Resumo
Este artigo relaciona a enunciação “Preferiria não”, do personagem Bartleby, de Herman Melville (2015), com o conceito de estranho familiar de Sigmund Freud. O trabalho inicia com a noção de contemporâneo em Giorgio Agamben e, em seguida, desenvolve a leitura de Gilles Deleuze sobre Bartleby, para quem a literatura aponta uma escrita que, incessantemente, tenta escapar das formas de representação. Assim, Bartleby funciona para o narrador como um estranho familiar que o inquieta, tanto que foi preciso escrever sobre ele. Em outros termos, o que nos faz contemporâneos advém desse irrepresentável e inquietante a partir do qual algo de novo pode ser produzido, conduzindo a atualidade para além dela mesma.
Palavras-chave:
Psicanálise; Estranho familiar; Contemporâneo; Bartleby; “Preferiria não”
Abstract
This article relates the utterance “I would prefer not to” by Herman Melville’s character Bartleby with Sigmund Freud’s concept of the familiar stranger. The work begins with Giorgio Agamben’s notion of the contemporary and then develops Gilles Deleuze’s reading of Bartleby, for whom literature points to a writing that incessantly tries to escape from forms of representation. Thus, Bartleby functions for the narrator as a familiar stranger who disturbs him so much that it is necessary to write about him. In other words, this unrepresentable and disturbing element makes us contemporary by producing something new that leads the present beyond itself.
Keywords:
Psychoanalysis; Familiar stranger; Contemporary; Bartleby; “I would prefer not to”
Resumen
Este artículo relaciona el enunciado “Preferiría no hacerlo”, del personaje Bartleby, de Herman Melville, con el concepto de lo siniestro, de Sigmund Freud. La obra comienza con la noción de contemporáneo, en Giorgio Agamben, para luego desarrollar la lectura que hace Gilles Deleuze de Bartleby, para quien la literatura apunta a una escritura que, incesantemente, intenta escapar de las formas de representación. Así, Bartleby trabaja para el narrador como un siniestro que lo perturba tanto que fue necesario escribir sobre él. En otras palabras, lo que nos hace contemporáneos proviene de ese irrepresentable e inquietante desde el cual se puede producir algo nuevo, llevando la actualidad más allá de sí misma.
Palabras clave:
Psicoanálisis; El siniestro; Contemporáneo; Bartleby; “Preferiría no hacerlo”
INTRODUÇÃO
Em O que é o contemporâneo?, Giorgio Agamben (2009, p. 47) inicia o texto com duas perguntas centrais: “De que e do que somos contemporâneos? E, antes de tudo, o que significa ser contemporâneo?” O primeiro exemplo que Agamben (2009, p. 60) traz para discorrer sobre o tema é um poema russo, de Osip Mandel’štam, escrito em 1923: “Meu século, minha fera, quem poderá / olhar-te dentro dos olhos / e soldar com o seu sangue / as vértebras de dois séculos?”. Para Agamben (2009, p. 60), “o poeta, que devia pagar a sua contemporaneidade com a vida, é aquele que deve manter fixo o olhar nos olhos do seu século-fera, soldar com o seu sangue o dorso quebrado do tempo”. Soldar com a própria vida o dorso do tempo é também enfrentar aquilo que, no nosso tempo, causa estranhamento. Colocar-se em desalinhamento com as demandas do tempo presente e sequencial (cronos) acaba por produzir fraturas “no tempo histórico e coletivo” (2009, p. 60). Soldar o dorso quebrado do tempo advém da angústia (mas não apenas dela) enquanto afeto do Real que aponta para a urgência de uma mudança.
Essa perspectiva de articular o contemporâneo com uma força desconhecida que fratura o tempo, seguindo a leitura nietzschiana sobre o extemporâneo ou intempestivo, contribui também para a psicanálise, cujo horizonte é o sujeito que vive em descompasso com sua própria consciência. Temos aqui o desencontro, ora do sujeito com o seu tempo, ora do sujeito do desejo com sua consciência. Isso fica mais evidente na síntese: “não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, atual; exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo que ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o tempo” (Agamben, 2009, p. 58-59).
Assim, o contemporâneo é “apenas quem não se deixa cegar pela luz do século e consegue entrever nessa a parte da sombra a sua íntima obscuridade” (Agamben, 2009, p. 63-64). Temos aí o arco que vai do desencontro de sua dimensão coletiva e temporal (século) com a individual (sua íntima obscuridade).
