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O alfabeto da vida

The alphabet of life

Resumos

Indica-se a mudança de foco a partir da qual as sociedades contemporâneas definirão o significado da vida e assinalam-se as novas formas de poder que advém dessa operação.


The change of focus through which contemporary societies will define the meaning of life is brought out and an insight of the new forms of power that rise from this operation is pursued.


O alfabeto da vida (da reprodução à produção)

The alphabet of life

Jonatas Ferreira* * Publicou anteriormente em Lua Nova (51/2000) "Técnica e liberdade"

Professor no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Pernambuco

RESUMO

Indica-se a mudança de foco a partir da qual as sociedades contemporâneas definirão o significado da vida e assinalam-se as novas formas de poder que advém dessa operação.

ABSTRACT

The change of focus through which contemporary societies will define the meaning of life is brought out and an insight of the new forms of power that rise from this operation is pursued.

Como entender a mudança 'cultural' profunda que se instala nas sociedades contemporâneas a partir do momento em que a biologia molecular passa a afirmar que a vida é o resultado do "mais incrível software jamais escrito" (Hood in Stock, G. e John Campbell, 2000, p. 18)? Uma resposta provisória poderia ser tentada do seguinte modo: trata-se de uma radicalização do processo de instrumentalização iniciado no Ocidente há mais de dois séculos. Uma constatação como essa, embora correta, deixa escapar características culturais distintivas da "ação morfogenética combinatória", presa que está a um campo teórico extremamente vinculado ao capitalismo industrial. "O material genético que compõe o organismo pode ser considerado como um texto elaborado a partir de elementos combinatórios individuais e manipuláveis. [...]Em vez de mudar o ambiente para adaptá-lo ao organismo [...], estamos começando a perceber que é necessário reprogramar o organismo para torná-lo compatível com o meio ambiente no qual a raça humana não pode mais sobreviver" (http://www.mediaevo.com/tempos/Welcome.html apud Laymert Garcia dos Santos, Folha de S. Paulo, 25/02/2001) No presente ensaio argumentarei que a dinâmica da recombinação genética, e sua metáfora alfabética, não podem ser satisfatoriamente entendidas se não refletirmos acerca do quanto esta dinâmica se afasta da idéia de reprodução mecânica. Mesmo tendo em mente as lições de Marx (O Capital, vol. 1, capítulo XIII), a máquina, o mecanismo industrial, ainda permitem a ilusão de uma distinção entre sujeito e objeto, cultura e natureza1 1 A esse respeito, Donna Haraway (2000, p. 46)observa: "As máquinas pré-cibernéticas podiam ser vistas como habitadas por um espírito: havia sempre o espectro do fantasma na máquina". . Embora sendo bem verdade que já a partir dessas lições podemos perceber que o instrumento não é apenas um meio dócil, posicionado entre as intenções de um sujeito ativo e uma natureza passiva, mesmo em Marx, o aparato tecnológico industrial ainda é concebido como potencialmente estando a serviço do humano. Esse já não é mais o paradigma tecnológico a partir do qual se pode conceber a digitalização da vida, e por isso mesmo a citação acima escandaliza.

O que temos aqui, mesmo sob a lógica daquilo que se convencionou chamar sociedade de informação, é distintivo. O fato de podermos conceber o mundo orgânico como algo virtual, como um software complexo que pode em princípio ser reprogramado, radicaliza possibilidades apenas timidamente sugeridas pelas experiências do ciberespaço. Obviamente, tendo em mente as promessas cibernéticas de uma transitividade plena entre carne e máquina, a digitalização da vida seria a quintessência da própria sociedade de informação. É importante, todavia, precisar o sentido que a expressão 'digitalização da vida' assume neste novo contexto, desfazendo um eventual mal-entendido. Nem o fato de, no mundo 'pós-industrial', a experiência sensível da vida quotidiana passar a acomodar planos reais e hiper-reais, nem o reconhecimento do caráter profundamente protético da vida civilizada capturam o sentido literal e perturbador desta expressão. Ora, segundo este novo paradigma tecnológico, a própria materialidade do real se torna virtual e o mundo natural e orgânico passa a ser percebido como atualização específica e não-excludente de uma matriz de possibilidades informacionais. O mundo natural já não é mais coisa em si, esfera pré-fenomenológica, alteridade que a cultura alternativamente concebeu como domínio ou refúgio.

Detenhamo-nos, por um instante, numa dicotomia que marcou a contribuição sociológica desde suas primeiras manifestações, nomeadamente, a oposição entre cultura e natureza. Apesar de ser bem verdade que a sociedade industrial agiu de forma a transformar a face do mundo natural de modo radical e predatório, não existe qualquer dúvida que, em tal contexto, natureza e cultura são consideradas esferas da vida perfeitamente diferenciáveis. Mesmo sob a perspectiva dos teóricos do darwinismo social, do funcionalismo clássico ou, mais recentemente, da sociobiologia, a natureza é sempre oferecida como o outro da cultura. Invariavelmente, trata-se de reconhecer a esfera de natureza para driblar sua lógica interna e, assim, civilizá-la. Tomemos dois exemplos. Apesar de algum mal-entendido a esse respeito, Darwin negou de forma veemente que a dinâmica da seleção natural, "de dentes e garras sangrentos", pudesse ser aplicada como princípio civilizador das sociedades humanas. Richard Dawkins (1979, p. 23), eminente popularizador da sociobiologia, adverte do mesmo modo: "Tentemos ensinar generosidade e altruísmo, porque nascemos egoístas. Compreendamos o que nossos próprios genes egoístas tramam, porque assim, pelo menos, poderemos ter a chance de frustrar seus intentos". A expressão normativa subjacentes a essas formulações teóricas, em última instância, não permite levar a termo aquilo que é prometido a nível conceitual, nomeadamente, uma redução da dinâmica cultural a esquemas supostamente naturais. Creio ser exato dizer que todo determinismo, todo reducionismo biológico, no fundo, funda-se numa consciência dúbia. Seu sentido primário, evidentemente, é o de preservar como esfera "em si" o mundo natural. Esse gesto não pode se viabilizar, todavia, sem admitir o oposto do mundo natural, ou seja, uma esfera de cultura perfeitamente circunscrita. Sem essa oposição, o mundo "em si" da natureza se diluiria como instância explicativa fundamental.

