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A democracia e a modernização trinta anos depois

NOVAS DEMOCRACIAS E VELHO PROGRESSO

A democracia e a modernização trinta anos depois* * Versão revista da exposição apresentada na sessão plenária sobre "A teoria democrática hoje: questões empíricas e teóricas", XV Congresso Mundial, Associação Internacional de Ciência Política, Buenos Aires, Julho 21-26, 1991, com base em pesquisa apoiada pelo Social Sciences and Humanities Research Council of Canada. Tradução de Amélia Cohn.

Jose Nun

Professor do Departamento de Ciência Política na Universidade de Toronto, Canadá, e pesquisador do Cento Latinoamericano para el Analisis de la Democracia (CLADE/CONICET) na Argentina

Na década de 70, uma ampla maioria das nações do mundo estava longe de oferecer sequer a aparência de uma gestão modicamente democrática de seus assuntos públicos: em pelos menos dois terços dessas nações os partidos políticos estavam proibidos, de direito ou de fato, e, quando existiam, tinham suas possibilidades de ação gravemente cerceadas. Mas foi também nessa década que na Grécia, em Portugal e na Espanha tiveram início as assim chamadas "transições para a democracia" de nossa época, isto é, quando se começaram a estruturar regimes políticos que desde então buscam se estabilizar como democracias liberais ou, mais rigorosamente, como liberalismos democráticos1 1 A experiência dos países capitalistas centrais indica que a denominada democracia liberal constitui a forma política mediante a qual, desde fins do século passado, o liberalismo logrou dotar-se de uma justificação democrática. Por isso creio ser mais rigoroso (e menos apologético) mudar o sujeito e denominá-la de liberalismo democrático – com o que, também, se pode evitar converter a "democracia liberal" em sinônimo de "democracia" simplesmente. Sobre a evolução mencionada, consultar Levine, 1981. .

O fenômeno cresceu em cascata: deixando de lado o caso especial da Alemanha do Leste, já somam 32 os países que no curso das duas últimas décadas foram autocracias, e que agora aparecem mergulhados nesse tipo de transições. Isto significa que, num lapso de tempo extremamente curto, duplicou o número de aspirantes ao título de liberalismos democráticos, que em 1960 se outorgava a menos de trinta casos (cf. Powell, 1982:238)2 2 Para uma exposição atualizada, ver "New Democracies", The Economist, 22/12/1990, págs. 43-44. .

Obviamente, uma vez colocados na agenda novos problemas conceituais, tal aluvião "democratizante" deveria atualizar outros mais velhos, especialmente quando se tem em conta que nas ciências sociais, em geral, se vive uma prolongada crise dos paradigmas teóricos que anteriormente puderam ser considerados normais, mas que hoje já não estão em condições de proporcionar ao observador critérios de interpretação confiáveis. Em parte, ocorre efetivamente assim. Mas a situação apresenta também uma peculiaridade, que está atingindo na prática muitos daqueles que se dedicam à ciência política: enquanto na segunda metade do século XIX as transições européias para o liberalismo democrático estiveram marcadas por um intenso debate sobre princípios, hoje assistimos a uma naturalização crescente tanto desse tipo de regime como da chamada "economia de mercado" que aparece como sua contraface3 3 Ainda que não possa deter-me aqui neste ponto, creio que nisto desempenham um papel notável de difusão e de unificação o impressionante nível de desenvolvimento alcançado pela mass media e pelas burocracias internacionais como também os múltiplos canais de comunicação de que a própria comunidade científica dispõe. Para um interessante exame de fenômenos análogos de "issue convergence", ver Vogel (1986: 222-223). .

Em sua obra sobre a Revolução Francesa, Furet (1978: 28-32) assinalou que o principal erro da linha historiográfica iniciada por Michelet foi ter acreditado em demasia naquilo que os próprios revolucionários diziam de si próprios e do que estavam fazendo. Confesso, de minha parte, que a primeira reação que esse processo de naturalização me provoca é de uma profunda desconfiança. Depois de tudo, se em algo Marx e Durkheim coincidiram foi precisamente em tomar distância das auto-interpretações dos atores - sem por isso deixar de levá-las em conta.

Desde logo, celebro os ares de democratização que correm o mundo. Mas quando alguém se pergunta sobre seus significados e perspectivas tem como obrigação revisar os preconceitos da evidência e as idéias recebidas, por mais que já tenham circulado. Ocorre que, como bem sabe qualquer leitor de Sherlock Holmes, a solução de um problema depende quase sempre do modo como ele é colocado. Daí a necessidade de se revisar sucintamente certas formulações que, de maneira explícita ou implícita, costuma-se torná-las agora como dadas. É do que pretendo tratar aqui. Não é necessário acrescentar que minha seleção será necessariamente um tanto arbitrária, e que tem uma relação direta com minhas próprias preocupações e perplexidades. Como também se comprovará, do lugar teórico onde prefiro situar-me o horizonte que se vislumbra é sempre bastante mais circunscrito. E embora nem sempre o explicite, a experiência dos países da América Latina será meu ponto de referência principal; e, particularmente, a do Cone Sul.

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Um primeiro problema que se apresenta é o da legitimidade de incluir-se num único conjunto situações tão diversas como são as das formações sociais e políticas da América Latina, da Europa meridional e centro-oriental e do Sudeste da Ásia, heterogêneas mesmo no nível regional.

Certamente, para que esta inclusão seja possível, é necessário apelar para uma definição muito restrita e muito formal do liberalismo democrático, que possa então servir como um mínimo denominador comum. Suspeito ser essa uma das razões (ainda que não a principal, como veremos) da renovada vigência que têm hoje tanto a conhecida conceitualização schumpeteriana da democracia, como algumas de suas re-elaborações posteriores em termos de poliarquia4 4 Para um exemplo do novo auge na América Latina do tratamento schumpeteriano e seus derivados, ver Flisfich (1991:193): "é uma conceitualização que captura adequadamente unto o sentido como a modalidade efetiva de operação de uma ordem política democrática". Também, entre outros, Valenzuela (1990). . Sucede que brindam critérios de agregação manipuláveis, que se prestam para a comparação quantitativa entre um grande número de casos, unificados por variáveis como as eleições periódicas e/ou a existência e funcionamento de partidos políticos, que se supõem pbjetivas, homogêneas e unívocas.

Convém anotar, de imediato, que mesmo se utilizando critérios de agregação como estes, os recentes 32 casos a que fiz referência antes devem ser tomados com bastante reserva: em 18 deles e por boas razões os processos eleitorais ainda estão distantes de poderem ser qualificados como suficientemente genuínos. Mas á dificuldade maior de tais esforços de totalização parece-me ser outra.

Como nas demais ciências sociais - e não por casualidade -, a tradição mais rica no campo da política comparada é qualitativa e histórica; baseia-se no estudo de casos; e não trabalha com variáveis desencarnadas mas com configurações que procuram apreender e dar sentido à complexidade específica de seus objetos de análise (cf.. Ragin, 1987). Dessa perspectiva - que subscrevo -, aquelas reservas aumentam de modo significativo, sobretudo quando se trata de entender a natureza e a lógica das transformações políticas em curso5 5 Emprego esses termos de modo análogo ao uso que faz deles Heilbroner (1985: 18-19) em sua análise do capitalismo, onde a natureza refere-se às "forças ou agências determinantes..., suas instituições e relações reguladoras da conduta" e lógica à trajetória do sistema, ao "padrão de mudança configuracional gerado e guiado por sua natureza". .

Em outras palavras, creio que a massividade aparente do atual fenômeno "democrático" nos coloca' diante de dois riscos. O primeiro consiste em incorrer numa falácia de agregação, assimilando situações que pouco têm em comum entre si e desembocando, por esse caminho, em becos sem saída, teóricos, como esse tão apregoado e insustentável do "fim da história"; o segundo consiste em promover um reducionaismo político que, a partir dessa assimilação, traslade experiências de um contexto para outro de modo apriorístico e acrítico. Note-se que, assim como o mercado não é privativo do capitalismo, tampouco as eleições periódicas - ou os partidos políticos - são exclusivos do liberalismo democrático.

Meu primeiro argumento caminha, então, a favor de uma "lógica do não-todo" e de uma ênfase nas diferenças6 6 Tomo emprestado da obra de Jacques Lacan o conceito de "lógica do não-todo". . Quando se converte o liberalismo democrático num mero conjunto de regras de procedimento para a formação das decisões coletivas tende-se a esquecer que nenhum conjunto de regras consegue definir socialmente práticas concretas, isto é, as atividades mediante as quais atores específicos interpretam, negociam e aplicam essas mesmas regras. Como já assinalei uma vez citando Schwitzer (1969: 464), se os sacerdotes da Ruritânia jogassem uma partida anual de xadrez para determinar a vontade dos deuses, é evidente que não bastaria conhecer as regras do xadrez para descobrir o sentido do ritual.

Neste ponto não é demais recordar o cuidado que o próprio Schumpeter teve ao limitar estritamente sua análise das "condições para o êxito do método democrático" no caso dos "países de grande indústria do tipo moderno" (1961: 368). Tanto mais que, entre essas condições incluía, de um lado, "os serviços de uma burocracia bem capacitada que goze de boa reputação e se apoie numa sólida tradição, dotada de um forte sentido do dever e de esprit de corps não menos forte", e de outro lado, "um caráter .nacional e hábitos nacionais de um certo tipo que não tem tido oportunidade de se desenvolver em todos os lugares, sem que se possa confiar naquilo que o próprio método democrático acredita" (1961: 372 e 375).

