Open-access O IDEAL DO MESTIÇO, O MESTIÇO IDEAL E A DESOBEDIÊNCIA CH’IXI

THE IDEAL OF THE MESTIZO, THE IDEAL MESTIZO, AND CH’IXI DISOBEDIENCE

EL IDEAL DEL MESTIZO, EL MESTIZO IDEAL Y LA DESOBEDIENCIA CH’IXI

Resumo

O presente trabalho aborda alguns dos mais prestigiosos cenários da ideologia da mestiçagem para contrapô-los ao fecundo pensamento da antimestiçagem. Em um primeiro momento, caracterizamos o mito da democracia racial e sua solidariedade com a noção criolla de mestiçagem. Na segunda parte, aproximamos o conceito culturalista de entre-lugar, com sua “falsa obediência” e seu estranhamento da palavra recebida do Ocidente, à ideologia da mestiçagem anteriormente caracterizada. Na parte final, apresentamos ch’ixi, ReAntropofagia e retomada como legítimas formas de desobediência à violência ocidentalizante abordada ao longo do desenvolvimento do trabalho.

Palavras-chave:
Ideologia da mestiçagem; “O entre-lugar do discurso latino-americano”; Antimestiçagem; ReAntropofagia; Ch’ixi

Abstract

This paper addresses some of the most prestigious scenarios of the ideology of mestizaje in order to contrast them with the fecund thought of anti-mestizaje. First, we characterize the myth of racial democracy and its solidarity with the criollo’s notion of mestizaje. In the second part, we bring the culturalist concept of “the space in-between”-with its “false obedience” and its estrangement from the word received from the West-closer to the previously characterized ideology of mestizaje. In the final part, we present ch’ixi, ReAnthropophagy and resumption as legitimate forms of disobedience to the Westernizing violence addressed throughout the development of the paper.

Keywords:
Ideology of mestizaje; “Latin American Discourse: The Space In-Between”; Anti-mestizaje; ReAntropofagia; Ch’ixi

Resumen

Este trabajo aborda algunos de los escenarios más prestigiosos de la ideología del mestizaje para contrastarlos con el fértil pensamiento del antimestizaje. En primer lugar, caracterizamos el mito de la democracia racial y su solidaridad con la noción criolla de mestizaje. En la segunda parte, acercamos el concepto culturalista de entre-lugar, con su “falsa obediencia” y su rarificación de la palabra recibida de Occidente, a la ideología mestiza anteriormente caracterizada. En la parte final, presentamos ch’ixi, ReAntropofagia y retomada como legítimas formas de desobediencia a la violencia occidentalizadora abordada a lo largo del desarrollo del trabajo.

Palabras clave:
Ideología del mestizaje; “Entre-lugar del discurso latinoamericano”; Anti-mestizaje; ReAntropofagia; Ch'ixi

Quem eu sou?
Eu sou o medo dos brancos
Eu sou aquele que senta na mesa dos doutorados
Que desestabiliza e causa constrangimento a todos
Que ri do vocabulário prolixo e do currículo lattes dessa
gente branca
Eu sou o novo cabano
Eu sou a resistência através da antropofagia
Eu sou aquele que degola Tarsila do Amaral
Eu sou aquele que empala Mário de Andrade
Eu sou aquele que come o coração de Oswald de Andrade
Eu sou a arte Indígena
Eu sou o Indígena contemporâneo
Denilson Baniwa

MESTIÇAGEM E O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL

Numa conferência de 1984, intitulada “México y los mexicanos”, Juan Rulfo afirmava: “hoy sabemos que el mestizaje fue una estrategia criolla para unificar lo disperso, afirmar su dominio, llenar el vacío de poder dejado por los españoles” (1997, p. 443). De início, cabe uma ressalva tradutória: a expressão “estrategia criolla” envolve o que poderíamos chamar de um falso cognato entre o sentido que Rulfo utiliza aqui (que é o mais frequente nos países hispano-americanos) e a acepção corrente que o termo “crioulo” tem no Brasil. No português brasileiro, crioulo não é apenas alguém nascido nas colônias, em oposição aos que vinham da metrópole, é também uma alcunha pejorativa, racista, para se referir aos homens afro-brasileiros. Essa diferença por si só já renderia uma tese, mas por ora nos manteremos no sentido de Rulfo, criollo como representante das elites latino-americanas socialmente brancas (ainda que mestiças), que, explica José Antonio Kelly Luciani em Sobre a antimestiçagem, “historicamente têm monopolizado a produção de narrativas de construção da nação, devido a sua proeminência na estrutura interna de poder e na conformação de ‘projetos nacionais’ nos diferentes países latino-americanos” (2016, p. 15).

No Brasil, talvez pudéssemos aproximar o termo criollo daquilo que Jessé Souza (2019) chamou de “elite do atraso”, ou seja, o grupo social que detém o poder econômico, político e cultural no país e dá sequência ao projeto colonial na atualidade, perpetuando a desigualdade social, agindo de forma a preservar seus privilégios e dominar as populações indígenas e afro-americanas. Assim como os criollos da sociedade venezuelana analisada por Luciani, ao mesmo tempo que incorpora os saberes, as línguas, a música, a comida, a cultura de indígenas e negros, essa elite rejeita tais culturas como “primitivas”, “selvagens”, “preguiçosas”, como culpadas pelo atraso do país1.

Para a elite racista do final do século XVIII e início do século XIX, o fato da população ser constituída em sua maioria por não-brancos - no Brasil, segundo o Censo de 1872, 58% dos residentes se declaravam pretos e pardos e 4% indígenas (Souza, 2023) - era um impedimento para formar um povo e um estado nacional. Despontam, assim, no final do século XIX, projetos de embranquecimento das sociedades mestiças sul-americanas por meio da imigração europeia. No caso do Brasil, o branqueamento se tornou política pública. O Decreto 528 de 28 de junho de 1890, por exemplo, facilitava a vinda de imigrantes para o país, contanto que não fossem indígenas asiáticos ou africanos:

Art. 1º É inteiramente livre a entrada, nos portos da Republica, dos individuos válidos e aptos para o trabalho, que não se acharem sujeitos á acção criminal do seu paiz, exceptuados os indigenas da Asia, ou da Africa que sómente mediante autorização do Congresso Nacional poderão ser admitidos de accordo com as condições que forem então estipuladas (Brasil, 1890).

Trinta anos depois, em 1921, os deputados Andrade Bezerra e Cincinato Braga redigiram um projeto de lei cujo primeiro artigo era: “fica proibida a imigração de indivíduos humanos das raças de cor preta” (Lopes, 2006, p. 223). Também o segundo artigo do Decreto-lei nº 7.967 de 18 de setembro de 1945, revogado pela Lei nº 6.815, apenas em 1980, determinava que: “Atender-se-á, na admissão dos imigrantes, à necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência européia, assim como a defesa do trabalhador nacional” (Brasil, 1945, destaque nosso).

Estima-se que 4 milhões de imigrantes europeus tenham chegado ao Brasil no período que sucedeu a abolição da escravidão até os anos 50, “um número equivalente ao de africanos (4 milhões) que haviam sido trazidos ao longo de três séculos” (Bento, 2002, p. 7). Esses imigrantes tiveram passagens subsidiadas2 e facilidades de todos os tipos na instalação das colônias. Os proprietários de terra que assentassem e que facilitassem a venda de lotes para famílias de imigrantes, adiantando “todos os meios necessarios para a subsistencia deles” e aceitando o resultado de sua produção como parcelas dos lotes, recebiam grandes indenizações do Governo3. Na certeira análise do jornalista e historiador gaúcho Tau Golin, “as políticas de colonização do país foram as aplicações concretas de políticas de cotas”.

