 2013, no Rio de Janeiro, Maha conseguiu o e-mail de Guilherme Gomes, uma das pessoas que, por meio da Paróquia São Dimas, havia acolhido um grupo de 20 jovens libaneses que passaram três dias em Belo Horizonte antes do evento. Guilherme conseguiu uma casa para receber Souad na capital mineira: a de Emilene. E aí inicia-se ET2: a mudança para o Brasil, o acolhimento e a adaptação.
Se o governo brasileiro sinalizou positivamente quanto à vinda de Souad, concedendo-lhe o documento necessário para a viagem, foi o trabalho de voluntários, via igreja, que assegurou, na prática, seu acolhimento, confirmando, também em solo brasileiro, a constatação de Agier (2018) de que gestos voluntários e engajamento pessoal substituem, em geral, a carência do Estado no acolhimento a estrangeiros. Todavia, ainda segundo o autor, isso não é suficiente para garantir nem os direitos dos sujeitos deslocados nem sua liberdade de circulação. Como constataremos adiante, apesar de estarem há alguns anos no Brasil, Souad e Maha ainda vivenciavam a condição de apátridas quando foram entrevistadas (entre 2018 e 2019).
Voltemos à chegada de Souad ao Brasil, o que se deu em março de 2014. Em suas palavras:
T4 - Eu cheguei com muito medo. Tinha medo de sair de casa para ninguém me roubar. Eu tinha medo porque não conhecia. Não tinha noção onde era o pôr do sol e nascer do sol e isso me incomodava. Não saía de casa. Eu pensava que não sabia onde estava, se saberia voltar. Se alguém viesse me perguntar, não falava nenhuma palavra. Mas não se consegue fazer nada sem os papéis lá. Eu estava estrangeira. Estava difícil sobreviver. O país é uma maravilha, mas o documento, no final, é tudo. Já me perguntaram quanto eu ganhava no Líbano. Me disseram que eu era doida e que eu nunca ganharia isso aqui, mas não é uma escolha ir ou não ir. Eu precisava de documentos (Dornelas; Nunes, 2019, p. 212).
Em T4, várias questões remetem ao tema imposto da (difícil) adaptação do migrante ao novo país, sobretudo quando ele chega a um lugar desconhecido e sem falar a língua local. Veja-se que medo, repetido três vezes por Souad nesse trecho, é um sentimento constante para o estrangeiro, agravado, no caso dela e de tantos outros, por uma espécie de desorientação: “Não tinha noção onde era o pôr do sol e nascer do sol e isso me incomodava. Não saía de casa. Eu pensava que não sabia onde estava, se saberia voltar”. Se o Brasil é qualificado como “uma maravilha” (índice de avaliação), isso não foi suficiente para que Souad se sentisse em casa nos primeiros tempos. Entretanto, como ela salienta, não se tratava de uma escolha, mas da necessidade de ter documentos para existir, para ser reconhecida no meio social, ou seja: “O documento, no final, é tudo”.
Outro tema em T4 (imposto pela condição de deslocado) é a exploração do refugiado no mercado de trabalho: “Já me perguntaram quanto eu ganhava no Líbano. Me disseram que eu era doida e que eu nunca ganharia isso aqui”. A questão, no entanto, não se limita ao salário, mas ao fato de que os migrantes se inserem majoritariamente em segmentos mais precários e vulneráveis do mercado de trabalho, desempenhando tarefas abaixo de seu nível de qualificação (Peixoto, 2013; Lara, 2021a). Tendo chegado ao Brasil em setembro de 2014 para se juntar a Souad, Maha, que tinha graduação em Sistema de Informação de Gestão e um MBA em Administração de Empresas, além de falar seis línguas, trabalhou, juntamente com o irmão Eddy (que também recebeu autorização para migrar), como entregadora de jornais, um emprego muito aquém da sua formação. Segundo Maha,
T5 - Trabalhava lá na rua com chuva, com calor, com qualquer coisa. Ganhava o salário mínimo trabalhando. No Líbano eu tinha um salário bom, mas você trabalha, junta dinheiro por algum motivo, seja para comprar uma casa ou um carro, tirar a carteira de motorista, viajar com os amigos. Como eu nunca juntei dinheiro porque não podia fazer nada disso, a gente chegou aqui, sem nada [...] não tínhamos nada, precisávamos trabalhar (Dornelas; Nunes, 2019, p. 213-214).