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Esse "hábitos nacionais de um certo tipo que não tiveram oportunidade de desenvolver-se em todos os lugares" permitem-me introduzir um segundo tema. Trata-se da nova conexão que hoje se costuma estabelecer - pelo menos na América Latina - entre democracia e modernização.

Como é sabido, a literatura pluralista dominante no segundo pós-guerra em suas análises dos processos de mudança social operava com o modelo dicotômico "tradicional/moderno" e postulava uma seqüência de "desenvolvimento político" que basicamente pode ser assim sintetizada: 1) modernização da sociedade (crescimento econômico com incorporação ao mercado mundial; urbanização; desenvolvimento da educação e dos meios de comunicação de massa; mobilidade geográfica; etc); 2) difusão de valores modernos (universalismo; desempenho; orientação para o futuro; confiança social; etc); 3) instalação de um regime político de democracia representativa7 7 Como já foi assinalado muitas vezes, o suporte dessa visão consistia numa leitura retrospectiva e idealizada do que supostamente havia ocorrido nos países capitalistas avançados - por mais que na obra clássica de Dahl (1971), por exemplo, nunca se nomeasse o capitalismo. Por isso, em função do que direi a seguir, volta a ganhar atualidade uma observação de Tilly (1975:4): "os critérios de modernidade tendiam a tergiversar o problema das vias de desenvolvimento convertendo-o em outro distinto: sob que condições e mediante quais transformações podíamos esperar que os governos dos novos mundos de hoje terminassem por assemelhar-se aos governos do velho mundo?". .

Vale dizer que a modernização aparecia como condição necessária para a emergência e estabilização de um governo democrático (no sentido de liberal democrático); e isto por várias razões. Uma, que esses "hábitos nacionais" de que falava Schumpeter eram redefinidos como um consenso generalizado em torno dos valores modernos, do que se faziam depender as possibilidades de uma participação popular limitada e ordenada. A segunda razão, que esta cultura política da moderação devia ter como pilares o crescimento econômico e uma distribuição mais eqüitativa da renda. A terceira razão, o fato de a cidadania de uma democracia representativa merecedora de seu nome ter como necessidade dispor de um acesso amplo à informação. E uma quarta razão - outra vez Schumpeter - que a existência de burocracias qualificadas e competentes era considerada um requisito indispensável de governabilidade (cf. Alford e Friedland, 1985:53). Tratava-se, pois, de uma visão evolutiva, de um percurso de etapas que levava da desintegração da sociedade tradicional ao liberalismo democrático, passando antes pela modernização da economia e da sociedade.

Só que, trinta anos depois, a seqüência parece ter se invertido e, agora, cresce o número de autores que concebem a democratização política como o passo prévio e necessário para a modernização econômica e social: "... não creio que se possa negar" - escreve por exemplo Weffort (1990:39) - "que a democracia é o único caminho que pode levar os países latino americanos para a modernidade". Afirmação esta que teria surpreendido há algumas décadas, especialmente quando - como neste caso -conclui um texto muito incisivo que, entre outras coisas, sustenta que na América Latina a modernização estancou "nos planos social e econômico"; que se padece de um preocupante bloqueio de perspectivas" e de uma "anomia generalizada"; que se caminha para "a desintegração social"; e que se difundiram na população sentimentos de "perda de futuro" e de "perda de lugar no mundo" (1990: 7, 15, 19, 28, 34).8 8 Vale aqui o contraste com, por exemplo, Apter (1965: 452) que, há alguns anos, concluía uma de suas obras mais influentes com uma afirmação que então poucos haviam discutido: "... a experiência das nações que se acham em processo de modernização indica que a democracia, tal como nós a entendemos, não é apropriada para seu estágio de desenvolvimento".

De imediato, a primeira pergunta que se impõe é se acaso mudou não só o sentido da relação que os unia ou também o próprio significado dos termos modernização e democracia. Admito que não é fácil responder categoricamente a essa questão porque a literatura sobre o tema é propensa a uma vagueza conceituai considerável. Como bem disse Lechner (1990: 73): "Quando todos - esquerda e direita - se pretendem modernos, e alguns até pós-modernos, o termo está necessariamente viciado pela ambigüidade". Creio, todavia, que a palavra modernização está sendo utilizada hoje de maneira basicamente similar à que se tornou clássica nos anos 50 ou 60 - como testemunha a própria análise de Lechner ao identificá-la com a racionalidade instrumental, com o mercado e com o desenvolvimento científico-tecnológico. Mais ainda, como à época, modernização e crescimento capitalista tendem a identificar-se. Quanto à noção de democracia, já assinalei anteriormente o novo esplendor que as mesmas formulações que em seu momento foram vigorosamente criticadas na América Latina e em outros lugares pelo seu caráter elitista hoje adquiriram9 9 Neste sentido, Schumpeter (1961:362) havia exposto de início o assunto com sua clareza habitual: "a democracia é o governo do político" e não do povo - claro que sem agregar, como havia feito Clemenceau uns anos antes, que a política era um assunto demasiado importante para deixá-lo nas mãos dos políticos. Por sua vez, nos primeiros trabalhos de Dahl (1956: 133), a democracia aparecia definida como "o governo das minorias", se bem que agora com uma ênfase especial – característica dos pluralistas – no consenso normativo que devia dar respaldo a essas minorias. É de justiça esclarecer que, no caso citado de Weffórt (1990: 37 e 39), o termo possui um conteúdo menos preciso porém mais amplo já que alude ao "crescimento da capacidade de participação política e da capacidade de organização da sociedade civil"; e designa o "complexo de instituições por meio das quais se pode chegar a decisões legítimas, válidas para toda uma comunidade". .

O que dizer então da inversão da seqüência "modernização-democracia" a que estou me referindo?

É indubitável que parte de uma justa revalorização das liberdades públicas e do governo representativo, que antes haviam sido reduzidos com demasiada freqüência e facilidade a puras ficções burguesas: desse ponto de vista a posição que comento deve ser lida como uma saudável e incontestável condenação do autoritarismo.

Por outro lado, quando se associa esta inversão com aquela característica de época que assinalei no início, insinua-se um rudimento de hipótese. Nos anos da segunda pós-guerra - e em boa medida com impulsos dos sucessos do bloco comunista e dos processos de descolonizaçâo que se multiplicavam no Terceiro Mundo -, propagou-se uma grande confiança na capacidade do Estado para programar e liderar processos de mudanças, conforme ficou expressamente refletido na própria operação do sistema das Nações Unidas. O Estado seria "o cinzel nas mãos dos novos escultores" (Migdal, 1988: 4); e estes exigiam tempo e recursos para realizar suas tarefas modernizadoras antes que o sistema político pudesse adquirir uma certa semelhança familiar com aquele dos países industrializados do Ocidente. Segundo sabemos agora, o saldo de tais esforços ficou muito distante da satisfação das expectativas que suscitaram. Quase em todos os lugares o Estado foi demasiado débil desde o início ou se debilitou notoriamente depois e, na atualidade, tem pouco a opor à carga de ineficiência e de corrupção que lhe é dirigida. Para muitos pareceria chegado o momento, então, de devolver todo o poder ao mercado; e ainda que este movimento pendular tenha tido início em vários lugares sob o amparo das ditaduras militares, a crise destas últimas instalou o liberalismo democrático como a única alternativa política possível e adequada para esse propósito.

Noutros termos, a idéia de modernização, primeiro, e a democratização, depois, esteve historicamente ligada à primazia do Estado no processo de mudança; enquanto isso, a seqüência inversa tende a associar-se com a função determinante que lhe atribui agora o mercado no marco constitucional da democracia representativa10 10 Sublinho historicamente paia. marcar uma tendência concreta que se deu especificamente em diversos lugares da América Latina. Mas, sem dúvida, muitos veementes defensores do mercado subscreveram também a seqüência "modernização-democratização" e tentaram colocá-la em prática mediante ditaduras como a de Videla na Argentina ou de Pinochet no Chile. Em outras palavras, falo de uma associação empírica e não de uma necessidade teórica. E se resta alguma dúvida, basta lembrar as declarações de Friedrich von Hayeck para El Mercúrio do Chile no início da década passada, quando sustentou que, obrigado a escolher, preferia um regime autoritário que defendesse a economia de mercado a um governo democrático que lhe pusesse freios. .

Só que esta recolocação do problema traz riscos conceituais que não parecem de pequena monta. Em primeiro lugar, como toda inversão, ameaça ficar presa nos limites da problemática que inverte. Depois, simplifica em excesso, sem tematizar as falhas do esquema anterior nem tampouco sugerir eventuais equivalentes para as condições que este postulava. Mais ainda: revela-se pouco sensível às fundadas críticas e re-elaborações a que esse esquema foi objeto, inclusive por parte de alguns de seus maiores proponentes iniciais. Por último, tende a obstruir assim as possibilidades de avançar na construção de uma teoria do Estado adequada às distintas realidades do capitalismo dependente, exatamente quando mais se torna indispensável produzi-la. Procurarei ilustrar brevemente estais observações, com o objetivo de dar-lhe alguma sustentação para outro tipo de perguntas.

