Resumo
Este artigo explora o desenvolvimento de leitores no contexto escolar, conforme representado no livro Infância, de Graciliano Ramos. O estudo examina a relação do protagonista com a escola e a leitura para destacar questões centrais no contexto educacional brasileiro, incluindo o papel das escolas, a experiência da infância e o desafio de promover hábitos de leitura no Brasil. Os resultados revelam que o desenvolvimento do protagonista como leitor se dá em um ambiente escolar marcado pela violência e pela exclusão. Além disso, a narrativa retrata a infância como um período em que a violência é naturalizada. Por fim, o livro apresenta a formação do leitor como marcada por um distanciamento constante entre a criança e a leitura, especialmente nos espaços institucionais.
Palavras-chave:
Escola; Infância; Leitura
Abstract
This article explores the development of readers within the school context, as represented in Graciliano Ramos’s book Infância. The study examines the protagonist’s relationship with school and reading to highlight key issues in the Brazilian educational context, including the role of schools, the experience of childhood, and the challenge of fostering reading habits in Brazil. The findings reveal that the protagonist’s development as a reader unfolds within a school setting characterized by violence and exclusion. Additionally, the narrative depicts childhood as a time when violence is naturalized. Finally, the book portrays the formation of the reader as marked by a constant distance between the child and reading, especially within institutional settings.
Keywords:
School; Childhood; Reading
Resumen
Este artículo explora el desarrollo de los lectores en el contexto escolar, tal como se representa en el libro Infancia, de Graciliano Ramos. El estudio examina la relación del protagonista con la escuela y la lectura para destacar cuestiones clave en el contexto educativo brasileño, como el papel de las escuelas, la experiencia de la infancia y el desafío de fomentar hábitos de lectura en Brasil. Los hallazgos revelan que el desarrollo del protagonista como lector se lleva a cabo en un entorno escolar caracterizado por la violencia y la exclusión. Además, la narrativa retrata la infancia como una etapa en la que la violencia está naturalizada. Finalmente, el libro presenta la formación del lector como marcada por una distancia constante entre el niño y la lectura, especialmente en los espacios institucionales.
Palabras clave:
Escuela; Niñez; Lectura
INTRODUÇÃO
Neste texto, propomos uma reflexão sobre a formação do leitor no contexto escolar brasileiro a partir do livro Infância de Graciliano Ramos, publicado na primeira metade do século XX. O texto memorialístico de Ramos não figura entre os mais conhecidos do autor no panorama literário do nosso país. Aliás, não ganha expressão nem mesmo como cânone escolar, que privilegia títulos como Vidas Secas e São Bernardo. No entanto, revela-se uma referência instigante para refletirmos sobre temas relevantes do contexto educacional brasileiro, como o papel historicamente excludente da escola, a experiência da infância e o desafio para formar leitores em um país no qual muitas crianças vivem como o menino Graciliano, “exilado[s] num mundo sem livros nem leitores” (Leitão, 2015, p. 269).
Escrito em 1945, Infância abrange as memórias do narrador dos três aos onze anos e tematiza o início da sua educação escolar, marcada pela dificuldade para compreender os métodos de instrução que eram impostos a ele. Na narrativa, evidenciam-se os conflitos gerados por uma escola caracterizada pela rigidez, pelo fracasso e pela exclusão, o que contribui para uma análise da infância dentro desse contexto. O enredo nos leva a pensar sobre muitas questões que ainda hoje merecem atenção quando nos ocupamos da educação básica no Brasil, principalmente quando as crianças se deparam com a aprendizagem inicial da língua escrita, ou seja, no ciclo de alfabetização.
O PAPEL DA ESCOLA
Na narrativa de Graciliano, encontramos uma escola descrita como um ambiente tão árido quanto o sertão onde ela se localiza. Um espaço associado aos castigos, à violência, muito bem representada pela palmatória, e a uma monotonia que desconsidera a criança como um sujeito. Logo nas primeiras páginas o narrador descreve a mudança do estado de Alagoas para Pernambuco e a cena que ocorre na escola onde acabam por se abrigar por uma noite durante a viagem. Essa primeira imagem que o narrador/personagem tem da instituição escolar não se revela nítida. A distância temporal entre a cena vivida pelo menino, que na época “andava em dois ou três anos” (Ramos, 2015, p. 10), e a recordação apresentada pelo narrador dissipa a possibilidade da certeza. Visto assim de tão longe, o ambiente e os personagens daquela cena não trazem uma boa lembrança. O espaço escolar se constitui por uma sala que, a princípio, parecia vasta. No entanto, as escolas que ele conheceu posteriormente o levam à outra conclusão, “Com certeza não era vasta, como presumi: visitei outras semelhantes, bem mesquinhas”. (Ramos, 2015, p. 10). Chama a atenção a relação entre a memória como registrada na época da infância e a certeza de que aquela impressão fora causada pela perspectiva de menino diante da sala. Essa espécie de ilusão entre as dimensões espaciais é justificada pela historiadora Ecléa Bosi (1998, p. 435) ao afirmar que isso ocorre porque “[f]ixamos a [imagem] com as dimensões que ela teve para nós e causa espanto a redução que sofre quando vamos revê-la com os olhos de adulto”.
Daquele espaço, assim se recorda o narrador:
A sala estava cheia de gente. Um velho de barbas longas dominava uma negra mesa, e diversos meninos, em bancos sem encosto, seguravam folhas de papel e esgoelavam-se:
- Um b com um a - b, a: ba; um b com um e - b, e: be.