Se Agamben cita o poeta russo Osip Mandel’štam para apresentar o que é o contemporâneo, nós apresentaremos a leitura que Gilles Deleuze faz do personagem Bartleby, de Herman Melville, para, na etapa seguinte, relacionar a noção de estranho familiar de Sigmund Freud.
A POTÊNCIA DO NÃO
O conto Bartleby, o escrivão: uma história de Wall Street, do escritor norte-americano Herman Melville (1819-1891), publicado originalmente em 1853, funciona como uma produção literária que toca naquilo que Agamben (2009) chama de contemporâneo e traz para a literatura as sombras de seu tempo. Agamben afirma, em sua leitura de Bartleby, que “um ser, que pode ser e, simultaneamente, não ser, chama-se, em filosofia primeira, contingente. O experimento, em que Bartleby nos arrisca, é um experimento de contingência absoluta” (Agamben, 2007, p. 35). A contingência evocada pelo filósofo pressupõe uma visão em que o sujeito pode suspender o tempo, permitindo que algo ainda não simbolizado emerja e interrompa o fluxo contínuo das demandas e do próprio tempo. Para o filósofo, “a mente é, portanto, não uma coisa, mas um ser de pura potência” (2015, p. 14). Como exemplo, ele comenta, a partir de Aristóteles (2002), o arquiteto que “mantém sua potência de construir mesmo quando não coloca em ato e como o tocador de cítara é tal porque também pode não tocar a cítara, assim o pensamento existe com uma potência de pensar e de não pensar” (Agamben, 2015, p. 14).
Neste momento, contudo, interessa-nos, sobretudo, a leitura que Deleuze fez da fórmula “Preferiria não”, à qual o próprio Agamben faz referência em seu livro: “Gilles Deleuze analisou o caráter particular da fórmula, aproximando-a daquelas expressões que os linguistas definem como agramaticais [...], atribuindo a essa secreta agramaticalidade o seu poder devastador: “a fórmula desconecta as palavras e as coisas” (Agamben, 2015, p. 28-29); e a partir da qual Deleuze indica que Bartleby é um personagem sem referência.
É nessa direção que nos parece que Bartleby funciona como metáfora para falar da sombra do tempo, um personagem sem referência nem a si nem a outro, mas que causa tanto estranhamento a tal ponto que o narrador o coloca no centro de sua história. Nele, o narrador - patrão do personagem principal - relata a intrigante tentativa de interagir com o seu escrivão sobre os trabalhos a fazer, ao que este sempre lhe responde com a mesma frase: “Preferiria não”. O advogado fica aterrorizado: “Troco as biografias de todos os escriturários por algumas passagens da vida de Bartleby, o escriturário mais estranho que jamais vi ou de que ouvi falar” (Melville, 2015, p. 7). Tal estranheza faz de Bartleby um personagem em busca de romper as estruturas que querem definir sua existência.
Toda vez que o patrão solicitava uma ação para além das suas funções, querendo extrair ao máximo toda a sua força de trabalho, ele respondia “Preferiria não”. Assim, “Preferiria não” nos mostra a negação como gesto de ruptura com os discursos que buscam enquadrar e controlar o presente. Nessa negação, evidencia-se uma afirmação da vida que se sobrepõe ao discurso dominante. Nesse sentido, Deleuze aponta para uma fórmula em que “Preferiria não”
desconecta as palavras e as coisas, as palavras e as ações, mas também os atos e as palavras: ela corta a linguagem de qualquer referência, em conformidade com a vocação absoluta de Bartleby ser um homem sem referência, aquele que surge e desaparece, sem referência a si mesmo nem a outra coisa (Deleuze, 1997, p. 86).
Em Deleuze (1997, p. 86), “Bartleby é o homem sem referência, sem posses, sem propriedades, sem qualidades, sem particularidades: é liso demais para que nele se possa pendurar uma particularidade qualquer”. De modo semelhante, o autor relaciona esse personagem de Melville com Ulisses:
Todo o século XIX será atravessado por uma busca do homem sem nome, regicida e parricida, Ulisses dos tempos modernos (“sou Ninguém”): o homem esmagado e mecanizado das grandes metrópoles, mas de onde se espera, talvez, que saia o Homem do futuro ou de um novo mundo (Deleuze, 1997, p. 86).