Rua, chuva, sol, salário mínimo formam a rede lexical da precariedade relativa às condições de trabalho de Maha e Eddy. Já Soaud, trabalhando numa padaria, parece ter sido “privilegiada” em relação aos irmãos. Um tema específico que emerge de T5 e que justifica, em certa medida, a situação de subemprego entre migrantes e refugiados é a lenta e custosa revalidação de diplomas no Brasil, o que faz com que aqueles que precisam trabalhar se sujeitem a empregos não qualificados e com baixa remuneração, o que remete ao tema (imposto) da burocracia, a que retornarei adiante.
Mas os irmãos também receberam ajuda - mais uma vez, de voluntários: Emilene, que havia recebido Souad, acolheu também Maha e Eddy, cedendo o segundo andar de sua casa para que eles pudessem ficar juntos. E foi a própria Emilene, juntamente com sua família, que acionou uma amiga, Isabela Senna, para auxiliar os Mamo nos trâmites legais. Como Maha relata:
T6 - Isabela apresentou as amigas e a família dela, aí eu conheci Emanuela Rios, que é a melhor amiga dela e virou minha grande amiga. Isabela também começou a me dar aulas de português e apresentou a gente para o Centro Zanmi (Dornelas; Nunes, 2019, p. 213).
O que se constata, em T6, é que a rede de solidariedade em torno dos irmãos libaneses vai se formando com o apoio de novos voluntários (amigos de amigos) e de uma associação religiosa - o Centro Zanmi, o primeiro escritório do Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados no Brasil. Foi, aliás, com o auxílio do Centro Zanmi que Maha e Eddy conseguiram um novo emprego, com condições melhores (embora ainda aquém de suas qualificações) no Mon Caviste, uma empresa de importação de vinho francês. Isso evidencia a inexistência de uma “política de hospitalidade” a cargo do Estado que, de fato, acolha e promova a integração dos sujeitos migrantes ao novo país, o que acaba sendo assumido pela sociedade civil, como propõe Agier (2018).
Conforme Lopez e Diniz (2019, p. 3), “o aprendizado de português deveria ser contemplado pela legislação brasileira como um direito do imigrante”. Para eles, “o ensino de PLAc [Português como Língua de Acolhimento] poderia passar a ser visto como incumbência também do Estado - evitando, assim, que essa tarefa fique a cargo eminentemente de iniciativas da sociedade civil”. No caso de Maha e de tantos outros migrantes e refugiados, entretanto, o aprendizado da língua - fundamental para a plena integração do migrante/refugiado à nova sociedade - acabou sendo transferido à boa vontade de uma amiga.
Passo, então, a ET3 - a busca da nacionalidade brasileira e a visibilização da apatridia. Assim que chegou ao Brasil, Maha dirigiu-se à Polícia Federal para solicitar o status de refugiada, o que ela conseguiu em maio de 2016. Como queria uma solução mais duradoura, ela contatou o ACNUR para ter ciência dos próximos passos. De fato, Redin (2021, p. 160) admite que a situação do migrante implica “um estado de exclusão permanente, por uma permanente condição de provisoriedade”, ou seja, trata-se de uma condição provisória que demanda sempre justificativas para se sustentar. Daí a necessidade que Maha sentiu de buscar algo mais estável.
Esse contato com o ACNUR rendeu a Maha o convite para fazer um documentário sobre apatridia (Apátridas, para o Canal Futura) e, a partir daí, vieram novos convites, tanto do ACNUR - no âmbito da campanha global I belong, lançada em 2014, com o objetivo de erradicar a apatridia - quanto de outras instituições para que ela fizesse palestras em diferentes países, representando os apátridas. Admitindo que nem Souad nem Eddy se dispuseram a enfrentar “os holofotes” como ela, Maha conclui: “- Se você não falar [...], quem vai saber?” (Dornelas; Nunes, 2019, p. 215).