No início, no século XVIII, sobre os territórios dos charruas, minuanos, kaingangs e guaranis se aplicou a cota de “sesmaria”, um módulo de algo em torno de 13.000 (sim, treze mil) hectares. Se exterminou dois povos nativos para se formar a oligarquia. Em seguida, na metade do mesmo século, aos casais açorianos, destinaram-se “datas”, equivalentes a 272 hectares. No século XIX, aos imigrantes, concederam-se as “colônias”, de mais ou menos 24 hectares. E vieram as colonizadoras particulares e as secretarias do Estado sobre os territórios dos kaingangs e guaranis. E mais os programas de expansão da frente agrícola no Brasil central, no Mato Grosso e na Amazônia, com filhos do Rio Grande, na maioria as primeiras gerações dos imigrantes (Golin, 2014).

Este projeto de branqueamento tinha suas raízes muito bem fundadas no discurso das humanidades. O papel da elite intelectual brasileira foi importantíssimo nesse processo. João Batista Lacerda, então diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, por exemplo, defendia que “o Brasil mestiço de hoje tem no branqueamento em um século sua perspectiva, saída e solução” (Lacerda apudSchwarcz, 1993). Daí a senhora do quadro de Modesto Brocos agradecer aos céus pela alvura da neta. O icônico a Redenção de Cam (1895) viajou o mundo ilustrando a tese eugenista do branqueamento da população como única forma de desenvolver o país defendida por sociólogos, críticos literários e escritores como Silvio Romero.

A minha tese, pois, é que a vitória na luta pela vida, entre nós, pertencerá no porvir ao branco - mas que este, para essa mesma vitória, atento às agruras do clima, tem necessidade de aproveitar-se do que é útil às outras duas raças lhe podem fornecer, máxime a preta, com que tem mais cruzado. Pela seleção natural, todavia, depois de prestado o auxílio de que necessita, o tipo branco irá tomando a preponderância até mostrar-se puro e belo como no velho mundo. Será quando já estiver de todo aclimatado no continente. Dois fatos contribuirão largamente para tal resultado: de um lado a extinção do tráfico africano e o desaparecimento constante dos índios, e de outro a imigração européia! (Romero apudBento, 2002, p. 12, destaques nossos).

Matando indígenas, importando europeus, cruzando raças, o Brasil poderia tornar-se o país branco que as elites tanto almejavam. Como diz Eduardo Viveiros de Castro (2019), “o que se chama de mestiçagem no Brasil, o nome certo é branqueamento”.

A vulgata antropológica que acompanha a teoria da mestiçagem, no Brasil como provavelmente no resto da América Latina, funciona inicialmente segundo um modelo de soma-zero: quanto mais branco, menos índio; quanto mais índio, menos branco. Como se as “culturas” índia e branca se cancelassem, não pudessem ocupar um mesmo espaço concebido como limitado e exíguo (a “cabeça”, talvez). Mas esta soma-zero, que poderia tender, idealmente, para uma situação de 50/50 - o mestiço ideal, digamos assim -, é na verdade mais uma fraude. Pois o ideal do mestiço não é o mestiço ideal, mas o mestiço em processo de branqueamento. Quanto mais branco melhor, esta é a verdade da ideologia da suposta mestiçagem brasileira: a “melhora do sangue”, o influxo dos imigrantes europeus para ensinarem esses caboclos preguiçosos a trabalhar, e assim por diante - todo mundo sabe do que estou falando, porque todo mundo neste país já ouviu estas frases (Viveiros de Castro, 2017, p. 6).

Ávidos por desenvolver mitos de brasilidade4, nos anos 30 do século seguinte, com o embalo da forte onda de nacionalismo decorrente da ascensão da ditadura Vargas, autores como Gilberto Freyre celebraram a mestiçagem como identidade nacional e passaram a retratar o Brasil como um país harmonicamente multicolor onde as raças conviveriam pacificamente. Funda-se, assim, “um dos mais eficazes mitos de dominação ideológica” (Gonzalez, 2020): o mito da democracia racial. Um mito que, de início, esconde que a miscigenação é, antes de tudo, produto do estupro sistemático5 de mulheres indígenas e africanas escravizadas. Para Sueli Carneiro, essa violação colonial e a miscigenação daí resultante está na origem da construção de nossa identidade nacional, “estruturando o decantado mito da democracia racial latino-americana, que no Brasil chegou até as últimas consequências. A violência sexual colonial é, também, o ‘cimento’ de todas as hierarquias de gênero e raça presentes em nossas sociedades” (Carneiro, 2019).

Se não bastasse esse apagamento histórico que romantiza a violência sexual sofrida pelas mulheres não-brancas, o “silêncio ruidoso dos cientistas sociais” - para usar uma expressão de Lélia Gonzalez (2020) - nega como as hierarquias de que fala Sueli Carneiro estruturam racialmente a nação. Ninguém melhor do que Lélia Gonzalez, em seu contundente “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, para demonstrar, com sua perspicaz ironia, como o mito funciona ainda hoje:

Racismo? No Brasil? Quem foi que disse? Isso é coisa de americano. Aqui não tem diferença porque todo mundo é brasileiro acima de tudo, graças a Deus. Preto aqui é bem tratado, tem o mesmo direito que a gente tem. Tanto é que, quando se esforça, ele sobe na vida como qualquer um. Conheço um que é médico; educadíssimo, culto, elegante e com umas feições tão finas... Nem parece preto (Gonzalez, 1984, p. 226).

Esta dissimulação faz com que o mito da democracia racial se torne um grande obstáculo para a superação das assimetrias raciais no Brasil à medida que falseia o abismo social entre brancos e não-brancos e vela nosso racismo estrutural com uma representação idealizada de sociedade tolerante, inclusiva e meritocrática, com o encobrimento da interseccionalidade entre classe, raça e gênero que determina desde a renda per capita6 às taxas de mortalidade7 da população, da violência urbana contra a população negra e da violência no campo e na floresta contra as populações indígenas. Na precisa análise de Élide Rugai Bastos, tal mito serve para “isentar as elites de culpas e evitar a realização efetiva da integração racial democrática. É a forma pela qual as elites exorcizam a ameaça dos movimentos sociais” (Bastos, 1987, p. 148). De fato, conta Sarita Amaro, a luta das comunidades afrodescendentes precisou ser focada antes de tudo “em dar visibilidade ao racismo para depois partir à reivindicação de direitos” (Amaro, 2017, p. 139).

O ENTRE-LUGAR É O LUGAR DE UM SER MESTIÇO

No decorrer do século XX, a intelectualidade latino-americana mais proeminente continuou a pensar uma identidade mestiça, esquecendo a morte e a vida do outro. Vamos pensar tal constante a partir de uma hipótese: frequentemente, ao menos na área mais visível do campo, o crítico latino-americano elabora sua teoria da literatura, das artes, ou da cultura, a partir de uma mistura, ou hibridação, algo bárbara, entre hermenêutica e culturalismo.

José Lezama Lima, por exemplo, elaborava em 1957 sua “teoria da expressão americana”, a partir de uma inversão da filosofia da história de Hegel e, principalmente, a partir do trabalho filológico de José Ortega y Gasset (1929). Ortega y Gasset, justamente, é para outra tradição interpretativa, não barroca, mas talvez decolonial, a de Walter Mignolo (2015), o próprio índice de algo que, em pensadores como o mexicano Edmundo O’Gorman, Rodolfo Kusch ou Enrique Dussel, levou à proposição de metodologias alternativas, processos sociais de conhecimento e artefatos culturais afastados de uma hermenêutica filosófica universalista, aquela que por exemplo confina todas as origens a uma prospectiva tradição greco-latina.