Não seria essa a condição de homem sem referência que aterroriza o advogado de Wall Street? Na leitura deleuziana, está em jogo uma lógica dos pressupostos, segundo a qual “o patrão ‘espera’ ser obedecido, ou um amigo benevolente, escutado, ao passo que Bartleby inventou uma nova lógica, uma lógica da preferência que é suficiente para minar os pressupostos da linguagem” (Deleuze, 1997, p. 85-86).
No conto, essa lógica da preferência tem um desencadeamento:
A fórmula tem dez ocorrências principais, e em cada uma pode aparecer diversas vezes, repetidas ou variadas. Bartleby é copista no escritório do advogado: ele não para de copiar, “de maneira silenciosa, lívida, mecânica”. A primeira ocorrência se dá quando o advogado lhe diz para cotejar, reler as cópias dos escreventes: PREFERIRIA NÃO. A segunda, quando o advogado lhe diz para vir reler suas próprias cópias. A terceira, quando o advogado o convida a reler com ele pessoalmente, frente a frente. A quarta, quando o advogado quer mandá-lo fazer um serviço externo. A quinta, quando lhe pede para ir ao aposento vizinho. A sexta, quando o advogado quer entrar no escritório num domingo de manhã e se dá conta de que Bartleby dorme ali. A sétima, quando o advogado se limita a fazer perguntas. A oitava, quando Bartleby parou de copiar, renunciou a copiar qualquer coisa e o advogado o despede. A nona, quando o advogado faz uma segunda tentativa de despedi-lo. A décima, quando Bartleby foi expulso do escritório, está sentado sobre o corrimão do patamar e o advogado, enlouquecido, lhe propõe outras ocupações inesperadas (fazer a contabilidade de uma mercearia, ser barman, cobrar faturas, ser acompanhante de um jovem de boa família...) (Deleuze, 1997, p. 81-82, grifos no original).
Essa fórmula aterrorizadora não deixa nada em seu lugar. Trata-se da lógica da preferência que se afirma sobre a lógica dos pressupostos. Diante do colapso da linguagem, em que nada permanece, a negação torna-se afirmação como saída das amarrações dos pressupostos, mas devemos observar a inversão de foco da análise de Deleuze (1997), quando se poderia supor que Bartleby pudesse ser louco, psicótico. Para essa suposição, seria preciso levar em conta as anomalias do advogado. A operação lembra, por caminhos inversos, o conto O alienista1, de Machado de Assis, publicado em 1882, no qual o personagem Doutor Bacamarte cria a Casa Verde, uma espécie de manicômio, e passa a internar os loucos da pequena cidade de Itaguaí, até que quase toda a população lá estivesse e o alienista percebesse seu erro, já que a maioria não apresentava um padrão de desvio de personalidade.
Deleuze (1997) relaciona o advogado ao caso Schreber, por ter liberado seu próprio delírio “na sequência de uma promoção, como se a promoção lhe desse a audácia de arriscar” (Deleuze, 1997, p. 87). No entanto, como o próprio filósofo se questiona, o que teria o advogado a arriscar? O autor segue com a inversão da posição do louco, baseada nos agenciamentos, numa série que se inicia com Bartleby fazendo seu trabalho mecânico no próprio gabinete do advogado, onde o estranho personagem permanece separado dos demais escrivães por um biombo verde, de forma que ouvia os comandos, mas não podia ser visto. Bastou o advogado retirar o biombo, após observar o trabalho mecânico, para Bartleby emitir a fórmula: “Preferiria não”.
As reações do advogado, daí em diante, são verdadeiras anomalias, como a medida enérgica de mudar o escritório de endereço para se livrar desse estranho personagem. Dias depois, ele é abordado em seu novo escritório por um desconhecido dizendo que Bartleby continua no antigo local de trabalho, no centro de uma sala vazia. Por fim, após o ex-funcionário ter sido preso, pouco antes de morrer de fome, o advogado tenta, sem obter resposta diferente, convencer Bartleby a comer. O que Deleuze parece fazer é colocar o narrador (o advogado) na posição do neurótico, como uma forma singular de loucura, um enlouquecimento em seu esforço repetido de enquadrar o fluxo dos acontecimentos na realidade imaginada e dominante.