Sob a influência dos avanços recentes da biologia molecular, todavia, a natureza parece se dissolver enquanto instância originária, enquanto terreno nitidamente circunscrito sobre o qual, e em oposição ao qual, ainda poderíamos nos imaginar indivíduos, seres da cultura, sujeitos. Mesmo se um certo descentramento de há muito pudesse ser oferecido como a verdade dessa subjetividade, que afinal é um nó acoplando topografias matriciais cibernéticas e os contornos materiais da paisagem, ela ainda podia se abrigar e se reagrupar sob o guarda-chuva de algo que chamaríamos "humanidade". Sob este abrigo, em nome da cultura, realizou-se tradicionalmente a excreção da natureza, discriminou-se o civilizado do monstruoso. O "humano" não é um conceito politicamente ingênuo, fato que pode ser confirmado se nos debruçamos sobre aquilo que ele exclui de seu campo civilizador2 2 Ver, a esse respeito, Ferreira e Ventura (2001) . Na história do ocidente, uma área fundamental de exclusão é precisamente o mundo natural.

A conclusão dos trabalhos de leitura do genoma humano, projeto bilionário levado a termo por um consórcio transnacional que reuniu, entre outros países, os EUA, a França, o Reino Unido e o Japão, revelou um fato perturbador: nosso código genético é uma bricolagem de genomas inteiros de vermes e vírus. Nossa evolução, aliás, se deve em grande medida a esse fato. Se as portas para a realização de recombinações genéticas estão tecnicamente abertas, e se a instância fundamental a partir da qual se pensa a produção da vida (o gene, a proteína) já não afirma de modo tão enfático os limites entre as espécies, o que nos impede de concluir que a precária originariedade metafísica do humano não pode ser oferecida como alternativa civilizante? O que impede hoje a engenharia genética de prescindir por completo da idéia do humano instalando processos de transformações radicais em 'nossa' estrutura orgânica, segundo alguma conveniência de curtíssimo prazo? Este fato, aliás, já estaria sendo ansiosamente aguardado por uma certa radicalização do pensamento cibernético. Se a cibernética abandonou uma percepção fragmentada da relação entre consciência humana, mundo maquínico e natureza, para insistir numa continuidade sistêmica entre essas esferas, continuidade a ser alimentada pela informação, é de se esperar que a velocidade tecnológica contemporânea faça surgir arautos da transformação do corpo humano, críticos da obsolescência do corpo.

Em todo caso, às perguntas acima, existe sempre um tipo de resposta que insiste na defesa da cultura como último refúgio - uma resposta esperançosa de poder renovar limites civilizadores à intervenção biotecnológica. 'É preciso impor às transformações potenciais da biologia molecular limites éticos que garantam os direito do indivíduo', diriam alguns. A dificuldade, porém, subsiste quando nos damos conta de que os limites entre cultura e natureza não se sustentam diante da digitalização da vida. Em artigo recentemente publicado na revista New Scientist, Philip Cohen observava que os recentes desenvolvimentos na genômica comparativa acenam com a atualização de alguns sonhos da ficção científica recente. "Assim como lingüistas podem reconstruir línguas mortas só olhando para as raízes das línguas modernas, os geneticistas também podem inferir com que se pareciam os genes antigos, comparando os genomas de descendentes que têm um ancestral comum" (Folha de S. Paulo, 12 de Agosto de 2001). Perceba-se: uma tal constatação pouca relação apresenta com a efetivação de projetos conservadores que aparentemente buscaram reduzir os eventos da cultura a um suposto mundo das determinações biológicas. Passando ao largo das contradições metafísicas aqui envolvidas, nada disso parece ser nosso horizonte imediato, como atestam as recentes descobertas do Projeto Genoma Humano. Bem longe estamos da possibilidade de encontrar as chaves genéticas do 'comportamento' ou da 'afetividade' humanos. A dificuldade de preservar os limites 'civilizadores' entre cultura e natureza decorrem antes do próprio esvaziamento da esfera da natureza. A natureza já não pode apenas ser concebida como sistema fechado, em equilíbrio, limitado – atributos que caracterizam uma apreciação industrial da vida orgânica na terra – e portanto passível de reprodução. Para aqueles que vêem no determinismo biológico o eixo ideológico da cultura tecnológica contemporânea, diga-se: esta cultura vem se 'biologizando', naturalizando, na exata medida em que o mundo natural se torna cultural.

Perdido isto que o pensamento ocidental convencionou entender como a originariedade e a inteireza do mundo natural, a própria estrutura orgânica do real passa a ser elaborada como virtualidade. Voltemos ao ponto central. As novas tecnologias de recombinação genética nos ensinam que o grão de cereal, a bactéria, o primata são apenas um resultado orgânico eventual de uma seqüência precisa de instruções moleculares — instruções sobre a matéria inerte, passíveis de leitura, interpretação, recombinação. A partir da década de 50, a seguinte certeza vem se impondo na cultura ocidental: ao conhecer os "arquivos" e a "linguagem" que estruturam o software da vida, a biologia molecular se tornaria capaz de reprogramar o mundo orgânico, instruindo a bactéria a produzir insulina, um grão qualquer a manifestar características genéticas de um animal, bactéria etc., um primata a manifestar a fluorescência de certas algas. Neste contexto, a originariedade natural da Escherichia coli, do cereal ou do macaco Rhesus subsistiria apenas como uma possibilidade a mais, uma virtualidade, a que se adicionam outras tantas combinações tecnicamente viáveis.

O livro da vida é virtual. E isso não apenas porque as bibliotecas genômicas e proteômicas que supostamente o compõem possam eventualmente ser armazenadas em computadores de última geração, embora esse seja um dado importante. A virtualidade da qual estamos falando não pode ser compreendida nos termos através do qual o corpo humano é fragmentado, escaneado e recomposto no ciberespaço – como no Visual Human Project3 3 O VHP é um projeto da National Library of Medicine dos Estados Unidos que busca produzir imagens tridimensionais do corpo humano, equipando, assim, a disciplina de anatomia com os avanços recentes da tecnologia digital. Este projeto ganhou as páginas dos principais jornais do mundo sobretudo por haver se valido de técnicas como o crio-seccionamento do cadáver de um condenado à pena de morte, ou seja seu seccionamento em fatias de um milésimo de milímetro após seu congelado, na geração de imagens digitais. . Nem mesmo porque sua tradução ao nível informacional nos dê a estranha e falsa impressão de que a vida se estruture a partir de uma combinação alfabética em tudo semelhante às seqüências binárias que dão 'alma' aos computadores. O livro da vida é virtual porque ao descobrir uma 'sintaxe da vida' nós tanto passamos a nos reconhecer como expressões lingüísticas do mundo natural, como a nos aventurar como autores num novíssimo mercado editorial. Este livro, portanto, nenhuma relação imediata apresenta com a idéia medieval de que existiria um livro da natureza, escrito por Deus, que caberia ao ser humano procurar ler e interpretar. A vida já não pode mais simplesmente ser pensada como resultado de uma reprodução. A vida agora passa a ser produzida. A idéia de um alfabeto da vida nos remete a um espaço literário aberto. Não se trata apenas de ler as palavras que já existem, mas da possibilidade de criar palavras novas, sintaxes.