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Toda contribuição teórica inscreve-se num campo específico; e, em grande medida, seus significados são função da postura que adota com relação às linhas de clivagem e de luta próprias desse campo. Dessa perspectiva, as origens políticas e intelectuais da chamada "teoria empírica da democracia" e de sua recuperação recente pela literatura latino-americana são muito distintas, e creio que isto tem algumas conseqüências que vale a pena considerar.

Os trabalhos da escola pluralista estiveram recortados por duas grandes preocupações, uma política e outra teórica. A primeira estava voltada para os riscos de desestabilização que presumivelmente afrontavam as democracias capitalistas no segundo pós-guerra, e situava no centro do cenário o fantasma do totalitarismo, cuja envergadura foi crescendo no ritmo da "guerra fria". A segunda - dificilmente dissociada da anterior - era uma refutação que partia de Schumpeter e que tinha por alvo a falta de realismo dos princípios democráticos chamados "clássicos" e, especialmente, do humanismo liberal de teóricos idealistas do governo representativo como John Stuart Mill. Ambos os tipos/de preocupações conduziam não só a atribuir um papel secundário ao conceito de participação como também a enfatizar os perigos para a ordem estabelecida que qualquer expansão sistemática da intervenção popular nos assuntos públicos trazia11 11 Neste tema, a referência obrigatória consiste no já clássico estudo crítico de Pateman (1970: 1-44). .

Outras foram as condições de recepção de certas partes do modelo pluralista na atual conjuntura latino-americana. No plano político, parece-me que são sobretudo dois os elementos que adquiriram primazia entre seus defensores: um, a veemente recusa das soluções de força, encarnadas tanto pelas ditaduras militares que assolaram a região como o guerrilhismo em suas diversas expressões; e outro, o considerável descrédito em que caíram as distintas formas de populismo de perfil estatista. Quanto ao plano teórico, não é com relação ao liberalismo idealista que se buscou tomar distância, mas muito particularmente com o marxismo-leninismo em suas múltiplas variantes12 12 Num ensaio famoso escrito em 1928, Liberalismo e liberismo, Benedetto Croce sustentou, contra os partidários do laissez faire, que o ideal de liberdade era compatível com diversos regimes econômicos. Daí a distinção que propôs entre o liberalismo, como doutrina política comprometida com esse ideal e com os princípios constitucionais que o atualizam, e o liberismo, como doutrina econômica que tem como dogmas o livre mercado e a iniciativa privada. Nestes termos, na América Latina contemporânea foi muito forte a tradição do liberismo e muito fraca do liberalismo, sem prejuízo de importantes diferenças nacionais. (Sobre este último ponto, ver, por exemplo, Halperin Donghi 1987: 141:166). Por isso o assinalamento que faço neste texto. . (Esta tomada de distância precedeu os acontecimentos internacionais dos dois últimos anos; mas, sem dúvida, a queda do mundo comunista e a diluição da "guerra fria" não fizeram senão aumentá-la).

Num sentido, então, a ortodoxia pluralista nos países capitalistas avançados teve um caráter defensivo e de justificação de um passado e de um presente que se queria preservar: por imperfeita que fosse ali a institucionalização dos ideais democráticos imaginados pelos autores do século XIX, especialmente os Estados Unidos constituíam essa "first new nation" celebrada por Lípset, onde se supunha que ocorria uma aproximação máxima do modelo teórico do "pólo moderno"13 13 António e Knapp (1988: 13) citam apropriadamente um artigo publicado em 1963 no New York Times sob o título "What Sort of Nation are We?", onde se sustentava que os Estados Unidos eram um país profundamente democrático apesar de "a vontade da maioria não se refletir em muitas de nossas instituições políticas". A razão aduzida tem particular relevância tanto para o que venho afirmando como para o que agregarei posteriormente: "A democracia de estilo norte-americano deve ser interpretada como um fenômeno mais social que político. Significou que um número cada vez maior de norte-americanos conseguiu atingir um nível de segurança material... que em outros países continua sendo privilégio de minorias exclusivas" já que "as classes sociais desempenham um papel tão pequeno em nossa vida nacional". (A fonte original da citação é Hodgson/1976: 161). . Na América Latina, por outro lado, o ressurgimento atual das teses pluralistas implica, por sua vez, uma impugnação do passado e uma aposta no futuro, a partir de um presente percebido como profundamente dramático e incerto. Isto explica o caráter "fundacional" que, em alguns lugares, se tenta atribuir a estas teses.

Por isso sustentei em outro trabalho que a imagem metafórica da "transição para a democracia" estava sugerindo aqui (tal como já havia ocorrido há trinta anos com a literatura sobre o "desenvolvimento político") um ponto de chegada que teria que colocar na categoria dos conceitos com estrutura de "semelhança de família": estaria então em transição para algo que se pareceria a...14 14 Como se sabe, o locus classicus para a análise deste tipo de conceitos é Wittgenstein (1958: 65-F71). . Buscava assim fixar desde o início a índole eminentemente convencional (e controversa) do destino que se invocava: por um lado, porque as similitudes que a noção de "democracia" enuncia não vêm dadas mas são eleitas e atribuídas no interior de jogos de linguagem determinados; e por outro lado, porque os juízos sobre semelhanças giram sempre em torno de casos que, explicita ou implicitamente, são adotados como paradigmáticos e com relação aos quais se definem as semelhanças e as diferenças (Nun, 1987: 16-17).

Se isto foi assim na própria literatura pluralista, que se queria fundamentalmente descritiva de sistemas políticos constituídos, assume uma importância e uma problematicidade muito maiores quando se trata de analisar sistemas políticos em processo de constituição, impondo uma especial cautela no exame das condições de possibilidade das semelhanças que se postulam15 15 Certamente que assinalar quais são as características do instrumento que se emprega não supõe em absoluto questionar sua utilidade (cf. Bloor, 1983: 29-41). Note-se que mesmo nos regimes habitualmente classificados como democracias representativas não o são tanto pelas propriedades comuns que possuem mas, a rigor, que acabam possuindo essas propriedades comuns como resultantes da operação que os classifica como tais: tudo depende dos critérios que se considerem relevantes e do ponto de vista em que se acorde deixar de fazer distinções. E embora caia mal aos positivistas, decisões como estas constituem sempre juízos de valor sobre o que é o principal e o que é acessório. Basta lembrar, como ilustração, o debate sobre as semelhanças que existiriam ou não entre os sistemas políticos da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos: enquanto Almond, por exemplo, as subsume na categoria de "democracias anglo-saxônicas", outros autores (Price, Iivingston, etc.) preferem sublinhar as diferenças entre o presidencialismo americano e o parlamentarismo britânico, entre o governo federal dos Estados Unidos e o unitário da Brã-Bretanha, etc. .

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Um dos efeitos dessa recusa do passado (em particular o imediato) que acabo de mencionar consiste em que, insensivelmente, leva a um corte que, ao mesmo tempo que "desidealiza" num registro pluralista a democracia, "idealiza" a modernização -como se as ditaduras recentes não tivessem se proclamado também (e em parte o foram) portadoras de valores modernos. Por acaso não foi um dos méritos das conceitualizações do "autoritarismo burocrático" inauguradas por O'Donnell a forte ênfase nos afãs industrializadores de vários desses governos militares como no crescimento dos papéis tecnocráticos que ocorreu nas burocracias públicas e privadas? Com base em que critérios se reputariam pouco modernas as máquinas do terror montadas, na maior parte das vezes dotadas de armas e de outros elementos providos pelas grandes potências do Ocidente e de pessoal especialmente treinados nelas?

Seria possível mas trivial identificar a modernização exclusivamente com o progresso, com o bom e com o justo. Pelo contrário, a modernização é sempre um processo contraditório, inseparável de uma dialética da dominação que, em sociedades que se percebem cada vez mais como produto de suas próprias obras, enfrenta atores que lutam pelo controle disso que Touraine chama de historicidade. Foi Popper quem disse que a modernidade é a certeza de que nada é certo, e num sentido tem razão. Mas precisamente por isso se torna tão ameaçadora e conduz a um esforço permanente para extirpar a dúvida ou para universalizar determinados tipos de interpretação da realidade - o que, segundo se sabe, conduz às vezes a legitimar as maiores atrocidades (cf. Bauman, 1989).

Em fins dos anos 60, em seu Report on the Americas, Nelson Rockfeller saudava os exércitos e as polícias da América Latina como portadores de valores modernos e como baluartes da democracia. Falava não somente a linguagem da "guerra fria", depois do fracasso da Aliança para o Progresso e diante do "perigo cubano"; falava também a linguagem dos negócios, referindo-se aos riscos potenciais de uma área onde já havia se iniciado um rápido processo de transnacionalização dos mercados e de penetração das subsidiárias das grandes corporações, especialmente norte-americanas. Como é sabido, nos anos que se seguiram aqueles singulares agentes da modernização se encarregaram, com efeito, de serem protagonistas daquilo que se lhes havia oferecido, e que aceitaram em nome da doutrina da segurança nacional. Em que pesem as características próprias que esse fenómeno assumiu em cada país, foram-se criando assim as bases necessárias para uma mudança importante de rumo no que diz respeito à índole dos processos de modernização que, de maneiras também diversas, a América Latina havia experimentado a partir da Segunda Guerra Mundial.