Nesse meio-tempo, Maha conseguiu uma boa proposta de emprego numa fazenda, em Ibitinga (interior de São Paulo), que exportava gado vivo e açúcar. Ela aceitou o emprego de Especialista em Operações Comerciais Internacionais, com a condição de que poderia continuar participando dos eventos da ONU e viajando para Belo Horizonte para visitar a família. Quanto à primeira questão, ela conta:
T7 - A primeira coisa que eu falei para ele foi: Sr. Fábio, eu quero participar dos eventos. Minha vida é a ONU e falar de apatridia. Dez milhões de apátridas que existem no mundo inteiro, eu falo da minha história. Por isso eu quero que ela chegue a todo mundo, virou missão de vida. Não é nem para conseguir nacionalidade nem nada, virou uma missão mesmo para que as pessoas conheçam, para que as pessoas saibam que apátridas existem (Dornelas; Nunes, 2019, p. 216).
Nesse trecho é importante destacar, do ponto de vista do vocabulário, a palavra missão (de vida), que Maha repete duas vezes para explicar seu trabalho de porta-voz dos apátridas (tema específico). Contudo, mesmo para conferir a esse público visibilidade e audibilidade sociais (“para que as pessoas conheçam, para que as pessoas saibam que apátridas existem”), há dificuldades que remetem a um outro tema (imposto): a burocracia. Considero esse tema imposto por sua recorrência no discurso de migrantes e refugiados, o que, afinal, o torna obrigatório para que o discurso desses sujeitos seja bem aceito:
T8 - Nunca uma viagem que eu fiz foi fácil. Meu passaporte é amarelo e chama muita atenção. Eles perguntam: - Esse é o passaporte brasileiro para estrangeiro. Cadê seu passaporte? - Não tenho - Como assim uma pessoa que não tem passaporte? - Tenho essa conversa cada vez que eu vou viajar, mas, quando eu viajo pela ONU, tudo está preparado com a Polícia Federal e é avisado que eu estou chegando com autorização especial para entrar. Assim, entro e saio em todos os seminários (Dornelas; Nunes, 2019, p. 216).
Como explicam as autoras do livro, “o passaporte amarelo é concedido aos estrangeiros e tem validade máxima de dois anos. No caso dos apátridas, é preciso um passaporte para cada viagem, pois ele só tem as páginas necessárias para uma ida e uma volta” (Dornelas; Nunes, 2019, p. 216). Isso implica que, para cada viagem internacional, Maha precisava ir à Polícia Federal com antecedência. Uma das entrevistadoras acompanhou-a numa dessas visitas e se surpreendeu porque “os profissionais do atendimento não sabiam o que fazer com o caso e chamaram a pessoa responsável pelo setor [...]. Somente no final do dia, ela conseguiu” (Dornelas; Nunes, 2019, p. 217). Ou seja, o “ritual” se repetia sempre que Maha necessitava mobilizar a Polícia Federal para autorizar uma viagem internacional.
Outro tema específico que aparece na narrativa de Maha é a morte do irmão Eddy, que foi vítima de latrocínio (roubo seguido de morte) na capital mineira. Como se pode constatar, não se trata de envolvimento dos sujeitos deslocados, mas da violência generalizada na/da sociedade brasileira, que pode afetar qualquer um.
Depois da morte do irmão, Maha voltou a morar em Belo Horizonte, em setembro de 2017. E conta que, dessa vez, teve outra prioridade: conseguir a nacionalidade brasileira para ela e, principalmente, para a irmã mais velha, que ela considera uma verdadeira mãe, sem perder o foco de continuar combatendo a apatridia no mundo inteiro, ou seja, de manter a luta para dar aos apátridas reconhecimento social.