Se a hermenêutica é caudatária dessa tradição greco-latina, então é uma hermenêutica regional e está restrita a um tipo de tradição. Por isso Ortega y Gasset (1955), ao invés de focar no “sistema da língua” de Saussure, focava a “fala das pessoas”, e propunha dois axiomas: a) Cada mundo é exuberante porque diz mais do que pensa; b) Cada mundo é deficiente porque diz muito menos do que se espera. Isso levaria também à proposição de uma outra filologia, uma em que se contextualizasse os objetos das culturas em confronto desigual e as relações de poder para compreender como se expressa cada mundo, seu concreto entre-lugar de luz e de sombras.

Dado que não estamos no lugar do Universal, precisamos de uma hermenêutica situada, ou pluritópica, que consiga elaborar uma “ciência” dos signos que situe esses signos em mais de uma tradição, em mais de uma cultura, e a politizar essa ciência dos signos diferencial, pois o vetor ontológico relativiza a pressuposta centralidade semântica dos enunciados.

Isso, de fato, pode parecer uma contradição do ponto de vista da filosofia continental europeia (como misturar hermenêutica com política?, diria, por exemplo, um Hans Georg Gadamer), mas é prática comum nas Américas pós-independentistas. Mabel Moraña (2006) e Walter Mignolo (2015), em trabalhos muito diferentes, ela criticando Ángel Rama, ele considerando a contribuição de Dussel, caracterizaram essa prática como típica dos intelectuais dependentes: uma mistura entre hermenêutica e culturalismo. Pois bem, podemos pensar tal mistura como uma solução criolla típica, algo que Silvia Rivera Cusicanqui (2015) tem denominado uma pedagogia nacional-colonial.

Nem modernos como Antonio Candido nem pós-modernos como Silviano Santiago conseguiram superar um centramento ocidentalista que se afunila na direção do sujeito, de um sujeito perante o qual o cosmos e o outro aparecem como objetos. Para o intelectual moderno, o “nós” do sujeito latino-americano é um mestiço letrado que subsume em si a memória dos ancestrais exterminados enquanto o espírito do Ocidente, que está à procura de uma nova morada, se aclimata em América; para o intelectual pós-moderno, o “nós” do sujeito latino-americano é um mestiço letrado, como Borges ou Cortázar, um leitor voraz que “aprende a língua da metrópole para melhor combatê-la”, e que, macaqueando uma “falsa obediência”, rarifica a mensagem recebida do Ocidente e a devolve com uma dose de veneno/remédio, elaborando sua “escritura sobre outra escritura” (cf. Santiago, 1978).

Em “Literatura e subdesenvolvimento” (1972), por exemplo, Candido associa a dependência econômica e cultural ao alto analfabetismo, que, de acordo com ele, “nos países de cultura pré-colombiana adiantada é agravado pela pluralidade linguística” (1987, p. 142). Silviano Santiago, por sua vez, em “O entre-lugar do discurso latino-americano” (1969-1971) é peremptório quando decreta a morte dos povos indígenas e de suas culturas, dizendo que “os índios perdem sua língua e seu sistema do sagrado e recebem em troca o substituto europeu” (1978, p. 14). Em ambos os casos se oblitera o impacto das 1300 línguas nativas faladas no Brasil antes da invasão e das inúmeras línguas africanas que vieram nos navios negreiros sobre o português do colonizador, como se nossa língua não fosse um “pretuguês” (Gonzalez, 1984), um tupiguês, um jeguês, e por aí afora... e também como se não tivéssemos ainda, apesar de toda a ofensiva genocida/linguicida, 274 línguas, muitas delas em processo de ressurgimento8. Aliás, a perda, especificamente, é um pressuposto problemático da teoria de Silviano:

A América transforma-se em cópia, simulacro que se quer mais e mais semelhante ao original, quando sua originalidade não se encontraria na cópia do modelo original, mas em sua origem, apagada completamente pelos conquistadores (Santiago, 1978, p. 14).

A noção de “origem”, alerta Cusicanqui, remete a um “passado que se imagina quieto, estático e arcaico” (2021, p. 97), de forma que, falar em povos situados na “origem” é negar a “coetanidade dessas populações, excluindo-as das disputas da modernidade. Outorga-se a elas um status residual” (Rivera Cusicanqui, 2021, p. 97), convertendo-as em minorias, reduzidas a estereótipos. Mais que isso, é negar sua existência mesma no presente, como se não mais existisse população e cultura nativa no Brasil, como se no país não vivessem cerca de 1,7 milhão de pessoas pertencentes a 305 etnias, conforme dados do Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)9. Como reivindica Denilson Baniwa na performance Hackeando a 33ª Bienal de Arte de São Paulo (2018)10: “Estamos vivos, vivos apesar do roubo, da violência e da história da arte” (também da teoria da literatura, poderíamos acrescentar).

Continuemos... o descentramento proposto pelo entre-lugar tem um operador central: a ideologia da mestiçagem, que se pauta por uma intervenção na cultura ocidental, novo cenário em que pode renascer o pensamento selvagem esmagado pela colonização:

O renascimento colonialista engendra por sua vez uma nova sociedade, a dos mestiços, cuja principal característica é o fato de que a noção de unidade sofre reviravolta, é contaminada em favor de uma mistura sutil e complexa entre o elemento europeu e o elemento autóctone - uma espécie de infiltração progressiva efetuada pelo pensamento selvagem, ou seja, abertura do único caminho possível que poderia levar à descolonização (Santiago, 1978, p. 15, destaques nossos).

Notemos que, diferentemente, por exemplo, de um José María Arguedas, ou de um Antonio Cornejo Polar (2003), que contempla no seu conceito de heterogeneidade o que ele chama de “totalidades conflitivas”, isto é, a coexistência de diversos “sistemas” (locais, regionais), de coexistência não obrigatoriamente harmônica, que não podem ser considerados como meras variações do sistema hegemônico nacional, há no “entre-lugar do discurso latino-americano” uma evidente “ideologia da mestiçagem” (o conceito é de Mabel Moraña, 2006), ou um “ideologema” (Silvia Rivera Cusicanqui, 2015), que consiste numa fórmula conciliatória e niveladora, que tende a uma cidadanização ocidental forçada e que reduz o cultural ao letrado, o letrado ao urbano, o latino-americano ao hegemônico, reforçando ainda uma ideia do intelectual como principal operador dessa “reviravolta” descolonizadora, uma espécie de representante, tradutor e intérprete, ou pedagogo, entre o elemento “autóctone” e o elemento “europeu”.

O operador dessa infiltração progressiva do pensamento selvagem seria o intelectual mestiço, ou aquele que abraça os valores da mestiçagem, e sua específica operação seria a de um leitor voraz que rarifica a mensagem recebida de Europa com uma atitude de “falsa obediência”11. Para Silviano Santiago é precisamente esse “lugar na segunda fila” um dos mais poderosos elementos da destruição dos conceitos de pureza e unidade efetuada por escrituras latino-americanas:

O texto segundo se organiza a partir de uma meditação silenciosa e traiçoeira sobre o primeiro texto, e o leitor, transformado em autor, tenta surpreender o modelo original nas suas limitações, nas suas fraquezas, nas suas lacunas, desarticula-o e o rearticula de acordo com as suas intenções, segundo sua própria direção ideológica, sua visão do tema apresentado de início pelo original (Santiago, 1978, p. 20).