Essa transformação é profundamente mais perturbadora que aquela que fez o ser humano abandonar uma condição 'passiva' em relação ao ritmo natural para procurar potencializá-lo segundo uma lógica e um ritmo mecânicos. Com a industrialização, o tempo cósmico que ordenava a vida nas sociedades tradicionais é esvaziado, linearizado e substituído pelo ritmo das máquinas – apenas este esvaziamento e linearização permitem ao ser humano uma postura ativa, potencializadora em relação aos ritmos naturais. O ritmo mecânico impõe a perspectiva da obsolescência como horizonte existencial a partir do qual o mundo dos fenômenos é percebido. O obsoleto é revalorizado e mesmo requerido como alternativa do presente, como podemos perceber através das ambições científicas de ressuscitar dinossauros ou tigres da Tasmânia. Com a digitalização da vida uma percepção linear, evolutiva do tempo parece explodir. Mas se o tempo já não é mais linear, os fenômenos que ele determina não podem ser pensados simplesmente a partir do princípio da reprodutibilidade - princípio este que torna os artefatos eventualmente obsoletos. O tempo presente é agora percebido como uma matriz de possibilidades cuja atualização sempre abrirá uma nova matriz de possibilidades.

A imagem oferecida pela genômica comparativa de que o tempo poderia ser agora simplesmente rebobinado como numa fita de cinema, ressuscitando animais há muito extintos não é radical o suficiente. Ela ainda sugere que as transformações promovidas pela biologia molecular possam ser compreendidas a partir de uma lógica temporal linear. Para ser exato, então deveríamos dizer que o livro da vida não deve ser compreendido apenas como um texto, mas um hipertexto.

BIOPODER

O homem grego, ensina Giorgio Agamben, conhecia duas palavras para designar vida, zoe e bios. A primeira dessas palavras expressava a vida que compartilhamos com outros seres vivos, uma "vida nua", natural, enquanto que apenas a segunda poderia indicar a vida civilizada, ou seja, vida humana propriamente dita, âmbito onde a questão política do bem viver poderia ser discutida. Para Foucault, é precisamente a politização da zoe de acordo com as determinações da lógica do mecanismo industrial que marcaria a sociabilidade moderna4 4 Essa tese é revista e ampliada por Agamben que vê na modernidade apenas a exacerbação de um processo que se consolida no mundo ocidental há milênios. . A inserção da vida natural no centro das estratégias políticas do mundo ocidental, fenômeno que consolida e define a acepção moderna de exercício do poder, coincide assim com aquilo que Michel Foucault chama de biopolítica. No A Vontade de Saber ele já chamava atenção para essa transformação cultural radical. Nas sociedades modernas, o exercício do poder deixa de se afirmar como um "deixar viver" e "fazer morrer" (prerrogativas do poder soberano do monarca absoluto, por exemplo) e se torna um "deixar morrer" e "fazer viver". "Mas o que se poderia chamar de 'limiar de modernidade biológica' de uma sociedade que se situa no momento em que a espécie entra como algo em jogo em suas próprias estratégias políticas. O homem, durante milênios, permaneceu o que ele era para Aristóteles: um animal vivo e, além disso, capaz de uma existência política; o homem moderno é um animal, em cuja política, sua vida de ser vivo está em questão" (1988, p. 134).

A vida (humana e não humana) que cumpre às estruturas modernas de poder moldar, estender, potencializar, higienizar, distribuir no espaço, transformar de acordo com a lógica do mecanismo industrial, precisa ser pensada como "vida nua", uma vida esvaziada de conteúdos culturais e, portanto, passível de racionalização. Assim, por exemplo, a disciplina industrial concebe a vida do operário em termos bastante semelhantes àqueles empregados para garantir o funcionamento das máquinas. Nos dois casos deve-se garantir o necessário à operacionalidade, seja sob a forma de manutenção periódica e amortização das máquinas, seja sob a forma de pagamento de um salário que possa garantir subsistência ao trabalhador e à sua prole. Apenas a "vida nua", ou seja, a entrada da vida natural nas estratégias políticas e econômicas das sociedades modernas, pode ser objeto de extração de mais-valia. Apenas uma tal concepção de vida pode gerar a noção de trabalho abstrato, ou seja, de um trabalho eminente voltado para a produção industrial.

No final da década de 70, em uma de suas aulas no Collège de France, Foucault chamava atenção para o fato de o biopoder se materializar a partir de duas estratégias distintas, ambas agindo de modo a afirmar a lógica mecânica, a lógica industrial. A primeira delas, correspondendo ao que ele chama de disciplina, centra-se no corpo individual, corpo que a disciplina torna maleável, eficiente. Através da disciplina, a modernidade realizou a "distribuição espacial dos corpos", promoveu a "organização de um campo de visibilidade" dentro do qual o fluxo destes corpos pôde ser otimizado. O capitalismo industrial treinou, aumentou e potencializou a vida útil destes corpos. Quanto à segunda estratégia, ela diz respeito ao que Foucault chama de regulamentação da vida humana. Trata-se não apenas de disciplinar um "homem-corpo" pensado como inteireza, individualidade, mas de exercer um controle sobre o "homem-vivo", sobre a vida pensada em bloco, sobre o ser humano concebido como "ser-espécie". Saneamentos, higiene pública, são instrumentos de "fazer viver" e "deixar morrer" a espécie pensada em sua totalidade, pensada como uma população. Assim, a medicina "vai ter, agora, a função maior da higiene pública, com organismos de coordenação dos tratamentos médicos, de centralização da informação, de normalização do saber, e [...] adquire também o aspecto de campanha de aprendizado da higiene e de medicalização da população" (Foucault, 2000, p. 291). Na prática, os poderes disciplinares e regulamentadores se articulam como equipamentos essenciais da lógica industrial, que, modelando a vida em bloco ou individualmente, afirmam sempre a prioridade do mecanismo. "Não quero fazer essa oposição entre Estado e instituição atuar no absoluto, porque as disciplinas sempre tendem, de fato, a ultrapassar o âmbito institucional e local em que são consideradas. E, depois, elas adquirem facilmente uma dimensão estatal em certos aparelhos como a polícia, por exemplo, que é a um só tempo um aparelho de disciplina e um aparelho de Estado" (Foucault, 2000, p. 298-299).

