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Alemanha: parlamentarismo e o fantasma de Weimar

O PRESIDENCIALISMO EM QUESTÃO

Alemanha: parlamentarismo e o fantasma de Weimar* * A primeira versão deste texto foi apresentada no Seminário "História e Identidade - Democracia e Cultura Política em Comparação: Brasil e Alemanha", promovido pelo Instituto Goethe e pelo CEDEC em maio de 1991.

Ruth Zimmerling** ** Tradução de Gabriel Cohn.

Professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Main, Alemanha

INTRODUÇÃO

Embora os alemães provavelmente tenham nos próximos anos a oportunidade de escolher uma Constituição que substitua a chamada Lei Fundamental de maio de 1949, originalmente concebida como provisória, não é demasiado ousado prever que o tema parlamentarismo não irá desempenhar papel importante numa eventual discussão constitucional. A respeito da situação na Alemanha, nada mais haveria a dizer sobre o tema "Reforma do Estado: presidencialismo versus parlamentarismo", se o tomarmos no sentido mais estrito do termo. Entretanto, se entendermos o tema num sentindo mais amplo, então algo pode ser dito, da perspectiva alemã, com relação à Alemanha que seja de algum interesse em relação ao debate constitucional atual no Brasil. Ao fazê-lo em seguida irei limitar-me aos seguintes aspectos da questão:

1. A República Federal Alemã, diversamente do Brasil, tem um sistema parlamentarista, e a desnecessidade da discussão de uma reforma nesta área indica que esse sistema, no essencial, se revelou adequado. Parece, portanto, valer a pena lançar uma vista de olhos sobre a experiência que os cidadãos da República Federal Alemã tiveram até hoje com esse sistema, levando-se em conta especialmente suas características específicas.

2. É de lembrar-se também, neste contexto, que o sistema da Lei Fundamental foi concebido em condições históricas muito peculiares e que, em alguns pontos fundamentais, certamente representa uma reação a condições cuja possibilidade de repetição buscava-se evitar por todos os meios. Evidentemente, refiro-me às condições da República de Weimar, de 1919 a 1933, que agora tratarei de lembrar nos seus principais traços.

O fracasso do "modelo de Weimar" é de interesse com referência à discussão atual no Brasil e também em outros Estados latino-americanos principalmente quando se considera que, com relação à reforma de um sistema com uma tradição presidencialista forte, provavelmente seja mais adequada uma versão moderada — na forma de uma "adição" seletiva e especificada de elementos parlamentaristas - do que uma transformação radical do presidencialismo em um sistema parlamentarista puro.1 1 Sobre isso veja-se Carlos S. Nino, "Informe sobre la práctica constitucional de dos, sistemas semi-presidenciales", in: Concejo para la Consolidación de la Democracia (ed.) Reforma Constitucional: Dictamen preliminar del CCD, Buenos Aires, 1986, pp. 380-399; Carlos S. Nino, "Presidencialismo versus Parlamentarismo", in CCD (ed.), Presidencialismo versus Parlamentarismo Buenos Aires, EUDEBA, 1988, pp. 115-124. Interessante neste contexto é a questão de se as razões para o fracasso de "Weimar" devem ser vistas predominantemente na circunstância de que precisamente se tratava de um sistema misto parlamentarista/presidencialista. Ou, então, se não teriam sido condições não-institucionais - entre elas principalmente a cultura política dos atores decisivos - os responsáveis por esse fracasso.

3. Após um exame muito rápido de algumas poucas mas, no meu entender, importantes experiências com o sistema parlamentarista ou semi-parlamentarista na Alemanha, torna-se possível formular algumas conjecturas sobre a questão de sob quais condições institucionais e não-institucionais tal sistema de governo pode ser superior ao presidencialista.