Quando foram entrevistadas, as irmãs estavam morando juntas e sozinhas, pela primeira vez, enquanto aguardavam que a nova Lei da Migração (2017) lhes concedesse a nacionalidade brasileira: ela prevê procedimentos específicos para a apatridia. Maha explica que a nacionalidade brasileira só pode ser obtida após quinze anos de residência no país. Assim, em 2024, ainda faltariam cinco anos para a naturalização, já que as irmãs chegaram ao Brasil em 2014. De fato, a Lei de Migração (2017) dispõe, em seu artigo 67: “A naturalização extraordinária será concedida a pessoa de qualquer nacionalidade fixada no Brasil há mais de 15 (quinze) anos ininterruptos e sem condenação penal, desde que requeira a nacionalidade brasileira”.
Se as dificuldades são muitas, há também avanços. Maha conta, com orgulho, que conseguiu tirar a carteira de motorista. Aliás, sua própria militância em prol dos apátridas é uma grande conquista. Souad também teve realizações importantes, como formar-se em Engenharia de Telecomunicação e Computação, fazer um mestrado na área e obter um emprego mais compatível com sua formação: o de programadora de uma empresa.
É curioso o fato de as irmãs silenciarem sobre o tema da discriminação/preconceito, que afeta a vida de sujeitos migrantes de diferentes formas e em diferentes graus, como observei em outros trabalhos (ver, por exemplo, Lara, 2021a, 2021b, 2023). Essa questão só aparece, e de forma velada, quando se fala dos (sub)empregos que os irmãos conseguiram logo que chegaram ao Brasil, mesmo sendo pessoas qualificadas.
Explorados os temas (e o vocabulário), passo a outro plano do dispositivo de análise. Trata-se da dêixis enunciativa. Assim, no que se refere à dêixis espaçotemporal, não é difícil perceber que a narrativa de vida de Souad e de Maha se constrói entre um aqui/agora (no Brasil, na atualidade) e um lá/então (no Líbano, antes do deslocamento): dois lugares/tempos ligados pela experiência da apatridia e do deslocamento com suas especificidades e repercussões.
Quanto à categoria de pessoa, o livro de onde foi recortado o relato das irmãs Mamo apresenta uma particularidade quanto ao que estou chamando de “narrativa de vida” (ver item 2): as histórias vão sendo tecidas numa conjunção de vozes: as dos entrevistados, que falam em primeira pessoa, e a da entrevistadora (Paula ou Roberta), que (re)conta uma parte do que ouviu com suas próprias palavras, empregando, pois, a terceira pessoa. Nesse sentido, poderíamos considerar que estamos diante de narrativas de vida “híbridas”, em que as vozes se entrelaçam polifonicamente, criando um efeito de sentido ora de objetividade (terceira pessoa), ora de subjetividade (primeira pessoa).
Para contornar esse impasse - e ser fiel à noção de narrativa de vida tal como a assumo em meus trabalhos (ver, por exemplo, Lara, 2021a, 2023) - privilegiei, nos trechos trazidos para análise, as falas das próprias entrevistadas11 (que são introduzidas por travessão, caracterizando o discurso direto). Isso, a meu ver, minimiza o problema e, ao mesmo tempo, permite que “escutemos” as vozes das irmãs que (se) contam ao outro (entrevistadora, analista, leitores...).
O eu que fala nos trechos reproduzidos pode deslizar para o nós/a gente, referindo-se, via de regra, aos irmãos Mamo, o chamado nós exclusivo (Fiorin, 2003). É o que se vê, por exemplo, em T5 e T6, já analisados. Ou, então, resvalar para um você genérico, significando qualquer pessoa na mesma situação, como neste trecho em T5: “No Líbano eu tinha um salário bom, mas você trabalha, junta dinheiro por algum motivo, seja para comprar uma casa ou um carro, tirar a carteira de motorista, viajar com os amigos” (grifo meu). A segunda pessoa - aquela com quem se fala: tu/você - pode também aparecer num suposto diálogo com outra pessoa, como em T8: “Eles perguntam: - Esse é o passaporte brasileiro para estrangeiro. Cadê seu passaporte? - Não tenho. - Como assim uma pessoa que não tem passaporte?”. Nesse caso, Maha simula uma conversa com pessoas que se mostram incrédulas por ela não ter um passaporte normal. É como se um indivíduo sem passaporte simplesmente não tivesse identidade e, como tal, inexistisse.
