Acessibilidade / Reportar erro

SUBJETIVIDADE E ALTERIDADE: ENCONTROS

Os estudiosos de linguagens desdobram seus temas refletindo sobre encontros e desencontros em práticas variadas e seus traços culturais, e lidando com a fluidez das sociedades contemporâneas, como demonstram os artigos que apresentamos nesta edição, que podemos dividir em três grandes campos ou esferas de reflexão: a escola (a pedagogia), o sentimento religioso, o entretenimento (na infância). Como reunimos estas folhas de um leque subsumindo-as a uma categoria-chefe? Escolhemos, nesta edição, a subjetividade, e seu outro necessário, a alteridade - e seus efeitos na mobilidade da vida.

Como tela inspiradora, apelamos para fragmentos de reflexão desenvolvida por uma pesquisadora de processos da linguagem no entorno das ciências sociais: Claudine Haroche, especificamente em seu texto O outro e o eu na fluidez e desmedida das sociedades contemporâneas1 1 In: NAXARA, M.; MARSON, I.; BREPOHL, M. (Org.). Figurações do outro. Uberlândia: EDUFU, 2009. p. 37-62. O texto retoma uma variedade de trabalhos da autora relativas ao ver, ao olhar, ao individualismo, aos efeitos psíquicos no exercício do pensamento, sempre em relação à subjetividade e à alteridade no mundo contemporâneo. . Nessa linha, podemos rememorar nossa apresentação da edição 1 de 2017, em que trouxemos o sociólogo-historiador Norbert Elias com sua categoria figurações, efeito reconhecível de relacionamentos específicos das pessoas, sempre em interdependência nos variados espaços da vida rotineira, e que têm cunho político.

Com efeito: as relações sociais mantidas inapelavelmente entre os indivíduos estabelecem um modo político de vida com sua vertente ideológica e imaginária, em que há modos específicos de encontro e desencontro no espaço-tempo, e em que atuam inexoravelmente as linguagens, nessas relações conviviais eu-nós-outro(s) em todos os campos e níveis social e institucionalmente estabelecidos.

Subjetividade supõe alteridade, que, por sua vez, “supõe um limite, uma fronteira entre o eu e o não-eu.” (HAROCHE, 2009, p. 37). É disso que trata nossa autora, lembrando que a ausência de limite leva ao que ressentimos nas sociedades contemporâneas: fluidez e liquidez - percepção que implica, em última análise, as próprias possibilidades de interação humana.

Haroche também rememora Elias fazendo referência a seu texto de 1939 Consciência de si e imagem do homem (constante da obra A sociedade dos indivíduos2 2 ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro, Zahar, 1994. , de 1987). No prefácio, o autor destaca que reflete sobre os conceitos estabelecidos de indivíduo e sociedade como se fossem opostos, exatamente para desmanchar essa dicotomia e levar a perceber que precisamos nos libertar dessa “compulsão” e entender a interdependência das pessoas em sociedade, que é o que cria e desenvolve a subjetividade: em processos alteritários, historicamente como parte do processo civilizador, com consequências para a percepção da autoimagem e do imaginário relativamente aos outros seres humanos.

Haroche enfatiza alguns pontos-chave do desenvolvimento da consciência de si nos estudos de Elias - resultado do processo civilizador no Ocidente -, mostrando o distanciamento entre indivíduos pelo próprio reconhecimento de sua individualidade, consciência e capacidade cognitiva, e a alternativa que a visão pode oferecer para prover os relacionamentos. Sabemos que eles podem variar muito, num contínuo que pode ir da aproximação afetuosa até a indiferença e o ódio manifesto - numa visão exotópica negativa que culmina na recusa de humanidade (exclusão).