Nessa falsa obediência e nessa escuta diferencial e pós-estruturalista (eis a hermenêutica que se adapta à singularidade cultural do continente mestiço), que discerne entre textos legíveis e textos escrevíveis, e que seleciona textualidades a intervir no já-escrito, o leitor voraz “aprende a língua da metrópole para melhor combatê-la” e torna-se escritor, elaborando sua “escritura sobre outra escritura”. Paradigmáticos desse operar pós-estruturalista são, como não, dois dos escritores mais “europeus” da América Latina: Júlio Cortázar e Jorge Luis Borges. Através de anacronismos deliberados, de atribuições erráticas, de traduções ladinas, essas escrituras avançariam novos significados, nada inocentes, sobre o “já-escrito”, e por isso Pierre Ménard é para Silviano “a metáfora ideal para precisar a situação e o papel do escritor latino-americano”, que afronta o modelo e por vezes o nega:

A liberdade, em Menard, é controlada pelo modelo original, assim como a liberdade dos cidadãos dos países colonizados é vigiada de perto pelas forças da metrópole. A presença de Menard - diferença, escritura, originalidade - instala-se na transgressão ao modelo, no movimento imperceptível e sutil de conversão, de perversão, de reviravolta. [...] O artista latino-americano aceita a prisão como forma de comportamento, a transgressão como forma de expressão (Santiago, 1978, p. 25).

De acordo com Silviano, essa literatura tenderia a descondicionar o leitor, a tornar “impossível a sua vida no interior da sociedade burguesa e de consumo”:

Entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre a submissão ao código e a agressão, entre a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão - ali, nesse lugar aparentemente vazio, seu templo e seu lugar de clandestinidade, ali, se realiza o ritual antropófago da literatura latino-americana (Santiago, 1978, p. 26).

Cabem aqui algumas questões: O entre-lugar é um lugar apenas mestiço? O que acontece com os não-mestiços? A cultura latino-americana, e seu discurso, são uma cultura e um discurso ou admitem vários discursos e várias culturas? O que acontece com os sujeitos que preferem a desobediência à falsa obediência, a ação à indignação? A “falsa obediência”, passados 50 anos desde a publicação de “O entre-lugar do discurso latino-americano” não parece ter se tornado uma forma de verdadeira obediência? Não teremos nos resignado a esse cinismo das democracias formais? A América Latina não terá sido tomada por isso que Mark Fisher denominava realismo capitalista? O entre-lugar não terá se tornado um lugar confortável? Que lugar têm neste paradigma os que optam pela rebelião? E os que não aceitam a prisão? O genocídio indígena já terminou? A colonização já terminou? E essas inquietantes presenças indígenas que irrompem no campo intelectual e artístico, assim como nas lutas sociais de hoje?

Enquanto a hermenêutica nivela os signos com paradigmas provindos da metrópole colonial, Paris: a “querida” de Rubén Darío, a capital do século XIX, o culturalismo - mestiço, para quem pensa-branco - justifica essa nivelação e a situa numa cartografia específica. A pedagogia da mestiçagem, que para Silvia Rivera Cusicanqui e para Juan Rulfo toma uma feição particular no momento da política cultural imperialista posterior à Guerra Fria, redobra sobre o dispositivo teórico a lógica desse processo que continua o projeto colonial. Desse modo, e por outra parte, o entre-lugar torna-se uma variante teórica da socialdemocracia, um dispositivo teórico que denuncia alguns elementos do capitalismo mas que, longe de combatê-lo, lhe serve à maneira de uma câmara de eco pois o entende como uma fatalidade, como uma inevitabilidade.

É um fato que as nossas coexistências conflitivas não somente estão atravessadas por différance, mas de fato estão constituídas por uma guerra que já dura vários séculos, como diria Ailton Krenak.

Talvez fosse interessante focar outra tradição, uma mais próxima e sensível ao fato de que a América é terra indígena. Pensadores como Silvia Rivera Cusicanqui, Ailton Krenak, Davi Kopenawa, e muito antes deles: Antonio Cornejo Polar, José Carlos Mariátegui ou José María Arguedas, certamente evidenciam, cada um ao seu modo, a imensa heterogeneidade que cabe nas “totalidades conflitivas” que chamamos de “nações latino-americanas”. Esses pensadores, por outra parte, compartilham uma ideia que, de Hegel a Jameson, também se manifesta como a principal contradição do capitalismo: a constatação de que há um privilégio materialista dos dominados, e a tendência de um pensamento, situado ao sul da geopolítica do conhecimento, a se posicionar, não somente em prol do reconhecimento por parte do senhor (e é ao amo que estão endereçados os trocadilhos próprios do pós-estruturalismo e dos seus caudatários), mas também no agir e escrever contra as condições existentes.

Na sua quarta fase, o capitalismo se apresenta do mesmo modo que esses enormes prédios de fachadas espelhadas que se tornaram o estilo arquitetônico preferencial das instituições financeiras: sem profundidade, dá ao usuário aquilo que o usuário demanda, em forma de imagem (cf. Jameson, 2015). O imperialismo cultural, que muito avançou desde os tempos do artigo de Silviano, e também via teoria, nos devolve o que sobre ele projetamos: na passagem do século XX ao século XXI, nos levou a uma crítica da sociedade disciplinar que acabou dando insumos à sociedade de controle; a um abstrato antiestatalismo que confluiu com os interesses neoliberais; a um nominalismo que transformou a ação política em ação retórica e o pensamento crítico em um jogo de insights que se manifestam em jogos de palavras que, longe de dizer, nos permitem adiar o sentido infinitamente para desse modo nunca assumir posicionamentos; a um abandono da hipótese socialista que deplorou o “socialismo realmente existente” sem combater o capitalismo realmente existente; a uma crítica do conhecimento que inclusive na sua inflexão biopolítica pode estar hoje tendendo aos mais abstrusos negacionismos; a uma crítica do Antropoceno que acalenta o discurso de um capitalismo protecionista do meio ambiente.

Hoje, que as condições impostas pela pandemia se somam à tabula rasa neoliberal, sabemos que não há sobrevivência sem política, que não há saúde sem cuidado, que o capital privado não existe para nos cuidar, que o estado - entendido como um espaço poroso, heterogêneo e contingente - é um dispositivo que podemos, e devemos, reapropriar.

Podemos, portanto, afirmar que estamos em situação de duplo constrangimento (double bind), capturados entre imperativos conflitantes que não podemos nem ignorar nem simplesmente satisfazer12. Habitando a contradição, a contemporaneidade regional, pelo lado micro, nos empurra à derrota de nos pensarmos apenas como sobreviventes, sem possibilidades de luta; por outro, pelo lado macro, nos leva à criação de grandes mapas que, coincidindo em magnitude com o mapa do Império, também tendem a mimetizar sua ruína.

Para além da cartografia cognitiva e da alienação subjetivista, deveríamos propor uma alternativa para o entre-lugar. Essa alternativa é um imperativo agora que nos perguntamos se combatendo entre nós o fantasma do outro, não teremos deixado de ouvir os nossos próprios espectros. Não cabe resignação em relação ao cinismo das democracias formais. A América Latina não pode permanecer tomada por isso que Mark Fisher denominou realismo capitalista, e o entre-lugar não deveria se tornar um lugar confortável. Hoje se faz necessário pensar a história a partir de regimes de temporalidade não caudatários da metafísica do progresso, seja ela efusiva ou melancólica, e que, ao mesmo tempo, afastem os universalismos iluministas. À procura da realidade encoberta por este tipo de dispositivo teórico ocidentalizante e perante o imprescindível debate a respeito das insuficiências apontadas, torna-se fundamental pensar a América Latina em suas possibilidades concretas, que não estão restritas ao conjunto de operações de falsa obediência ou de rarificações da palavra do amo executadas pelos filhos “rebeldes” do Ocidente.