NORMA CONSTITUCIONAL E PRATICA CONSTITUCIONAL NA RFA

NORMA CONSTITUCIONAL

Deriva diretamente da Lei Fundamental que, no caso do sistema de governo da RFA, se trata de um sistema parlamentarista, especialmente nos artigos que regulam as competências do Parlamento, do presidente e do governo e as relações dessas diversas instituições entre si. Quero aqui mencionar apenas as referências mais importantes nesse particular. Em primeiro lugar, o chefe do Governo é eleito pelo Parlamento (art. 63). A eleição ocorre por proposta do presidente da República, mas o Parlamento pode não aceitar o candidato proposto. Se este não alcançar maioria absoluta, o Parlamento pode, em seguida, eleger outra pessoa para o posto. O Parlamento tem catorze dias de prazo para fazê-lo com maioria absoluta, ou seja, com os votos da maioria dos membros da Casa. Apenas quando isso não ocorre registra-se como eleito numa nova eleição o nome que nela obtenha a maioria dos votos. Caso se verifique uma maioria absoluta para um candidato, então o presidente da República é obrigado a nomeá-lo chefe de Governo. Apenas quando isso não ocorre ele pode decidir seja pela nomeação da pessoa eleita ou pela dissolução do Parlamento. Exceto no tocante ao ato formal de nomeação, o papel político do presidente da República limita-se, portanto, a tornar possível a formação sem atritos de um governo majoritário, mediante a proposta de um candidato adequado a chefe de governo. O Parlamento não se limita a formar o governo mediante a eleição do chanceler mas pode também destituir o governo mediante um voto de desconfiança (art. 67). Portanto, o governo está permanentemente subordinado à confiança do Parlamento. De outra parte, o chefe de Governo tem a possibilidade de promover a dissolução do Parlamento e a convocação de novas eleições quando o Parlamento não oferece, a sua pedido, um voto de confiança (art. 68).

Esse modo de formação e, sobretudo, de dissolução de governos, estabelecido pela Lei Fundamental, define-se de fato como um sistema parlamentarista. Mas isso pouco diz acerca do funcionamento efetivo do processo político. Esse funcionamento depende, desde logo, de outras condições institucionais. Dos aspectos que conferem ao sistema parlamentarista sua forma específica merecem atenção especial:

1. a divisão de competências executivas entre o presidente e o chefe de Governo e,

2. as regulamentações para a garantia da estabilidade do governo.

O sistema da RFA exibe, neste ponto, algumas especificidades. No que diz respeito ao primeiro aspecto, as competências políticas do presidente da República são muito limitadas (art. 58 a 60). Suas ordens e deliberações necessitam a co-assinatura do chefe de Governo (chanceler), ou então do ministro envolvido. Os acordos que ele faz com outros Estados apenas se tornam efetivos após a aprovação pelo Parlamento, na medida em que "eles regulamentem relações políticas da União ou estejam relacionados a questões relativas à legislação federal" - em quase todos os casos, portanto, também sua participação na formulação legislativa limita-se à assinatura das leis deliberadas no Parlamento federal (Bundestag) eventualmente com a participação do Bundesrat [órgão do Legislativo federal cujos membros são indicados pelos executivos dos Estados da Federação, em complemento ao Bundestag, eleito pelo voto popular direto].

Em contraste com isso ressalta-se a forte posição do chefe de Governo. Ele não apenas determina as diretrizes da política governamental (art. 65) como também cabe somente a ele determinar a composição do Gabinete (art. 64) e isso em qualquer momento ao longo do seu mandato: o presidente da República nomeia e dispensa os ministros conforme suas propostas.

Desde logo é digno de nota, neste particular, que os diversos membros do Gabinete não dependem diretamente da confiança do Parlamento. O Parlamento apenas pode negar a confiança ao próprio chanceler e, portanto, ao conjunto do governo.

Especialmente os integrantes da chamada maioria governamental no Parlamento — portanto, da facção ou das facções partidárias que apoiam politicamente o governo — ficam impossibilitados de mobilizarem sem demasiado risco político a recusa de confiança relativamente a ministros específicos e, por essa via, por assim dizer, "intrometerem-se" na condução das questões governamentais pelo chanceler.

Com relação ao segundo aspecto, as medidas para assegurar-se a estabilidade e a continuidade do governo vão bem mais longe. Os formuladores da Lei Fundamental estavam tomados por tal horror vacui que eles se empenharam em assegurar que todo governo em exercício permaneça no mandato em quaisquer circunstâncias, até que tenha sido eleito um novo chefe de Governo. Isso foi alcançado mediante o instituto do voto de desconfiança construtivo (art. 67). A única possibilidade pela qual o Parlamento possa exprimir desconfiança em relação ao governo e, por essa via, retirá-lo do seu mandato, consiste em que ele escolha um novo chanceler.