É preciso perceber agora as linhas fundamentais que diferenciam as práticas biopolíticas nas sociedades industriais e nas sociedades de informação: no primeiro caso a vida é uma substância maleável, que pode ser reproduzida e modelada dentro de limites mais ou menos claros; no segundo caso, trata-se da digitalização e produção da vida. Enquanto o corpo moderno tem se mostrado plástico, adaptável às pressões do capital, o capital biotecnológico contemporâneo prescinde da própria inteireza de corpo ou dos limites da espécie para se reproduzir e produzir a vida. Um movimento nesta direção já é dado por certo tipo de práticas biotecnológicas situa das no limiar entre o corpo moderno e o corpo digital. Este é, por exemplo, o caso da fertilização in vitro. A inteireza do corpo reprodutor cede aqui lugar ao desmembramento, à desconjunção, à fragmentação, em tantas etapas quantas sejam necessárias para garantir a re(produção) da vida.

A fertilização in vitro, todavia, ainda concebe o corpo como mecanismo, ainda o decompõe segundo a lógica de conexão, desconexão e substituição específica da máquina em relação às peças que a compõem. Creio que se enganam aqueles que vêem da clonagem humana, nos elementos narcisistas que orientariam a reprodução em massa de seres humanos, o grande fantasma da engenharia genética. Reduzir os impactos da biotecnogia contemporânea à reprodução em massa é, no mínimo, falta de imaginação. Se a radicalização de práticas biopolíticas disciplinares e regulamentadoras puderam determinar conclusões terríveis como a eugenia, o racismo, a verdade é que estas conclusões só poderiam ser produzidas a partir da seguinte pressuposição: o poder deve ser exercido como potenciação dos corpos individuais ou como higiene da espécie, o que significa dizer, respeito aos seus limites rígidos (do corpo individual ou da espécie). A eugenia e o racismo, portanto, não são as conseqüências mais radicais da digitalização da vida – o que não significa dizer que as práticas de recombinação genética sejam imunes a esse tipo de motivação.

A rigor, deveríamos dizer que, numa sociedade industrial, a biopolítica se instala a partir do seguinte dilema: por um lado, ela promove uma compreensão naturalizada da vida em sociedade, visto que apenas a "vida nua" pode se adequar à dinâmica industrial. Segundo essa perspectiva, o corpo pode ser decomposto em um conjunto de peças, que podem ser desconjuntadas e reagrupadas de acordo com algum tipo de regra operacional. Por isso mesmo, neste nível, a inteireza da espécie ou do corpo individual pode em grande medida ser vazada. Por outro lado, apenas o respeito à idéia de inteireza define o espaço sobre o qual a vida pode se tornar maleável, potencializada, reproduzida segundo os critérios de eficiência do capital técnico. Ou seja, através de noções como consciência, subjetividade, humanidade, o capitalismo industrial reagrupa aquilo que ameaça produzir metástase, entropia, caos. O darwinismo, por exemplo, já apresentara de modo implícito os termos de uma tensão sobre a qual a sociobiologia elaborará a sua contribuição. Senão vejamos. Por um lado, a seleção das espécies é o mecanismo de evolução da vida na terra — a noção 'espécie' é, assim, a unidade analítica básica desta teoria. Por outro lado, não podemos esquecer que 'espécie' é apenas uma estratégia de perpetuação da vida na terra. A vida natural poderia sempre ser entendida como conceito fundamental ao qual, em última instância, tudo se submeteria, inclusive a noção de espécie. Afinal, repitamos, o próprio surgimento de espécies na terra foi apenas uma estratégia que a vida, num sentido amplo, tomou para se perpetuar.

Com os recentes desenvolvimentos da biologia molecular, essa antinomia perde seu sentido. O biopoder que aqui se define passa a ter no "alfabeto da vida", na vida como instrução elementar, intercambiável, recombinável, a estrutura elementar de sua política. "Os organismos deixaram de existir como objeto de conhecimento, cedendo lugar a componentes bióticos, isto é, tipos especiais de dispositivos de processamento de informação" (Haraway, em da Silva, Tomaz, 2000, p. 73) O que muda? Na imagem 'alfabeto da vida' estamos diante da indiferenciação absoluta. A vida em sua dinâmica mais elementar não precisa respeitar barreiras entre as espécies, ou uma demarcação clara entre "papai" e "mamãe"; ela é constituída a partir de um código genérico que podemos, em princípio, manipular de modo a criar neologismos, novas sentenças, fábulas, "cópias sem originais". A percepção da natureza como instância limitada em seus recursos, limitadora em sua dinâmica, equilibrando, harmonizando através da lógica da escassez as ações das diversas espécies em sua luta pela subsistência, cede lugar a uma compreensão da vida na terra como produto de uma linguagem de programação. Comparando o poder atômico (exacerbação da lógica mecânica aplicada à natureza) com os avanços biotecnológicos da década de 70, Foucault parece perceber a importância dessa forma emergente de biopoder.

"Esse excesso de biopoder aparece quando a possibilidade é técnica e politicamente dada ao homem, não só de organizar a vida, mas de fazer a vida proliferar, de fabricar algo vivo, de fabricar algo monstruoso, de fabricar – no limite – vírus incontroláveis e universalmente destruidores. Extensão formidável do biopoder que, em contraste com o que eu dizia a pouco do poder atômico, vai ultrapassar a soberania humana" (Foucault, 2000, p. 303).

É preciso que deixemos claro algo que o leitor já deve ter inferido de nossa argumentação. Embora um instrumento analítico extremamente relevante para entender como a vida biológica entra nas estratégias de poder da modernidade, o conceito de biopoder apresenta algumas limitações para tratar do processo de digitalização da vida. Quer como regulamentação, quer como disciplina, este conceito não torna evidente o fundamento dos novos processos de politização da vida, nomeadamente, a transitividade perfeita entre os viventes, a explosão dos corpos, a indeterminação das fronteiras entre as espécies. Pelo contrário, o biopoder produz estas demarcações, e é através dela que o capital pode pensar na reprodução higiênica, segura, dócil da vida. Neste sentido, parece pouco provável que uma política centrada na informação genética seja concebida em termos disciplinares ou regulamentadores. O problema sobre o qual Foucault se debruçou era o do controle político dos corpos, o nosso é a produção da vida. Dadas suas consequências ecológicas e culturais, as implicações desta nova ênfase política seria, num certo sentido, anti-disciplinares e anti-regulamentadoras.