Ao fazer isso, Melville cria um conto que rompe com a continuidade de um modelo patriarcal:
Pode-se supor que a contratação de Bartleby foi uma espécie de pacto, como se o advogado, depois de sua promoção, tivesse decidido converter esse personagem, sem referências objetivas, num homem de confiança que devia tudo. Quer fazer dele seu homem. O pacto consiste no seguinte: Bartleby copiará, próximo de seu chefe, a quem ouvirá, mas não será visto, tal como um pássaro noturno que não suporta ser olhado. Então, não há dúvida, no momento em que o advogado pretende (sem sequer fazê-lo de propósito) tirar Bartleby de seu biombo para cotejar as cópias com os outros, quebra o pacto. Por isso Bartleby, ao mesmo tempo que “prefere não” cotejar, já não pode continuar copiando (Deleuze, 1997, p. 88).
Quando o advogado rompe o pacto - retirando o biombo (“sem fazê-lo de propósito”) -, rompe com o que havia sido firmado entre ele e o estranho personagem, já que este fora contratado sem nenhuma referência. Não há laços entre os dois para que se possa observar alguma relação transcendente. Como afirma Guimarães (2015, p. 19), “a fórmula é um indicativo nesse sentido, já que abole a referência e aniquila qualquer particularidade. [...] Do homem com referência, filho do pai, para um homem sem referência, sem pai, sem referência de si mesmo ou a qualquer outra coisa.”
Deleuze (1997) aponta para o rompimento de uma relação de identificação: aquilo que vem sem se enquadrar na lógica dos pressupostos surge como uma sombra. Em primeiro lugar, ele nos apresenta o modelo padrão costumeiramente presente nos romances:
Uma identificação parece fazer com que intervenham três elementos, que aliás podem alterar-se, permutar-se: uma forma, imagem ou representação, retrato, modelo; um sujeito ao menos virtual; e os esforços do sujeito para tomar forma, se apropriar da imagem, adaptar-se a ela e adaptá-la a si. Trata-se de uma operação complexa que passa por todas as aventuras da semelhança e que sempre corre o risco de cair na neurose ou converter-se em narcisismo. É a “rivalidade mimética”, dizem. Mobiliza as funções paternas em geral: a imagem é por excelência uma imagem do pai, e o sujeito é um filho, mesmo se as determinações se intercambiam (Deleuze, 1997, p. 89).
Se a literatura mobiliza as funções paternas em geral, Bartleby não falta à regra, mas também traça linhas de fuga a partir da própria regra.
Bartleby não falta à regra, e os dois escriturários são como imagens de papel, simétricos inversos, e o advogado desempenha tão bem uma função de pai que o leitor tem dificuldade de acreditar que está em Nova York. [...] Mas cada vez algo estranho se produz que turva a imagem, afeta-a de uma incerteza essencial, impede que a forma “pegue”, mas também desfaz o sujeito, lança-o à deriva e elimina qualquer função paterna. [...] A estátua do pai dá lugar ao seu retrato, muito mais ambíguo, depois a outro retrato, que é o de qualquer um ou de ninguém. Perdem-se as referências, e a formação do homem cede o passo a um novo elemento desconhecido, ao mistério de uma vida não humana informe, um Squid. Tudo começa à inglesa, mas continua-se à americana, segundo uma linha de fuga irreversível. A função paterna se perde em favor de forças ambíguas mais obscuras. O sujeito perde sua textura em favor de um patchwork, de uma colcha de retalhos que prolifera ao infinito: o patchwork americano torna-se lei da obra melvilliana, desprovida de centro, de avesso e de direito. [...] I PREFER NOT TO é também um traço de expressão que contamina tudo, fugindo à forma linguística, destituindo o pai de sua palavra exemplar, tanto quanto o filho de sua possibilidade de reproduzir ou de copiar (Deleuze, 1997, p. 89-90, grifos no original).
Essa estranha fórmula que desune palavras e coisas e rompe com a continuidade de um modelo em que a lei, representada pela figura do pai, faz surgir uma nova imagem de pensamento, autônoma em relação aos modelos. Na literatura, personagens de Melville, de Kafka, de Proust etc. são signos de um devir e, enquanto tais, se opõem à noção de semelhança, identificação, imitação, reprodução. São linhas de expressão que funcionam como linhas de fuga de uma forma dominante. Por isso, a lógica da preferência de Bartleby opõe-se à lógica dos pressupostos à qual o advogado está subordinado.