Esse procedimento foi utilizado pela primeira vez em 1972, portanto 23 anos após a entrada em operação da Lei Fundamental. Naquela ocasião, o chefe da oposição, o deputado da Democracia Cristã Barzel não conseguiu, surpreendentemente, obter a maioria necessária, porque não obteve os votos dos social-liberais que imaginava garantidos. Em conseqüência, o governo Brandt permaneceu no poder.2 2 A este respeito é de observar-se que, de acordo com o regimento do Parlamento, o chanceler é eleito por votação secreta, o que naturalmente facilita aos estudos o rompimento da disciplina de facções ou mesmo de algumas "promessas eleitorais".

Mais uma década se passou até que novamente o procedimento do voto construtivo tivesse sido aplicado, dessa vez depois que um dos parceiros da coalizão governamental da época sinalizara claramente para a oposição que estava disposto a uma mudança de coalizão. A maioria necessária para a eleição do chanceler foi, por essa via, assegurada e um novo governo sob a chefia do chanceler Kohl, que até hoje está em exercício, foi eleito.

Para um descrição fiel do sistema da RFA é também relevante a circunstância de que ambos os casos de voto de desconfiança, o frustrado de 72 e o bem-sucedido de 82, foram seguidos em cada caso pelo pedido do primeiro-ministro de um voto de confiança.

Em setembro de 1972, Willy Brandt apresentou o pedido de confiança. O objetivo em questão não era propriamente o de se obter a manifestação de confiança pelo Parlamento mas de abrir caminho para novas eleições e, dessa forma, para a recomposição de uma clara maioria governamental no Parlamento. É verdade que não se poderia, naquele momento, prever que a eleição afinal se revelasse de fato favorável ao governo em exercício.3 3 Mais dados em Thomas Ellwein, Das Regieungssystem der BRD, 4ª ed., Opalden, 1977, p. 207 e segs. Tanto o presidente da República como também a oposição no Parlamento estavam claramente de acordo com esse procedimento, pois o presidente efetivamente dissolveu o Parlamento, embora não pudesse fazê-lo conforme a Lei Fundamental, e a oposição nem sequer tentou impedir essa dissolução mediante a eleição de um novo chanceler.

Também o chanceler Helmut Kohl, reeleito na seqüência do voto de desconfiança de 82, levantou pouco após a sua eleição a questão da confiança para suscitar a dissolução do Parlamento e nova eleição. Nesse caso é de se notar que as novas eleições deveriam preencher uma função diversa daquelas de 72, visto que se constituíra uma clara maioria governamental no Parlamento. Aqui tratava-se, antes de tudo, de obter uma legitimação democrática indubitável para a nova coalização governamental - cuja formação, mediante uma mudança de coalização no andamento mesmo do período da legislatura, tinha sido alvo de objeções públicas - e isso se fazia em vista da exigência dessa legitimação democrática para um trabalho bem-sucedido de um governo.

PRÁTICA CONSTITUCIONAL

Neste ponto chegamos à prática adotada na aplicação das normas constitucionais, isto é, chegamos aos fatores funcionais não institucionalizados do sistema. Exatamente o exemplo da questão da confiança "tática" de 82, que acabamos de ver, mostra claramente como a formação desta prática, no caso concreto, depende da colaboração de ambas as "cabeças" do Executivo, assim como dos integrantes do Legislativo. Em primeiro lugar, vimos que o chanceler levantou a questão da confiança, embora a composição do Parlamento lhe possibilitasse um governo sem problemas. Além disso, a maioria governamental existente no Parlamento colaborou nesse procedimento e não exprimiu a confiança ao chefe do Governo, embora ele, no fundo, a possuísse. Finalmente, também o presidente da República aceitou a proposta do chanceler e dissolveu o Parlamento, embora soubesse que não havia necessidade de novas eleições para configurar condições de governo estáveis.

Demonstra-se aqui quanto a concretização de um sistema dentro do padrão previsto pela Lei Fundamental é marcada pela concepção que os órgãos envolvidos têm do "jogo político" e do papel que desempenham no seu interior. Portanto, em última análise, pela sua cultura política.

