Resumo
Este artigo examina o discurso polêmico à luz da Análise do Discurso de linha francesa, com base na repercussão de um cartaz elaborado por alunas do ensino médio de uma escola estadual em Sorocaba. A polêmica é analisada a partir de materiais que delineiam duas posições-sujeito antagônicas. A posição criticista aparece no cartaz, em nota de apoio da OAB, APEOESP e APROFFESP de Sorocaba e em reportagens jornalísticas. A posição policialesca manifesta-se em uma página do Facebook favorável à Polícia Militar (Sargento Alexandre) e em nota de repúdio e esclarecimento da corporação. O estudo revela que, apesar do antagonismo aparente, o cartaz apresenta, sob a forma de ato falho, indícios de convergência com valores da posição policialesca.
Palavras-chave:
Análise do Discurso; Ato falho; Discurso polêmico; Inconsciente; Sintaxe
Abstract
This article examines polemical discourse through the lens of French Discourse Analysis based on the repercussions of a poster created by high school students from a public school in Sorocaba, Brazil. We analyze the controversy through materials that outline two antagonistic subject positions. The critical position is evident in the poster, in a note of support issued by the OAB, APEOESP, and APROFFESP of Sorocaba, and in journalistic reports. The policing-oriented position is manifested in a Facebook page supportive of the Military Police (Sgt. Alexandre) and a note of repudiation and clarification issued by the corporation. The study reveals that, despite the apparent antagonism, the poster-at the center of the controversy-shows, in the form of a Freudian slip, signs of convergence with values of the policing-oriented position.
Keywords:
Discourse Analysis; Controversial discourse; Failed act; Syntax; Unconscious
Resumen
Este artículo examina el discurso polémico desde la perspectiva del Análisis del Discurso de línea francesa, a partir de la repercusión de un cartel elaborado por alumnas de educación secundaria de una escuela pública en Sorocaba, Brasil. La polémica se analiza con base en materiales que delinean dos posiciones-sujeto antagónicas. La posición crítica se manifiesta en el cartel, en una nota de apoyo emitida por la OAB, APEOESP y APROFFESP de Sorocaba, así como en reportajes periodísticos. La posición policial se expresa en una página de Facebook favorable a la Policía Militar (Sargento Alexandre) y en una nota de repudio y esclarecimiento emitida por la corporación. El estudio revela que, a pesar del antagonismo aparente, el cartel, centro de la controversia, presenta, en forma de acto fallido, indicios de convergencia con los valores de la posición policial.
Palabras clave:
Análisis del discurso; Discurso polémico; Acto fallido; Sintaxis; Inconsciente
1 INTRODUÇÃO
Como disciplina de interpretação, a Análise do Discurso (doravante AD) vem contribuindo, desde o final dos anos 1960, com a reflexão sobre o sentido. Seu modus operandi exige três instâncias indissociáveis no ato interpretativo: o sujeito, o discurso e a história. Em que pesem as várias articulações conceituais possíveis, dois princípios são inegociáveis: o antiempirismo e o anti-humanismo. Por eles, o sujeito não é o indivíduo, a língua não é instrumento (de comunicação, de convencimento etc.) e a história não é registro de fatos (Magalhães; Kogawa, 2019).
Esses dois princípios têm uma razão teórica, mas também prática. Teoricamente, o sujeito, sob a ótica do anti-humanismo e do antiempirismo, desvencilha-se, como categoria, do idealismo da “vontade consciente”; o texto não é apenas transmissão de um pensamento (do autor, por exemplo) ou de um estratagema dirigido de convencimento; a história não é a pura descrição da verdade, mas guarda sempre um ponto de vista. Em sentido prático, anti-humanismo e antiempirismo tornam a AD um dispositivo de diagnóstico textual para a crítica dos sistemas de valores e crenças de um determinado momento histórico.
Para este fim, o virtuosismo descritivo acompanha a interpretação, ou seja, só se interpreta após a composição e a descrição de um corpus, algo que Freud já defendia ao fundamentar a Psicanálise, uma das bases da AD: “Uma inclinação racionalista ou talvez analítica se opõe, em mim, a que eu seja comovido por algo e não saiba por que o sou e o que me comove” (Freud, 2012b, p. 374). Com efeito, a AD investiga a partir de indícios, de traços do que escapa à consciência. É quando nos deparamos com um “não foi isso que eu ou ele quis dizer” ou um “não é bem assim”, que nosso trabalho começa. Em consonância com esse princípio, alguns tipos de discurso apresentam maior oportunidade analítica que outros. No contexto atual das polêmicas recorrentes nas redes sociais digitais, o discurso polêmico tem se oferecido constantemente como operador de engajamento por identificação. Simplificando a ideia, é cada vez mais difícil “analisar friamente” um conjunto de formulações sem aderir a um lado ou outro.
A pesquisa do detalhe é algo que vem se consolidando desde a segunda metade do século XIX. Ginzburg denomina essa guinada nas ciências humanas “paradigma indiciário” (Ginzburg, 1989), e Courtine (2011) sugere a relevância desse modelo para o campo da Análise do Discurso. Um dos pontos de apoio para tal articulação está, justamente, em certos conceitos freudianos como o de inconsciente e o de ato falho: “É o próprio Freud a indicá-lo: a proposta de um método interpretativo centrado sobre os resíduos, sobre os dados marginais, considerados reveladores” (Ginzburg, 1989, p. 149).
Nesses termos, é sobre o signo que é preciso trabalhar e, para a análise do discurso polêmico que propomos neste artigo, sobre a língua em sua linearidade sintática. A proposta articula-se à ideia de que “[...] a ilusão pela qual nós nos pensamos como fonte dos nossos pensamentos, das nossas palavras e dos nossos atos tem qualquer coisa a ver com a sintaxe. Para ser preciso, com a existência da sintaxe” (Henry, 2013, p. 165, grifo do autor).
Em sua teorização sobre o ato falho, Freud delineia uma articulação necessária entre o indício - o sintoma, para o psicanalista - e o inconsciente, ou seja, entre o dito - o texto - e a incidência do não percebido. No discurso polêmico, efetivamente, opera a naturalização de um embate entre duas “consciências1“, ou seja, entre duas posições irredutíveis que procuram superar, deslegitimar, subjugar a outra. Quanto mais o debate se intensifica, mais o detalhe se torna sintomático. Uma vez que o discurso polêmico produz certezas entre consciências - cada posição “sabe exatamente” do que fala e “diz exatamente” o que quer dizer contra a posição adversa -, o inconsciente “inexiste” aí.