CH’IXI, ANTIMESTIÇAGEM, REANTROPOFAGIA, RETOMADA

Quem sabe podemos desviar do entre-lugar, despojando-o do seu caráter fatalista, conciliatório e harmonizador, a partir da suplementação com uma definição próxima do conceito de ch’ixi, proposto por Silvia Rivera Cusicanqui. Em Ch’ixinakax Ctxiwa - Uma reflexão sobre práticas e discursos descolonizadores, ela defende que o ch’ixi é o conceito mais apropriado para traduzir a “mescla abigarrada que somos aquelas e aqueles chamados de mestiças e mestiços” (2021, p. 110). Vejamos a bela explicação da própria Cusicanqui:

A palavra ch’ixi tem diversas conotações: é uma cor produzida pela justaposição, em pequenos pontos ou manchas, de duas cores opostas ou contrastantes: o branco e o preto, o vermelho e o verde etc. É um cinza matizado resultante da mistura imperceptível do branco e do preto, que se confundem na percepção sem nunca se misturar por completo. A noção ch’ixi, como muitas outras (allqa, ayni), obedece à ideia aymara de algo que é e não é ao mesmo tempo, ou seja, a lógica do terceiro incluído. Uma cor cinza ch’ixi é branca e também é negra, seu contrário. [...] o ch’ixi conjuga o mundo índio com seu oposto, sem nunca misturar-se com ele (Rivera Cusicanqui, 2021, p. 111).

O oposto de ch’ixi, explica ela, é chhixi, que remete justamente à ideia de cruzamento, de perda de substância, e que corresponde “à noção muito em voga de hibridismo cultural light, conformista com a dominação cultural contemporânea” (2021, p. 111). Essa sua crítica ao conceito de hibridismo de Nestor García Canclini pode ser estendida à mestiçagem e seus congêneres, pois, assim como o hibridismo, assumem “a possibilidade de que da mistura de dois diferentes, possa sair um terceiro completamente novo, uma terceira raça ou grupo social capaz de fundir os traços de seus ancestrais em uma mescla harmônica e sobretudo inédita” (Rivera Cusicanqui, 2021, p. 112).

O mestiço enquanto terceiro significa a eliminação da distinção13, da pluralidade dos povos, de suas culturas e suas línguas, que são deixadas nas origens, como coisa do passado, em nome de um povo diferente, único, homogêneo, embranquecido, europeizado, colonizado. Já na noção de ch’ixi ressoa a de “sociedade abigarrada”, de René Zavaleta-Mercado (1986), e coloca a coexistência conflituosa de múltiplas distinções culturais que não se fundem, que se antagonizam e/ou se complementam. “Cada uma reproduz a si mesma desde a profundidade do passado e se relaciona com as outras de forma contenciosa” (Rivera Cusicanqui, 2021, p. 112).

Nas artes literárias, visuais, audiovisuais, cênicas, esse tipo de litígio vem sendo cada vez mais exposto. Itamar Vieira Junior, Gabriela Cabezón Cámara, Samanta Scweblin, Truduá Dorrico, Jefferson Tenório, Ellen Lima Wassu, Conceição Evaristo, Rosana Paulino, Flávio Cerqueira, Dalton Paula, Jaime Lauriano, Denilson Baniwa, Daiara Tukano, Gustavo Caboco, Jaider Esbell, entre tantos outros, nos lembram que o tempo da conciliação acabou, que é tempo de retomada, de re-antropofagia, de antimestiçagem.

Ao negar “esse prodígio de hipocrisia conceitual” que é o mestiço e que, na cabeça de quem pensa-branco, define a “identidade brasileira” (Viveiros de Castro, 2017, p. 5), a antimestiçagem, seguindo o exemplo Yanomami analisado por Kelly Luciani, assume um ponto de vista intercambiável capaz de ocupar diversas posições sem jamais fundir-se em uma posição intermediária, a do mestiço integrado no desenvolvimento nacional, no Um que a ideia de povo brasileiro carrega, inclusive na exclusão, ou seja, o indígena tornado cidadão brasileiro, cidadão pobre, naturalmente14. A antimestiçagem é reafirmar “a diferença cultural no lugar de dissolvê-la nos sincretismos culturais aceitos e dominantes”, é persistir em sua etnia perturbando “o ideal homogeneizador societário que impõe a figura do mestiço padrão” (Mansutti Rodríguez, 2006, p. 19). Trata-se, neste sentido, de um processo oposto ao da cultura criolla. Enquanto esta busca se expandir e embranquecer ou ocidentalizar, transformando o Outro em um Mesmo, a antimestiçagem envolve uma incorporação da distinção que busca transformar o Mesmo em Outro. Conforme explica Viveiros de Castro (2017, p. 6), ao invés de gerar identidade, a mistura aqui multiplica a multiplicidade. A antimestiçagem aciona “os códigos culturais dominantes segundo as prioridades, objetivos e estratégias indígenas”, ao mesmo tempo que se resgata a ancestralidade, reafirma-se a cultura e reaprende-se a língua.

E aqui cabe voltar à epígrafe desse artigo. Antimestiçagem e ch’ixi podem ser pensados como uma espécie de ReAntropofagia, que deglutina a cultura branca, mas não para copiá-la, e sim para desestabilizá-la, para constrangê-la, para rir de seu vocabulário europeizado, seu currículo lattes. O poema foi lido na Casa do Povo em São Paulo em 2018, no ano seguinte, Denilson Baniwa foi co-curador de uma exposição intitulada justamente ReAntropofagia, no Centro de Artes da Universidade Federal Fluminense. Na abertura da exposição estava o quadro homônimo que hoje faz parte do acervo da Pinacoteca e que expõe a cabeça de Mário de Andrade servida em uma cestaria Baniwa, como oferenda a ser devorada, junto com um pequeno bilhete em que lemos o epitáfio do “simulacro de macunaíma”. Em 2021, o epitáfio torna-se a última estrofe do poema “ReAntropofagia” publicado na revista The Brooklyn Rail:

era primeiro de maio de vinte e oito
dia de manifesto da fome do trabaiadô
só a antropofagia nos une, coração
em página reciclada de mato-virgem
desvirginou pindorama num falso-coito
urgências do artista-moderno-devorado

de pulmões, rins, fígado e coração
filé oswald de andrade à barbecue
tupy or not tupy, that is true
or that’s future-já-passado
wirandé seu honoris-doutô
mário bom mesmo é o encanador
que faz assado de tartaruga

a arte moderna já nasceu antiga
com seus talheres forjados à la paris
faca, fork, prato raso e bourdeaux
páris que por fuck faz bobagem
se a arte indígena durará dez anos
eu quero ser aquiles: que será famoso
e morrerá antes de receber o troféu
na queda do céu ser estrela cadente
- pintou e bordou, dirão na cantiga

a arte-macunaíma no moquém
fará uga-uga com as mãos nos lábios
pois é um totem, um pau-de-sebo
onde ninguém consegue o prêmio
grêmio de colecionadores, ratos
brancos de laboratório estéril
onde pratos fake-antropofágicos
são menu para abutre-cinéreo

sério, nasceria de fórceps uma arte brasileira?
sem índios na canoa que falha-trágica
quero quem come com as mãos, alguém?
sem limites-geo e conectada à máter
ReAntropofagia posta à mesa nostálgica
é arte-indígena crua sem nenhum caráter

quando desta arte pau-brasil-tropical
não sobrar um só osso mastigado
sobrará o tal epitáfio como recado:

aqui jaz o simulacro macunaíma
jazem juntos a ideia de povo brasileiro
e a antropofagia temperada
com bordeaux e pax mongólica
que desta longa digestão
renasça Makünaimî
e a antropofagia originária
que pertence a Nós
indígenas15