Esse exemplo, na realidade, nos diz algo sobre a posição atribuída à legitimação democrática direta4 4 Sobre a diferença e a relação entre "legitimação" e "legitimidade" de um governo, veja-se Ernesto Garzón Valdes, El concepto de estabilidad de los sistemas políticos. Col. Cuadernos y Debates, n. 1, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1987 (traduzido para o alemã o por Ruth Zimmerling com subtítulo alusivo à "análise dos conceitos com exemplos eleitorais latino-americanos"), cap. 1. do governo pelos eleitores. A preocupação com um eventual choque, não contra a letra mas talvez contra o espírito da Lei Fundamental, foi claramente subordinada à exigência de legitimação. Por outro lado, também diz algo sobre a aceitação da posição forte do chanceler. O Parlamento - em especial a maioria parlamentar - e o presidente da República teriam, nesse caso, inteiramente disponível a possibilidade de estabelecer limites ao chanceler, com base na interpretação da Lei Fundamental.

Se o chanceler não tivesse conseguido fazer passar, sobretudo no Parlamento, o seu desejo de novas eleições, isso representaria claramente um enfraquecimento de sua reputação política. A força da liderança do atual chanceler Kohl indubitavelmente consiste, em grande medida, na sua capacidade de impedir tais enfraquecimentos da posição do chefe de Governo, sobretudo mediante uma política pessoal altamente hábil, tanto no Gabinete como também no interior do partido majoritário por ele liderado.5 5 Línguas maldosas já se referiram a isso como degradação do partido em "associação para a eleição de chanceler".

A avaliação positiva dessa forma de "capacidade de liderança" na RFA, também por parte de muitas pessoas politicamente interessadas e às quais, portanto, não se pode atribuir uma preferência irrefletida por "personalidades de liderança" fortes, vincula-se, em grande medida, à circunstância de que exatamente a história alemã recente demonstrou que um Executivo estável de modo algum é algo assegurado sem mais, e revelou também as terríveis conseqüências que podem advir desta realidade. Em outras palavras, norma constitucional, prática constitucional e cultura política da RFA ainda são visivelmente marcadas pela preocupação com evitar, em cada caso, o retorno do fantasma da República de Weimar.

NORMA CONSTITUCIONAL E PRÁTICA NA REPÚBLICA DE WEIMAR

Tentarei apresentar os contornos desse fantasma contra o pano de fundo do sistema da República Federal Alemã.

A Constituição de Weimar de 1919 previa um sistema misto parlamentarista-presidencialista. O chefe do Estado era o presidente eleito diretamente,6 6 Na ocasião mandato de 7 anos, com possibilidade de reeleição. Atualmente na RFA o mandato é de 5 anos, com possibilidade de uma reeleição. que, diferentemente do atual presidente da República, detinha competências muito fortes. Ele era comandante chefe das Forças Armadas,7 7 Conforme a Lei Fundamental, o comando supremo cabe ao Ministro da Defesa. podia dissolver o Parlamento, nomear e demitir o governo. Acima de tudo, podia declarar o estado de exceção e, com base nisso, governar mediante medidas de emergência sem consideração pelo Legislativo (art. 48 da Constituição de Weimar). O chefe de Governo, em contraste com isso, estava numa posição fraca. Ele dependia, com o seu Gabinete, não apenas do Presidente, mas da confiança do Parlamento. O Parlamento (Reichstag) podia negar confiança ao governo de modo destrutivo, por assim dizer, sem ter portanto a responsabilidade pela formação de uma nova maioria governamental parlamentar.

Isto quanto aos grandes traços da formação institucional das relações entre Executivo e Legislativo8 8 De resto, o sistema previa a ação popular e o plebiscito, o que lhe conferia forte componente plebiscitário. . Vejamos agora a prática política.

A existência de um sistema pluripartidário conduziu, mediante um sistema eleitoral proporcional desprovido de qualquer cláusula restritiva à representação partidária no Parlamento,9 9 Atualmente na RFA vigora uma cláusula restritiva de 5%. à persistente presença de algo como dez facções partidárias no Parlamento. Em apenas catorze anos houve vinte governos, dos quais somente oito tiveram maioria no Parlamento. No mesmo período de tempo, houve oito eleições parlamentares e em duas ocasiões houve duas eleições no mesmo ano, em 1924 e 1932. Enquanto estava previsto um período legislativo de quatro anos, na realidade o tempo de mandato médio dos representantes era da ordem de menos de dois anos e dos gabinetes algo como oito meses. Ademais, durante cerca de metade desse período, o Presidente governou de fato mediante decretos de emergência que o artigo 48 lhe facultava.10 10 Aqui e no que segue, assim como em geral sobre a cultura política da República de Weimar, vejam-se, entre outros, G. Loewenberg, Parlamentarism im politischeh system der BRD, Tubingen, 1965, pp. 42-49; Kurt Sontheimer, Antodemokratisches Denken in der Weimarer Republik, Munchen, 1978; Kurt Sontheimer, Deutschlands politische Kultur, Munchen, 1990, pp. 103-117.