Enfim, Haroche vai, a partir daí, explorar “fundamentos e condições da sensação, da percepção, das maneiras de sentir e perceber” (2009, p. 39), identificando pontos essenciais em vários autores, dando atenção especial a Bergson e sua percepção do movimento perene do mundo - espaço e tempo determinando fluxos, fluidez, e agindo na percepção e no pensamento dos indivíduos. A par do movimento constante e da percepção da duração, surge a necessidade de um contraponto, uma parada (o corte da sincronia, a visão de estados). Assim é que, diz Haroche (2009, p. 45), “Bergson localiza na imobilidade, na estabilidade, uma necessidade prática, funcional: ‘Nossa necessidade de viver e de agir nos levou a contrair e a esvaziar a percepção da realidade. O caráter funcional desta contração remete à necessidade de colocar limites.’.” Isso corresponde, diremos, ao que Pêcheux3 3 PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes, 1997. (1997, p. 33) identificou como necessidades do sujeito pragmático: “O sujeito pragmático - isto é, cada um de nós, os ‘simples particulares’ face às diversas urgências de sua vida - tem por si mesmo uma imperiosa necessidade de homogeneidade lógica”. É a necessidade universal de “um ‘mundo semanticamente normal’, isto é, normatizado” (1997, p. 34). Aliás, sem essa imobilidade (simulada) seria impossível tornar inteligível o real; ela permite que haja ciência - que exige referência, regularidade, ponto de apoio. Mais ainda, pede que não percamos de vista o amplo espaço de possibilidades científicas entre esses polos, entre os quais navega nossa subjetividade - sempre acompanhada de sua raiz, âncora e fundamento: “A escrita é a forma sólida da palavra, o sedimento da linguagem.”, escreveu Robert Bringhurst4 4 BRINGHURST, Robert. A forma sólida da linguagem: um ensaio sobre escrita e significado. São Paulo: Rosari, 2006). (2006, p. 9).

Ao passear com autores que refletiram sobre as formas de racionalização instrumental, técnica, aponta uma forma de mobilização na modernidade (revolução industrial, desenvolvimento tecnológico) que incita e faz recrudescer a rapidez em todas as ações, com efeitos em nossos modos de existência, de pensamento, de percepção, que conduzem a uma perda da reflexão, da capacidade de olhar e de ouvir. A imaginação se esvai, obliterada pela oferta constante de meios e objetos para dar resposta a demandas simuladas; o consumo é incitado. A competência técnica pode praticamente prescindir de atividade mental (divisão de tarefas). A fragmentação e a dispersão é o que resta. A seu lado, a homogeneização iguala tudo e não permite exercitar a percepção, o sentimento, a imaginação. Paradoxalmente, é do indivíduo que se trata, ou dessa concepção que isola o sujeito humano como um centro irradiador e o coloca na posição de Narciso - destruindo, por excesso de sensações, a possibilidade de constituir a própria pessoalidade. “O eu como síntese pessoal, o sentimento do eu supõe [...] uma certa continuidade, uma duração, e requer um limite entre interioridade e exterioridade.” (HAROCHE, 2009, p. 53).

A autora entende que a fluidez das tecnologias contemporâneas exerce efeitos nocivos sobre os indivíduos, tendendo a indiferenciar as categorias da percepção. Todas as sensações que absorvemos passivamente no dia a dia acabam por diluir nossa capacidade de sentir, de perceber, de refletir. Se a movimentação em fluxos sensoriais, no mundo, é perene, como buscar momentos de imobilidade (de solidez) para exercitar a percepção, a intencionalidade (direção), inclusive do próprio eu, e sentir, escolher, recusar - agir? Como pesquisadores que devem utilizar a forma sólida da linguagem - a escrita -, a parada nos é exigência para distinguir o difuso, o indistinto, o efêmero, o naturalizado, também por efeito do uso ideológico das linguagens. Há que estabelecer pontos de referência que possam nos guiar no emaranhado das sensações ameaçadoras - prover fundamento para (um)a compreensão do real.

Fechamos essa passagem pelos corredores do texto de Haroche exatamente com palavras que recusam o fechamento: “Podemos conceber sensações e sentimentos sem o eu? Eles podem assim ter sentido? Não estamos redescobrindo a existência de necessidades psíquicas que cada vez mais nos fazem falta: a percepção e a representação do outro?” (2009, p. 61).

As designações que utilizamos para falar dos encontros testemunham figurações instáveis de subjetividade e alteridade: resistência, ética, poder memorial, cognição, metadiscursividade, sensação, sentimento, religiosidade, sensibilidade cultural, familiaridade - são alguns dos tópicos que afloram nas pesquisas.