O poema começa ironizando o manifesto antropofágico, publicado no dia 1º de maio de 1928 (mesmo ano da publicação de Macunaíma), depois critica a europeização dos modernistas brasileiros e a ausência ou a presença estereotipada (o índio que faz “uga-uga com as mãos nos lábios”) de indígenas na arte brasileira nascida a fórceps. Por fim, o tal epitáfio marca a morte da “fake-antropofagia” “temperada com Bordeaux” e da própria ideia de povo brasileiro no singular, uma concepção de povo que elimina todos os outros povos em nome da unidade nacional. No lugar, propõe uma reapropriação da antropofagia, ou seja, uma ReAntropofagia que irá devorar a “arte pau-brasil-tropical” até “não sobrar um só osso mastigado”. “Que desta longa digestão renasça Makünaimî” remete à reivindicação que Jaider Esbell faz da sacralidade do ancestral Macuxi, um dos “filhos do Sol”, personagem-chave nas narrativas de criação da natureza. Daí que o Macunaíma andradeano seja entendido como simulacro - um significante que já havia aparecido na performance de Baniwa na Bienal de 2018: “chega de ter branco pegando a arte indígena e transformando em simulacros de povo”, reivindica o pajé-onça, não sem antes perguntar, apontando para as imagens dos Selk’nam extintos, “Isso é o índio? É assim que querem os índios? Presos no passado? Sem direito a futuro? [...] Os índios não pertencem ao passado, não têm de estar presos às imagens que os brancos construíram para os índios”.

Com o trabalho de Baniwa em mente, voltemos a Silviano Santiago. Se o protocolo do entre-lugar, em 1969, estava alicerçado na ideologia da mestiçagem, em “O começo do fim”, de 2008, a celebração à antropofagia estava alicerçada em uma pedagogia nacional-colonial em que o universal só poderia ser o europeu:

Durante o período áureo da vanguarda brasileira, a Antropofagia buscava, por um lado, apreender e avaliar para o artista e o pensador não-europeus o peso da herança cultural universal e, por outro lado, identificar as razões pelas quais os indígenas - que são nossos antepassados dum ponto de vista exclusivamente geográfico - não tinham conseguido ter acesso ao capital cultural consensual, indispensável à produção de obra artística ou reflexiva com peso universal. Mais importante do que a constatação da inferioridade do colono em relação à empresa colonizadora européia e a conseqüente rejeição das injustiças estabelecidas pelo poder tirânico das metrópoles, a Antropofagia se apresenta como estratégia artística e reflexiva que visa a apreender o valor universal para os que estão desapossados dele originariamente (Santiago, 2008, p. 24).

A análise de Silviano pressupõe como dado inquestionável que a cultura com caráter universal é a europeia e que os indígenas não apenas estão presos no passado como também não deixaram qualquer contribuição para nossa cultura (“são nossos antepassados de um ponto de vista exclusivamente geográfico”), mas, mais que isso, que a vanguarda antropofágica teria como dever moral trazer valor universal “para os que estão desapossados dele originariamente”.

Tal incumbência seria, analisa Enrique Dussel, o pressuposto da violência moderna-colonial por excelência, pois ao se autodescrever como mais desenvolvida e superior, a civilização moderna se colocava como exigência moral o desenvolvimento daqueles que considerava primitivos e bárbaros. Por esse caráter “civilizatório” da “Modernidade” “interpretam-se como inevitáveis os sofrimentos ou sacrifícios (os custos) da ‘modernização’ dos outros povos” (2000b, p. 49).

A ReAntropofagia responde a essa violência colonial/moderna pseudouniversalizante contrapondo sua arte contemporaneamente ancestral, seu saber universalmente local, suas ontologias, epistemologias, formas de pensar e de viver que expõem as violências de nossas dicotomias-hierarquias coloniais. Assim, a ReAntropofagia se confunde com o ch’ixi na mescla que não se mistura totalmente, que não se amalgama no mestiço; com a antimestiçagem na sua pluralidade singular, na sua heterogeneidade conflituosa; ela expõe as violências do processo de “formação” da sociedade colonial e capitalista e torna visível o que foi encoberto pelos mitos modernos - o mito da brasilidade, por exemplo. ReAntropofagia, antimestiçagem, ch’ixi são formas de retomada, retomada poética, simbólica, mas também territorial, ancestral, cultural, espiritual, social, política, esse sim é o “único caminho possível que poderia levar à descolonização”. Como diz Truduá Dorrico no poema intitulado justamente “Retomada”:

Como você se atreve a nos chamar de pobres hoje
Se foi você que tirou nossa terra?
Como você se atreve a nos chamar de feios
Depois de ter violado nossas mulheres?
Como você se atreve a nos chamar de preguiçosos
Se foi você que nos matou de trabalhar?
Não somos pobres
Fomos empobrecidos
Não somos feios
Fomos embranquecidos
Não somos preguiçosos
Fomos escravizados, tutelados
Então, como você se atreve?
Há luas e luas
Nossos ancestrais teceram nossa história de glória
Por isso lutamos para reaver:
A terra que nos foi roubada,
A voz silenciada
O corpo ocultado
Nossas belezas
Nossos encantados
Nossos povos
Nossas vidas
Então
Nunca mais se atreva a nos diminuir no seu espelho.
(Dorrico, 2021, p. 112-113)