Finalmente, quanto ao modo de enunciação - uma maneira de dizer que remete a uma maneira de ser -, contribuindo para a construção do éthos discursivo, o que predomina, na narrativa de vida em foco, é um tom assertivo e, ao mesmo tempo, esperançoso, que revela um éthos de determinação, como mostra esta fala de Maha:
T9 - Sei que não vou conseguir mudar o mundo, mas se eu conseguir um pouco já é muito bom. Hoje estou mudando a visão das pessoas, dos parlamentares, dos ministros, das pessoas que estão chegando para conhecer um pouco da minha história. Ainda que eu esteja vivendo, aceitando e agradecendo as pequenas coisas que eu tenho, hoje eu ainda não existo. Falar da minha história é uma missão. Meu maior sonho hoje é o de existir. Meu segundo sonho é o de 10 milhões de pessoas conseguirem nacionalidade (Dornelas; Nunes, 2019, p. 224).
Mudar (a visão das pessoas...), missão e sonho mostram o empenho de Maha de lutar para dar aos apátridas visibilidade/audibilidade no meio social; fazê-los, em suma, existir. Note-se a hierarquia construída por Maha relativa àqueles cuja visão sobre a apatridia ela pretende mudar: pessoas, parlamentares, ministros, ou seja, do cidadão comum aos políticos. Souad também assume esse tom assertivo, apesar da dificuldade de superar a trágica morte do irmão. Diz ela:
T10 - [...] Hoje eu gosto de viver o dia a dia. O que aconteceu com meu irmão me deixou diferente. Eu estou lidando com isso. Eu quero aproveitar meu tempo. Eu não faço coisas que não me fazem feliz. Eu vou com todo amor e boa vontade e sempre agradeço o que eu tenho. Hoje tem. Amanhã, ninguém sabe (Dornelas; Nunes, 2019, p. 222).
O que Souad revela em T10, sobretudo nos dois enunciados finais (“Hoje tem. Amanhã, ninguém sabe”), parece remeter ao Carpe Diem latino, ou seja, à ideia de curtir, de aproveitar o que há de bom em cada instante, já que o futuro é incerto.
Já quando falam de Eddy, Souad e Maha assumem um tom ora de indignação (pelo que aconteceu com ele), ora de carinho e saudade (quando relembram seu convívio com o irmão), revelando imagens de pessoas sensíveis, afeitas à emoção. O tom assertivo, confiante, dá, portanto, lugar a tons que revelam fragilidade e impotência, como neste trecho de Maha:
T11 - Meu irmão não fazia nada na vida dele. Ia de casa para o trabalho, do trabalho para casa. O sonho dele era voltar para o Líbano. Ele saía pouco. A gente ficava na cabeça dele para ele sair um pouco mais. [...] Nunca bebeu muito. Nunca fumou, quando eu me lembro dele, penso em uma pessoa que não se arriscava (Dornelas; Nunes, 2019, p. 218-219).
Em T11, Eddy, definido pela negativa (“não fazia nada”, “saía pouco”, “nunca bebeu”, “nunca fumou”, “não se arriscava”), é mostrado como uma pessoa tranquila, até mesmo acomodada, que não merecia o destino que lhe foi reservado. Como uma pessoa que “não fazia nada na vida” pôde sofrer tal violência? Essa é a questão implícita que esse trecho suscita, relevando um tom de indignação. Já o tom carinhoso e saudoso aparece em T12 a seguir, também enunciado por Maha:
T12 - Ele sempre me apoiava em tudo, inclusive com dinheiro. Ele sabia dos meus segredos pequenos e grandes, da minha vida pessoal, meu namoro, ele sabia de tudo. No último dia em que conversei com ele, falei: - Vai lá, coloca uns R$ 200,00 na minha conta, porque meu salário ainda não caiu. Ele depositou. Sempre me apoiava. Não perguntava para quê e o porquê (Dornelas; Nunes, 2019, p. 219)
O que chama a atenção em T12 é o apoio incondicional (“sempre me apoiava em tudo”; “não perguntava para quê e o porquê”) de Eddy à irmã, não apenas do ponto de vista financeiro, mas também - e sobretudo - do lado afetivo. Daí o tom saudoso e afetuoso que esse trecho revela.