Assim por diante, até u. (Ramos, 2015, p. 10)
Além dos meninos, uma menina, que ele identifica como sua irmã, segurava um folheto e “gemia: - A, B, C, D, E” (Ramos, 2015, p. 10, grifo nosso). Os fatos narrados, já no capítulo de abertura da obra, vão deixando pistas do que seria o ambiente escolar e, por extensão, o contato com a leitura para o menino Graciliano. A escola se revela um lugar estranho, que surge de uma lembrança nebulosa através da qual vão se revelando uma sala espaçosa, onde havia “sujeitos de camisas brancas”, moças e um velho que produziam “sons estranhos [...] letras, sílabas, palavras misteriosas” (Ramos, 2015. p. 11).
Embora diferentes as perspectivas sobre o tamanho da sala de aula, o mesmo contraste não se aplica ao comportamento mecanizado de ensino das primeiras letras para aquele grupo de meninos “dominado” pelo professor, um velho de barbas longas. Interessante observar que o contexto histórico de Infância, final do século XIX e início do século XX, é marcado pela implementação do regime Republicano, que tinha como mote a modernização do Brasil, o que implicava uma tentativa de escolarização da população. Naquele tempo, já tem início no país um processo de escolarização pública, ainda que de forma muito precária, pois
O processo de democratização do ensino [...] concretizou-se em crescimento quantitativo e diversificação do alunado. A escola, que até então se destinava apenas às camadas socialmente mais favorecidas, foi, dessa forma, conquistada pelas camadas populares. [...] Não se tendo reformulado para seus novos objetivos e sua nova função, a escola é que vem gerando o conflito, a crise, que é o resultado de transformações quantitativas - maior número de alunos - e, sobretudo, qualitativas - distância cultural e linguística entre os alunos a que elas tradicionalmente vinham servindo e os novos alunos que conquistaram o direito de também serem por ela servidos (Soares, 1994, p. 68-69).
A análise de Magda Soares, que enfoca esse período específico da história do Brasil, é reveladora desse despreparo da escola diante de estudantes que até então tinham pouco ou nenhum contato com a cultura escrita. Na cena acima descrita, portanto, veremos que a rigidez escolar somada à desconsideração da diversidade, do ponto de vista sociolinguístico, resultará em experiências traumáticas para o protagonista de Graciliano Ramos. Assim, o enredo de Infância é revelador na medida em que apresenta um sistema escolar excludente que segregava os alunos que não se adequavam a uma metodologia centrada no ensino e, dessa forma, eram ceifados da escola antes de concluírem a primeira etapa do ensino fundamental. Tal exclusão pode ser compreendida a partir do que Soares chama de ideologia do dom, segundo a qual o discurso da psicologia da segunda metade do século XIX legitimava uma segregação baseada em critérios que se revestiam de cientificidade.
Dessa forma, não seria a escola a responsável pelo fracasso do aluno; a causa estaria na ausência, neste, de condições básicas para a aprendizagem, condições que só ocorreriam na presença de determinadas características indispensáveis ao bom aproveitamento daquilo que a escola oferece (Soares, 1994, p. 10).
Para a criança que não se adequa ao sistema preestabelecido, o que resta é a exclusão ou a expulsão daquele espaço para o qual, segundo a ideologia do dom, ela não estava preparada.
É nesse contexto que o menino, mal conseguindo juntar algumas sílabas, depara-se com a imposição da leitura de textos de Camões, evidenciando uma distância lacunar entre o seu conhecimento e aquele que o ensino formal privilegiava. Dessa forma, apesar de ter passado por várias escolas, aos nove anos, ele ainda não sabia ler.
Sobre a utilização de textos literários, como no exemplo acima, Zilberman (2009, p. 9) destaca que desde a Antiguidade “o funcionamento da escola dependia da transformação da poesia em matéria de ensino”, herança que a escola brasileira herdou e do qual fez uso por muito tempo. Dessa forma, no início da educação formal no Brasil, o ensino da Língua Portuguesa privilegiava autores e obras que configuravam “um patrimônio legado ao aluno na qualidade de história e valor consagrado” (2009, p. 15). É desse período o comentário de Laudelino Freire no livro Momento Literário, de João do Rio, no qual encontramos referência a uma memória de leitura marcada pelos clássicos, dos quais ele se recorda com “entusiasmo, ainda hoje conservado, com que lia e decorava as poesias de Castro Alves, Álvares de Azevedo, Fagundes Varela, Tobias Barreto [...]”. ([1908?], p. 239)
Ocorre que para crianças como o narrador de Infância esse ensino não fazia sentido, uma vez que o modelo de escrita dos clássicos lhe era incompreensível, ou ainda, insípido e obscuro, como o próprio Graciliano define (Ramos, 2015). Dessa forma, os livros apresentados pela escola só serviam para ele “molhar de saliva as páginas detestáveis” (Ramos, 2015, p.181), cuja leitura ampliava o tédio e o sono que o ambiente escolar provocava. A escola torna-se, assim, um espaço do qual ele guarda as mais terríveis lembranças.