Delineia-se, então, neste texto, uma dupla tarefa. Por um lado, é preciso descrever sistematicamente a materialidade do dizer sob a égide do linguístico, mais particularmente, do sintático. Por outro lado, é preciso deixar o campo das evidências, em que a língua seria problematizada em seus “erros gramaticais”, e procurar o que escapa à consciência. É aí que o conceito de ato falho, notadamente, em seu desenvolvimento enquanto lapsos verbais de leitura e escrita, se faz relevante, pois “[...] o ato falho é a representação do conflito entre duas inclinações incompatíveis” (Freud, 2014, p. 82).
2 O DISCURSO POLÊMICO FORJA A TRANSPARÊNCIA DO TEXTO E ELIDE O DETALHE
Em setembro de 2015, um trabalho escolar sob a forma de banner foi afixado no saguão de entrada da E. E. Aggêo Pereira do Amaral, em Sorocaba, interior de São Paulo, como resultado das discussões das aulas de Filosofia. O cartaz2 é composto por uma parte textual, com elementos típicos de um projeto de pesquisa (Introdução, Discussão, Metodologia etc.), e outra visual - uma charge crítica de Lattuf3. A charge foi “[...] publicada em 2013, quando a Câmara Municipal de São Paulo votou um projeto de lei concedendo a homenagem ‘Salva de Prata’ às Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA)” (Bellini, Portal G1, 17 set. 2015 4).
Este trabalho específico, intitulado Violência policial, e outros banners que fizeram parte de uma exposição na escola foram fotografados e as imagens postadas no Facebook por um aluno. A postagem “[...] chegou até a PM após a publicação de um aluno viralizar nas redes sociais” (Portal R7, 22 set. 20155). A partir disso, dois textos contrários ao trabalho escolar foram produzidos. No dia 16 de setembro de 2015, a página de Facebook Sargento Alexandre, citada na matéria de Bellini, fez uma postagem com várias fotos dos cartazes. Como texto do post, lemos: “O que essa escola pretende formar? Não vou opinar para não falar a besteira que penso, mas pelo que entendi a polícia, o estado e a população estão errados e os bandidos são coitados e vítimas?6”. No dia 17 de setembro de 2015, a Polícia Militar do Estado de São Paulo publicou uma nota de “Esclarecimento e repúdio7” com o cartaz considerado ofensivo - o intitulado Violência policial - ao final. Nessa nota, além da divulgação do nome do professor responsável pela disciplina escolar em que o trabalho foi confeccionado, há críticas à qualidade técnica do cartaz.
No mesmo dia 17 de setembro de 2015, uma matéria do Portal G1, assinada pelo jornalista Jomar Bellini, compila os elementos da polêmica. O longo artigo divide-se em seis seções: (a) “Introdução”, não intitulada, com a imagem do cartaz; (b) “Repúdio”, em que se descreve a posição da PM na nota de “Esclarecimento e repúdio”; (c) “Projeto”, em que se situa o cartaz intitulado Violência policial, de autoria de duas alunas do Ensino Médio; (d) “Outros cartazes”, em que emerge a fala da diretora da escola, Regina Viana, contextualizando o projeto e dando outros esclarecimentos; (e) “Polêmica”, em que um print com as divergências na postagem das páginas intituladas Sargento Alexandre e Admiradores da Rota8 é apresentado e alguns comentários são destacados; (f) “Casos em SP”, em que se menciona um vídeo que registra “[...] um policial jogando Fernando Henrique da Silva de um telhado de uma casa no Butantã depois de ter sido algemado” (Bellini, Portal G1, 17 set. 20159). Por último, a Comissão de Direitos Humanos da OAB, a APEOESP e a APROFFESP de Sorocaba divulgaram uma nota criticando a postura da PM e lançando a #somostodosaggeo.
O material base de nosso corpus, portanto, é composto: (a) pela postagem da página Sargento Alexandre; (b) pela nota de “Esclarecimento e repúdio” da PM; (c) pela reportagem publicada pelo Portal G1; (d) pela nota da OAB, APEOPESP e APROFFESP Sorocaba; (e) pelo trabalho escolar intitulado Violência policial10, replicado em boa parte das textualidades citadas.
Os textos podem ser divididos em dois grupos: “[...] um discurso polêmico é constituído de duas proposições: uma proposição adversa e sua negação” (Robin, 1977, p. 90). De um lado, estão dizeres contrários ao trabalho das alunas, que categorizamos aqui como posição-policialesca. Utilizamos o termo policialesca e não policial para evitar confusão com a posição individual de “um policial”. Por policialesca entendemos uma vigilância que vai além da finalidade prática da instituição policial, ou seja, que extrapola o combate aos crimes tipificados em lei. Nesse sentido, responder a um trabalho escolar é algo que vai além da meta tradicional da polícia. De outro lado, estão dizeres de apoio ao trabalho das alunas, notadamente na mobilização em várias notas de apoio e repúdio com a #somostodosaggeo11, que sintetizaremos pela análise da nota (OAB, APEOESP, APROFFESP Sorocaba) que acompanha o lançamento da hashtag. O material jornalístico é bastante relevante, já que certos dizeres dessa posição podem ser recuperados aí. A essa posição, denominamos criticista. Utilizamos o termo criticista porque, apesar de se pretender uma crítica ao sistema policial brasileiro, a posição reafirma, no cartaz e em seu endosso, esse sistema. Na definição de Dubois (1997, p. 109), o discurso polêmico “[...] é assim construído sobre asserções opostas, negação do enunciado do outro; como incitação à ação, ele comporta também um número importante de performativos (vamos, façamos etc.)”.