De uma maneira ou de outra, é basicamente neste novo rumo que a região agora continua envolvida. Fenómenos como os do crescimento de uma massa marginal que transborda os limites funcionais de um exército industrial de reserva (Nun, 1969) ou da integração transnacional e da desintegração nacional (Sunkel, 1971)' foram detectados já há vinte anos como emergentes dessa pauta e hoje são mais atuais que nunca. Meu temor é que a inversão que comento estabeleça descontinuidades imaginárias que impeçam dar-se conta suficientemente, e que contribuam dessa forma para que a palavra modernização continue designando uma panaceia e não transformações extremamente complexas e conflitivas, sendo a definição de suas características um dos objetivos centrais da luta política.

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Outro efeito do aludido ajuste de contas com o passado tem parentesco com o anterior, mas com conseqüências um pouco distintas.

Refiro-me à critica do marxismo-leninismo em suas várias expressões - às quais, ademais, seria difícil negar sua qualidade de modernas. Esta crítica produziu muitos resultados saudáveis, mas está tendo outro que nem tanto: em boa parte da literatura sócio-política latino-americana, a luta de classes quase desapareceu como princípio de análise. As classes sociais são nomeadas, mas sobretudo de duas maneiras: ou em termos descritivos muito próximo à sociologia norte-americana da estratificação social; ou, simplesmente, sem precisar nem o sentido nem os alcances da noção. Curiosamente as discussões sobre o tema conservam hoje uma maior vigência nos Estados Unidos ou na Europa do que na América Latina, onde parece ter entrado nisso que alguns comunicólogos dominam de "espiral do silêncio": quando um assunto vai perdendo popularidade, aqueles que gostariam de apresentá-lo não o fazem para não incorrer na desaprovação dos demais, e assim paulatinamente deixa-se de falar nele e impõe-se o conformismo social16 16 Nos países centrais, as discussões a que faço alusão se associam, dentre outros, com os nomes de Burawoy, Bowles, Elster, Giddens, Gintis, Offe, Przeworski, Roemer, Wright, etc. A ausência de buscas similares nas principais correntes do atual pensamento latino-americano agrega um elemento de reforço à "espiral do silêncio" que menciono: as análises em termos de classes vão assim ficando em mãos bastante dogmáticas e anacrônicas, que contribuem para seu descrédito. .

Neste ponto convêm que formule duas advertências importantes. O primeiro é que não acredito nas interpretações monistas, de modo que o que me surpreende não é que se utilizem outros princípios explicativos mas que um deles tenha desaparecido tão subitamente da cena, depois do enorme significado que lhe foi concedido até há bem pouco tempo, e sem um debate teórico prévio que o justificasse17 17 Sobre a pertinência de distintos princípios de análise e dos domínios a que correspondem, ver Alford e Friedland (1985). .

Dir-me-ão (eu mesmo assinalei acima) que este debate vem ocorrendo nos círculos acadêmicos dos países avançados -só que uma coisa é ocupar-se de sociedades pós-industriais e outra examinar instâncias do capitalismo dependente. Existe nisto uma propensão para o mimetismo que não é nova e que se relaciona com minha segunda advertência18 18 Tempos atrás, quando estava na moda o paradigma classista, era bastante comum que se começasse estudando as especificidades econômicas do capitalismo dependente na América Latina para depois tirar conclusões sociais e políticas baseadas na operação de uma dinâmica de classes basicamente similar à que detectavam nessa época em seus países os cientistas sociais do "primeiro mundo". Por essa via, muitas vezes acaba parecendo que, na realidade, aquela dependência econômica não tinha muitos efeitos concretos sobre a estrutura de classes. Desde logo, nem sempre ocorreu isso; mas ocorreu o suficiente para que valha a pena lembrá-lo agora que mudaram tanto o clima intelectual e as influências que recebem. . Com efeito, estou reivindicando a importância de uma perspectiva que tematiza as relações contraditórias entre o capitalismo, o Estado e a democracia, mas de nenhuma maneira as velhas definições canônicas da luta de classes, cujos reducionismos economicista, voluntarista e racionalista foram já abundantemente denunciados. Mais ainda: a dinâmica de classes deve ser analisada e especificada em diferentes situações concretas e nem esgota a realidade dessas situações nem é excludente das formas de dominação e dos antagonismos que se expressam nos denominados novos movimentos sociais. Mas dito isto, é da perspectiva dassista que aparecem como tópicos tanto a exploração como o aspecto capitalista do Estado; e nem um nem outro são hoje passíveis de serem liquidados por fiat teórico e, muito menos, por uma mudança de moda intelectual19 19 Para evitar mal-entendidos, não sustento que sempre tenha que se dar proeminências à luta de classes como princípio de análise, qualquer que seja o tempo e o lugar. Mais ainda, a distinção que Giddens propôs (1981: 105-108) entre "sociedades divididas em classes 11 /class divided societies/ e "sociedades de classes" /class societies/ parece-me heuristicamente importante para examinar contextos latino-americanos caracterizados pela desarticulação e pela simultaneidade de diversos tempos históricos. Ademais, não só outros paradigmas - como por exemplo o neo-corporativista - podem iluminar processos que o paradigma dassista deixa na sombra ou, simplesmente, ignora, mas que seria absurdo desconhecer a significação própria de fenômenos como o nacionalismo, o racismo e o sexismo. Mas o perigo da moda "não classista" que comento reside em que, por olhar muito para outro lado, ajude a que se jogue a criança junto com a água do banho. .

Em seu conhecido estudo sobre a formação dos direitos de cidadania (referido explicitamente ao caso da Grã-Bretanha), Marshall (1973) sustentou que o progresso desses direitos suavizava as tensões resultantes do conflito de classes mas não que o fazia desaparecer. Foi Bendix (1977) quem radicalizou e generalizou o tratamento marshalliano do tema, relegando o conflito de classes a uma etapa prévia à da afirmação plena dos direitos políticos20 20 Paradoxalmente, em termos históricos, a tese de Bendix se aplica muito melhor ao caso da Alemanha do que ao caso inglês estudado por Marshall. . E ainda que essa posição tenha sido incorporada ao credo pluralista, penso que a evidência histórica autoriza suficientemente a conclusão distinta à que chega Giddens (1985: 208): "é mais válido afirmar que o conflito de classes foi um meio na extensão dos direitos de cidadania que sustentar que a difusão desses direitos desativou as divisões de classes".

É esta idéia dos direitos civis, políticos e econômicos da cidadania como foco da luta de classes no processo de modernização que frequentemente têm em vista aqueles que praticam a inversão de que falo. Isto sem prejuízo, insisto, de que seja necessário especificar o caráter desses direitos e dessa luta em cada contexto; e ainda mesmo que, como produto de tal luta, em determinados lugares e momentos históricos esse foco possa perder centralidade.

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A essa altura, gostaria de voltar para duas de minhas observações anteriores, que se vinculam entre si: uma, que mudar o sinal de uma relação não equivale ultrapassar os limites da problemática que a contém, e a outra, que em nosso caso isto pode transformar-se num sério obstáculo para a construção de uma teoria do Estado que seja pertinente.

Para elaborar essas observações, desejo apoiar-me num penetrante estudo de Macpherson (1985) para afirmar, antes de tudo, que estou pensando como ele em "... uma teoria na grande tradição, que vincula o Estado com as necessidades, capacidades e potencialidades do homem" ao mesmo tempo que leva em conta "a natureza básica da sociedade na qual opera esse Estado" (págs. 59 e 6l). E para recordar, depois, sua bem fundamentada convicção de que a "pluralist-elitist-equilibrium theory não podia permitir-se produzir uma teoria do Estado como essa porque isto a teria obrigado a revelar o modelo de homem com que trabalha, ou seja, esse individualismo possessivo de um "maximizing market man" que se tornou "nos fins do século vinte cada vez mais insustentável do ponto de vista moral" (p. 57).

Este ponto parece-me importante para entender melhor os fundamentos concretos da problemática da modernização e da democracia em sua primeira versão. Fiz referência já a algumas das preocupações políticas que alimentaram suas fontes. Claro que essas preocupações não foram exorcizadas por simples obra de uma definição como a de Schumpeter. E mais, devia tornar-se óbvio o caráter muito parcial do proclamado realismo dessa definição: nas democracias capitalistas são muitos (e sumamente poderosos) os indivíduos e os grupos que "adquirem o poder de decidir" por meios que nada tem a ver com "uma luta competitiva pelo voto do povo".

Foram outros os fatores que distanciaram essas preocupações; e, dentre eles, ocuparam um lugar central a grande expansão do pós-guerra e o desenvolvimento paralelo das distintas modalidades do "Welfare Staté\ com os compromissos de ciasses a que deu lugar. Poder-se-ia questionar então - como foi feito (ver nota 12 12 Num ensaio famoso escrito em 1928, Liberalismo e liberismo, Benedetto Croce sustentou, contra os partidários do laissez faire, que o ideal de liberdade era compatível com diversos regimes econômicos. Daí a distinção que propôs entre o liberalismo, como doutrina política comprometida com esse ideal e com os princípios constitucionais que o atualizam, e o liberismo, como doutrina econômica que tem como dogmas o livre mercado e a iniciativa privada. Nestes termos, na América Latina contemporânea foi muito forte a tradição do liberismo e muito fraca do liberalismo, sem prejuízo de importantes diferenças nacionais. (Sobre este último ponto, ver, por exemplo, Halperin Donghi 1987: 141:166). Por isso o assinalamento que faço neste texto. ) - que a democracia liberal era pouco igualitária em seu funcionamento mas gerava, em troca resultados substantivamente igualitários, ao mesmo tempo que preservava liberdades públicas desconhecidas em outros lugares. Difundiram-se, assim, uma justificação explícita pelo método e outra implícita - mas muito mais crucial - pelos efeitos; e ambas serviram para assegurar a legitimidade desse regime nos grandes países capitalistas. Por certo uma condição que tornou isso possível foi justamente a primazia cada vez mais generalizada desse modelo de homem de que falava Macpherson, que foi se convertendo em uma das regras constitutivas da convivência em sociedades apropriadamente chamadas "de consumo".