O devir de Deleuze e Guattari (1977) não diz respeito às desterritorializações físicas. Como eles mesmos pontuam em Kafka: por uma literatura menor, “são desterritorializações absolutas, pelo menos em princípio, que se afundam no mundo desértico” (Deleuze; Guattari, 1977, p. 20). Ora, foi isso que aconteceu com Gregor, personagem de A metamorfose que se transforma em barata: “Não apenas para fugir do pai, mas antes para encontrar uma saída onde o pai não a soube encontrar, para fugir do gerente, do comércio e dos burocratas, para atingir essa região onde a voz apenas murmura” (Deleuze; Guattari, 1977, p. 21). Bartleby faz também para si uma ilha desértica e leva isso às últimas consequências, uma desterritorialização absoluta. Essas personagens conceituais funcionam na organização de nosso pensamento para enfrentar problemas que se apresentam. Através de Deleuze, fomos tocados por um novo processo de subjetivação, cujas marcas podiam ser observadas nessas personagens, de Melville (século XIX), de Kafka (século XX), bem como nas pinturas de Francis Bacon, com suas imagens desfiguradas, que podem ser elaboradas como formas de escapar da representação. O devir, assim, traça linhas subjetivas que se formam nas fugas de uma representação dominante.
O ESTRANHO FAMILIAR
Bartleby, ao afirmar-se a partir do não (Preferiria não), não estaria na mesma posição subjetiva de que fala o psicanalista Jacques Lacan quando se refere à cólera, causada quando “não se joga o jogo” (Lacan, 2005, p. 23); o jogo do grande Outro? O inusitado aparece como o novo traço de uma cartografia subjetiva que desliza no semblante de algo fora das formas de representações. Efeito da cólera contra o tempo, ou para usar os termos de Agamben, efeito de quando se vive nas sombras do tempo. Em Lacan (2005, p. 23), “é o que acontece nos sujeitos quando os pininhos não entram nos buraquinhos”; quando algo está fora da ordem, mas é um fora que sempre retorna com potência de causar alguma mudança. Esse estranho que sempre retorna é um semblante que pertence ao sujeito, mas que existe fora dele, constituindo-o.
A psicanálise, de modo geral, constituiu-se como uma prática clínica que não busca enquadrar os sujeitos, não busca qualificá-los ou fazê-los funcionar dentro de uma lógica operativa, adaptativa e produtivista. Neste sentido, o devir deleuziano funciona em articulação com a psicanálise na medida em que não busca esse enquadramento, mas um movimento que quebra com as representações e faz com que a potência do sujeito não esteja no dever escravizante, mas num devir do desejo enquanto causa do próprio sujeito.
Esse estranho, tema da estética, foi objeto de estudo de Sigmund Freud com a publicação, em 1919, de O estranho (Das Unheimliche). Pouco antes de Freud escrever sobre o conceito, o crítico literário Viktor Chklovski (1976) publicou em 1917 A arte como procedimento. No ensaio, o formalista russo desenvolve o estranhamento entre o espectador e a obra, que aparece como mola propulsora para a experiência. Chklovski cunhou o neologismo ostranenie (estranhamento), de difícil tradução, para dar conta desse acontecimento. Eis sua definição:
O objetivo da arte é dar uma sensação do objeto como visão e não como reconhecimento; o processo da arte é o processo de singularização [ostranenie] dos objetos e o processo que consiste em obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O ato de percepção em arte é um fim em si mesmo e deve ser prolongado; a arte é um meio de experimentar o devir do objeto, o que é já “passado” não importa para a arte (Chklovski, 1976, p. 45).
O estranhamento vem como efeito de romper com a representação daquilo que já foi feito. Por isso, a percepção da arte é um meio sem fim que nos faz estranhar o mundo. Para Chklovski (1976), a busca pelo não familiar no processo de criação, libertaria o espectador do automatismo perceptivo. A libertação do espectador dependeria dessa experiência com a arte que obscurece a forma para, assim, “aumentar a dificuldade e a duração da percepção” (Chklovski, 1976, p. 45). É no não familiar daquilo que é familiar, ou seja, no estranhamento, que o espectador se liberta do automatismo perceptivo. O não familiar não deve ser entendido como aquilo que é completamente estranho, uma vez que esse, muitas vezes, nos passa despercebido de tão estranho e distante que é. O sujeito que se liberta do automatismo perceptivo e de uma repetição sintomática é aquele que atravessa o que há de estranho no familiar, ou seja, que rompe com isso que é estranhamente familiar, esse estranho que ao mesmo tempo está no mais íntimo do sujeito, por isso familiar. Transcender esse estranho familiar é a lógica de um devir produzido na experiência artística.