A posição policialesca pode ser definida por modalizações que significam a posição oposta - a criticista - pelos efeitos de descrédito - o trabalho é malfeito, mal orientado, parcial, metodologicamente errado e ideologicamente anacrônico - e de incompatibilidade com a função educacional - a escola não está cumprindo seu papel quando promove trabalhos que “criticam” a polícia. Há ainda espaço para uma autoconstrução positivada sob a forma do compromisso com os direitos humanos. A posição criticista pode ser definida por modalizações que significam a posição oposta como autoritária - a PM ameaça a liberdade - e a sua própria como tecnicamente bem fundamentada - apoio e defesa do trabalho, bem como da forma como foi feito. Para Robin (1977, p. 233), as modalizações “Designam os elementos linguísticos que definem a marca que o sujeito falante dá a seu enunciado”. As modalizações podem ser esquematizadas como se segue:
Do lado policialesco, é possível depreender os efeitos de incredulidade e indignação marcados pela “modalidade pragmática” (Robin, 1977, p. 205) em formulações como Não queremos acreditar que..., Não vou opinar para não falar a besteira que penso.... Tais asserções são parafraseáveis, respectivamente, por não é possível que..., é inadmissível que... e Tenho uma opinião radical (violenta?) que não quero/não posso/não devo compartilhar. Além disso, há um efeito de cobrança, sob a modalidade do dever, endereçada às instâncias responsáveis pelo ensino em Cabe à diretoria de ensino, parafraseável por A diretoria de ensino deve.... É possível delimitar ainda o efeito de sentido de descredibilização sob a forma de pergunta retórica em O que essa escola pretende formar?, parafraseável pela afirmativa Essa escola não forma. Aí, formar tem sentido intransitivo recobrindo conferir grau de aluno tecnicamente competente nas matérias formativas básicas (Língua Portuguesa, Matemática etc.). Com o formar há, efetivamente, para a posição policialesca, um jogo entre a expectativa de um ideal (formação “técnica”) e o enfrentamento de um real (formação militante, parcial, ideologicamente anacrônica).
Do lado criticista, emergem os efeitos de sentido de contraste entre liberdade e perseguição. A escola está sendo atacada, perseguida, cerceada pela PM e, nessas condições, não pode cumprir sua função. Enquanto a posição policialesca valora a “má qualidade educacional” como prévia e causadora do trabalho sobre violência policial, em A PM não ameaçará a liberdade de ensinar e Educação se faz com liberdade, a posição criticista instaura o oposto, ou seja, não é possível uma educação de qualidade sem liberdade. É sintomático que a defesa do cartaz - assim como os ataques a ele - ignore o que está escrito nele e substitua a leitura por um apelo emocionado à liberdade. A isso se junta a reivindicação de apoio em torno da modalidade pragmática inscrita em ... lançamos a campanha #somostodosaggeo.
No cenário atual das condições de produção do discurso, os dizeres estão quase sempre inscritos em redes sociais digitais. Nesse espaço, há muitos recursos de engajamento como a curtida, que sugere ao algoritmo um padrão de interesse do usuário, e o compartilhamento, que aumenta o alcance de um conteúdo para outros usuários. Digamos que essas sejam formas mais individualizadas de engajamento. Um outro recurso, de cunho mais massificante, opera desde 2009 na plataforma Twitter - hoje X. Trata-se justamente da hashtag (#), que se espalhou para outras plataformas. Ao inserir o símbolo “jogo da velha” antes de uma palavra ou expressão, o conteúdo tem acréscimo de notoriedade e ganha ainda mais direcionamento. Isso se dá porque, com a hashtag, ocorre uma categorização do conteúdo que leva à criação de centros de interesse. Na esteira dessa categorização, a postagem, tornada link clicável, passa a compor uma rede participativa em que os usuários se engajam como se estivessem em um grande debate público. A #somostodosaggeo inscreve a polêmica em uma grande “praça pública virtual” acessível por um simples clique.
Para nenhuma das posições e modalidades está em xeque o que efetivamente se apresenta como ponto cego do trabalho, característica que se configura, em nossa análise do discurso polêmico, como lapso de leitura (Freud, 2014; 2021). As posições simplesmente rejeitam a adversária e criam um efeito de positividade sobre si próprias - fatores essenciais para o condicionamento interpretativo. O cartaz é um objeto por meio do qual se fala de si e do outro, mas não a meta efetiva da discussão. Quando muito, recorre-se à charge de Latuff, que não é de elaboração atribuível à posição criticista, que apenas a replica. Assim, não é a incompetência técnica que guia a superficialidade como cada uma das posições lê o trabalho - em outras palavras, tanto a PM quanto a escola e os órgãos que a defendem são “competentes” para perceber as nuances ali inscritas -, mas um modo de funcionamento do discurso polêmico que só se sustenta no impensado, no resto, no “isso fala” não descrito. Dito de outro modo, “brigamos pelo/por causa do cartaz, mas a certa altura, o que diz mesmo o cartaz?”
A divergência entre as duas posições - sedimentada como o óbvio, como o esperado para cada uma - solidifica-se ainda em expressões nominais designativas (a) do trabalho/banner, (b) do professor e simpatizantes, (c) da democracia. O quadro 2 sintetiza as duas ordens valorativas:
Para o eixo (a) trabalho/banner, emerge da posição policialesca o efeito de descrédito pelas coocorrências (Robin, 1977) em sintagmas nominais SNs como: Veracidade do material (subentende-se o adjetivo duvidoso), infeliz charge, erro lastimável, ideologias anacrônicas. O apelo à verificação da veracidade do material produz um duplo efeito de sentido: por um lado, de ironia, que acompanha a modalização probabilística citada no Quadro 1 - ... caso efetivamente tenha ocorrido... -, pela qual se evoca a cautela, ainda que, por outros índices, está dado, para a posição policialesca, que o cartaz existe e não cabe verificar sua existência; por outro lado, veracidade acompanha seus antípodas ideologias, pesquisas em internet e matérias jornalísticas, que estariam longe de ser uma metodologia aceitável, o que possibilita o efeito de sentido de que o trabalho é mentiroso, parcial, enviesado.
Acrescentam-se a esse quadro as formas de significar o professor e aqueles com os quais ele se identifica (ou que se identificam com ele). O efeito de sentido de descrédito reaparece acrescido do de inadequação funcional. Erige-se um contraste entre o “professor de verdade” - portador da qualidade de professor que é preciso checar, manter, aprimorar - e o “professor militante”, alinhado a determinados e conhecidos grupos - o grupo de pessoas como Latuff, autor da charge replicada pelos alunos -, o grupo das pessoas parciais. O professor VALDIR VOLPATO, grafado em caixa alta na nota de “Esclarecimento e repúdio”, não seria, por essas expressões nominais, um professor de verdade - de qualidade, imparcial, desvinculado de determinados grupos. Vale destacar que essa posição policialesca dirigida à educação participa de um quadro mais amplo. Um de seus representantes mais icônicos o movimento Escola Sem partido, outra fonte de polêmica que discutimos em Kogawa e Teixeira (2020).