Creio que, a sua maneira, os teóricos do desenvolvimento político tinham isso bastante claro; e daí sua grande ênfase na modernização econômica e social como ante-sala obrigatória do tipo de governo representativo que propunham como meta. Dessa perspectiva pergunto-me novamente até onde o inverso pode ser válido.

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Existe um sentido sobre o qual me parece que poucos se enganam, ao menos nesta América Latina: que acaba de findar isso que a CEPAL batizou como "a década perdida". Basta transcrever uma das conclusões do recente Informe do Diálogo Inter-Americano (1990: 63): "não se pode esperar que as instituições democráticas prosperem sob condições de coação econômica, quando milhões de cidadãos carecem de emprego, habitação adequada e nutrição apropriada, educação básica ou esperança no futuro".

Mas o que me interessa aqui é que constatações como essa ainda não levaram à abertura de um debate amplo no plano científico sobre os próprios limites da problemática a que venho aludindo (e que agora se inverte). Mais que nunca - e confirmando um de meus comentários anteriores - tende a prevalecer, ao contrário, um único critério de racionalidade, cujos pilares principais são a economia de mercado e liberalismo democrático.

Por sua vez, o primeiro desses pilares tem como suporte a teoria neoclássica da economia, transformada na ortodoxia reinante21 21 Ilustrando o que assinalava na nota 3, é notável a difusão alcançada em todo o continente pelo denominado "consenso de Washington", vale dizer, pelo modelo de desenvolvimento de cunho neoclássico elaborado pelo Banco Mundial, pelo Fundo Monetário Internacional e pelos think tanks de Washington, e que agora passa como sendo a "única interpretação racional possível" dos problemas da estabilização e do crescimento. Sobre isto consultar Fanelli, Frenkel e Rozenwurcel (1990: 3-16). . Porisso vale destacar pelo menos três das premissas fundamentais desse paradigma, que exclui de suas considerações qualquer referência ao poder econômico: uma, que a economia é uma esfera basicamente autônoma e separada do resto da sociedade, que responde à sua própria dinâmica interna e que, portanto, pode ser adequadamente entendida em seus termos; duas, que os agentes econômicos (indivíduos, famílias e firmas) realizam ações exclusivamente racionais, dirigidas à maximização de suas utilidades: e três, que o problema da equidade na distribuição da renda não é central para a análise, seja porque se supõem como já dados os mecanismos institucionais para solucioná-lo e são externos ao modelo, seja porque se acredita que este problema será automaticamente resolvido quando a produção e a distribuição dos bens encontrarem seu ponto de equilíbrio22 22 Para além da significação que em particular assume em contextos de atraso, de 'desigualdade e de miséria crescentes, este terceiro ponto merece ser sublinhado por implicar no abandono do que foi uma das maiores preocupações dos economistas clássicos, como se pode ver em Adam Smith (1976/1776: 399). Para críticas sociológicas úteis do paradigma neo-clássico, consultar Swedberg (1987) e Block (1990). É quase desnecessário agregar que não estou imputando aos economistas neo-clássicos uma miopia: eles sabem perfeitamente que os comportamentos econômicos são influenciados pela política ou pela cultura e tampouco ignoram a existência de condutas econômicas não racionais (como a do famoso economista - neoclássico - que deixa gorjeta num restaurante onde não pensa em voltar). Questiono, sim, as conseqüências que se seguem à sua decisão metodológica de tratar esses fatores não econômicos ou não racionais como exógenos , a seus modelos. .

É evidente a afinidade das duas primeiras premissas com a visão contemporânea disso que denomino de liberalismo democrático: de um lado, porque essa visão despolitiza a economia na medida em que percebe analogamente a política como um espaço a parte, segundo testemunham tantas discussões sobre a "intervenção do Estado na economia", e por outro, porque opera com um modelo de homem similar ao do paradigma neoclássico, como salientou Macpherson.

Quanto à terceira premissa, converteu-se no tendão de Aquiles de todo o projeto: em geral, na América Latina não estão institucionalizados nem mecanismos redistributivos suficientes e eficazes nem as receitas neoliberais deram até o momento alguma prova tangível de que a questão possa ser solucionada simplesmente por efeito. Sucede muito mais o oposto, dado o traço concentrador e excludente da maioria dos planos de modernização econômica em curso23 23 Torno a citar o Informe do Diálogo Inter-Ameriano 1990: 22): "Mais gente que nunca está submersa na pobreza. O desemprego e o subemprego estenderam-se praticamente por todos os países. Os salários deterioraram acentuadamente, chegando a cinqüenta por cento em alguns países. A qualidade da moradia, a atenção médica e a educação pioraram constantemente. Os índices de criminalidade cresceram. A vida tornou-se muito mais dura na América Latina, e as mulheres e as crianças pequenas são os que sofrem mais". Segundo dados da CEPAL, em 1990 o produto por habitante da região deteriorou em 2.6%, com o que retrocedeu ao nível de 1983 que, por sua vez, foi 10% inferior em relação a 1980 (Rosenthal, 1990:4). . Mesmo entre aqueles que aprovam esses planos como a única via para o desenvolvimento "confirma-se que, mesmo no melhor dos casos, o período de gestação será relativamente longo e geralmente traz consigo sacrifícios e custos sociais" (Rosenthal, 1990: 22).

Com algumas exceções, as conseqüências políticas vão cada vez mais ficando claras. Efetivamente estruturado como o governo dos políticos e não do povo, a própria maneira de operar do liberalismo democrático tende a minar aqui suas próprias bases de legitimidade. Antes falei de uma "espiral do silêncio", agora caberia definir uma outra, que denominarei a "espiral da deslegitimação".

Sem prejuízo de óbvias variações locais, sua forma geral seria mais ou menos esta: 1) ascensão ao governo de políticos que conseguem uma maioria de votos com base em abundantes e atrativas promessas que fazem; 2) diante da magnitude da crise em que então se encontram, forte centralização das decisões no nível executivo, postergando e debilitando o Parlamento e os partidos políticos e por essa via incrementando ainda mais as expectativas em torno da liderança providencial24 24 Alfonsin na Argentina ou Collor de Mello no Brasil nos brindam com ilustrações bastante nítidas dessa evolução. O último dos nomeados – que é o primeiro presidente de seu país eleito pelo voto popular num período de quase meio século –, depois de somente um ano de governo já registra nas pesquisas índices de aprovação inferiores aos que o último dos ditadores militares, João Baptista Figueiredo, obtinha à época (cf. Nepomuceno, 1991:16). É claro que, nesse tempo, o salário real caiu cerca de um quarto e que, nos primeiros quatro meses de 1991, o consumo de produtos básicos experimentou uma queda substancial, ao mesmo tempo que persistem e se aprofundam desigualdades sociais assustadoras. Basta lembrar que enquanto a diferença de renda entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres da população é de 10 para 1 nos Estados Unidos ou na França, no Brasil chega à brutalidade de 35 para 1 (cf. Touraine, 1991: 10). ; 3) depois de um certo tempo, crescente frustração dessas expectativas e rápida queda da popularidade presidencial25 25 É muito cedo para julgar se o relativo êxito de Menem nas eleições parciais de 8/9/1991 - quando de toda forma o justicialismo sofreu uma perda importante de votos em relação a 1989 – já o converte numa exceção a essa espiral, que tão seriamente afetou seu primeiro ano e meio de governo. ; 4) conseguinte desencanto por parte de amplos setores da população que, à medida que avança o ciclo, acaba por converter-se numa extensa falta de credibilidade na maioria dos dirigentes políticos; 5) apego defensivo ao privado, apatia cívica e rápido estreitamento da distância entre a legalidade e a legitimidade.

Há anos Parsons havia denominado de "deflação do poder" a esta perda de confiança nos dirigentes pelos grupos subordinados porque, como resultado dela, ocorreria uma queda no volume de poder que se gera no sistema. Desde então aprendemos que, do mesmo modo que não existe uma opinião pública mas públicos diversos com orientações distintas com relação à coisa pública, a coesão social dos liberalismos democráticos do Ocidente parece dever-se menos a uma confiança e a um consenso normativo generalizados do que à fragmentação e à diferenciação e, por último, a um elevado componente de "aceitação pragmática" diante da ausência de alternativas que fossem percebidas como atraentes e verossímeis (cf. Mann, 1970; Thompson, 1984: 33).