Não é possível explicar esse desenvolvimento político apenas com base na conformação institucional do sistema. É preciso agregar informações sobre as atitudes dos atores envolvidos em relação ao sistema político e ao seu papel no seu interior. Portanto, novamente, em relação à sua cultura política. Vimos que, quanto à norma e à prática da RFA, freqüentemente atribui-se um valor superior à estabilidade do governo do que ao controle do governo. É de se supor que, inversamente, a instabilidade dos governos de Weimar, entre outros pontos, se devesse à circunstância de que o Parlamento esgotou suas possibilidades de controle literalmente sem "levar em conta os prejuízos" - a saber, "prejuízos" para a estabilidade do sistema. E, de fato, as características das relações entre governo e Parlamento na República de Weimar incluem especialmente quatro pontos neste sentido11 11 Veja-se Loewenberg, citado acima. :

(1º) é verdade que no Parlamento havia em alto grau uma disciplina de facção, mas as facções da maioria governamental não eram dirigidas pelo governo — como ocorre na RFA - mas pelos partidos, de tal forma que freqüentemente as facções dirigiam-se de modo altamente "disciplinado" contra o governo, ainda que seus integrantes pertencessem ao próprio partido da coalização governamental;

(2º) o Parlamento fez uso de tal modo excessivo do seu direito de interpelação que tornou-se praticamente impossível ao governo processar todas as demandas, e esse instrumento, no final, perdeu a sua eficácia;12 12 Hoje existe o instrumento da "grande interpelação" por escrito, que é regulada de maneira um tanto restritiva. Além disso, há a instituição do "horário de questionamento", vale dizer, um período fixo para perguntas dos deputados do governo, assim como a "hora atual" em que, a pedido de pelo menos 15 deputados, um tema atual é submetido a debate.

(3º) mudanças de governo freqüentemente nem mesmo eram promovidas por um voto de desconfiança parlamentar oficial, mas eram negociados entre os partidos a portas fechadas;13 13 É precisamente essa transferência da discussão pública-racional no Parlamento para a negociação não-pública de interesses que foi objeto naquela ocasião de duros ataques por Carl Schmitt na sua obra Zur geistesgeschichtlischen Lage des beutigen Parlamentarismms (1923). E esse é um dos poucos pontos em que é possível concordar com ele, pelo menos em parte.

(4º) finalmente deve-se mencionar o fato altamente importante de que a oposição no Parlamento de modo algum se dirigia apenas contra o governo, mas que haviam poderosas forças oposicionistas por princípio empenhadas em eliminar o sistema democrático como tal.14 14 Veja-se Sontheimer, 1978, cap. 7.

CONSIDERAÇÕES FINAIS. SISTEMA DE GOVERNO E CULTURA POLÍTICA

Que pudemos concluir dessas poucas observações em relação à alternativa presidencialismo versus parlamentarismo? Tentarei formular isto em oito enunciados.

1. Inicialmente, é claro que a reforma de um sistema de governo nas suas instituições, por exemplo, do presidencialismo ao parlamentarismo, ou no sentido inverso, como atualmente se discute na Itália e em Israel, não pode ser uma panacéia nem uma arma milagrosa para atingir-se uma democracia estável, eficiente e socialmente justa. Instituições que funcionam de maneira adequada ao sistema são uma condição necessária mas não suficiente para tanto. A isso deve agregar-se também a satisfação de requisitos não-institucionais.

2. Do ponto de vista teórico, "típico ideal", são conhecidas as vantagens e desvantagens do parlamentarismo e do presidencialismo. Ambos os sistemas de governo são inteiramente aptos operacionalmente, sob condições específicas.

3. Se comparamos um sistema presidencialista operacional, com um sistema parlamentarista também operacional, então me parecem maiores as vantagens do parlamentarismo e menores as suas desvantagens.

4. Todo sistema de governo é, finalmente, bom apenas na medida em que seus protagonistas, os atores politicamente relevantes, lhe permitem que seja de facto em cada caso, por mais que no papel - de jure - pareça bonito.