O relato memorialístico do autor de Vidas Secas, à medida que vai sendo tecido, revela imagens do que ainda se vê em muitas escolas do nosso país: instituições educacionais que se traduzem em ambientes caracterizados por uma organização que se justifica em nome da necessidade de uma ordem. Os efeitos dessa rígida organização são os de uma espécie de anestesia, termo que se opõe à “estesia” ou estética, uma vez que, conforme Susan Buck Morss (1996, p. 13), “Aistitikos é a palavra grega para aquilo que é ‘perceptivo através do tato’ (perceptive by feeling). Aistisis é a experiência sensorial da percepção. O campo original da estética não é a arte mas a realidade - a natureza corpórea, material”. O argumento da autora, segundo o qual a tônica da modernidade seria, justamente, anestética, pode ser visto também na escola, ambiente em que se impõe a impossibilidade de um contato de ordem estética com o mundo. Esse efeito anestético de ouvir, copiar e silenciar é bem ilustrado pela seguinte passagem: “Certo dia vi moscas na cara de um, roendo o canto do olho, entrando no olho. E o olho sem se mexer, como se o menino estivesse morto (Ramos, 2008, p. 68). O estudante, dentro dessa arquitetura, é como um corpo anestesiado diante de um médico prestes a operá-lo, cabendo àquele manter a ordem imposta, seguindo as regras e decorando as lições a serem tomadas como se fossem um remédio à sua incivilidade.
Reforça esse argumento o artigo no qual Juarez Thiesen apresenta uma reflexão sobre a dinâmica dos processos escolares, destacando que a educação brasileira foi erguida sob os moldes do ensino jesuítico. Para os religiosos, “tempos e espaços escolares são entendidos [...] como racionalidades instrumentais. São colocados a serviço de uma ‘ordem’ que deveria ser estabelecida e, assim, controlada” (Thiesen, 2011, p. 245). Tal modelo, erguido sob os moldes de uma educação colonial que servia, por certo, ao propósito da dominação do branco sobre o nativo, não nos é estranho. Trata-se de um modelo com o qual nos deparamos ainda hoje, pois faz parte da rotina de muitas instituições educacionais, cujo cotidiano é definido por - e circunscrito a - uma organização engessada.
Dessa forma, ninguém é dono do seu tempo na escola. Este já vem definido pelo horário, pela grade curricular, pela quantidade de conteúdos a serem ministrados em um período definido. Aos alunos e aos professores cabe apenas aceitar o tempo determinado e se adequar a ele. Não há espaço para o tempo natural, apenas para o tempo racionalizado do relógio. Até porque, a escola tornou-se, na modernidade, o espaço da racionalidade técnica e instrumental (Thiesen, 2011). Dentro dessa racionalidade, sobra pouco espaço para que o aluno viva a experiência como “[...] o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca”, nos termos de Jorge Larrosa (2002, p. 21). Cabe aqui questionar, portanto, de que modo a infância é representada dentro da obra.
INFÂNCIA
O primeiro contato do narrador de Infância com o universo escolar não se concretiza como um encontro com a cultura escrita, uma vez que este encontro vai acontecer fora da escola, na loja do pai, quando o menino está examinando com curiosidade “miudezas da prateleira”. É nesse momento que ele se depara com a escrita. A cena em que esse contato se faz, vale a citação, ainda que longa:
Demorei atenção nuns cadernos de capa enfeitada por três faixas verticais, borrões, nódoas cobertas de riscos semelhantes aos dos jornais e dos livros. Tive a ideia infeliz de abrir um desses folhetos, percorri as páginas amarelas, de papel ordinário. Meu pai tentou avivar-me a curiosidade valorizando com energia as linhas mal impressas, falhadas, antipáticas. Afirmou que as pessoas familiarizadas com elas dispunham de armas terríveis. Isto me pareceu absurdo: os traços insignificantes não tinham feição perigosa de armas. Ouvi os louvores, incrédulo” (Ramos, 2015, p. 109, grifos nossos).
As expressões que fazem referência à língua escrita denotam que a relação com as letras não será marcada por uma experiência positiva. O encontro inaugural com a palavra impressa se dá de forma imprevisível, como ocorre com qualquer outro utensílio ou objeto presente na loja do pai. Chama atenção do menino, porém, o “papel ordinário”, no qual estão registrados “nódoas cobertas de riscos” em “linhas mal impressas” e “antipáticas”, que não passam, na concepção da criança, de “traços insignificantes”, conceito que não muda nem mesmo quando são exaltados pelo pai, para quem o conhecimento tem o poder bélico. Diante da empolgação paterna e do questionamento, se havia no filho o desejo de se inteirar “daquelas maravilhas”, externando o desejo de ver o pequeno inserido no mundo das letras, a resposta da criança é rápida e definitiva, “não”.
O pai, um homem violento, carrancudo, autoritário e teimoso, não se dá por vencido e insiste na questão, mas sem a habitual agressividade. A consulta surpreendente, sem o peso de uma obrigação, gera desconfiança. Não poderia haver ali boa intenção. “O que estaria para acontecer?” (Ramos, 2015, p. 110). As respostas a tal questionamento surgem em episódios e momentos diversos na obra, nos quais são recorrentes a violência, o tédio e a frustração.
A partir daquele primeiro encontro com as letras, tem início o que Graciliano descreve como rituais de tortura, que ficavam por conta da palmatória e resultavam, sempre, em um doloroso sentimento de humilhação. Aliás, o medo e a humilhação andavam lado a lado no cotidiano do menino. Mesmo vivendo nos limites do ambiente familiar, a hostilidade e a crueldade dos pais marcam a vida daquela criança.