CORPO E REPRODUÇÃO NA SOCIEDADE INDUSTRIAL

Antes mesmo de Darwin pensar a vida sobre a terra como uma substância plástica que molda a si própria, e que pode vir a ser moldada pela vontade humana caso se compreenda a lógica interna que determina esta maleabilidade, ou seja, quando compreendemos a lógica da seleção, Kant já havia dado um passo no sentido daquela consciência. De fato, em um de seus ensaio menos populares, "Das diferentes raças humanas", ele se detém na procura de um critério capaz de orientar a classificação científica dos seres vivos. Esse critério ele encontra na reprodutibilidade. Criticando a classificação medieval dos animais, que "reparte os animais a partir de semelhanças", e cujo resultado é uma sistematização de utilidade apenas mnemônica, ele propõe esse novo critério que separaria os animais a partir de leis científicas. "No reino animal, a classificação natural em gêneros e espécies repousa sobre a lei comum da reprodução, e a unidade nos gêneros é apenas a unidade da força da reprodução, que, para uma variedade dada de animal, é universalmente válida. Segue-se, assim, a regra enunciada por Buffon: 'Todos os animais capazes de, por acasalamento, produzir filhotes a seu turno fecundos (quaisquer que sejam suas diferenças de aspecto) pertencem todavia a um só e mesmo gênero físico'" (Kant, 1947, p. 7) Pertencer ao gênero humano, por conseguinte, passa agora a ser determinado de acordo com um critério biológico: a capacidade de gerar filhotes férteis. O pigmeu, portanto, já não pode ser considerado in-humano, ou monstruoso, como o fora na Idade Média, pelo mero fato de suas características fenotípicas o distinguirem de modo considerável do europeu 'civilizado'.

Sob o rigor dessa nova perspectiva, aliás, a aberração natural, a monstruosidade estética, já não pode ser apontada com muita convicção. Aproximadamente meio século depois de Kant, Darwin (1985, p. 48) se manifestará a esse respeito do seguinte modo: "As experiências de Geoffrey Saint-Hillaire demonstram que um tratamento anormal aplicado ao embrião produz monstruosidades, e estas não podem ser separadas das meras variações por uma linha divisória nítida". Num contexto de modernização, quando o corpo passa a ser pensado como coisa maleável, já não se pode distinguir com muita convicção o próprio do impróprio, a proporção da desproporção.

Uma expressão radicalmente moderna, e contemporânea, das tensões estéticas que essa maleabilidade acarreta é explorada pela artista plástica francesa Orlan. Seu corpo-ateliê, corpo-oficina, corpo-obra-de-arte, aberto ao mundo pela cirurgia, não promove outra proporção que não aquela estabelecida entre sua consciência artística - consciência de si que sempre há de recompor seu corpo mutilado - e o limite de sua constituição física. Alinhando-me com outros comentadores do seu trabalho, acredito que o resultado das provocações artísticas de Orlan não seria tanto a subversão da tirania do padrão de beleza tipificado na 'boneca Barbie', ou seja, um ultraje deliberado à docilidade com que determinados padrões de beleza são impostas ao feminino. Este resultado deve antes ser compreendido como busca de uma afirmação radical do eu sobre as instruções mecânicas do mundo orgânico. Trata-se, por assim dizer, da busca de uma vitória da mente sobre o corpo, hiper-cartesianismo, mesmo se aceitarmos que o corpo transformado retorne para reconfigurar esse self originário que heroicamente afirma o presente da decisão sobre as determinações da memória biológica. Sobre que tipo de campo técnico-político uma tal arte pode florescer? Sobre um campo sulcado pelo reconhecimento de uma tensão entre um corpo carregado de memória biológica e a aceitação de sua plasticidade. Esta tensão consolida, e é preciso que isso seja dito, um espaço cultural sobre o qual a política passa a defrontar a questão da eugenia. Por esse motivo, algo de profundamente contundente e simples emerge das instalações de Orlan: propor a pluralidade estética onde apenas o critério unívoco da eficiência funcional parece ser a forma de resolver aquela tensão. A esse respeito, Kant já comentara:

"É sobre essa possibilidade de estabelecer, através de uma triagem cuidadosa entre os recém-nascidos degenerados e os recém-nascidos bem constituídos, uma linhagem familiar durável, que repousava a idéia de Maupertuis que projetara desenvolver em um país qualquer certa linhagem de homens dotados de inteligência, habilidade e retidão hereditárias5 5 Kant segue sua explanação criticando esta posição de Maupertuis. " (Kant, 1947, p. 10).

Constatados a maleabilidade da vida e o campo que limita tal maleabilidade, a espécie, a idéia de seleção parece surgir sem maior esforço. É importante perceber que esse conceito central ocorre a Darwin através da observação da ação humana sobre a natureza. Não é fortuito, portanto, que na estrutura do Origem das Espécies, a exposição da idéia de 'seleção na tural' seja precedida por algumas considerações acerca daquilo que ele próprio chama 'seleção artificial', ou seja, a ação técnica deliberada de agricultores e criadores no sentido da seleção de seus melhores grãos e animais para a produção de cultivares e a melhoria de plantel. A descoberta científica, aqui, aparece como decorrência de um olhar atento sobre práticas seculares de manipulação da vida natural. "Os criadores geralmente falam da estrutura orgânica de um animal como se se tratasse de algo inteiramente maleável, que poderiam moldar quase que a seu inteiro talante". (Darwin, 1985, p. 63) A plasticidade da vida inspira em Darwin um sentimento de potência entre religioso e artístico: "Lord Somerville, referindo-se aos sucessos alcançados pelos criadores de carneiro, escreveu: 'Dir-se-ia que poderiam rabiscar num muro uma forma que fosse em si a mais perfeita, e depois lhe dariam existência'"(ibid., p. 63)

A vida que pode ser medida, controlada, expandida, melhorada nos laboratórios deve apresentar qualidades específicas que a tornem passível de uma tal manipulação. A vida contextualizada das sociedades tradicionais, por exemplo, não pode ser pensada em termos de seleção na tural. Ora, ela não é abstrata o suficiente para permitir este gesto teórico. A vida maleável das espécies, por outro lado, deve materializar algumas características essenciais para poder preservar a si. A primeira delas é a fecundidade. A vitalidade de uma espécie é dada pela capacidade que apresentem os indivíduos que a compõem de gerarem cópias fecundas de si mesmos. O segundo critério é a longevidade. Os indivíduos desta espécie devem viver o suficiente para se tornarem maduros e fecundos e, assim, garantir através da reprodução a sobrevivência da espécie. Como terceiro critério, Darwin nos apresenta a capacidade de replicação. Com graus diferentes de sucesso, em que influenciam as oportunidades do meio ambiente, o que vive deve perpetuar no novo sua imagem e semelhança. A partir destes três critérios, e tendo como linha de restrição a escassez de recursos sobre a terra, a natureza seleciona aquilo que está apto a sobreviver. Através da seleção natural as espécies adaptam-se ao seu meio ambiente. Através de um conhecimento tácito ou consciente destes mecanismos, o ser humano seleciona e transforma a natureza segundo sua conveniência.