5. Também o sistema parlamentarista, portanto, está subordinado à satisfação de algumas "condições de entorno", se é que deva funcionar de modo adequado. Para sistemas democráticos de qualquer tipo essas condições incluem, sem dúvida, uma situação econômica de algum modo estável, que seja capaz de garantir as necessidades fundamentais de todos os cidadãos.

6. Em especial no sistema parlamentarista devem ser cumpridos, em primeiro lugar, pressupostos políticos. Importância central cabe aqui ao sistema partidário. Não se trata neste ponto, necessariamente do número dos partidos representados no Parlamento e da extensão do seu espectro ideológico. Parece muito mais importante o seguinte:

a. Um consenso básico geral quanto a procedimentos políticos no espírito do parlamentarismo.

b. A aceitação pelos partidos da sua responsabilidade pelo funcionamento do sistema, e isso de modo independente de toda e qualquer divergência de conteúdo quanto a interesses e de qualquer competição pela responsabilidade de governo.15 15 RFA os partidos de oposição referem-se no mínimo tanto à reivindicação de assumir as "responsabilidades do governo" quanto a uma mudança de "poder". Ainda que isso ocasionalmente exprima uma mera fórmula, eu gostaria de crer que esse hábito de linguagem sinaliza que a política é entendida como algo a ser implementado pelos portadores de cargos menos em proveito próprio do que no da coletividade, e que portanto incumbe ao governo primordialmente o "ônus" da "responsabilidade" e quando muito em segundo lugar o "bônus" do "poder".

c. O reconhecimento do papel oposicionista como um elemento inevitável e construtivo no sistema político.

d. A subordinação em ampla escala de desejos de destaque pessoal ao perfil partidário vigente.

7. A satisfação de todas essas exigências só pode ser esperada de políticos e de seus partidos - especialmente em sociedades muito heterogêneas - quando a regra fundamental do "jogo político" não consiste na dominação majoritária mas sim no princípio majoritário, que inclui a consideração pelas exigências das minorias políticas.

8. Em especial, no que diz respeito à proteção de minorias políticas ou da mediação entre maioria e minoria, o presidente, num sistema parlamentarista, pode desempenhar um papel importante, porque realmente ele é o presidente de todos os cidadãos e pode, portanto, fazer muito pela manutenção da unidade e da identidade das comunidades políticas.16 16 Neste contexto pode ser interessante a circunstância de que em Portugal, Mário Soares, ao exercer a presidência, exprimiu sua disposição para um exercício do cargo de caráter menos "político" do que "mediador" mediante a renúncia à condição de membro do seu partido. Sobre isso, ver Nino, 1986, p. 394 e segs.