Do lado paterno encontra-se a figura de um homem poderoso e cruel, um comerciante arrogante e avarento. “Só não economizava pancadas e repreensões. Éramos repreendidos e batidos” (Ramos, 2015, p. 31), por qualquer motivo, a qualquer hora e de muitas formas. A violência física beirava a tortura, como ocorre na cena descrita no capítulo intitulado Cinturão, quando a criança é brutalmente espancada, porque o pai presumiu que ela havia guardado a “miserável correia”. O que transcorre naquele espaço é o resultado de uma atitude feroz do pai que, com um chicote em mãos, açoita a criança, que se vê abandonada por todos. Após a cena da surra cruel, o pai acha, enfim, o maldito cinturão, que havia caído na rede quando ele se deitara. Tal cena ilustra bem o tom da representação de infância contida na obra. Sobre isso, Tânia Regina de Souza afirma:
A palavra “infância” nas memórias de Graciliano Ramos não carrega conotação lúdica, não implica travessuras, nem colore com tons nostálgicos a lembrança do passado. O processo gradual do desenvolvimento infantil representa um avanço no sentido da reificação, determinando dessa forma a regressão do indivíduo à condição de animal. Sem qualquer possibilidade de subverter a ordem vigente, submissa à ditadura patriarcal, a criança vai paulatinamente inserindo-se na brutalidade de seu mundo, “consciente” de sua condição “animalesca” (2001, p. 111).
A reação da personagem na cena em que o pai o confronta sobre o cinturão demonstra uma concepção de infância ligada à violência, à subalternidade: “Desejei vê-lo dirigir-se a minha mãe e a José Baía, pessoas ‘grandes’, que não levavam pancada” (Ramos, 2015, p. 32). Na memória do narrador, a ação violenta só poderia ser evitada quando o alvo fossem pessoas “grandes”, o que, por oposição, revela a condição da criança como um alvo inerente naquele contexto. A respeito disso, Ana Maria Frota, ao fazer uma recapitulação sobre as diferentes concepções de infância ao longo da história afirma, a partir dos estudos do francês Phillipe Ariès, que
o sentimento de infância data do século XIX. Até então, as crianças eram tratadas como adultos em miniatura ou pequenos adultos. Os cuidados especiais que elas recebiam, quando os recebiam, eram reservados apenas aos primeiros anos de vida, e aos que eram mais bem localizados social e financeiramente. A partir dos três ou quatro anos, as crianças já participavam das mesmas atividades dos adultos, inclusive orgias, enforcamentos públicos, trabalhos forçados nos campos ou em locais insalubres, além de serem alvos de todos os tipos de atrocidades praticados pelos adultos, não parecendo existir nenhuma diferenciação maior entre elas e os mais velhos (2007, p. 151)
A cena do cinturão, portanto, confirma essa visão da infância como um período em que a criança não é tomada como sujeito de sua própria existência, ponto de vista que autoriza a imposição da vontade dos adultos e, portanto, da violência do pai, como se viu na cena descrita anteriormente. Tal concepção pode ser vista em trechos como: “Datam desse tempo as minhas mais antigas recordações do ambiente onde me desenvolvi como um pequeno animal” (Ramos, 2015, p. 12) e “Batiam-me porque podiam bater-me, e isto era natural (Ramos, p. 31). Aqui se vê como na memória do narrador a violência sofrida no período da infância é assimilada como algo natural, o que se acentua devido à comparação da criança com um pequeno animal a ser ensinado e castigado.
Com a vida regada pela severidade, pelo autoritarismo e pela violência, era normal que o entusiasmo e a gentileza demonstrados pelo pai, com relação às cartilhas, gerassem desconfianças. O pequeno se deixa, então, “persuadir, sem nenhum entusiasmo, esperando que os garranchos do papel me dessem as qualidades necessárias para livrar-me de pequenos deveres e pequenos castigos” (Ramos, 2015, p. 110). Convencido de que deve investir na postura de mestre, o pai se empenha nas lições, mas “não tinha vocação para o ensino” (Ramos, p. 111). E a experiência daquela tentativa de alfabetização caseira “foi um desastre”. As lições aconteciam sob ameaça de um côvado: “Um pedaço de madeira, negro, pesado, da largura de quatro dedos.” (Ramos, p. 111).
A linguagem usada para caracterizar a relação do menino Graciliano com a escrita é reveladora de como seria o processo de formação leitora daquela criança. As lições eram sessões de tortura, “um inferno” e “um suplício”, “uma escravidão imposta” dia e noite. Longe das lições, era impossível esquecê-las, porque as mãos, surradas pela palmatória, “inchavam, as palmas vermelhas, arroxeadas, os dedos grossos mal se movendo. Latejavam, como se funcionassem relógios dentro delas” (Ramos, 2015, p. 113). Cada nova visão dos folhetos escritos prenunciava o suplício mental e físico, a cabeça esvaziava,
os braços esmoreciam - e entre bocejos e cochilos, gemia a cantiga fastidiosa que Mocinha sussurrava junto a mim. Queria agitar-me e despertar. O sono era forte, enjoo enorme tapava-me os ouvidos, prendia-me a fala. E as coisas em redor mergulhavam na escuridão, as ideias se imobilizavam (Ramos, 2015, p. 111).
O ensino persistente e impositivo é mantido por algum tempo, aos berros e pancadas, mas o resultado não se alterava. Finda a tortura doméstica, que resulta na desistência do pai, tem início a institucionalizada.