É um corpo culturalmente esvaziado que pode ser esquadrinhado, medido, modelado; é esse corpo que pode ser pensado como máquina viva. Reafirme-se a propósito que, já a partir de Descartes, natureza é considerada como grande mecanismo. "Isso não parecerá de modo algum estranho para quem, consciente de quantos autômatos diferentes ou máquinas de movimento o engenho humano do homem pode conceber, usando algumas poucas peças, em contraste com a enorme quantidade de ossos, músculos, nervos, artérias, veias e todas as outras partes que estão no corpo de cada animal, considerará esse corpo como uma máquina, a qual, tendo sido feita pelas mãos de Deus, é incomparavelmente melhor arranjada, e tem em si melhores movimentos que qualquer daquelas que possam ser inventadas pelo homem" (Descartes, 1968, p. 73). Alguns elementos candidatam a natureza a ser alvo deste tipo de apreciação. Podemos citar, dentre outros, por um lado, a recorrência e previsibilidade de seus ciclos e, por outro lado, o desejo íntimo de que, à semelhança do que se esperava das máquinas, o princípio dinâmico da natureza estivesse submetido ao controle e à instrumentalização humanos. A natureza já não deve ter o seu princípio de reprodução em si mesmo, tal como entendia Aristóteles. Ela encontra um espelho no mundo mecânico basicamente por ser o alvo prioritário da razão instrumental, do desejo de controle e reprodução. Por isso Descartes procurar afastar o espírito humano da recorrência mecânica desta dinâmica: o humano deve instrumentalizar e não ser instrumentalizado. Assim, "se existissem máquinas semelhantes ao nosso corpo e imitassem nossas ações, até onde isso fosse moralmente possível, nós ainda teríamos certamente dois meios de reconhecer que elas não seriam, apesar de tudo, homens reais" (ibid. p. 73 e 74). Esses dois critérios são o uso da linguagem, sobre o qual, afinal, Descartes estrutura a prova da consciência de si, e a capacidade de agir racionalmente. A consciência de si, para ele, seria necessariamente livre dos processos inelutáveis do mundo orgânico. Depois de Descartes, Offray de La Mettrie afirmará que mesmo a vida espiritual e a política humanas estariam submetidas aos princípios mecânicos que regem o mundo natural. Apesar disso, La Mettrie ainda creditava ao médico uma tarefa política diferenciada e impossível de ser circunscrita em outro terreno que não o da cultura. Ninguém melhor que um médico para comandar politicamente as comunidades humanas: mais que nenhum outro cidadão, ele conheceria a dinâmica que rege 'a vida'.

"'O Homem-Máquina' de La Mettrie é ao mesmo tempo uma redução materialista da alma e uma teoria geral do adestramento, no centro dos quais reina a noção de 'docilidade' que une ao corpo analisável o corpo manipulável" (Foucault, 1997, p. 118)

O "corpo dócil", de que nos fala Foucault, é centro de um investimento tecno-político que o distingue do corpo disciplinado nos conventos medievais, ou do corpo escravo. "Uma 'anatomia política', que é também uma 'mecânica do poder', está nascendo; ela define como se pode ter o domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, como as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina" (Ibid., p. 119) Tomemos como exemplo o código de práticas que consolidou a obstetrícia moderna. Em vários tratados acerca do parto, tais como A Treatise on the Theory and Practice of Midwifery, recomenda-se ao jovem obstetra que cuide do corpo feminino (corpo imprevisível, sempre na iminência do defeito, do mal funcionamento) do mesmo modo que um mecânico trataria de uma máquina. Apenas deste modo, garantir-se-ia um produto final, um bebê, de boa qualidade. "O surgimento da ciência da obstetrícia em última instância realizou este objetivo através da adoção do modelo da linha de montagem de bens [...] como metáfora para o nascimento em hospital. De acordo com essa metáfora, o sistema reprodutivo feminino é tratado como uma máquina de natalidade por técnicos treinados que trabalham sob horários semiflexíveis para atingir demandas de produção e qualidade" (Davis-Floyd, Robbie e Joseph Dumit, 1998, p.4) O processo através do qual o corpo feminino passa a ser representado como uma máquina, a ser monitorada e controlada, e o bebê como um produto a ser aperfeiçoado pela interferência de uma obstetrícia cientificamente fundamentada, deve ser compreendido como uma transferência de poder político. Espera-se que a ciência civilize a natureza, que nada seja deixado ao sabor imprevisível do feminino, do na tural. Por isso mesmo a concepção moderna de uma política centrada no corpo, tenderá a reproduzir cismas metafísicos clássicos, tais como, corpo e mente, natureza e cultura, mundo mecânico e mundo transcendente.

A MORTE DO CORPO

Na medida em que traz à tona a questão "qual a vida que merece ser vivida", toda política da vida é também uma tanatologia. Um posicionar-se diante da morte é, deste modo, uma dimensão intrínseca dos processos biopolíticos através dos quais a modernidade se legitima. Seguindo Foucault, já dissemos acima que a estruturação política da modernidade se materializa como um "deixar morrer" e "fazer viver". Em contraste com o sentido público do qual ela se investe nas sociedades tradicionais, a morte na modernidade é percebida como fenômeno privado e vergonhoso. A morte já não é esfera de consolidação de um poder soberano, já não cabe mais ao poder decidir acerca da morte e deixar viver. Pelo contrário, a morte é o embaraço deste poder precisamente porque sobre ela uma política alicerçada sobre a disciplina, regulamentação e a potencialização da vida natural se mostra absurda.

Ocorre-me como ilustração deste fato a trama do filme Bringing out the Dead, de Martin Scorcese. Este filme trata dos dilemas de um paramédico, capturado por um sentimento de responsabilidade sobre a vida de uma vítima de ataque cardíaco, a quem ele salva deixando em estado vegetativo, sem esperanças de recuperação. Nos termos de uma política alicerçada sobre um "fazer viver" e "deixar morrer" chegamos aqui a um terreno opaco, e, por isso mesmo, 'perigoso'. O paciente está tecnicamente vivo. Como podemos nos posicionar com um mínimo de dignidade ética diante deste corpo natural que ainda funciona, mas que já não pode aquiescer enquanto sujeito diante de uma rede de sociabilidade fundada na disciplina e na regulamentação? O corpo natural obrigado a viver já não possui laços claros com o mundo. Por outro lado, como poderíamos deixar de tentar um tal posicionamento, se é esse corpo precisamente o âmbito dos investimentos biopolíticos através dos quais a modernidade se reproduz? A tradução biotecnológica desses investimentos cria, assim, o corpo em estado de emergência. O corpo moderno agoniza, dentro e fora de sua única possibilidade de vida. Especifiquemos com mais cuidado este "dentro e fora". Ao negar-lhe a possibilidade de morte, a medicina moderna exerceria sobre o corpo moribundo um poder extremo. Paradoxalmente, porque não pode garantir a esse corpo uma sociabilidade que não seja um estar-ausente, este exercício de poder é fundamentalmente nulo sobre o moribundo. Mesmo se compreendemos o sentido exemplar deste exercício de poder, estamos diante de uma situação em que a inteireza do corpo já não garante uma subjetividade, uma consciência sobre a qual se exerça disciplina política. Dito de outro modo, a disciplina política já não pode construir consciências capazes de promover a disciplina do corpo.