Por fim, a autoimagem positivada emerge em defensora dos direitos humanos e dos deveres morais, éticos e legais da sociedade. Essa estrutura nominal coordenada funciona como resposta a um subentendido e poderia ser complementada por construções como ao contrário do que se diz, diferentemente do modo como a PM é significada em trabalhos escolares parciais etc. Por extensão, a PM está de acordo com, compõe com a democracia e não o contrário. Não é autoritária, mas cumpridora do dever; não é assassina, mas protetora da sociedade.
Em contrapartida, para os mesmos objetos de dizer (o cartaz, o professor/representantes escolares e democracia), a posição criticista organiza-se por uma série de expressões nominais credibilizantes. Para o cartaz, emerge o efeito de fundamentação contra a acusação de estar metodológica e gramaticalmente malfeito: trabalhos baseados na obra Vigiar e Punir, que é leitura obrigatória para o estudo da filosofia, (Diretora Regina Viana) dentro da obra do Foucault, (Estudante secundarista) com base em análise de jornais e no livro “Vigiar e Punir”. Isto é, não se trata de um trabalho de má qualidade fundamentado apenas em pesquisas em internet, mas em uma referência bibliográfica consagrada academicamente. Além disso, no lugar de trabalho, depreendemos a forma trabalhos, no plural, que produz um efeito de distorção que teria sido gestado nas redes sociais digitais. O plural distensiona a ênfase colocada, polemicamente, em um único cartaz, aquele destacado na/pela mídia, pela nota da PM e pela postagem de Facebook de páginas pró-PM, intitulado Violência policial - que contém a charge de Latuff com a face da polícia militar (Rota) com o rosto de uma caveira.
As expressões liberdade dos estudantes, liberdade de cátedra, integridade da comunidade escolar, firmeza da direção e dos professores põem em funcionamento um efeito de protecionismo: aqui a PM não entra, aqui a PM não tem jurisdição, a escola é “território sagrado” enquanto produtora de conhecimento. Por essas construções, o professor e a comunidade escolar ocupam o lugar de atacados. Essa ideia não é específica da posição criticista, pois a nota da PM também se vale do lugar de vítima quando recorre à expressão discurso de ódio para qualificar o cartaz das alunas. Parece funcionar aí uma espécie de lugar comum no discurso polêmico contemporâneo: reivindicar o sentido de vítima.
Por último, novamente, o sentido da democracia. Enquanto a posição policialesca se apresenta como defensora da sociedade, a criticista a constrói como ameaça à democracia. As ações persecutórias da PM seriam, assim, inadmissíveis. Desdobrando a estrutura inadmissível num estado democrático de direito temos, notadamente pela coocorrência entre o indefinido num e o SN estado democrático de direito, um efeito de generalidade. A inespecificidade produz uma generalização pela garantia de princípios e valores mínimos que seriam comuns a toda e qualquer democracia, dentre eles, a autonomia e a liberdade de dizer e pensar do sistema educacional. Num estado democrático de direito pode ser parafraseado por todo e qualquer estado de direito ou ainda todo e qualquer estado que se pretenda de direito. Posto em perspectiva, especialmente pelo paralelo com o trecho do cartaz que afirma que a polícia viola os deveres morais, éticos e legais com ações que contrariam as leis - ao que a nota da PM responde com a estrutura nominal defensora dos direitos humanos e dos deveres morais, éticos e legais da sociedade -, a posição policialesca é a contrapartida do estado democrático de direito e instaura, dessa forma, um estado autoritário, ditatorial.
Esses pontos definem as posições: a policialesca acusa a escola de parcialidade, baixa qualidade técnica e incapacidade para cumprir suas funções; a criticista acusa a polícia de ser autoritária e violenta. Cumpre ressaltar que a análise dessas características visa descrever o funcionamento do óbvio, isto é, do que se espera de cada uma das posições que se rejeitam no discurso polêmico. Tal configuração só é possível com esse grau de radicalidade se ignorarmos certos dizeres do cartaz. O que está em jogo na polêmica é a consciência, o espelho, a paráfrase que cria um efeito de coesão e coerência valorativa. Caricaturando as duas posições sob a égide da consciência, teríamos algo como: “Eu, policial, sendo quem sou, rejeito crenças e valores escolares, mais enfaticamente, aqueles dos quais o cartaz é a prova material”; em contrapartida, “eu, comunidade escolar, rejeito/desaprovo a polícia e suas práticas”. Com isso, cristaliza-se um enunciado-tipo: “Polícia e escola não têm, não querem e não podem ter qualquer coisa em comum”. É isso que cumpre agora descrever e interpretar por meio da análise do banner.
3 PENSANDO A LÓGICA DO RESULTADO: O RESTO INDESEJADO DA POLÊMICA
A imagem do cartaz é insistentemente replicada na maior parte das textualidades analisadas acima. O excesso de reprodutibilidade reforça o ato falho enquanto lapso de escrita e leitura, pois não há, nem na posição criticista, nem na policialesca, qualquer atenção ao detalhe, a saber, à ambivalência inscrita no cartaz, que se perde face à interpretação condicionada pela fixidez das posições. Em outras palavras, quanto mais se reproduz, mais se intensifica o efeito de impensado; a reflexão, no discurso polêmico, torna-se inversamente proporcional à quantidade de vezes a que se é exposto ao texto. A naturalização do excesso que, muitas vezes, banaliza a violência no cotidiano das grandes cidades inscreve-se no cartaz sob a forma da ambiguidade e do encadeamento, no intradiscurso, da duplicação em estrutura de coocorrência com inserção de adjetivo. Assim, por um lado, cabe explicar, como fizemos anteriormente, o cenário da polêmica à luz das diferentes posições que falaram do “trabalho escolar”, mas é preciso descrever os mecanismos que, linguística e paradoxalmente, deixam em aberto o quanto policiais e comunidade escolar compartilham das mesmas crenças, apesar de não haver, no plano superficial da polêmica, marcas disso.
Se descartarmos a charge de Latuff replicada no cartaz, o que pode ser atribuído efetivamente como “de autoria das alunas” é o seguinte:
Introdução: Temos como objetivo neste trabalho, levar a uma reflexão do quanto a polícia viola os deveres morais, éticos e legais com ações que contrariam as leis. Metodologia: Foi trabalhado com base em reportagens pela internet e em jornais. Discussão: Neste trabalho foi pesquisado relatos sobre a questão da violência policial contra a população, que usa a vingança para obter resultados. Conclusão: Os policiais acabam sendo considerados um grande problema na atualidade usando a força física para obter melhores resultados. Fonte: Jornal Estadão; Site Uol; Site Exame; Site Visão Mundial12.