Creio, todavia, que essa "deflação do poder" adquire uma importância maior justamente em situações de transição como as que me ocupam, nas quais o regime político ainda não é tido como dado e resulta, por definição, bastante frágil. De um lado, porque é real que, nestas condições, um governo necessita gerar muito mais recursos próprios de poder se quiser instituir algum tipo genuíno de controle sobre os grandes grupos de interesses e sobre os setores autoritários, a começar pelas forças armadas. De outro, porque dadas as tradições locais e suas frustrações presentes, não é improvável que cresçam as franjas da população suscetíveis de se transformarem em massa de manobra de aventureiros, demagogos e iluminados. A rigor, ambos os processos podem tender a se potenciar. À medida que o governo se isola, aumenta sua propensão para aliar-se com os grandes grupos de interesses e, inclusive, para pactar com os setores autoritários - não importa se de boa ou má vontade. Dessa forma, as políticas públicas tornam-se cada vez mais impopulares e aumenta a disponibilidade daqueles que as sofrem para apoiar - ou pelo menos para não resistir - aos cantos de sereia de novos tiranos potenciais26 26 Deve-se ter presente que uma premissa desse raciocínio - que opera deliberadamente com situações limite - consiste em que o desgaste e o descrédito afetam tanto o oficialismo como a oposição, proposição que tem que ser matizada e que, desde logo, não sustento como válida para todos os lugares. De qualquer fornia, parece-me que algo da predisposição a que me refiro no texto pode ser descoberta em fenômeno como o triunfo de Fujimori no Peru; a proliferação de figuras da farândula e do esporte que se transformam subitamente em estrelas políticas; e, mais dramático, os êxitos eleitorais que determinados personagens conspícuos das últimas ditaduras militares vêm logrando em países como a Argentina. .

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Mas para meu argumento não é indispensável um cenário catastrófico, ainda que suspeite que não são muitos aqueles que, em vários países, se atreveriam a descartá-lo por completo como possibilidade. Faz com que o liberalismo democrático -ainda que subsista - se vá esvaziando de conteúdos, enquanto diminuem a capacidade e o desejo das pessoas de envolver-se num processo político que lhe parece cada vez mais distante e menos crível27 27 Nisto, depois de mais de quatro décadas de liberalismo democrático e sem prejuízo de todas as suas particularidades, a índia traz um exemplo nefasto que se faria mal em ignorar. Como observa um especialista: "A vida política em todos os seus níveis aparece associada à violência, à corrupção e ao crime; e, à medida que as instituições estatais foram se corroendo e novas forças sociais se politizaram, teve-se que recorrer com freqüência às forças armadas para manter a ordem" (Kohli, 1988: 3). Segundo estimativas do Banco Mundial, em 1985, 55% da população (420.000.000 de pessoas) estava abaixo da linha de pobreza; e 33% (250.000.000 de pessoas) era "extremamente pobre". Nessas condições, são poucos os eleitores que "se atrevem a esperar que o próximo governo - quaisquer que sejam o partido, os dirigentes ou as promessas que foram feitas durante a campanha - possa sequer começar a melhorar suas vidas... Em termos gerais, todos os partidos políticos assumem o mesmo compromisso de lutar contra a pobreza e de defender a unidade. Atacam-se uns aos outros implacavelmente e, onde podem, compram votos, Mas em breve, o espetáculo vai terminar: e a vida continuará como era" (Crook, 1991: 60, sublinhado por rnim). .

Porque a proposição que gostaria de avançar é a seguinte: em contextos tão precários como aos que aqui aludo, a defesa das liberdades públicas e a própria consolidação do governo representativo dependem de que se desenvolvam com bastante rapidez múltiplas formas de democracia participativa. Essas formas deveriam combinar-se com os modos representativos, que são imprescindíveis em sociedades complexas e diferenciadas e aos quais haveria de dar, por seu turno, o maior conteúdo possível de autenticidade (democratização dos partidos políticos, dos sindicatos e das corporações em geral; controle de responsabilidade dos dirigentes; transparência financeira das organizações; etc).

Certamente não se trata de fetichizar a participação nem tampouco de convertê-la em um novo deus ex machina. A participação é uma dessas categorias conhecidas como "essencialmente controvertidas" / essentially contested / e não um talismã. As identidades e as autonomias que pode promover no local do trabalho ou no bairro ou em qualquer outro espaço nem são absolutas nem se constituem de uma vez para sempre: redefinem-se e negociam, sendo portanto o conflito inerente a ela28 28 Uma boa advertência sobre os extravios possíveis da idéia de participação está no auge que alcançou em Washington o "grass-roots lobbyist" que, ao invés de exercer pressão direta sobre os congressistas, dedica-se a mobilizar e a manipular os eleitores locais (ver Waldeman, 1991: 35). .

Trata-se, sim, de superar os supostos restritivos sobre os quais repousou a concepção ortodoxa do liberalismo democrático, a partir de Schumpeter. Por isso é importante enfatizar em que a rejeição do princípio de representação como critério exclusivo de funcionamento, ou do atomismo individualista como fundamento pré-teórico, ou da esfera governamental como único espaço da política, não significa de nenhuma maneira abandonar as garantias constitucionais, ou o princípio da separação de poderes, ou os direitos de cidadania, ou - inclusive - a própria distinção entre os espaços do Estado e da sociedade civil, que constituem outros tantos legados históricos do liberalismo (ver, por exemplo, Held, 1987: 267-299).

Foi precisamente um dos principais mentores da perspectiva pluralista que, três décadas depois da publicação daquela que provavelmente seja sua obra mais difundida, revisou suas posições iniciais para sustentar que os maiores perigos para a liberdade não têm origem na igualdade mas na desigualdade: o capitalismo moderno tende "a produzir desigualdades sociais e econômicas tão grandes que provocam graves violações da igualdade política e, portanto, do processo democrático..." (Dahl, 1985: 60). Daí sua proposta básica marcar finalmente um retorno a Mill: para garantir a liberdade é necessário que se estenda os princípios democráticos ao campo da empresa econômica. Se isso é assim no caso dos liberalismos democráticos vastamente afiançados que operam em contextos de uma abundância material significativa, torna-se muito mais necessário e urgente onde, como em tantos lugares da América latina, o sistema de dominação gera sobretudo estagnação e pobreza.

Ainda mais que na cultura política da região não só consideráveis componentes autoritários mantêm sua presença, como entre os partidários do liberalismo democrático prevalece uma idéia de representação que conduz, no geral, a uma interpretação muito restritiva das regras de procedimento a que aludi em páginas anteriores. Refiro-me a uma visão européia (que se originou a partir de Hobbes, tomou forma entre os "whigs" ingleses, foi consagrada pela constituição francesa de 1791 e vem sendo adotada posteriormente pela maioria dos países da Europa Ocidental), segundo a qual as eleições são fundamentalmente atos de autorização, que dão ao representante a mais plena latitude para decidir segundo seus próprios critérios e convições sobre aquilo que crê conveniente para seus representados29 29 a esta imagem da representação contrapõe-se a visão norte-americana, cujos princípios foram fixados em 1776, pela Declaração de Direitos de Virgínia. Para citar no original: That all power is vested in, and consequently derived from, the people; that magistrates are their trustees and servants, and at all times amenable to them". .

Cada um à sua maneira, dois grandes teóricos da democracia participativa como Macpherson e Bobbio chegaram à melancólica conclusão de que isso que o segundo denomina "as deficiências necessárias das democracias representativas estabelecidas" é quase impossível de ser transformada. Penso, por meu turno, que em situações transicionais como as que enfrentam a maioria dos países aos quais me refiro, o que é quase impossível é uma consolidação de longo prazo de uma democracia representativa digna de seu nome se não se expande a participação, isto é, se não se estimula uma ampla deliberação entre iguais sobre o melhor uso dos recursos da sociedade; do tipo de modernização que se prefere, de quais as necessidades prioritárias e os modos de satisfazê-las; de como devem ser definidos o público e o privado; do "mix" mais conveniente entre as pautas de centralização e de descentralização na tomada de decisões; etc.

Sem dúvida cabe a possibilidade de que mesmo experiências participativas genuínas possam produzir em alguns casos resultados que sejam substantivamente antidemocráticos. Por isso minha insistência tanto no problema de sua articulação com as formas representativas como na importância de se preservar muitas das garantias e resseguros que constituem a melhor herança do liberalismo.

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Herbert Blumer cunhou o termo "sensibilizadores" para designar esses conceitos que nos sugerem para onde olhar ainda que não estejam em condições de nos dizer o que vamos ver. É este caráter sensibilizador que gostaria de poder atribuir às minhas observações precedentes. São alguns rudimentos de um diagnóstico e estão muito distantes de pretender converterem-se numa receita: ademais, estou convencido de que, em todo caso, não cabe ao politicólogo elaborá-la.

Creio, porém, ser nossa responsabilidade contribuir para a compreensão dos limites e das potencialidades do momento atual uma vez que coloquemos na agenda e exploremos outros mundos possíveis. Depois de tudo, mais tarde ou mais cedo, muitas das categorias teóricas que utilizamos se incorporam ao discurso ideológico e, por essa via, algumas até chegam a metamorfosear-se nessas interpretações de sentido comum com as quais as pessoas procuram entender o que paira ao seu redor. Só que isso vale igualmente para aquilo que escolhemos não dizer, e por isso temos que assumir também as conseqüências de nossos silêncios e dos silêncios fomentados.