Mas há um aspecto que distingue, claramente, as duas irmãs: Souad assume um tom mais sério, mais circunspecto, remetendo, às vezes, a um éthos materno (T13), de alguém responsável pelo outro (o que é repetido duas vezes na fala citada), enquanto o tom “leve” de Maha, em algumas falas (como é o caso de T14), constrói um éthos de otimismo, como mostram os desejos que ela expressa por meio da repetição do verbo querer, e de descontração, de alguém que não se prende a amarras, como atesta o índice de avaliação doida. Vejamos:
T13 - Me sentia responsável. Minha irmã precisava ter as regras da casa aqui também. Parecia que aqui ela podia fazer o que quisesse, mas, na minha cabeça, não se é livre aqui. Eu demorei muito para equilibrar isso. Sempre me senti responsável (Dornelas; Nunes, 2019, p. 222).
T14 - [...] e eu sou uma pessoa muito feliz na minha vida, no meu emprego, com a ONU, com tudo o que eu faço, com meus amigos. Estou amadurecendo mais, sou bem doida ainda, bebo, fico louca, danço, vou a qualquer lugar. Quero conhecer o mundo inteiro. Quero fazer tudo o que eu nunca fiz na minha vida. Eu trabalho, brinco, saio, namoro, faço tudo aqui, tudo o que eu quis fazer. Me sinto bem livre da minha outra vida que eu tinha lá (Dornelas; Nunes, 2019, p. 223).
Em suma, as várias “faces” que Maha e Souad vão construindo ao longo da narrativa, apesar de suas especificidades, podem ser resumidas numa palavra: perseverança - entendida como “a atitude de quem se esforça constantemente, de quem persiste, apesar dos obstáculos ou dos fracassos, em fazer ou alcançar algo” (Dicionário online Priberam)12. Sobretudo no caso de Maha, essa palavra também se revela na busca incessante para realizar seus sonhos e ser porta-voz dos apátridas, missão de vida que ela assumiu e que remete também a um éthos engajado e militante.
4 CONCLUSÃO
Sem ter qualquer pretensão de generalizar os resultados, posso dizer que o discurso dos apátridas, ilustrado nas falas das irmãs Mamo, comprova as adversidades que esses sujeitos têm de enfrentar para comprovar que existem, visto que o sujeito sem documentos parece perder a própria identidade. Essas questões emergem naturalmente na narrativa de vida de Souad e Maha, como acredito ter mostrado ao longo da análise.
Assim, os três eixos propostos revelam temas impostos, tais como ausência de documentos, violência (decorrente da guerra), dificuldades de adaptação (ao novo país) e burocracia, acompanhados de temas específicos, a exemplo da morte do irmão Eddy. Quanto ao vocabulário, medo é uma palavra-chave no discurso do sujeito apátrida, tanto em seu próprio país como no novo país. Já quanto à dêixis enunciativa, há um desdobramento do eu que (se) conta ao outro entre um aqui-agora (no Brasil, no presente) e um lá-então (no Líbano, no passado), mas é preciso reconhecer que uma grande parte da narrativa, no caso do livro em foco, é feita pela voz da entrevistadora (terceira pessoa), o que me levou a propor uma espécie de narrativa de vida híbrida. Quanto ao modo de enunciação, para além de certas especificidades apresentadas pelas irmãs, há uma alternância de tons: assertivo, revelando um éthos determinado, mas também indignado ou saudoso construindo um éthos fragilizado, a depender do episódio evocado. De qualquer forma, esses éthe podem ser resumidos numa palavra: perseverança.
O que se constatou também é que, na ausência de políticas públicas adequadas para acolher e integrar o sujeito deslocado no/ao país de chegada, é a sociedade civil que acaba assumindo uma boa parte da responsabilidade que caberia ao Estado. Como vimos no relato de Maha e Souad, elas tiveram o apoio de amigos, de amigos de amigos e de uma associação religiosa (o Centro Zanmi) para se adaptarem ao contexto brasileiro.