Ao considerarmos o intradiscurso, deparamo-nos com duas formulações nucleares para a apreensão do ato falho sob a forma de lapsos de leitura - “o que nenhuma posição leu” - e escrita - o que a posição criticista do cartaz disse “sem querer”. Consideremos a formulação [1] abaixo:
[1] Neste trabalho foi pesquisado relatos sobre a questão da violência policial contra a população, que usa a vingança para obter resultados.
Trata-se de um período composto por três orações. Em cada oração, ocorre a elisão estrutural do agente. Em cada verbo, a resposta à questão quem? resta incerta. A primeira apresenta verbo na voz passiva com agente elíptico; a segunda, relativa, é introduzida pelo pronome que, cujo preenchimento é dúbio; e a última, adverbial, atrela-se à segunda, modificando o verbo usa com o papel semântico de finalidade. Na voz passiva, é produtiva a topicalização do onde para a posição tipicamente ocupada pelo quem/o que. Esse deslocamento distensiona o lugar do sujeito paciente, tradicionalmente na posição mais à esquerda do período, pela ênfase posta no SAdv.13 (Perini, 2008; 2016).
Na segunda oração, a ambiguidade com o verbo usar na terceira pessoa do singular se dá pela dupla possibilidade de preenchimento do que em função anafórica - o pronome tanto pode retomar questão, quanto violência policial ou população. Na terceira oração, apesar de para obter resultados ser um SAdv., é possível, pelo desdobramento via transformação relativa (Robin, 1977), colocarmos a questão do agente ao verbo obter, ainda que, estruturalmente, nada obrigue esse preenchimento. Dessa forma, quem obteria resultados? (questão, violência policial, população?), uma vez que o agente de usar - estruturalmente ambíguo - é replicável para obter? A descrição visa demonstrar, para além de uma “epistemologia ingênua” (Robin, 1977, p. 23), o alto grau de elisão estrutural no discurso polêmico, que opera com confirmações do já aceito por posições ideológicas fixas.
Em outras palavras, tanto para a posição policialesca quanto para a posição criticista instauradas pelo discurso polêmico nas textualidades do corpus, o que teria sido o estopim da controvérsia é estruturalmente ignorado. Conforme observamos, por um lado, a rejeição, do lado ofendido, fixa-se na correção gramatical e na metodologia de pesquisa; por outro lado, a defesa do trabalho apoia-se na “liberdade de expressão”, na “formação crítica”. De nossa parte, o processo analítico da Análise do Discurso permite descrever, justamente, o impensado do pensamento (Courtine, 2009; Henry, 2013; Pêcheux, 1997) de cada um dos lados, a saber, o que consta e é ignorado no cartaz. Isso só pode ser feito pela exclusão das intenções, pois, nenhuma das partes ou mesmo as descrições das matérias jornalísticas estão instrumentadas para esse tipo de análise. Trata-se de um processo descritivo-interpretativo tornado possível justamente pela articulação entre língua e inconsciente.
O inconsciente no discurso polêmico é o que escapa às convicções ou ao sistema de crenças de uma posição dada. Se a polêmica é um embate entre coerências em oposição - cada qual sustentando um sistema inalienável de crenças -, tal ritual não está isento de falhas cuja causa é opaca para os agentes em oposição:
[...] o que falta é essa causa, na medida em que ela se “manifesta” incessantemente e sob mil formas (o lapso, o ato falho, etc.) no próprio sujeito, pois os traços inconscientes do significante não são jamais “apagados” ou “esquecidos”, mas trabalham, sem se deslocar, na pulsação sentido/non sens do sujeito dividido (Pêcheux, 1997, p. 300).
Sujeito dividido justamente entre a crítica e a naturalização da violência que se acredita criticada. Equívoco e silêncio resultam, no discurso polêmico, do que foge ao controle do autor e do leitor embrenhados na disputa. Empenhados em se rejeitar, “esquecem-se” de ler o que esteve o tempo todo aos olhos de todos. O cartaz, nesse sentido, faz a vez da carta roubada descrita por Lacan (1998) na análise de um conto de Poe. Longe de responsabilizarmos autoras e polícia pelo lapso, o objeto analisado demonstra justamente que “O funcionamento do silêncio atesta o movimento do discurso que se faz na contradição entre o ‘um’ e o ‘múltiplo’, o mesmo e o diferente [...]” (Orlandi, 2007, p. 17). Ao descrever a tarefa psicanalítica, Freud afirma que “Cabe explicar as formações sintomáticas notáveis, desvendando sua gênese; os mecanismos psíquicos e processos instintuais a que assim chegamos, esses não cabe explicar, mas sim descrever” (Freud, 2010, p. 140). Em outras palavras, o psicanalista explica o fenômeno perceptivo de uma neurose ou de uma histeria, mas sua tarefa não para aí: a explicação só se completa e se configura como análise quando essas “formações sintomáticas notáveis” são descritas à luz do funcionamento sistemático da psique.
Assim, tomar lado em uma polêmica é uma espécie de “formação sintomática notável” que é preciso descrever e, no nosso caso, não dá para explicar o condicionamento interpretativo a que conduz o discurso polêmico sem passar pela descrição linguística. Se temos, socialmente, uma posição policialesca e uma posição criticista que se batem por um trabalho escolar - e isso ganha notoriedade midiática - não é plausível que analisemos o cartaz?
O senso analítico reduzido no discurso polêmico gera um ponto cego: inconscientemente, adere-se à violência, e isso se apresenta sob a forma de uma “traição”, respectivamente, na discussão e, principalmente, na conclusão do trabalho: “[...] o lapso verbal frequentemente trai opiniões que seriam mantidas em segredo perante o interlocutor” (Freud, 2012a, p. 333). Ausência de agente, ambiguidade estrutural, topicalização do sintagma adverbial e duplicação em estrutura de coocorrência com inserção de adjetivo - esta última, a partir de [2] e seus desdobramentos parafrásticos - não devem ser analisados apenas como “erros de português” ou “de metodologia”, mas pensados à luz do discurso como categoria que reivindica o sujeito e a história. O que passa por “erro” pode significar algo menos óbvio nas condições históricas de formação do discurso e isso exige um olhar para os silêncios inscritos nos textos: “É assim que podemos compreender o silêncio fundador como o não-dito que é história e que, dada a relação (necessária) do sentido com o imaginário, é também função da relação necessária entre língua e ideologia” (Orlandi, 2007, p. 23). Nas palavras de Freud (2014, p. 34), “Não subestimemos, pois, os pequenos indícios; a partir deles, talvez seja possível encontrar a pista de coisa maior”.