Evidentemente, a técnica é o elemento fundamental no estabelecimento deste espaço de contornos borrados onde o moribundo subsiste em suspensão. Desenvolvimentos tecnológicos tais como a ventilação post-mortem, por exemplo, não apenas tornam problemático o estabelecimento de limites claros entre o que vive e o que está morto, como também questionam nossas posturas culturais diante do 'cadáver'. Este é o caso das mulheres grávidas com morte cerebral, cujas funções vitais são preservadas artificialmente em benefício do feto. Em um artigo instigante acerca de "ciborgues fetais" e "tecnomães", Monica Casper observa a esse respeito: "Nesta prática, é a mulher grávida (ou a parte orgânica de seu corpo que permanece viva) quem/que é transformada em ciborgue através de tecnologias de suporte à vida e/ou ventilação. Todavia, algo engraçado acontece no caminho do necrotério: o corpo da mulher grávida se transforma na tecnologia que transforma o feto. [...] Aquilo que sustém o ciborgue fetal não é mais o toque quente de um útero vivo e consciente; é a tecnomãe e as várias "tecnologias da vida" bombeando através do corpo dela. Na ventilação post-mortem, o feto é como um astronauta (ou uternauta?), um passageiro orgânico dentro do espaço da cápsula na qual se transforma o corpo da mulher morta" (In Gray et al., 1995, p. 190). Que transformações culturais produzem uma tal metáfora: um cadáver pensado como máquina de sobrevivência de um feto?

Agora, compare-se isso com a produção de órgãos e tecidos. Todos sabemos que a possibilidade de produção de órgãos a partir de óvulos fecundados, sobretudo aqueles que não foram aproveitados em processos de fertilização in vitro, ou seja, aqueles que 'jazem' em estado de suspensão no limbo das clínicas de fertilização humana, é uma conquista iminente da engenharia genética. Esta perspectiva tem acendido acaloradas discussões acerca do significado ético de se desenvolver uma fábrica de órgãos. Num artigo da revista canadense Actualité de setembro de 1999 se lê: "um fígado novinho, cultivado a partir de tuas próprias células? Um dia, provavelmente, a ciência poderá te fabricar um. Graças, entre outros, aos trabalhos do Dr. François Auger, fundador do Laboratório de organogênese experimental do Hospital de São Sacramento, no Quebec". Aqui a totalidade do organismo humano sequer chegaria a existir. A rigor, e isso é o ponto sobre o qual queremos nos deter, a idéia de alfabeto da vida estrutura-se a partir de uma lógica independente deste lugar de poder específico que é o corpo. A característica central deste processo é a produção de memória biológica e não mais a suplementação técnica desta memória através de próteses, ou a seleção artificial e limitada de determinados padrões genéticos que as espécies podem produzir.

A economia existente entre vida e morte aqui se transforma radicalmente. Num mundo que já não se estrutura a partir da inteireza do corpo e do limite entre as espécies, mesmo que negativamente, como o humano poderia se posicionar diante da morte e como esse posicionar informaria o viver? Em entrevista recente, o artista australiano Stelarc comenta algo que permite dimensionar a relevância de formular esta questão:

"De repente nós nos deparamos com a possibilidade técnica de que a existência não inicie mais com ao nascimento, nem termine necessariamente com a morte. Assim, estar vivo significa mais ser operacional, e não um nascimento do tipo: nutrir, amadurecer, declinar, como temos visto" (em entrevista a Ross Farnell in Featherstone, 2000, p. 132).

Stelarc é, todavia, fiel representante de uma geração para a qual a prótese ainda se oferecia como horizonte cultural radical. Mesmo quando ele se refere à 'obsolescência do corpo' ele tem em mente a prótese como veículo através do qual o corpo reconfigurado poderia alcançar "velocidade planetária". Todo o imaginário político e estético ciborgue fundado na pele rasgada pelo metal, descontinuidade de tecidos, bricolagem de silício, metal, plástico e carne, no reconhecimento de uma relação incestuosa entre técnica, natureza e cultura, e que por isso tem de dar lugar ao "híbrido", à aberração que pode suplementar a memória genética, mas não pode pretender redefinir o seu funcionamento, tudo isso tem ainda no corpo inteiro sua principal fonte de referência. O corpo pensado como complexo fabril, que pode ter seus procedimentos acelerados, aperfeiçoados. No "híbrido" a imagem do monstro já não nos retorna de modo automático o próprio, o corpo proporcional e belo, como única possibilidade de civilização, é bem verdade. Mas esse ainda é, em grande medida, seu horizonte de diálogo. Pode-se dizer, então, que o horizonte temporal do híbrido é a extinção, pois, embora ansiando um mundo construído pelo "presente eterno" do voluntarismo tecnológico (ibid., p. 200) , ele não pode propor a escrita de uma nova memória biológica que pudesse viabilizar essa pretensão a um "presente eterno". O híbrido é, por definição, aquilo que irá perecer. Por esse motivo, por não poder ocultar sua mortalidade, o horizonte existencial do híbrido é uma radicalização de tudo aquilo que o moderno pode efetivamente proporcionar. Seu imaginário não poderia ser povoado de outra coisa senão 'dissolução', 'velocidade', 'obsolescência', 'visibilidade'.