A FORMAÇÃO DO LEITOR
O menino chega à escola, o que para ele se revela uma injustiça, pois esse era o lugar para onde, “em momentos de zanga” ameaçavam mandá-lo. Na visão do narrador, a escola era um lugar horrível, uma prisão. Um castigo atribuído às crianças rebeldes. Ele, então, considera-se um injustiçado, já que, em todos os momentos de violência e agressões, só lhe restava medo e resignação. Mas, não há como resistir, e para a escola ele vai “mole e resignado, rês infeliz antevendo o matadouro” (Ramos, 2015, p. 119).
A escola para a qual Graciliano é mandado, no entanto, surpreende. A imagem do professor velho e barbudo que povoava suas lembranças, como citamos na primeira seção deste artigo, logo se dissipa quando entra em cena D. Maria. A professora baixinha e gordinha seria um hiato na vida escolar do pequeno, que achava “impossível manter-se um vivente naquela serenidade” (Ramos, 2015, p. 122). A professora nunca se exaltava, jamais mostrava-se irritada e de modo algum usava de ameaças.
Mas a paciência, o carinho e a dedicação da professora em nada aproximaram o menino dos deveres da escola. Ao narrar suas memórias, ele não sabe precisar ao certo quanto tempo passou nesse ambiente fraterno e acolhedor, mas durante todo esse período: “Os garranchos e a tinta continuaram horrorosos, apesar dos esforços de Sinhá, mas o folheto de capa amarela foi vencido rapidamente” (Ramos, 2015, p. 127), diferente do que acontecia em casa, quando o contato com o folheto amarelo não mostrava nenhuma evolução.
Podemos dizer ainda, de acordo com Louro (1997), que tal relação mais afetuosa com a professora também é característica de uma visão da mulher como figura importante dentro do contexto de uma necessidade de escolarização do Brasil no período entre o fim do século XIX e início do século XX. A identidade conferida socialmente à mulher naquele período favorece a sua entrada na profissão do magistério, tendo em vista que ela reuniria as vantagens biologicamente dadas para instruir e cuidar das crianças, pois “eram melhores que os homens para ensinar, por causa de suas habilidades afetivas e sua maior sensibilidade, associadas à extensão de sua função maternal” (Chamon, 2005, p. 119). Na cena do livro, tal afetividade contribui para uma relação, como vimos, de maior engajamento do narrador, mas não é o suficiente para fazer com que ele avance na aprendizagem. Cabe aqui uma ressalva, tendo em vista que a profissão docente não deve se eximir da afetividade na relação com os alunos, porém, não podemos perder de vista o fato da docência ser uma profissão. Por isso, nunca é demais lembrar que não se tratam de “tias” ensinando seus alunos, como destaca no título de um de seus livros o educador Paulo Freire. Contudo, é ele mesmo que irá citar o amor como um dos elementos necessários à profissão, porém um “amor armado”, pois o autor não acredita que “[...] sem uma espécie de ‘amor armado’, como diria o poeta Tiago de Melo, educadora e educador possam sobreviver às negatividades de seu que-fazer” (Freire, 1997, p. 38).
Na sequência da narrativa o pai recebe da professora um bilhete solicitando um segundo livro, que ele vê com satisfação. Em pouco tempo, o menino tem em mãos “um grosso volume escuro, cartonagem severa” (Ramos, 2015, p. 129), um exemplar que tem na capa a imagem carrancuda do Barão de Macaúbas, figura pedante que “manchava o frontispício do livro” (Ramos, 2015, p. 130). O recurso didático não alterou a relação da criança com a leitura. Preguiça, desânimo, enjoo é o que causam nele os contos, as fábulas e os apólogos monótonos e sem sentido que encontra no livro.
Estudos revelam que, durante muito tempo, a língua escrita era ensinada sem muita reflexão e as propostas eram aplicadas seguindo cartilhas com exaustivas atividades de repetição nas escolas brasileiras. Na primeira série, os alunos passavam o ano letivo aprendendo letras, sílabas e palavras. Quando a proposta era a produção de textos, estes eram artificiais, sem sentido e não correspondiam aos textos com os quais os alunos tinham contato fora da escola. Dessa forma, pontos cruciais para que a alfabetização se realizasse eram desconsiderados, como o fato de a escrita precisar “ser sempre permeada por um sentido, por um desejo, e [implicar] ou [pressupor], sempre, um interlocutor” (Smolka, 1988, p. 69).
Ao que tudo indica, essa interlocução na escola era praticamente inexistente, pois aos alunos cabia apenas o papel passivo de ouvir, copiar e silenciar anesteticamente, como desabafa Graciliano:
O lugar de estudos era isso. Os alunos se imobilizavam nos bancos: cinco horas de suplício, uma crucificação. Certo dia vi moscas na cara de um, roendo o canto do olho, entrando no olho. E o olho sem se mexer, como se o menino estivesse morto. Não há prisão pior que uma escola primária do interior (Ramos, 2008, p. 68).
Nesse contexto, vazio de interlocução, como esperar que as crianças chegassem ao final dos primeiros anos da vida escolar plenamente alfabetizadas se elas aprendiam apenas a escrever, “mas não a dizer - e sim, repetir - palavras e frases pela escritura”. (Smolka, 1988, p. 112).