O desdobramento do primeiro período pode ser feito como a seguir:
[1.1] Neste trabalho foi pesquisado relatos sobre a questão da violência policial contra a população...
[1.2] ... que usa a vingança para obter resultados.
Ao discutir os procedimentos transformacionais de Harris, Robin (1977) formaliza duas transformações que nos interessam aqui, a saber, a transformação passiva/ativa e a transformação relativa. A primeira se dá da seguinte forma: SN1 + V + SN2 ⟶ SN2 + ser + V + PP + por + SN1; a segunda, como SN1 + QU + V1 + V2 ⟶ SN1 + V. SN2 + V. Em [1.1], a construção (Perini, 2016) pode ser formalizada como SAdv>Locativo + ser + V + PP + SN>Paciente +(. Cabe observar que, além da elisão do agente, há uma inversão na estrutura canônica da construção passiva no cartaz: o SN>Paciente é posposto à estrutura ser + V + PP (foram pesquisados relatos...).
Construções passivas são transformações da voz ativa de uma classe de verbos (Harris, 1969). Antes de passarmos a isso, observemos alguns aspectos da elaboração passiva acima. A função sintático-semântica do SN>Paciente está dada na frase e se identifica pelo termo relatos. O agente da passiva, no entanto, não se realiza sintaticamente, o que permite, discursivamente, um efeito de hesitação na forma de um silêncio: “O silêncio é assim a ‘respiração’ (o fôlego) da significação; um lugar de recuo necessário para que se possa significar, para que o sentido faça sentido. Reduto do possível, do múltiplo, o silêncio abre espaço para o que não é ‘um’, para o que permite o movimento do sujeito” (Orlandi, 2007, p. 13). Posicionalmente, escamoteia-se o polemizador pela presença do adjunto adverbial em início de período. No entanto, a análise mostra que trabalho não é sujeito do período, mas o pesquisador. Quem pesquisou os relatos? Operando a transformação da sentença, o silêncio se apresenta na voz ativa:
[1.3] Neste trabalho, (x) pesquisou relatos...
A voz passiva admite um silêncio que a voz ativa nem sempre permite, a saber, a omissão de quem executa a ação, ou seja, do sujeito. Com efeito, a sentença [1.3] não se sustenta estruturalmente sem o sujeito de pesquisar. Esse modo de significar dissimula, pelo deslocamento do SAdv.>Locativo, o papel do agente. Esse funcionamento do silêncio se dá também em [2], quando nos deparamos com a estrutura acabam sendo considerados, em que não se explicita por quem os policiais seriam considerados um grande problema.
Na segunda parte do período, a oração introduzida por pronome relativo só permite atribuir o agente do verbo usar às custas de uma anomalia sintático-posicional. Retomemos Harris (1969, p. 35, tradução nossa) quanto ao uso desse tipo de pronome: “Quando precedidos de vários nomes, que nome repetem? Isso depende de detalhes do contexto gramatical; geralmente, é o nome que imediatamente os precede ou aquele que figura em um contexto gramatical comparável”14.
O preenchimento do que relativo, no contexto do período analisado, gera efeitos contraditórios dependendo de qual nome será retomado. A questão, no entanto, é que há três SNs possíveis para preenchimento do que, a saber, questão, violência ou o mais provável, tanto pela articulação sintática quanto pela proximidade com o pronome, população. Desdobrando essas possibilidades, chegaríamos às seguintes formulações com que preenchido:
[1.4] a questão usa a vingança...
[1.5] a violência policial usa a vingança...
[1.6] a população usa a vingança...
Se levarmos em conta o padrão de retomada, que estaria sintaticamente no lugar de população, tanto pela proximidade, quanto pela adequação semântica à valência de usar. Em geral, usar, no sentido instrumental, é um verbo que demanda agente animado e cognitivamente capaz. Das três possibilidades do período - os SNs a questão, a violência policial e a população -, o último é o mais plausível na posição de agente do verbo usar. Poderiam nos objetar que a questão não é um SN válido porque o SN total seria a questão da violência policial. Para tal, teríamos de admitir que a questão da... seria agente de usar, o que não funciona. Por exclusão, o mais plausível, sintática e semanticamente, é que o sujeito de usar retomado pelo relativo é população, o que está em franca contradição com a posição criticista. Esse “inconveniente estrutural” é superado, no discurso polêmico, pelo recalque do material linguístico. Para a posição criticista, isso é impensado tanto quanto para a policialesca, pois, onde está dito/escrito - lapso de escrita em consonância com o de leitura - a população usa a vingança, lê-se a polícia usa a vingança por aproximação com violência policial. Não sustentamos que é impossível um uso metafórico em que violência policial usa x, mas é uma leitura menos lógica sintaticamente do que a população usa a vingança. Mobilizemos, mais uma vez, a transformação passiva para a explicitação analítica:
[1.7] A vingança é usada pela violência policial.
[1.8] A vingança é usada pela população.
Como usar está no sentido instrumental, não está dado que um substantivo abstrato seja automaticamente, sem algum apelo metafórico, seu agente. Isso para não falar do argumento da proximidade sintática que, geralmente, orienta a retomada do elemento anterior. A análise para o verbo usar vale também para obter (quem ou o quê obtém resultados?):
[1.9] a questão obtém resultados com a vingança.
[1.10] a violência policial obtém resultados com a vingança.
[1.11] a população obtém resultados com a vingança.
Aqui, no entanto, a ambivalência é mais complexa, pois, em geral, obter resultados tem uma carga positiva no uso da língua. Faz-se exercícios, investe-se o dinheiro, faz-se a manutenção preventiva do carro, estuda-se etc. para obter resultados, e isso nunca significa valoração negativa. Assim, há uma ambivalência em obter resultados em que é possível entrever a crítica, mas também a reafirmação do que se critica. Essa ambivalência, inscrita na estrutura e apesar das supostas convicções das posições criticista e policialesca, pode ser aproximada - excetuando o fato de que nossa análise não é clínica, mas discursiva - do que afirma Freud (2011, p. 53): “[...] a observação clínica mostra que o ódio é não somente o inesperado acompanhante regular do amor (ambivalência), não apenas o seu frequente precursor nas relações humanas, mas também que o ódio, em várias circunstâncias, transforma-se em amor, e o amor, em ódio”.