Quanto à imagem tecnológica do alfabeto da vida, primeiramente, pode-se dizer que ela dá passagem a uma política que já não precisa da 'colonização' da figura do monstruoso, de sua alteridade e estigma para se legitimar. Pelo contrário, ela parece indicar uma fusão higiênica, homogênea entre técnica e organismo, entre natureza e cultura. Do ponto de vista da percepção de evidências tecnológicas, um tomate transgênico, por exemplo, é absolutamente transparente. Mas é sobretudo a metáfora do híbrido que menos se aproxima das novas possibilidades de reconfiguração do 'mundo natural'. Pois embora sendo bem verdade que as técnicas de DNA recombinante também possam fazer surgir macacos fluorescentes, folhas de tabaco com o brilho de vaga-lumes, supercamundongos, elas o fazem interferindo na memória biológica das espécies e gerando seres novos e férteis. O reconhecimento não apenas da porosidade, mas da indeterminação, das fronteiras entre tecnologia, natureza e humanidade, assim, desfaz a nostalgia pelo humano. Na Folha de São Paulo de 13/04/97, em artigo acerca de transgênicos, com um sentimento incômodo de estranheza, somos informados acerca de "porcos transgênicos 'humanizados'"; ou de que a "técnica biológica da clonagem vai permitir a produção de peças humanas de reposição: cada indivíduo poderá ter seu banco de células para uso em caso de certas doenças" (grifos meus). O que é característico das imagens que cercam a técnica de recombinação genética pode ser capturado ainda por um comentário oferecido por uma cientista do Projeto Genoma da Cana-de-Açúcar, em entrevista concedida a mim no dia 11/4/2000: "Do ponto de vista da biologia molecular não existe diferença entre qualquer organismo vivo, seja animal ou vegetal". Desde meados da década de noventa, somos ensinados acerca das possibilidades técnicas mais recentes da biotecnologia com definições do tipo: "Engenharia genética faz vaca produzir leite humano e fumo fabricar veneno de escorpião".

Em 1990, a Suprema Corte do Estado da Califórnia decidiu negar o pedido do empresário John Moore para que lhe fosse reconhecido o direito de propriedade sobre uma linhagem celular produzida, sem o seu conhecimento, a partir de suas informações genéticas. pesquisador e médico assistente descobriu que o tecido do baço de Moore produzia uma proteína que facilitava o crescimento de leucócitos, importantes agentes anticancerígenos" (Rifkin, 1999, p. 64). A decisão da Suprema Corte em favor da Sandoz Pharmaceutical Corporation se baseava no fato de que a linhagem celular, basicamente informação genética, não podia ser considerada propriedade de Moore. O argumento oferecido foi um tanto mais cínico: partes do corpo humano não podem ser objetos de comercialização. Chama também atenção o fato de que as informações do genoma humano obtidas pela Celera possam ser consideradas comercializáveis. Falar aqui de patenteamento da vida é um sinal curioso dos tempos. Mais uma vez, a rigor, embora sendo condição potencial da produção da vida, uma seqüência de nucleotídeos não é algo vivo. Não estamos interessados em sofismar uma situação gravíssima, nem em justificar a comodificação da informação genética dos seres vivos. Pelo contrário, nosso desejo é indicar a mudança do foco a partir do qual as sociedades contemporâneas definirão o significado da vida e perceber as novas formas de poder que advém desta operação.

Ouvi recentemente num programa de televisão acerca dos recentes avanços da engenharia genética a seguinte máxima: "apenas nossos genes são imortais". Estranho animismo pensar sequências de nucleotídeos como coisas vivas. Evidentemente alguns genes são selecionados do mesmo modo como alguns outros são apagados do pool genético das espécies. Até onde possamos pensar processos bioquímicos nestes termos, podemos dizer que genes também são 'mortais', portanto. O que é importante aqui, todavia, é o fato de que o foco sobre o qual a política moderna se estruturou, a inteireza do corpo e a impermeabilidade das fronteiras entre as espécies, é quotidianamente desfeito. Apesar do fato de que em última instância, claro, os organismos morrem, do ponto de vista do poder isso parece ter pouca importância, se percebermos que este não mais necessita nem da inteireza e individualidade do corpo, nem mesmo da noção de espécie, para se viabilizar. A indiferenciação das fronteiras entre as espécies e a perspectiva de passarmos a conceber a materialidade do corpo como atualização de uma matriz de combinações genéticas virtuais, ou seja, a possibilidade de fabricarmos memória genética, definem os novos termos de uma dinâmica política em que a morte não é nem prerrogativa do poder soberano, nem vergonha terrível de um poder incapaz de impedir que os corpos, afinal, subtraiam-se do seu controle. Do ponto de vista dos corpos, das individualidades, das subjetividades, o poder agora instaura precisamente a morte como medida das coisas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste ensaio eu procurarei chamar a atenção do leitor para a necessidade de analisar o impacto das novas tecnologias da vida a partir do poder de ruptura que elas potencialmente virão à determinar. Creio na necessidade deste tipo de reflexão. Entendo que enxergar nessas transformações apenas roupas novas para um velho tema é um erro. A perspectiva de passarmos de um paradigma de reprodução da vida para um de sua produção tem conseqüências que devem chamar a atenção não apenas daqueles vocacionados para uma crítica religiosa. O que está aqui envolvido não é exatamente a usurpação da prerrogativa de criação do Divino, pois, afinal, não se trata de criar do nada, mas como diria Bill Clinton, aprender a sintaxe com a qual o Criador produziu a vida. O fato de que novas políticas da vida possam vir a não mais se centrar na inteireza de um corpo, disciplinando-o, ou nos limites da espécie, regulamentando-a, potencializa radicalmente o caráter metastático e excessivo do mundo contemporâneo. Nosso drama talvez seja afim do destino trágico de Penteu, cujo zelo civilizador desmesurado, sem que ele o percebesse, finda por constituir parte da loucura que ele combate, da dissolução que se torna inevitável.

"Ino pelo outro lado contemplava a ação

rasgando carne, Autônoe e todo o bando

de Bacas atacava, o grito era uníssono:

ele a gemer quanto calhava ter fôlego,

elas a alardear. Uma trazia um braço,

outra o pé com a mesma bota. Desnudavam-se

costelas por lacerações. Mãos sangrentas,

todas jogavam bola com a carne de Penteu".

(Eurípedes: Bacas, 1130; tradução de J. Torrano)

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  • *
    Publicou anteriormente em
    Lua Nova (51/2000) "Técnica e liberdade"
  • 1
    A esse respeito, Donna Haraway (2000, p. 46)observa: "As máquinas pré-cibernéticas podiam ser vistas como habitadas por um espírito: havia sempre o espectro do fantasma na máquina".
  • 2
    Ver, a esse respeito, Ferreira e Ventura (2001)
  • 3
    O VHP é um projeto da National Library of Medicine dos Estados Unidos que busca produzir imagens tridimensionais do corpo humano, equipando, assim, a disciplina de anatomia com os avanços recentes da tecnologia digital. Este projeto ganhou as páginas dos principais jornais do mundo sobretudo por haver se valido de técnicas como o crio-seccionamento do cadáver de um condenado à pena de morte, ou seja seu seccionamento em fatias de um milésimo de milímetro após seu congelado, na geração de imagens digitais.
  • 4
    Essa tese é revista e ampliada por Agamben que vê na modernidade apenas a exacerbação de um processo que se consolida no mundo ocidental há milênios.
  • 5
    Kant segue sua explanação criticando esta posição de Maupertuis.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Jan 2004
    • Data do Fascículo
      2002
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