Até o final dos anos de 19801, o contexto educacional brasileiro, no que se refere à alfabetização, pouco mudou. As práticas de leitura e de escrita na escola eram artificiais. As crianças aprendiam a ler e a escrever palavras, frases soltas e pseudotextos. A ênfase do ensino era na memorização. As práticas de avaliação, por sua vez, eram perversas, valorizavam os erros e serviam apenas para medir a aprendizagem e classificar os alunos em aptos e não aptos a progredirem no ensino. Como resultado, grande parte das crianças acabavam retidas nas primeiras séries do ensino fundamental, ou desistiam da escola. Realidade que a obra do autor de Vidas Secas soube transcrever com maestria.
Algum tempo depois, a família Ramos muda para Alagoas. Lá, o menino é matriculado em uma escola pública e se reencontra com o Barão de Macaúbas. A nova escola se revela, desde cedo, o lugar insólito e cruel que o menino vislumbrara antes de ter contato com a meiga D. Maria. Agora, a palmatória era usada com ou sem motivos e ele se mantinha esquivo, quieto e encolhido, facilmente passando despercebido e “no encolhimento e na insignificância, os livros fechados, embrutecia-me em leves cochilos, quase só” (Ramos, 2015, p. 182). Só não sofria mais que Adelaide, a prima que aguentava calada todos os tipos de tortura por parte da rude professora, homônima à anterior, mas que não gozava da mesma meiguice. A Maria da nova escola era o pai em versão feminina. Rude e desumana, destilava toda a maldade sobre a indefesa Adelaide.
Vieram outras escolas e novos professores. Alguns displicentes e indiferentes, como o mestiço que, aos olhos do menino, era um tipo medíocre. Um estrupício (Ramos, 2015). Outros, no entanto, se mostravam desde cedo tão ou mais violentos que Maria do O. Mas, dentre muitos, surge D. Agnelina, a professora atrasada, de uma escola ruim, mas com um talento que, ao que tudo indica, altera definitivamente o contato daquela criança com o universo da ficção e, por extensão, com a leitura literária. A professora, nas lembranças do memorialista, “possuía um raro talento para narrar histórias de Trancoso. Visitava-nos, prendia-nos até meia-noite com lendas e romances, que estirava e coloria admiravelmente. Nada me ensinou, mas transmitiu-me afeição às mentiras impressas” (Ramos, 2015, p. 212). A narração oral da professora põe a criança em contato com a literatura de um modo que a literatura escrita no papel não pudera fazer, visto que a condição para este momento de contato com as obras literárias, a decifração do próprio código escrito, ainda não havia sido vencida completamente.
A respeito desse trabalho com a literatura em sala de aula, cabe citar Rildo Cosson (2022), autor que elenca três etapas que julga fundamentais para que na escola se ponha em prática o que chama de letramento literário. O primeiro deles é esse contato direto com as obras, a leitura dos textos; o segundo seria o momento de uma interação por meio de uma atitude responsiva do leitor, ou seja, de uma interlocução entre o que está escrito e o universo do leitor; a terceira etapa estaria ligada à interpretação do texto por meio de uma atividade concreta que propusesse a criação de uma comunidade leitora dentro da sala de aula. Nesta última etapa, poderiam ser compartilhadas as diferentes experiências proporcionadas pela leitura do texto literário e teríamos assim, portanto, uma chance de enxergar as coisas de modo diferente, a partir de outras perspectivas. A proposta de Cosson, em grande parte influenciada pela perspectiva do filósofo russo Mikhail Bakhtin é importante para pensarmos a formação do leitor literário em Infância, uma vez que o contato com a obra se dá (a criança lê histórias nos compêndios fornecidos pela escola), porém não os consegue decodificar e contribui para isso a distância entre as narrativas oferecidas e o contexto da criança. Não se concretiza, no caso do ensino de leitura retratado no livro de Graciliano, o que Cosson pontua como aquilo que mais interessa na experiência com o texto literário: “[...] que a obra seja significativa para o leitor e que no encontro pessoal que trava com o texto ele possa construir um sentido literário para o que está experienciando por meio da leitura” (Cosson, 2022, p. 24).
Diante disso, cabe à professora D. Agnelina agir de modo diferente ao narrar oralmente as histórias e, podemos supor, adaptá-las, explicar a linguagem, realizar um trabalho de aproximação entre um texto e seu leitor. A audição das histórias narradas pela professora, ao que tudo indica, coloca aquela criança diante de uma situação nunca antes vivida, a contação de histórias, que marca, em muitos contextos, a figura materna. Assim como o pai de Graciliano, a mãe era uma criatura severa, “uma senhora enfezada, agressiva, ranzinza [com] boca má, olhos maus que em momentos de cólera se inflamavam com brilho de loucura” (Ramos, 2015, p. 16). Ou seja, não há entre mãe e filho uma relação afetuosa. A figura materna se revela na atitude de dona Agnelina.
Em uma pesquisa desenvolvida na França, a socióloga Michèle Petit verificou que o gosto pela leitura, muitas vezes nasce desse contato. Ou seja: “Antes do encontro com o livro, existe a voz materna, ou em alguns casos, paterna, ou ainda em certos contextos culturais da avó ou de uma outra pessoa que cuida da criança, que lê ou conta histórias” (Petit, 2012, p. 58). Essa “voz materna” parece ter sido o gatilho para despertar o interesse do narrador de Infância pela literatura, não sendo, no entanto, definitivo. O contato significativo com a leitura literária acontece, mesmo, após uma situação vivenciada com o pai, seguida de uma decepção. Após ter sido submetido a uma leitura em voz alta pelo pai, o menino percebe que lê de forma arrastada e que não compreende o que está lendo. O pai, então, interrompe a leitura e o que se passa vale a citação.