Considero que se torna mais importante que nunca apontar para a produção dessa teoria do estado de que falava antes, citando Macpherson: uma teoria do Estado na grande tradição, que seja ao mesmo tempo descritiva e prescritiva. A meu juízo, essa teoria deveria ter como núcleo gerador a idéia rousseauniana de que a lei tem que se fundar na vontade popular e não na razão iluminada, porque podem ser por ela obrigados, como pessoas livres, as mulheres e os homens que contribuem para fazê-la. Naturalmente isto traz naturalmente para um primeiro plano o tema da participação, de suas formas e de seus âmbitos, mas sobretudo, a difícil pergunta sobre o modo pelo qual podem se articular as práticas participativas e as práticas representativas.

Segundo insinuei, penso este problema em termos de níveis de ação e não de etapas, segundo as quais haveria que consolidar primeiro o liberalismo democrático para logo depois apresentar a questão da democracia participativa. Como afirmei em outro lugar, este etapismo acaba consumando uma profecia que se cumpre a si mesma: a política se institucionaliza por vias que desvalorizam sistematicamente os componentes participativos e de sentido comum daquela vontade popular, que é necessariamente heterogênea e múltipla; e, depois, a falta de informação e o pequeno interesse do cidadão médio pela política são esgrimidos como justificativa evidente dos próprios mecanismos que, em grande medida, os provocam.

Entre esses níveis de ação, aqueles em que ocorrem experiências participativas de distintas naturezas, com magnitudes variáveis e com diversos graus de institucionalização, estão presentes em quase toda a América Latina. Mas encontram-se ainda muito longe de formar uma massa crítica ou de poder conduzir para uma reforma cultural profunda, que permita outorgar pelo menos tanta importância às obrigações políticas horizontais, com nossos próximos, como às verticais, com o governo (ver Pateman, 1985: 163-178). Pelo contrário, a presente maré liberal tendem a sitiar essas experiências e a desarticular esses temas em nome do individualismo, do interesse privado e do que agora se chama de pragmatismo.

Por isso me parece ser um desafio para os politicólogos trazer à luz e discutir os princípios que estão em jogo: examinar as realidades concretas onde se aplicam, e empreender a construção de uma teoria do Estado na qual possam nutrir-se novas e mais democráticas estratégias políticas. Creio que um primeiro passo importante nessa direção é abandonar qualquer idéia de uma só modernização possível e advertir que o liberalismo democrático não esgota de forma alguma o significado da palavra democracia.