  • 1 Sobre isso veja-se Carlos S. Nino, "Informe sobre la práctica constitucional de dos, sistemas semi-presidenciales", in: Concejo para la Consolidación de la Democracia (ed.) Reforma Constitucional: Dictamen preliminar del CCD, Buenos Aires, 1986, pp. 380-399;
  • Carlos S. Nino, "Presidencialismo versus Parlamentarismo", in CCD (ed.), Presidencialismo versus Parlamentarismo Buenos Aires, EUDEBA, 1988, pp. 115-124.
  • 3 Mais dados em Thomas Ellwein, Das Regieungssystem der BRD, 4ª ed., Opalden, 1977, p. 207 e segs.
  • 4 Sobre a diferença e a relação entre "legitimação" e "legitimidade" de um governo, veja-se Ernesto Garzón Valdes, El concepto de estabilidad de los sistemas políticos. Col. Cuadernos y Debates, n. 1, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1987 (traduzido para o alemã
  • 10 Aqui e no que segue, assim como em geral sobre a cultura política da República de Weimar, vejam-se, entre outros, G. Loewenberg, Parlamentarism im politischeh system der BRD, Tubingen, 1965, pp. 42-49;
  • Kurt Sontheimer, Antodemokratisches Denken in der Weimarer Republik, Munchen, 1978;
  • Kurt Sontheimer, Deutschlands politische Kultur, Munchen, 1990, pp. 103-117.
  • 13 É precisamente essa transferência da discussão pública-racional no Parlamento para a negociação não-pública de interesses que foi objeto naquela ocasião de duros ataques por Carl Schmitt na sua obra Zur geistesgeschichtlischen Lage des beutigen Parlamentarismms (1923).
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    A primeira versão deste texto foi apresentada no Seminário "História e Identidade - Democracia e Cultura Política em Comparação: Brasil e Alemanha", promovido pelo Instituto Goethe e pelo CEDEC em maio de 1991.
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    Tradução de Gabriel Cohn.
  • 1
    Sobre isso veja-se Carlos S. Nino, "Informe sobre la práctica constitucional de dos, sistemas semi-presidenciales", in: Concejo para la Consolidación de la Democracia (ed.)
    Reforma Constitucional: Dictamen preliminar del CCD, Buenos Aires, 1986, pp. 380-399; Carlos S. Nino, "Presidencialismo versus Parlamentarismo", in CCD (ed.),
    Presidencialismo versus Parlamentarismo Buenos Aires, EUDEBA, 1988, pp. 115-124.
  • 2
    A este respeito é de observar-se que, de acordo com o regimento do Parlamento, o chanceler é eleito por
    votação secreta, o que naturalmente facilita aos estudos o rompimento da disciplina de facções ou mesmo de algumas "promessas eleitorais".
  • 3
    Mais dados em Thomas Ellwein,
    Das Regieungssystem der BRD, 4ª ed., Opalden, 1977, p. 207 e segs.
  • 4
    Sobre a diferença e a relação entre "legitimação" e "legitimidade" de um governo, veja-se Ernesto Garzón Valdes, El
    concepto de estabilidad de los sistemas políticos. Col. Cuadernos y Debates, n. 1, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1987 (traduzido para o alemã o por Ruth Zimmerling com subtítulo alusivo à "análise dos conceitos com exemplos eleitorais latino-americanos"), cap. 1.
  • 5
    Línguas maldosas já se referiram a isso como degradação do partido em "associação para a eleição de chanceler".
  • 6
    Na ocasião mandato de 7 anos, com possibilidade de reeleição. Atualmente na RFA o mandato é de 5 anos, com possibilidade de uma reeleição.
  • 7
    Conforme a Lei Fundamental, o comando supremo cabe ao Ministro da Defesa.
  • 8
    De resto, o sistema previa a ação popular e o plebiscito, o que lhe conferia forte componente plebiscitário.
  • 9
    Atualmente na RFA vigora uma cláusula restritiva de 5%.
  • 10
    Aqui e no que segue, assim como em geral sobre a cultura política da República de Weimar, vejam-se, entre outros, G. Loewenberg,
    Parlamentarism im politischeh system der BRD, Tubingen, 1965, pp. 42-49; Kurt Sontheimer,
    Antodemokratisches Denken in der Weimarer Republik, Munchen, 1978; Kurt Sontheimer,
    Deutschlands politische Kultur, Munchen, 1990, pp. 103-117.
  • 11
    Veja-se Loewenberg, citado acima.
  • 12
    Hoje existe o instrumento da "grande interpelação" por escrito, que é regulada de maneira um tanto restritiva. Além disso, há a instituição do "horário de questionamento", vale dizer, um período fixo para perguntas dos deputados do governo, assim como a "hora atual" em que, a pedido de pelo menos 15 deputados, um tema atual é submetido a debate.
  • 13
    É precisamente essa transferência da
    discussão pública-racional no Parlamento para a
    negociação não-pública de interesses que foi objeto naquela ocasião de duros ataques por Carl Schmitt na sua obra
    Zur geistesgeschichtlischen Lage des beutigen Parlamentarismms (1923). E esse é um dos poucos pontos em que é possível concordar com ele, pelo menos em parte.
  • 14
    Veja-se Sontheimer, 1978, cap. 7.
  • 15
    RFA os partidos de oposição referem-se no mínimo tanto à reivindicação de assumir as "responsabilidades do governo" quanto a uma mudança de "poder". Ainda que isso ocasionalmente exprima uma mera fórmula, eu gostaria de crer que esse hábito de linguagem sinaliza que a política é entendida como algo a ser implementado pelos portadores de cargos menos em proveito próprio do que no da coletividade, e que portanto incumbe ao governo primordialmente o "ônus" da "responsabilidade" e quando muito em segundo lugar o "bônus" do "poder".
  • 16
    Neste contexto pode ser interessante a circunstância de que em Portugal, Mário Soares, ao exercer a presidência, exprimiu sua disposição para um exercício do cargo de caráter menos "político" do que "mediador" mediante a renúncia à condição de membro do seu partido. Sobre isso, ver Nino, 1986, p. 394 e segs.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Set 1991
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