Finalmente, algo que chama a atenção na narrativa de vida das irmãs Mamo é a presença da burocracia (tema imposto) em várias etapas do processo. Assim, mesmo que Maha ainda não tenha tido tempo de solicitar a naturalização, que exige quinze anos de residência no Brasil - tempo que, aliás, me parece um pouco longo -, é extremamente burocrático que ela precise de um passaporte cada vez que sai do país, e que os atendentes da Polícia Federal não saibam como proceder, uma vez que a situação se repete sempre que Maha viaja para suas conferências.
Em outras palavras, há questões a enfrentar com urgência no Brasil, para que, com o efetivo apoio do Estado, o apátrida possa assumir plenamente sua existência e desfrutar dos direitos que, afinal, lhes são garantidos pela nova lei de migração, entre os quais destaco: o direito à educação pública; o acesso a serviços públicos de saúde e de assistência social e à previdência social; o direito de sair, de permanecer e de reingressar em território nacional, como foi mencionado na Introdução. Nesse último caso, por exemplo, Maha poderia circular livremente sem a necessidade de um passaporte para cada viagem internacional.
Ao discorrer sobre a complicada condição do apátrida, sobretudo em solo brasileiro, acredito estar dando minha contribuição - mesmo que modesta - para que aqueles que leiam este artigo possam sensibilizar o governo e outras instâncias envolvidas com as migrações contemporâneas para promover meios mais eficazes de prevenção e redução da apatridia.
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-
1
Como venho fazendo em meus trabalhos mais recentes, utilizo, neste artigo, migração (e seu correlato migrante), já que se trata de um termo relativamente neutro que descreve apenas um processo de mobilidade (Calabrese; Veniard, 2018). Mantenho, porém, imigrante/imigração (ou emigrante/emigração) em citações de autores que empregam tais termos.
-
2
Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/dados-sobre-refugiados/. Acesso em 14 out. 2024.
-
3
Disponível em: https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/seus-direitos/refugio/refugio-em-numeros-e-publicacoes. Acesso em: 13 jul. 2024.
-
4
Informações disponíveis em: https://www.acnur.org/br/sobre-o-acnur/quem-ajudamos/apatridas e https://pt.wikipedia.org/wiki/Conven%C3%A7%C3%A3o_sobre_o_Estatuto_dos_Ap%C3%A1tridas. Acesso em: 15 out. 2024.
-
5
Disponível em: https://portaldeimigração.mj.gov.br. Acesso em: 17 out. 2024.
-
6
É importante lembrar, no entanto, que as leis brasileiras anteriores a 2017 não contemplavam a apatridia, o que levava as pessoas apátridas a migrarem para o Brasil na condição de refugiadas (Faria, 2020).
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7
Esclareço que, no âmbito da ADF, assumo a vertente de base enunciativa desenvolvida por Dominique Maingueneau (Baronas; Ponsoni, 2019).
-
8
Esse relato integra o corpus da pesquisa “Refugiados no Brasil e na França: discursos e imagens”, financiada pelo CNPq (em andamento).
-
9
No caso da narrativa de vida, não há consenso entre os pesquisadores quanto a tratar-se (ou não) de um gênero de discurso. Nossik (2014), porém, admite que a narrativa de vida é, ao mesmo tempo, um gênero de discurso específico e um lugar de liberdade discursiva, posição que tenho adotado em meus trabalhos.
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10
A esses planos Maingueneau (2005, p. 79-102) acrescenta outros três: a intertextualidade, o estatuto do enunciador e do destinatário e o modo de coesão, num total de sete planos. Julgo, porém, que os planos escolhidos são mais produtivos para o tipo de análise que proponho (ver Lara, 2021a, 2023).
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11
Esclareço, porém, que, como Maha parece ser bem mais “falante” e engajada do que Souad, a maioria dos trechos reproduzidos ao longo da análise referem-se ao que ela diz.
-
12
Disponível em: https://dicionário.priberam.org. Acesso em: 16 out. 2024.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
24 Mar 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
24 Out 2024 -
Aceito
07 Fev 2025