Ainda que queiramos ceder ao apelo polêmico, à evidência do que “se quis dizer”, a análise discursiva não pode descartar a ambivalência do enunciado. E isso não apenas porque não se pode reduzir o discurso à “frieza da estrutura linguística”, mas porque outra construção do banner vai na mesma direção da ambivalência. Com efeito, em [2] a seguir, nossa leitura de que algo “[...] se apaga (ou se esquece) no movimento da identificação” (Courtine, 2009, p. 79), tanto para a posição criticista quanto para a policialesca, é reforçada:
[2] Os policiais acabam sendo considerados um grande problema na atualidade usando a força física para obter melhores resultados.
A formulação pode ser analisada em duas partes: a primeira, composta por uma “construção de ação opinativa” (Perini, 2016, p. 102), ou construção “C35: de ação opinativa” (Perini, 2008, p. 386) com verbo na voz passiva; a segunda, uma estrutura de coocorrência no SN obj . com inserção de adjetivo.
A construção de ação opinativa é descrita por Perini (2016, p. 102) como:
SN V SN SAdj ~ SN
(Agente (Coisa qualificada) (Qualidade)
(opinador) Qualificando
Na construção acima, “Opinador é o agente de uma ação mental. Talvez possa ser identificado com o Agente - cf. decidir, que teria sujeito agente; pensar etc. Qualificando é a entidade à qual se atribui uma qualidade. Talvez, em nível mais esquemático, se identifique com o Localizando” (Perini, 2008, p. 386).
Desdobremos [2] em duas estruturas para os dois eixos analítico-sintáticos:
[2.1] Os policiais acabam sendo considerados um grande problema na atualidade...
[2.2] ... usando a força física para obter melhores resultados.
A sistematização de Perini (2008) prevê verbo na voz ativa, portanto, propomos, para melhor visualizar a correlação entre estrutura teórica e realização em nosso corpus, a transformação da voz passiva em voz ativa:
[2.3] x consideram/acabam considerando os policiais um grande problema na atualidade...
Na estrutura com voz passiva, como analisado em [1.1] e seus desdobramentos, o cartaz traz a marca da hesitação, da indefinição. Já apontamos anteriormente as implicações discursivas disso. Acrescentemos, ainda, que a indefinição pode produzir um efeito de sentido de generalização subentendida. A elisão do agente opinador que, na voz passiva, seria marcado sintaticamente pelo agente da passiva, subentende o preenchimento por indefinidos como todos (a opinião pública?), por uma suposta primeira pessoa do plural - nós, autoras do cartaz -, ou por um nós extensivo à posição criticista. A falta do opinador implica, portanto, o subentendido da opinião pública da qual o cartaz seria uma espécie de porta-voz. Trata-se, mais uma vez, do funcionamento do silêncio significativo possibilitado, justamente, pela voz passiva, conforme observado anteriormente. Na construção ativa, não é admissível a elisão do opinador, conforme exposto em [2.3].
O rastreamento desse silêncio é parte da pesquisa dos índices, das pistas de que nos falam Courtine (2011) e Ginzburg (1989). Nos termos de Orlandi (2007, p. 46, grifos da autora), “Quando se trata do silêncio, nós não temos marcas formais, mas pistas, traços”. É justamente disso que se trata na elisão do agente opinador descrita acima: a posição sujeito criticista se universaliza como opinião geral pela justificativa da indignação. A violência policial sobrepõe-se como marca determinante dos policiais, não restando, para eles, senão existir como o rejeitado, em certo sentido, no lado criticista da polêmica.
Dizemos rejeição em certo sentido porque, como defendemos desde o início, as posições opostas no discurso polêmico não se dão conta do quanto podem, inconscientemente, concordar. É o que falta para concluirmos a análise: em [2.2], a ambivalência torna-se evidente, sai do silêncio para ganhar forma. De acordo com Robin (1977, p. 175), “Dizer que A e B são coocorrentes numa frase P vale dizer que A e B se encontram em P”. Comparemos, por essa perspectiva, os enunciados [1.2] e [2.2]. Reproduzimo-los com destaque para facilitar o acompanhamento do leitor:
[1.2] ... que usa a vingança para obter resultados.
[2.2] ... usando a força física para obter melhores resultados.
Se já destacamos que o uso da expressão obter resultados, em nossa língua, tem carga positiva, como interpretar a estrutura com inserção do adjetivo melhores? É aqui que se manifesta o ponto alto da ambivalência e do sujeito dividido. Enquanto as ambivalências anteriores poderiam, à conveniência da identificação, ser interpretadas como “deslizes de gramática ou de texto” (equívoco de uso do relativo) ou “estratégias argumentativas” (elisão do agente da passiva para autopreservação do enunciador, por exemplo), agora, isso dificilmente pode ser cogitado. Não há “erro gramatical”; nem sequer em ambiguidade estrutural é possível falar, pois a ideia da formulação é clara e oposta à “consciência criticista”. Do lado da posição policialesca, por sua vez, não houve qualquer consideração de que, enfim, há algo em que concordam. E é no detalhe que depreendemos a articulação entre sujeito, ideologia, inconsciente e língua: entre obter resultados - que já prevê uma carga positiva - e obter melhores resultados, a coocorrência entre melhores e resultados invoca a contradição do sujeito dividido e faz desmoronar o aparato ideológico da consciência ou da “consciência de classe”.
E isso apesar do que se admite pública e abertamente: nem a posição policialesca - ... defensora dos direitos humanos e dos deveres morais, éticos e legais da sociedade -, nem a criticista - defensora da liberdade - sustentam abertamente a positividade da violência. Trata-se de um impulso inconsciente, de um desejo de morte atrelado à ideologia resultadista própria à nossa sociedade. O protótipo dessa ideia pode ser retomado em Maquiavel, quando este analisa os principados alcançados pelo crime. Ali, donde se pode derivar a paráfrase os fins justificam os meios, o autor nos fala do bom e do mau uso das maldades: “Bem usadas se podem chamar aquelas (se é que se pode dizer bem do mal) que são feitas, de uma só vez, pela necessidade de prover alguém à própria segurança [...]” (Maquiavel, 2015, p. 38).