Em Freud, aquilo que é estranho a nós adquire o paradoxo de um estranho familiar. O que Chklovski (1976) apresenta como o ato da percepção de se prolongar na obscuridade da forma, para o psicanalista seria o retorno de um estranho familiar. Conforme a definição de Freud, trata-se de “algo recalcado que retorna” (1969, p. 300, grifo nosso). Para Garcia-Rosa (2003, p. 24), “só há Unheimliche se houver repetição. O estranho é algo que retorna, algo que se repete, mas que, ao mesmo tempo, se apresenta como diferente”. Opondo-se à noção de reprodução, a noção de repetição tem o sentido de diferença, de novo. Trata-se de um estranho familiar que sempre retorna e, ao mesmo tempo, não pode ser representado.
Enquanto para Chklovski (1976) o estranho estaria relacionado com a obscuridade da forma, em Freud (1969) ele aparece como categoria de assustador, que, desde sempre, retorna mantendo-se obscuro. “O estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar” (Freud, 1969, p. 297). Isso que se mantém obscuro, por esse motivo sempre novo, só pode se repetir como diferente, já que, para usar uma formulação lacaniana, o estranho permanece em sua estranheza, porque não se deixa simbolizar. Isso pode ser chamado de repetição diferencial. Aquilo que é totalmente estranho ou totalmente familiar pode ser representado com os limites que a representação ocupa no espaço da linguagem. Esse estranho familiar que estamos tratando aqui, contudo, torna-se irrepresentável pela sua própria configuração: é um estranho naquilo que é familiar ou um familiar naquilo que é estranho. Logo, é um paradoxo que escapa à representação, um ponto de fuga que escapa à linguagem.
Nessa rápida passagem pelo conceito de estranho, pode-se operar de forma semelhante àquilo que Agamben (2009) caracteriza como o contemporâneo, a partir da noção de sombras do tempo. Essa sombra, palco do estranhamento, pode ser articulada com o Real, no modo como Lacan apresenta, como “o que não cessa de não se escrever” (Lacan, 1985, p. 81). Para Garcia-Rosa (2003, p. 43), “o Real não se situa entre os objetos do mundo, entendidos estes como objetos possíveis do desejo, mas como impossível, como o que falta ao encontro marcado, e em cujo vazio toma lugar o significante”.
Lacan (1985) situa o Real como aquilo que é da ordem do impossível - e, diante disso, sempre cabe perguntar: impossível de quê? Não se trata de um impossível absoluto - pois, nesse caso, nada poderíamos dizer. Trata-se de um Real impossível de ser plenamente simbolizado pela linguagem, embora capaz de produzir efeitos de retorno sobre ela. Em outros termos, podemos dizer que aquilo que foi forcluído do simbólico retorna no Real. Ou seja, o Real impossível não é de todo. Aquilo que retorna produz efeitos na linguagem. Isso mostra que o impossível do Real não é absoluto, mas sim um retorno que insiste em não se escrever.
As experiências em que o sentido falha - seja pela enunciação “Preferiria não”, seja pela aparição de um estranho familiar - são eventos em que a palavra não encontra seu significado, ou em que o dizer se vê desnorteado. São manifestações daquilo que nos torna contemporâneos. Podemos dizer, unindo Agamben com Lacan, que somos contemporâneos naquilo que não cessa de não se escrever na linguagem. O conceito de Real, assim, funciona nas extremidades da língua, quando ela já não produz mais sentido. Observa-se o Real da língua como
aquilo que encontra um limite no campo simbólico da representação da linguagem. O Real da língua é tomado por Lacan como aquilo que está para além do campo simbólico e que toca, ainda por fragmentos, em um Real que não cessa de não se inscrever no campo da linguagem. Esse Real é o impossível, cujas palavras não dão inteiramente conta, que escapa aos processos de simbolização (Maliska, 2014, p. 16).