Detectamos aqui variedades de interação, encontros e desencontros com suas características de visualidade flutuante, em construção, em tratamento que exigiu parada de seus autores.

a) O jornal escolar - resistência subjetiva? - Uma experiência de tratamento midiático é levada a efeito no meio escolar, pensando-se a mediação como experiência para construir elos sociais em ambiente que pode parecer tender para o isolamento (a escola). Experiência coletiva gera saberes, contatos, ações, autoria - e oferece indícios de resistência à hegemonia.

b) Memória: as injunções da alteridade na arte - Discute-se visibilidade e invisibilidade a partir do olhar, mas, especialmente, rompendo a linha do tempo para encontrar, em sua malha memorial, dispositivos que explicam o olhar e o fazer, os modos de estar em interação - neste caso, a arte pictórica sendo iluminada pelos temas religiosos. Encontro na distância (espaço-tempo).

c) Sujeito e alteridade: ética na escrita - Propõe-se o modo de interação, na escrita acadêmica, em que a palavra de outrem fará parte explicitamente da palavra de quem se põe a escrever. Disse Bakhtin5 5 BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. (2003, p. 379): “A palavra do outro coloca diante do indivíduo a tarefa especial de compreendê-la [...]. As complexas relações de reciprocidade com a palavra do outro em todos os campos da cultura e da atividade completam toda a vida do homem.” É preciso saber de onde vêm as vozes com que estabelecemos contato, buscar compreendê-las, tratar delas eticamente. Distância e respeito, encontro e conversação em tratamento didático.

d) Outro sujeito, outra língua, outra cultura - A aprendizagem escolar em nível médio se apresenta aqui na forma de aprendizagem de inglês por estudantes brasileiros. O que pode motivá-los a haver-se com outra língua, outra cultura? A forma utilizada: o sair de si para retornar a si, avaliando-se; isso leva a reconhecer-se como outro, mas, no caso, também, a reconhecer-se com os outros, em comunidade.

e) Sujeito, infância, brinquedo - O que se diz às famílias e às crianças numa campanha para a venda de brinquedos? O discurso muda com os movimentos e os dispositivos culturais e o que parece representar os desejos humanos. Novas famílias, celebração das diferenças (orientação sexual, fuga do preconceito), novos valores (inclusão, solidariedade), novas representações, mais consoantes com a vivência dos seres humanos. Reconhecimento do outro.

f) Processos inferenciais: lidando com o pensamento metadiscursivo - Outra língua, outra cultura, leitura, compreensão, inferências - trata-se de como opera a mente quando depara com o mundo representado em outra língua, aqui focalizado (em contexto) por um conjunto de palavras com frequência de uso diferente. A inferência supõe a capacidade de atribuir significado a unidades desconhecidas - aqui, unidades lexicais de uma língua estrangeira. Os indícios devem levar a associações que representem possibilidades reais. Talvez pareça uma atividade solitária e implicando capacidades puramente individuais, mas o aparato e os movimentos a realizar implicam conhecimentos obtidos em intercâmbio. Nesse estudo, protocolos verbais levam ainda a uma divisão do eu em sua constituição, em direção a um outro eu: o si mesmo. Isso impõe estratégias metacognitivas, (auto)avaliação.

g) Sujeito da enunciação: diálogos interdisciplinares - O diálogo interdisciplinar é ensaiado. A linguagem institui não apenas o sujeito (como um eu), mas também o outro (eu). Estabelece-se um vínculo humano, instituído pela consciência da troca. Estabelece-se também, na óptica da psicanálise, a existência do sujeito em função de seu vínculo com o significante, como efeito da linguagem, que o divide e o fragmenta, que o obriga a pensar-se.

Esperamos que os textos desta edição conduzam a uma leitura que leve ao encontro salutar de vozes.

Os Editores

  • 1
    In: NAXARA, M.; MARSON, I.; BREPOHL, M. (Org.). Figurações do outro. Uberlândia: EDUFU, 2009. p. 37-62. O texto retoma uma variedade de trabalhos da autora relativas ao ver, ao olhar, ao individualismo, aos efeitos psíquicos no exercício do pensamento, sempre em relação à subjetividade e à alteridade no mundo contemporâneo.
  • 2
    ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro, Zahar, 1994.
  • 3
    PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes, 1997.
  • 4
    BRINGHURST, Robert. A forma sólida da linguagem: um ensaio sobre escrita e significado. São Paulo: Rosari, 2006).
  • 5
    BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017
Universidade do Sul de Santa Catarina Av. José Acácio Moreira, 787 - Caixa Postal 370, Dehon - 88704.900 - Tubarão-SC- Brasil, Tel: (55 48) 3621-3369, Fax: (55 48) 3621-3036 - Tubarão - SC - Brazil
E-mail: lemd@unisul.br