Explicou-me que se tratava de uma história, um romance, exigiu atenção e resumiu a parte já lida. Um casal com filhos andava numa floresta, em noite de inverno, perseguido por lobos, cachorros selvagens. Depois de muito correr, essas criaturas chegavam à cabana de um lenhador. Era ou não era? Traduziu-me em linguagem de cozinha diversas expressões literárias. Animei-me a parolar. Sim, realmente, havia alguma coisa no livro, mas era difícil conhecer tudo (Ramos, 2015, p. 207).
A situação parece confirmar os achados da pesquisa citada por Petit, quando a pesquisadora francesa defende que o contato com a literatura tem sentido quando resulta de um encontro acolhedor. A história comentada pelo pai se fixa na cabeça do menino Graciliano, que dorme embalado pelas lembranças da aventura vivida pela família. Na noite seguinte, o pai repete o pedido e, assim, acontece uma nova leitura, ainda arrastada, seguida de explicações. Na terceira noite, veio a surpresa. Já envolvido com o enredo, a criança espontaneamente pega o livro, mas o pai se revela indiferente e a deixa só, com o desejo de compartilhar a continuidade da história. Nas palavras do pequeno leitor, foi uma decepção incompreensível. “Era como se tivesse descoberto uma coisa muito preciosa e de repente a maravilha se quebrasse. E o homem que a reduziu a cacos, depois de me haver ajudado a encontrá-la não imaginou a minha desgraça” (Ramos, 2015, p. 208).
Resignado como de costume, mas decepcionado como nunca esteve, o menino desabafa com a prima Emília que o desafia a arriscar a leitura sozinho. No afã de convencê-lo, a prima levou-o a pensar nos astrônomos. Se estes eram capazes de ler o céu e enxergavam coisa tão distantes, “por que não conseguiria eu adivinhar a página aberta diante dos meus olhos? Não distinguia as letras? Não sabia reuni-las e formar palavras?” (Ramos, 2015, p. 209). A indiferença do pai e o desafio de Emília são providenciais. Nasce um leitor. Não seria ele como os astrônomos, “não desvendaria os segredos do céu. Preso à terra, sensibilizar-me-ia com histórias tristes, em que há homens perseguidos, mulheres e crianças abandonadas, escuridão e animais ferozes” (Ramos, 2015, p. 210, grifo nosso).
Os episódios anteriores foram definitivos na vida do pequeno Graciliano. A partir deles, o narrador de Infância se descobre leitor e o contato com a ficção se revela um prazer nunca antes experimentado. Ao final da história do casal de fugitivos e dos lobos, ele deseja ter contato com outras aventuras. “Eu precisava ler, não os compêndios escolares, insossos, mas aventuras, justiça, amor, vinganças, coisas até então desconhecidas” (Ramos, 2015, p. 229, grifos nossos).
Mas onde encontrar livros?
Na biblioteca do tabelião Jerônimo Barreto. Movido pela vontade e com uma coragem jamais imaginada, o pequeno leitor bate à porta daquele que ele julga ser o proprietário de grandes personagens, que deviam provocar nele tanto ciúme como o que teria dos exemplares onde elas habitavam. No entanto, o desejo falou mais alto e com o desaparecimento inexplicável da timidez habitual. “Expressei-me claro, exibi os gadanhos limpos, assegurei que não dobraria as folhas, não as estragaria com a saliva” (Ramos, 2015, p. 231). Para sua surpresa, o tabelião é receptivo. Abre a estante e lhe entrega sorrindo um exemplar de O Guarani.
O que se desenrola a partir desse encontro é a descoberta de uma nova vida. A biblioteca do tabelião é a porta de acesso para a ampliação do seu repertório de leitura. “Em poucos meses li a biblioteca de Jerônimo Barreto. Mudei hábitos e linguagem” (Ramos, 2015, p. 235). Destacamos aqui o ambiente da biblioteca do tabelião para pensar na importância desse espaço dentro da escola. A pesquisadora Silvia Castrillón, ao discutir o direito à leitura, aponta que
Em primeiro lugar, é para a educação que se deve dirigir a maior parte dos esforços e, em segundo, são as bibliotecas os meios para a democratização do acesso, desde que nelas se produzam, também, importantes transformações” (2011, p. 22).
Castrillón defende que o discurso a favor da leitura é muito difundido socialmente, mas que as ações concretas para garantir esse direito são escassas. Daí decorre sua insistência em conceber as bibliotecas como espaços a serem utilizados pelas escolas de modo a proporcionar aos alunos aquilo que esse espaço simbolizou para o narrador de Infância: a descoberta de uma relação com a leitura. Ainda sobre o tema, a autora afirma a necessidade de políticas públicas de incentivo à constituição e manutenção das bibliotecas escolares, o que nos faz lembrar de projetos federais como o Programa Nacional Biblioteca na Escola, cujo objetivo era o de selecionar obras literárias e disponibilizá-las para bibliotecas de escolas públicas2.