REFERÊNCIAS

  • AMARO, S. Promoção de culturas e práticas afirmativas no ensino superior: ideias em ebulição. O Social em Questão, v. 20, n. 37, jan./abr. 2017, p. 137-152.
  • AZEVEDO, C. M. M. de. Onda negra medo branco: o negro do imaginário das elites do século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
  • BASTOS, É. R. A questão racial e a revolução burguesa. In: D’INCAO, M. A. (Org.). O saber militante: ensaios sobre Florestan Fernandes. Rio de Janeiro: Paz e Terra; São Paulo: UNESP, 1987. p. 140-150.
  • BAUTISTA SEGALES, J. J. ¿Qué significa pensar desde América Latina? Hacia una racionalidad transmoderna y postoccidental. España: Akal, 2014.
  • BENTO, M. A. S. Branqueamento e branquitude no Brasil. In: CARONE, I.; BENTO, M. A. S. B. (org.). Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 25-58.
  • BORGES, R. O que é necropolítica. E como se aplica à segurança pública no Brasil. Entrevista concedida a Mariana Ferrari. Ponte. 25/09/2019. Disponível em: https://ponte.org/o-que-e-necropolitica-e-como-se-aplica-a-seguranca-publica-no-brasil/. Acesso em: 14 mar. 2025.
    » https://ponte.org/o-que-e-necropolitica-e-como-se-aplica-a-seguranca-publica-no-brasil
  • BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 528, de 28 de Junho de 1890. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-528-28-junho-1890-506935-publicacaooriginal-1-pe.html Acesso em 18 mar. 2025.
    » https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-528-28-junho-1890-506935-publicacaooriginal-1-pe.html
  • BRASIL. Presidência da República. Decreto-lei nº 7.967 de 18 de setembro de 1945. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/Del7967.htm Acesso em 18 mar. 2025.
    » https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/Del7967.htm
  • CANDIDO, A. Literatura e subdesenvolvimento. In: CANDIDO, A. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987. p. 140-162.
  • CARNEIRO, S. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: HOLLANDA, H. B. de. Pensamento feminista: conceitos fundamentais Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.
  • CARNEIRO DA CUNHA, M. Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. São Paulo, Brasiliense, 1986.
  • CORNEJO POLAR, A. Escribir en el aire: ensayo sobre la heterogeneidad sociocultural en las literaturas andinas. Lima/Berkeley: CELACP, 2003.
  • DORRICO, T. A literatura indígena contemporânea no Brasil: a autoria individual de identidade coletiva. In: Ensaios Flip: Plantas e Literatura. Paraty: Ministério do Turismo/Associação Casa Azul, 2021. p. 105 -113.
  • DUSSEL, E. Europa, Modernidad y Eurocentrismo. In: LANDER, E. La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales: Perspectivas Latinoamericanas. Buenos Aires: Clacso, 2000b. p. 41-54.
  • DUSSEL, E. Filosofía de la liberación. Bogotá: Nueva América, 1996a.
  • DUSSEL, E. La analogía de la palabra (El método analéctico y la filosofía latinoamericana). Revista de filosofía, v. 10, n. 1, 1996b. p. 29-60
  • DUSSEL, E. La filosofía de la liberación ante el debate de la posmodernidad en los estudios latinoamericanos. Devenires, v. 1, n. 1, jan. 2000a.
  • FRANCHETTO, B. Línguas silenciadas, novas línguas. In: ISA. Povos Indígenas no Brasil: 2011-2016. Editores gerais: Beto Ricardo e Fany Ricardo. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2017. p. 58-61.
  • GOLIN, T. Os cotistas desagradecidos. Portal Geledés. 2014. Disponível em: https://www.geledes.org.br/os-cotistas-desagradecidos/. Acesso em: 14 mar. 2025.
    » https://www.geledes.org.br/os-cotistas-desagradecidos
  • GONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano (1988). In: HOLLANDA, H. B. de (org.). Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.
  • GONZALEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira (1980). Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244.
  • JAMESON, F. Estética de la singularidad. New Left Review, n. 92, 2015, p. 129-161
  • LEZAMA LIMA, J. La expresión americana. México: FCE, 1993 [1957].
  • LOPES, N. A questão negra no Brasil. In: LOPES, N. Bantos, Malês e Identidade Negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. p. 221-230.
  • LUCIANI, J. A. K. Sobre a antimestiçagem. Curitiba: Species - Núcleo de Antropologia Especulativa; Desterro, [Florianópolis]: Cultura e Barbárie, 2016
  • MANSUTTI RODRÍGUEZ, A. La demarcación de territorios indígenas en Venezuela: algunas condiciones de funcionamiento y el rol de los antropólogos. Antropológica, v. 105, n. 6, 2006, p. 13-39.
  • MARQUES, M. A cada 23 minutos, um jovem negro morre no Brasil’, diz ONU ao lançar campanha contra violência. G1 DF. 07/11/2017. Disponível em: https://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/a-cada-23-minutos-um-jovem-negro-morre-no-brasil-diz-onu-ao-lancar-campanha-contra-violencia.ghtml Acesso em 17 mar. 2025.
    » https://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/a-cada-23-minutos-um-jovem-negro-morre-no-brasil-diz-onu-ao-lancar-campanha-contra-violencia.ghtml
  • MIGNOLO, W. Trayectorias de re-existencia: ensayos en torno a la colonialidad/decolonialidad del saber, el sentir y el creer. Bogotá: Universidad Distrital Francisco José de Caldas, 2015.
  • MORAÑA, Mabel. Ideología de la transculturación. In: MORAÑA, M. (Ed.). Ángel Rama y los estudios latinoamericanos. Pittsburgh: IILI, 2006. p. 137-143.
  • ORTEGA Y GASSET, J. El hombre y la gente. Madrid: Revista de Occidente, 1955.
  • ORTEGA Y GASSET, J. Hegel y América. El Espectador VII. Madrid: Revista de Occidente, 1929.
  • RIVERA CUSICANQUI, S. Ch’ixinakax utxiwa: uma reflexão sobre práticas e discursos descolonizadores. São Paulo: N-1, 2021.
  • RIVERA CUSICANQUI, S. Sociología de la imagen: Miradas ch’ixi desde la historia andina. Buenos Aires: Tinta Limón, 2015.
  • RULFO, J. México y los mexicanos [1984]. In: RULFO, J. Toda la obra. Madrid: ALLCA XX/ Scipione Cultural, 1997, p. 443-445.
  • SANTIAGO, S. O começo do fim. Gragoatá, Niterói, v. 24, 2008, p. 13-30.
  • SANTIAGO, S. O cosmopolitismo do pobre. Belo Horizonte: UFMG, 2004.
  • SANTIAGO, S. Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978.
  • SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil - 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
  • SOUZA, D. População escrava do Brasil é detalhada em Censo de 1872. In: Fundação Cultural Palmares. Disponível em: https://www.gov.br/palmares/pt-br/assuntos/noticias/populacao-escrava-do-brasil-e-detalhada-em-censo-de-1872 Acesso em: 14 mar 2025.
    » https://www.gov.br/palmares/pt-br/assuntos/noticias/populacao-escrava-do-brasil-e-detalhada-em-censo-de-1872
  • SOUZA, J. A elite do atraso: da escravidão a Bolsonaro. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2019.
  • VIVEIROS DE CASTRO, E. Estamos assistindo a uma ofensiva final contra os povos indígenas. Entrevista por Ciro Barros, Thiago Domenici. Pública - Agência de jornalismo investigativo, 10 out. 2019. Disponível em: https://apublica.org/2019/10/viveiros-de-castro-estamos-assistindo-a-uma-ofensiva-final-contra-os-povos-indigenas/. Acesso em 14 mar 2025.
    » https://apublica.org/2019/10/viveiros-de-castro-estamos-assistindo-a-uma-ofensiva-final-contra-os-povos-indigenas
  • VIVEIROS DE CASTRO, E. Os involuntários da pátria - elogio do subdesenvolvimento. Belo Horizonte: Chão da Feira, 2017.
  • ZAVALETA-MERCADO, R. Lo nacional-popular en Bolívia. México: Siglo XXI, 1986.
  • 1
    “o criollo, isto é, o membro da classe dominante nascido na antiga colônia, o novo Senhor da nova Nação, é alguém que se constitui simultaneamente pela negação-afirmação do pólo indígena e pela negação-afirmação do pólo europeu. É preciso que ele afirme sua ‘indigeneidade’ na medida em que é preciso distinguir-se politicamente da matriz colonial, mas é preciso negá-la sob pena de ser obrigado a reconhecer os direitos preexistentes e preeminentes dos povos indígenas sobre o território. E é preciso afirmar sua europeidade (sua cristianidade, seu letramento, sua ‘cultura’) para poder negar esses direitos aos índios; mas é preciso negá-la para poder fazer valer seu direito à nova terra virada ‘nação’, isto é, Estado — para poder subordinar os povos indígenas” (Viveiros de Castro, 2017, pp. 5-6).