Vê-se, portanto, que a violência não é exclusiva da polícia, mas um meio para um fim, e isso está dado historicamente, quer assumamos conscientemente, quer deixemos que fale inconscientemente. É importante insistir no fato de que tal processo nem sempre está dado na “consciência”, mas sim na história, na ideologia, no inconsciente, logo, no discurso. O indivíduo feito sujeito não pode, então, ser pensado como uma unidade autorregulada, mas uma posição do discurso. Em nosso corpus, as posições criticista e policialesca passam por cima disso, pois é da ordem do impensado que há uma valoração positiva da violência. Ninguém impôs a presença do adjetivo melhores na estrutura de coocorrência com resultados. Isso nada mais é do que a característica fundante da discursividade, segundo a qual “[...] o sujeito não pode ser pensado no modelo da unidade de uma interioridade, como conexo. Ele está dividido como aquele que sonha, entre sua posição de autor do seu sonho e de testemunha deste” (Henry, 2013, p. 163).
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
No discurso polêmico analisado propusemos, para uma das posições em oposição, a qualificação criticista e, para sua adversária, a designação policialesca. Cada posição reivindica um conjunto de valores e crenças “inerentes a si mesma”. O que nenhuma das posições considera é que, para além desses critérios, mobilizados em função de sua posição de adversárias no discurso polêmico, o motivo da polêmica - o trabalho de duas alunas secundaristas sobre violência policial - apresenta questões menos óbvias que contrariam o que cada posição, “conscientemente”, defende. É esse “menos óbvio” que dá lugar ao ato falho.
Em nosso corpus, por um lado, temos um “jogo de cena” bem construído sob a égide da polêmica: as alunas elaboram um trabalho sob orientação do professor de filosofia criticando a violência policial; a polícia se ofende com o trabalho, considera injusto e contra-ataca o que considera ser ultrajante. Entre as frestas, “na pulsação sentido/non sens do sujeito dividido” - retomando Pêcheux (1997, p. 300) -, emerge “[...] o distúrbio da atenção por parte de um pensamento outro, que pede para ser considerado” (Freud, 2021, p. 182). É “[...] quando alguém, pretendendo dizer uma palavra, diz outra em seu lugar, ou quando isso lhe acontece ao escrever, podendo a pessoa notar ou não o equívoco (Freud, 2014, p. 31-32). A obviedade com que se aceita de antemão que cada posição - a policialesca, de um lado, e a criticista, de outro - só pode ser contrária à outra condiciona a interpretação de modo que, a própria identificação impede a leitura do cartaz. Já que se atribuiu, em linhas gerais, um antagonismo, elide-se o “detalhe”, isto é, a materialidade do texto. A leitura do texto torna-se confirmação de convicções pré-admitidas.
Por essa análise, concluímos que, no corpus, o discurso polêmico deixa um resto, uma ambivalência (Freud, 2011) nos componentes linguísticos do cartaz que foi objeto da polêmica, notadamente na Discussão e na Conclusão. Não lemos ali apenas uma posição absoluta e “consciente” do quanto rejeita a cultura policialesca da sociedade brasileira, mas também os efeitos de uma hesitação e da reafirmação da violência policial. Uma leitura mais atenta de cada lado da polêmica talvez tivesse levado à revisão do banner pelas próprias alunas e ao agradecimento da polícia pelo reconhecimento por sua atuação, apesar da charge de Latuff.
REFERÊNCIAS
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1
Não incorporamos esse termo conceitualmente, mas como descritivo de como cada posição é constituída no discurso polêmico.
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2
O material é analisado mais adiante, mas, para que o leitor possa se familiarizar com o cartaz, segue aqui uma das matérias em que ele foi replicado: https://noticias.r7.com/sao-paulo/pm-se-ofende-com-trabalho-escolar-e-ataca-professor-pela-internet-22092015/ Acesso em: 24 jul. 2024.
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3
Uma análise dessa charge, bem como possíveis encaminhamentos pedagógicos com material desse tipo, pode ser encontrada em Franco e Nogueira (2017).
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4
Disponível em: https://g1.globo.com/sao-paulo/sorocaba-jundiai/noticia/2015/09/alunos-se-mobilizam-favor-de-trabalho-que-aborda-violencia-policial.html. Acesso em: 21 jul. 2024.
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5
Disponível em: https://noticias.r7.com/sao-paulo/pm-se-ofende-com-trabalho-escolar-e-ataca-professor-pela-internet-22092015/. Acesso em: 21 jul. 2024.
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6
O perfil Sargento Alexandre, no Facebook, fez uma postagem no dia 16 de setembro de 2015 com várias fotos dos pôsteres apresentados pelos alunos da E. E. Prof. Aggêo Pereira do Amaral. Disponível em: https://www.facebook.com/photo/?fbid=1525260351068035&set=pcb.1525260654401338. Acesso em: 15 jul. 2024. Dentre os pôsteres, destacou-se este, intitulado “Violência policial”, a partir do qual a polêmica ganhou os portais de notícias.
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7
Disponível em: https://policiamilitardesaopaulo.blogspot.com/2015/09/esclarecimento-e-repudio.html. Acesso em: 20 jul. 2024.
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8
Não encontramos essa postagem.
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9
Disponível em: https://g1.globo.com/sao-paulo/sorocaba-jundiai/noticia/2015/09/alunos-se-mobilizam-favor-de-trabalho-que-aborda-violencia-policial.html. Acesso em: 21 jul. 2024.
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10
A este último, dedicaremos toda a seção sobre a “lógica do resultado” a seguir.
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11
Disponível em: https://www.facebook.com/hashtag/somostodosaggeo Acesso em: 22 jul. 2024.
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12
O trabalho foi exibido em forma de pôster e, além da seção textual, há também uma charge de Latuff no canto inferior direito do pôster. Fotos do pôster foram veiculadas nas reportagens do Portal G1 e do Portal R7, na Nota de esclarecimento e repúdio da PM, na postagem da página Sargento Alexandre e em várias outras matérias pela internet.
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13
Sintagma adverbial.
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14
No original : Quand ils sont précédés de plusieurs noms, quel nom répètent-ils ? Cela dépend des détails de l’environnement grammatical ; c’est généralement le nom qui les précède immédiatement, ou le dernier nom figurant dans un environnement grammatical comparable.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
15 Ago 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
11 Nov 2024 -
Aceito
17 Maio 2025