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  • Wittgenstein, L., 1958. Philosophical Investigations, (Nueva York, transi. G. E. M. Anscombe)
  • *
    Versão revista da exposição apresentada na sessão plenária sobre "A teoria democrática hoje: questões empíricas e teóricas", XV Congresso Mundial, Associação Internacional de Ciência Política, Buenos Aires, Julho 21-26, 1991, com base em pesquisa apoiada pelo Social Sciences and Humanities Research Council of Canada. Tradução de Amélia Cohn.
  • 1
    A experiência dos países capitalistas centrais indica que a denominada
    democracia liberal constitui a forma política mediante a qual, desde fins do século passado, o liberalismo logrou dotar-se de uma justificação democrática. Por isso creio ser mais rigoroso (e menos apologético) mudar o sujeito e denominá-la de
    liberalismo democrático – com o que, também, se pode evitar converter a "democracia liberal" em sinônimo de "democracia" simplesmente. Sobre a evolução mencionada, consultar Levine, 1981.
  • 2
    Para uma exposição atualizada, ver "New Democracies",
    The Economist, 22/12/1990, págs. 43-44.
  • 3
    Ainda que não possa deter-me aqui neste ponto, creio que nisto desempenham um papel notável de difusão e de unificação o impressionante nível de desenvolvimento alcançado pela
    mass media e pelas burocracias internacionais como também os múltiplos canais de comunicação de que a própria comunidade científica dispõe. Para um interessante exame de fenômenos análogos de "issue convergence", ver Vogel (1986: 222-223).
  • 4
    Para um exemplo do novo auge na América Latina do tratamento schumpeteriano e seus derivados, ver Flisfich (1991:193): "é uma conceitualização que captura adequadamente unto o sentido como a modalidade efetiva de operação de uma ordem política democrática". Também, entre outros, Valenzuela (1990).
  • 5
    Emprego
    esses termos de modo análogo ao uso que faz deles Heilbroner (1985: 18-19) em sua análise do capitalismo, onde a
    natureza refere-se às "forças ou agências determinantes..., suas instituições e relações reguladoras da conduta" e
    lógica à trajetória do sistema, ao "padrão de mudança configuracional gerado e guiado por sua natureza".
  • 6
    Tomo emprestado da obra de Jacques Lacan o conceito de "lógica do não-todo".
  • 7
    Como já foi assinalado muitas vezes, o suporte dessa visão consistia numa leitura retrospectiva e idealizada do que supostamente havia ocorrido nos países capitalistas avançados - por mais que na obra clássica de Dahl (1971), por exemplo, nunca se nomeasse o capitalismo. Por isso, em função do que direi a seguir, volta a ganhar atualidade uma observação de Tilly (1975:4): "os critérios de modernidade tendiam a tergiversar o problema das vias de desenvolvimento convertendo-o em outro distinto: sob que condições e mediante quais transformações podíamos esperar que os governos dos novos mundos de hoje terminassem por assemelhar-se aos governos do velho mundo?".
  • 8
    Vale aqui o contraste com, por exemplo, Apter (1965: 452) que, há alguns anos, concluía uma de suas obras mais influentes com uma afirmação que então poucos haviam discutido: "... a experiência das nações que se acham em processo de modernização indica que a democracia, tal como nós a entendemos, não é apropriada para seu estágio de desenvolvimento".
  • 9
    Neste sentido, Schumpeter (1961:362) havia exposto de início o assunto com sua clareza habitual: "a democracia é o governo do político" e não do povo - claro que sem agregar, como havia feito Clemenceau uns anos antes, que a política era um assunto demasiado importante para deixá-lo nas mãos dos políticos. Por sua vez, nos primeiros trabalhos de Dahl (1956: 133), a democracia aparecia definida como "o governo das minorias", se bem que agora com uma ênfase especial – característica dos pluralistas – no consenso normativo que devia dar respaldo a essas minorias. É de justiça esclarecer que, no caso citado de Weffórt (1990: 37 e 39), o termo possui um conteúdo menos preciso porém mais amplo já que alude ao "crescimento da capacidade de participação política e da capacidade de organização da sociedade civil"; e designa o "complexo de instituições por meio das quais se pode chegar a decisões legítimas, válidas para toda uma comunidade".
  • 10
    Sublinho
    historicamente paia. marcar uma tendência concreta que se deu especificamente em diversos lugares da América Latina. Mas, sem dúvida, muitos veementes defensores do mercado subscreveram também a seqüência "modernização-democratização" e tentaram colocá-la em prática mediante ditaduras como a de Videla na Argentina ou de Pinochet no Chile. Em outras palavras, falo de uma associação empírica e não de uma necessidade teórica. E se resta alguma dúvida, basta lembrar as declarações de Friedrich von Hayeck para
    El Mercúrio do Chile no início da década passada, quando sustentou que, obrigado a escolher, preferia um regime autoritário que defendesse a economia de mercado a um governo democrático que lhe pusesse freios.
  • 11
    Neste tema, a referência obrigatória consiste no já clássico estudo crítico de Pateman (1970: 1-44).
  • 12
    Num ensaio famoso escrito em 1928,
    Liberalismo e liberismo, Benedetto Croce sustentou, contra os partidários do
    laissez faire, que o ideal de liberdade era compatível com diversos regimes econômicos. Daí a distinção que propôs entre o
    liberalismo, como doutrina política comprometida com
    esse ideal e com os princípios constitucionais que o atualizam, e o
    liberismo, como doutrina econômica que tem como dogmas o livre mercado e a iniciativa privada. Nestes termos, na América Latina contemporânea foi muito forte a tradição do
    liberismo e muito fraca do
    liberalismo, sem prejuízo de importantes diferenças nacionais. (Sobre este último ponto, ver, por exemplo, Halperin Donghi 1987: 141:166). Por isso o assinalamento que faço neste texto.
  • 13
    António e Knapp (1988: 13) citam apropriadamente um artigo publicado em 1963 no
    New York Times sob o título "What Sort of Nation are We?", onde se sustentava que os Estados Unidos eram um país profundamente democrático apesar de "a vontade da maioria não se refletir em muitas de nossas instituições políticas". A razão aduzida tem particular relevância tanto para o que venho afirmando como para o que agregarei posteriormente: "A democracia de estilo norte-americano deve ser interpretada como um fenômeno mais social que político. Significou que um número cada vez maior de norte-americanos conseguiu atingir um nível de segurança material... que em outros países continua sendo privilégio de minorias exclusivas" já que "as classes sociais desempenham um papel tão pequeno em nossa vida nacional". (A fonte original da citação é Hodgson/1976: 161).
  • 14
    Como se sabe, o
    locus classicus para a análise deste tipo de conceitos é Wittgenstein (1958: 65-F71).
  • 15
    Certamente que assinalar quais são as características do instrumento que se emprega não supõe em absoluto questionar sua utilidade (cf. Bloor, 1983: 29-41). Note-se que mesmo nos regimes habitualmente classificados como democracias representativas não o são tanto pelas propriedades comuns que possuem mas, a rigor, que acabam possuindo essas propriedades comuns como resultantes da operação que os classifica como tais: tudo depende dos critérios que se considerem relevantes e do ponto de vista em que se acorde deixar de fazer distinções. E embora caia mal aos positivistas, decisões como estas constituem sempre juízos de valor sobre o que é o principal e o que é acessório. Basta lembrar, como ilustração, o debate sobre as semelhanças que existiriam ou não entre os sistemas políticos da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos: enquanto Almond, por exemplo, as subsume na categoria de "democracias anglo-saxônicas", outros autores (Price, Iivingston, etc.) preferem sublinhar as diferenças entre o presidencialismo americano e o parlamentarismo britânico, entre o governo federal dos Estados Unidos e o unitário da Brã-Bretanha, etc.
  • 16
    Nos países centrais, as discussões a que faço alusão se associam, dentre outros, com os nomes de Burawoy, Bowles, Elster, Giddens, Gintis, Offe, Przeworski, Roemer, Wright, etc. A ausência de buscas similares nas principais correntes do atual pensamento latino-americano agrega um elemento de reforço à "espiral do silêncio" que menciono: as análises em termos de classes vão assim ficando em mãos bastante dogmáticas e anacrônicas, que contribuem para seu descrédito.
  • 17
    Sobre a pertinência de distintos princípios de análise e dos domínios a que correspondem, ver Alford e Friedland (1985).
  • 18
    Tempos atrás, quando estava na moda o paradigma classista, era bastante comum que se começasse estudando as especificidades econômicas do capitalismo dependente na América Latina para depois tirar conclusões sociais e políticas baseadas na operação de uma dinâmica de classes basicamente similar à que detectavam nessa época em seus países os cientistas sociais do "primeiro mundo". Por essa via, muitas vezes acaba parecendo que, na realidade, aquela dependência econômica não tinha muitos efeitos concretos sobre a estrutura de classes. Desde logo, nem sempre ocorreu isso; mas ocorreu o suficiente para que valha a pena lembrá-lo agora que mudaram tanto o clima intelectual e as influências que recebem.
  • 19
    Para evitar mal-entendidos, não sustento que sempre tenha que se dar proeminências à luta de classes como princípio de análise, qualquer que seja o tempo e o lugar. Mais ainda, a distinção que Giddens propôs (1981: 105-108) entre "sociedades divididas em classes
    11 11 Neste tema, a referência obrigatória consiste no já clássico estudo crítico de Pateman (1970: 1-44). /class divided societies/ e "sociedades de classes" /class societies/ parece-me heuristicamente importante para examinar contextos latino-americanos caracterizados pela desarticulação e pela simultaneidade de diversos tempos históricos. Ademais, não só outros paradigmas - como por exemplo o neo-corporativista - podem iluminar processos que o paradigma dassista deixa na sombra ou, simplesmente, ignora, mas que seria absurdo desconhecer a significação própria de fenômenos como o nacionalismo, o racismo e o sexismo. Mas o perigo da moda "não classista" que comento reside em que, por olhar muito para outro lado, ajude a que se jogue a criança junto com a água do banho.
  • 20
    Paradoxalmente, em termos históricos, a tese de Bendix se aplica muito melhor ao caso da Alemanha do que ao caso inglês estudado por Marshall.
  • 21
    Ilustrando o que assinalava na
    nota 3 3 Ainda que não possa deter-me aqui neste ponto, creio que nisto desempenham um papel notável de difusão e de unificação o impressionante nível de desenvolvimento alcançado pela mass media e pelas burocracias internacionais como também os múltiplos canais de comunicação de que a própria comunidade científica dispõe. Para um interessante exame de fenômenos análogos de "issue convergence", ver Vogel (1986: 222-223). , é notável a difusão alcançada em todo o continente pelo denominado "consenso de Washington", vale dizer, pelo modelo de desenvolvimento de cunho neoclássico elaborado pelo Banco Mundial, pelo Fundo Monetário Internacional e pelos
    think tanks de Washington, e que agora passa como sendo a "única interpretação racional possível" dos problemas da estabilização e do crescimento. Sobre isto consultar Fanelli, Frenkel e Rozenwurcel (1990: 3-16).
  • 22
    Para além da significação que em particular assume em contextos de atraso, de 'desigualdade e de miséria crescentes, este terceiro ponto merece ser sublinhado por implicar no abandono do que foi uma das maiores preocupações dos economistas clássicos, como se pode ver em Adam Smith (1976/1776: 399). Para críticas sociológicas úteis do paradigma neo-clássico, consultar Swedberg (1987) e Block (1990). É quase desnecessário agregar que não estou imputando aos economistas neo-clássicos uma miopia: eles sabem perfeitamente que os comportamentos econômicos são influenciados pela política ou pela cultura e tampouco ignoram a existência de condutas econômicas não racionais (como a do famoso economista - neoclássico - que deixa gorjeta num restaurante onde não pensa em voltar). Questiono, sim, as conseqüências que se seguem à sua decisão metodológica de tratar esses fatores não econômicos ou não racionais como exógenos
    , a seus modelos.
  • 23
    Torno a citar o
    Informe do Diálogo Inter-Ameriano 1990: 22): "Mais gente que nunca está submersa na pobreza. O desemprego e o subemprego estenderam-se praticamente por todos os países. Os salários deterioraram acentuadamente, chegando a cinqüenta por cento em alguns países. A qualidade da moradia, a atenção médica e a educação pioraram constantemente. Os índices de criminalidade cresceram. A vida tornou-se muito mais dura na América Latina, e as mulheres e as crianças pequenas são os que sofrem mais". Segundo dados da CEPAL, em 1990 o produto por habitante da região deteriorou em 2.6%, com o que retrocedeu ao nível de 1983 que, por sua vez, foi 10% inferior em relação a 1980 (Rosenthal, 1990:4).
  • 24
    Alfonsin na Argentina ou Collor de Mello no Brasil nos brindam com ilustrações bastante nítidas dessa evolução. O último dos nomeados – que é o primeiro presidente de seu país eleito pelo voto popular num período de quase meio século –, depois de somente um ano de governo já registra nas pesquisas índices de aprovação inferiores aos que o último dos ditadores militares, João Baptista Figueiredo, obtinha à época (cf. Nepomuceno, 1991:16). É claro que, nesse tempo, o salário real caiu cerca de um quarto e que, nos primeiros quatro meses de 1991, o consumo de produtos básicos experimentou uma queda substancial, ao mesmo tempo que persistem e se aprofundam desigualdades sociais assustadoras. Basta lembrar que enquanto a diferença de renda entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres da população é de 10 para 1 nos Estados Unidos ou na França, no Brasil chega à brutalidade de 35 para 1 (cf. Touraine, 1991: 10).
  • 25
    É muito cedo para julgar se o relativo êxito de Menem nas eleições parciais de 8/9/1991 - quando de toda forma o justicialismo sofreu uma perda importante de votos em relação a 1989 – já o converte numa exceção a essa espiral, que tão seriamente afetou seu primeiro ano e meio de governo.
  • 26
    Deve-se ter presente que uma premissa desse raciocínio - que opera deliberadamente com situações limite - consiste em que o desgaste e o descrédito afetam tanto o oficialismo como a oposição, proposição que tem que ser matizada e que, desde logo, não sustento como válida para todos os lugares. De qualquer fornia, parece-me que algo da predisposição a que me refiro no texto pode ser descoberta em fenômeno como o triunfo de Fujimori no Peru; a proliferação de figuras da farândula e do esporte que se transformam subitamente em estrelas políticas; e, mais dramático, os êxitos eleitorais que determinados personagens conspícuos das últimas ditaduras militares vêm logrando em países como a Argentina.
  • 27
    Nisto, depois de mais de quatro décadas de liberalismo democrático e sem prejuízo de todas as suas particularidades, a índia traz um exemplo nefasto que se faria mal em ignorar. Como observa um especialista: "A vida política em todos os seus níveis aparece associada à violência, à corrupção e ao crime; e, à medida que as instituições estatais foram se corroendo e novas forças sociais se politizaram, teve-se que recorrer com freqüência às forças armadas para manter a ordem" (Kohli, 1988: 3). Segundo estimativas do Banco Mundial, em 1985, 55% da população (420.000.000 de pessoas) estava abaixo da linha de pobreza; e 33% (250.000.000 de pessoas) era "extremamente pobre". Nessas condições, são poucos os eleitores que "se atrevem a esperar que o próximo governo -
    quaisquer que sejam o partido, os dirigentes ou as promessas que foram feitas durante a campanha - possa sequer começar a melhorar suas vidas... Em termos gerais, todos os partidos políticos assumem o mesmo compromisso de lutar contra a pobreza e de defender a unidade. Atacam-se uns aos outros implacavelmente e, onde podem, compram votos, Mas em breve, o espetáculo vai terminar: e a vida continuará como era" (Crook, 1991: 60, sublinhado por rnim).
  • 28
    Uma boa advertência sobre os extravios possíveis da idéia de participação está no auge que alcançou em Washington o "grass-roots lobbyist" que, ao invés de exercer pressão direta sobre os congressistas, dedica-se a mobilizar e a manipular os eleitores locais (ver Waldeman, 1991: 35).
  • 29
    a esta imagem da representação contrapõe-se a visão norte-americana, cujos princípios foram fixados em 1776, pela Declaração de Direitos de Virgínia. Para citar no original: That all power is vested in, and consequently derived from, the people; that magistrates are their trustees and servants, and at all times amenable to them".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 1992
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