  • 2
    “Art. 7º O Estado concederá ás companhias de transporte maritimo que o requererem a subvenção de 120 francos pela passagem de cada immigrante adulto que ellas trasportarem da Europa para os portos da Republica e proporcionalmente, na razão da metade daquella quantia pelos menores de 12 annos até 8 inclusive, e a quarta parte pelos desta idade até 3 annos, uma vez que as mesmas companhias se obriguem a preencher as formalidades constantes deste decreto, e a não receber dos immigrantes mais do que a differença entre a citada quantia e o preço integral das passagens; o que deverão provar com as declarações por elles firmadas, as quaes serão aqui verificadas no acto da chegada” (Brasil, 1890).
  • 3
    Os proprietários dos lotes recebiam “200$, por familia que for collocada, e 250$, para a casa provisória”; “1:500$, por kilometro de estrada que for necessaria, para ligar a séde da propriedade á mais proxima estação de via-ferrea, ou a um centro de consumo; auxilio de 800$ para a construcção de caminhos internos”, entre outros benefícios. Quanto mais famílias, maior eram os prêmios: “O proprietario que tiver em sua propriedade cem familias regularmente localisadas, receberá o premio de 5:000$. Este premio se repetirá tantas vezes, quantas for proporcionalmente preenchida aquella condição, effectuando-se o respectivo pagamento, depois de feitas as necessarias verificações” (Brasil, 1890). “Art. 24. Os lotes contendo uma casa provisoria, de valor não inferior a duzentos e cincoenta mil réis, conforme o typo approvado pelo Governo, serão vendidos a immigrantes com familia pelo preço maximo de 25$, por hectare, estando as terras incultas, ou 50$, estando as terras cultivadas. [...] O pagamento será feito por prestações annuaes, a contar do primeiro dia do segundo anno do prazo, que não será menor de 10 annos, addicionando-se á importancia de cada prestação o juro nunca excedente a 9 % ao anno” (Brasil, 1890).
  • 4
    “Desde Nina Rodrigues e sobretudo Gilberto Freyre, os antropólogos tornaram-se bardos da nacionalidade, fenômeno sui generis no panorama internacional, a tal ponto que é agora aos antropólogos que se pede a elaboração dos mitos da brasilidade” (Carneiro da Cunha, 1986, p. 7).
  • 5
    Sobre isso, ver a fala da antropóloga Raial Orotu Puri, no TEDx da UFABC intitulado “Avós pegas no laço” (2019). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XeLu9lXfC8E. Acesso em 14 mar. 2025.
  • 6
    Segundo o IBGE, em 2020, a média salarial de homens brancos era de R$3567,75; de mulheres brancas era de R$2767, 83, de homens negros R$2376,43 e de mulheres negras R$1931, 93. Do total de residências chefiadas por mulheres negras no Brasil, 63% estão abaixo da linha de pobreza (IBGE, 2020).
  • 7
    Em 2017, a ONU lançou, a partir do Mapa da Violência da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO), uma campanha em que chamava a atenção para o fato de que a cada 23 minutos um jovem negro morre no Brasil. Segundo a oficial do Programa do Fundo de População da ONU, Ana Cláudia Pereira, "todos os anos são assassinadas no país 30 mil pessoas, 23 mil são jovens negros" (apudMarques, 2017). “Quando pegamos os índices, por exemplo, de morte de jovens brancos de classe média, em cidades como São Paulo, vão aparecer acidente de carro e fatalidades. Mas a incidência de mortes por policiais se dá com o jovem negro da periferia. Isso quer dizer que há uma incidência de morte em que o Estado é o agente, o sujeito. Ele é mais do que o responsável, ele é o culpado” (Borges, 2019).
  • 8
    Enquanto o número de línguas indígenas catalogadas pelo Instituto Socioambiental é de 160, o IBGE constatou 274. Essa diferença tem a ver com o fato de que o IBGE trabalha com o critério da autodeclaração (enquanto o ISA se baseia em dados acadêmicos). Sendo assim, no Censo aparecem indígenas que se declararam falantes de uma língua já considerada “extinta”, mas que conseguiram ressurgir da invisibilidade e do silêncio num movimento de resistência política absolutamente consciente. Conforme analisa Bruna Franchetto, “em sua luta para o reconhecimento de sua existência e resistência, bem como de seus direitos territoriais, se declarar falantes de uma ‘língua’ é um corolário lógico e uma urgência política” (2017, p. 59)
  • 9
  • 10
  • 11
    Nesse sentido, o intelectual falsamente obediente ressoa também no “O homossexual astucioso” (2002): “pergunto se o homossexual não pode e deve ser mais astucioso? Se formas sutis de militância não são mais rentáveis do que as formas agressivas? Se a subversão através do anonimato corajoso das subjetividades em jogo, processo mais lento de conscientização, não condiciona melhor o futuro diálogo entre heterossexuais e homossexuais, do que o afrontamento aberto por parte de um grupo que se automarginaliza, processo dado pela cultura norte-americana como mais rápido e eficiente?” (Santiago, 2004, p. 201).
  • 12
    Citamos, a seguir, trecho da eloquente definição de double bind, com que Rivera Cusicanqui suplementa a sua definição de ch’ixi: “Double bind: termo cunhado pelo antropólogo Gregory Bateson para se referir a uma situação insustentável que denomina ‘duplo constrangimento’. Este ocorre quando ‘há dois imperativos conflitantes, nenhum dos quais pode ser ignorado, e isso deixa a vítima perante uma disjuntiva de impossível resolução, pois qualquer uma das demandas que queira satisfazer anulará a possibilidade de cumprir com a outra’. Aqui usamos a tradução ao aymara pä chuyma para nos referirmos a uma ‘alma dividida’, ou literalmente uma dupla entranha (chuyma). Se relevamos essa expressão de suas tonalidades moralizantes, teremos exatamente uma situação de double bind. Ao reconhecimento dessa ‘dobra’, e à capacidade de vivê-la criativamente, demos o nome de epistemologia ch’ixi, que leva a habitar a contradição de modo que possamos nos libertar da esquizofrenia que pressupõe” (Rivera Cusicanqui, 2015, p. 326)
  • 13
    Para uma compreensão dos conceitos de diferença - interna à Totalidade ocidental e moderna - e distinção - alteridade real e concreta, externa em relação à Totalidade mencionada -, Cf. Dussel (1996a, 1996b, 2000a). Cf. também, Bautista Segales (2014).
  • 14
    “Separar os índios (e todos os demais indígenas) de sua relação orgânica, política, social, vital com a terra e com suas comunidades que vivem da terra — essa separação sempre foi vista como condição necessária para transformar o índio em cidadão. Em cidadão pobre, naturalmente. Porque sem pobres não há capitalismo, o capitalismo precisa de pobres, como precisou e ainda precisa de escravos. [...] Para transformar o índio em pobre, o primeiro passo é transformar o Munduruku em índio, depois em índio administrado, depois em índio assistido, depois em índio sem terra, índio que, se insistir em ser índio, ou ‘voltar’ a se reivindicar índio, será um ‘índio falso’, um índio de jeans, um espertalhão. Um falso índio, ou seja, um subcidadão, que jamais será um ‘branco’, mas um ‘mestiço’, esse prodígio de hipocrisia conceitual que define a ‘identidade brasileira’ — que a define na cabeça, pois nascida da cabeça, dos Brancos brasileiros” (Viveiros de Castro, 2016, p. 5)
  • 15
    Disponível em: https://brooklynrail.org/2021/02/criticspage/ReAntropofagia. Acesso em 8 mar. 2025.

Editado por

  • Editor de Seção:
    Fábio José Rauen

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Set 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    04 Abr 2025
  • Aceito
    13 Jun 2025
location_on
Universidade do Sul de Santa Catarina Av. José Acácio Moreira, 787 - Caixa Postal 370, Dehon - 88704.900 - Tubarão-SC- Brasil, Tel: (55 48) 3621-3369, Fax: (55 48) 3621-3036 - Tubarão - SC - Brazil
E-mail: lemd@unisul.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Reportar erro