O que escapa aos processos de simbolização é o que inquieta o sujeito e o força a um porvir, deslocando incessantemente o presente para além de si mesmo. Essa articulação faz o estranho familiar funcionar próximo à noção de Real em Lacan. É uma articulação que nos ajuda também nessa operação com o contemporâneo, dependendo daquilo que Agamben indica como a sombra do tempo. Ora, ao Real nada falta (Lacan, 1985), o que coloca a linguagem como uma diferença em curso, um excedente que se forma a partir da experiência inquietante daquilo que escapa à simbolização. Assim, “soldar com sangue o dorso quebrado do tempo” (Agamben, 2009, p. 60) advém dessa experiência de romper com a lógica dos pressupostos, e que lança (a partir do desconhecido) o sujeito a se fazer a partir das vértebras quebradas do tempo.
CONSIDERAÇÕES SEMIFINAIS
O desafio deste trabalho foi elucidar algumas aproximações da noção de contemporâneo, em Agamben, com os conceitos de estranho familiar, em Freud, e Real, em Lacan. Bartleby, como observamos, funciona para o narrador como um estranho familiar que o inquieta tanto que o advogado se sentiu compelido a escrever sobre ele. Em outros termos, o que nos faz contemporâneos advém desse irrepresentável e dessa desconexão entre palavras e coisas, a partir da qual algo novo é forçado a emergir.
A definição de contemporâneo de Agamben (2009, p. 61-62) é precisa:
Contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para quem deles experimenta contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente.
Talvez, não se trate propriamente de saber ver essa obscuridade, mas, diante dela, e do estranhamento que ela causa, saber fazer algo com isso, algo que já nos levaria para a noção de sinthome desenvolvida por Lacan (2007). Esse algo a mais, como o fez o narrador de Bartleby, um saber fazer algo a mais com o próprio sintoma. Não por acaso, Lacan (2007) desenvolve a noção de sinthome no seminário dedicado a James Joyce. O saber fazer com esse estranho familiar pode nos remeter a essa transcendência de um devir, sem espaços para o dever, mas um devir guiado pela lógica do desejo e de não ceder a este desejo. O fazer algo a mais com este sintoma não é simplesmente alguma coisa a mais, que poderia configurar uma lógica reprodutiva, mas fazer algo diferente, quebrando a cadeia iterativa do sintoma. É um a mais que produz diferença no jogo da repetição e uma diferença inventiva, disruptiva, que instaura algo verdadeiramente novo. A categoria de sinthome poderia nos levar nesse além, mas isso seria efetivamente objeto de um próximo artigo.
No arrazoado desta escrita, podemos dizer que aquilo que se faz sentir como um estranhamento, com um ponto obscuro no curso da vida, é também um acontecimento que fratura o tempo e nossa própria história a partir do qual algo novo emerge.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos aos colegas (servidores, docentes e discentes) do Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem (PPGCL) da Unisul pela experiência de trilharmos juntos trabalhos profícuos que alteraram tantas realidades de vida. Felicitamos o programa pelos seus 25 anos de existência. Sentimos orgulho de fazer parte dessa história!
REFERÊNCIAS
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Nesse ponto, temos a leitura de Christian Dunker (2015), em Mal-estar, sofrimento e sintoma, que faz referência a O alienista, de Machado de Assis, como crítica ao desenvolvimento de uma “racionalidade diagnóstica”, que se contenta com o que é redutível a modalidades regulares de sintomas, tendendo a expandir esse conceito de tal modo que o reencontraria em toda forma de vida. A expressão máxima desse movimento aparece no conto machadiano, em que, na primeira parte, a população da pequena Itaguaí vai sucessivamente sendo enquadrada nos diagnósticos de Bacamarte. Mas, nessa relação saber-poder que passa por uma racionalidade diagnóstica, o indivíduo sempre acaba isolado, e teríamos assim, para Dunker (2015), “cada um de nós, nosso próprio asilo, no qual nos trancafiaríamos solitários, tal qual Simão Bacamarte em seu exílio autoimposto”. A contribuição desse debate de Dunker para a discussão aqui proposta é a de que, em O alienista, teríamos a fórmula da lógica do pressuposto levada à sua potência máxima, que acaba, por fim, sendo aplicada ao próprio sujeito encarregado de legislar sobre toda a forma de vida, inclusive a sua. Não estaríamos, então, diante do caminho inverso ao de Bartleby, que, ao negar todas as palavras de ordem, acabou internado em um hospício? Há o mesmo fim para ambos por caminhos opostos. Na mesma obra, Dunker também faz referência a Bartleby, evocando-o como expressão de uma demanda contra o Outro.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
22 Set 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
31 Mar 2025 -
Aceito
10 Jun 2025