Freire corrobora este ponto de vista:
É evidente que a questão fundamental para uma rede de bibliotecas populares, ora estimulando programas de educação ou de cultura popular (de que fizessem parte atividades no campo da alfabetização de adultos, da educação sanitária, da pesquisa, do teatro, da formação técnica, da política em suas relações com a fé), ora surgindo em resposta a exigências populares provocadas por um esforço de cultura popular, é política (2009, p. 35).
Embora discutindo o tema sob a perspectiva do ensino de jovens e adultos, Freire concorda com o argumento de Castrillón ao apontar a questão como sendo de natureza política. Como se tem mostrado ao longo da análise das cenas de Infância, a experiência, embora de foro íntimo, se dá dentro de uma vivência social do aprendizado da leitura, da relação com a escola, com os professores e, também, com a família. Tudo isso demonstra que o compromisso com a formação de leitores perpassa todo um ecossistema social e que depende, fundamentalmente, de uma visão de mundo que compreenda a leitura como um direito humano.
Agora em novo colégio, o adolescente Graciliano não se frustrava com a solidão. O isolamento era providencial, pois dava a ele a liberdade de entregar-se à literatura. Enquanto os colegas de classe decoravam nomes de rios e capitais, ele vivia neles. Quando era ridicularizado pelos caixeiros do comércio do pai, ou quando era humilhado pela mãe, não se importava mais. Ninguém mais o atingia, porque, confessa: “A única pessoa real e próxima era Jerônimo Barreto, que me fornecia a provisão de sonhos” (Ramos, 2015, p. 235).
Em A arte de ler, ou como resistir à diversidade, Michèle Petit apresenta o resultado de diversas pesquisas sobre experiências com leituras em espaço nos quais a literatura se revela como possibilidade de acolhimento da dor e do sofrimento, de partilha de conhecimento, de resgate da liberdade, de reconstrução da vida. Isso ocorre, segundo a antropóloga francesa, “porque quando aí se penetra, torna-se mais hábil no uso da língua; conquista-se uma inteligência mais sutil, mais crítica; e também torna-se mais capaz de explorar a experiência humana, atribuindo-lhe sentido e valor poéticos” (2012, p. 29), que é, em grande medida, o que ocorre com o jovem Graciliano.
Petit nos ajuda a refletir sobre os efeitos que a literatura provoca no leitor que se constitui em Infância. Pelos relatos memorialísticos que nos apresenta, parece que ocorre com ele o que Petit evidenciou em seus estudos por vários países, ou seja, a literatura é uma forma de acesso ao conhecimento e à informação, mas também um caminho para amenizar a dor, elaborar o sofrimento, reconstruir a vida.
Ao final da narrativa memorialística de Graciliano Ramos, ainda nos deparamos com um leitor resistente à leitura literária exigida pela escola, que ele definia como “literatura encrencada” e cujo expoente maior era Coelho Neto. Essa não lhe servia, pois lhe provocava sono e bocejos. Como ele mesmo confessa: “Não me importava a beleza: queria distrair-me com aventuras, duelos, viagens, questões em que os bons triunfavam e os malvados acabavam presos ou mortos” (Ramos, 2015, p. 248). E foi assim, entregue ao prazer e à segurança de uma recepção calorosa dos personagens que amava, que ele se entregava à leitura dos folhetins e “viajava com eles em diligência pelos caminhos da França”, até se encontrar, ao final do seu relato, com leituras tão significativas e apaixonantes como aquelas com as quais ele brinda a nós, seus, agora, humildes leitores.
CONCLUSÕES
Ao final da análise, foi possível perceber o modo como a experiência de formação do leitor em Infância está marcada pela instituição escolar como um espaço de exclusão e de violência. Como fatores que contribuem para isso estão o despreparo da escola para lidar com os sujeitos das camadas sociais mais desfavorecidas, que passam a frequentá-la a partir do período de democratização instaurado pela República. Outro elemento que auxilia nesse afastamento é a rigidez desse ambiente, herdada do ensino jesuítico, e que constitui a sala de aula como um ambiente no qual as subjetividades precisam ser anestesiadas.
Na narrativa de Graciliano Ramos foi também possível identificar o modo como a própria infância é representada como um espaço de violência e traumas. A perspectiva da criança como um ser sem voz, um não sujeito, é marcada pela naturalização das agressões sofridas pelo narrador e pela própria consciência dele a respeito de sua animalização diante da estrutura social da qual faz parte.
Por fim, englobando as demais análises a respeito da infância e da escola, a formação do leitor na obra Infância é marcada por um constante afastamento entre a criança e a leitura, principalmente dentro dos espaços institucionais onde poderia se esperar o contrário. As cenas em que se esboça uma possível relação com a leitura, seja pelo pai, seja por uma das professoras, apenas confirma a regra já compreendida desde cedo pelo menino, a leitura terá de ser vivida de modo clandestino. E é isso o que ocorre quando o narrador encontra a biblioteca do tabelião Jerônimo Barreto.
A leitura de Infância, portanto, serve como uma forma de olhar criticamente para a formação de leitores e o ensino de leitura no Brasil a partir dos elementos aqui problematizados. Afinal, a escola de hoje exclui ou inclui as subjetividades? A concepção de infância que hoje circula socialmente a considera como um sujeito com voz, um sujeito que constrói culturas? E, por fim, quais ações estão sendo postas em prática a fim de formar leitores em nosso país? Perguntas que ficam a partir daquilo que um texto literário faz de melhor: causar-nos incômodos.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
22 Set 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
02 Abr 2025 -
Aceito
08 Jun 2025
