Resumo:
Neste artigo investigamos como as mudanças nas políticas públicas no governo Bolsonaro produziram o desmonte das políticas para mulheres, de igualdade racial e de direitos de LGBTQIA+. Em diálogo com a literatura sobre desmonte de políticas públicas, examinamos as mudanças na estrutura burocrática, nos programas governamentais e na execução orçamentária nesses três setores de políticas, no âmbito do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos ao longo de 2019 a 2022, através de documentos governamentais e entrevistas com gestores e conselheiros. A partir dos resultados empíricos, argumentamos que as dinâmicas de desmonte nesses setores foram intencionais, processuais e progressivas. Destacamos as decisões de desmonte de baixa visibilidade (omissão e mudança de arena) dos governos precedentes (Dilma e Temer) e demonstramos que o governo Bolsonaro aprofundou o desmantelamento pelo uso de estratégias conjuntas (desmonte por mudança de arena, por ação simbólica e ativo), com efeitos sobre a densidade e a intensidade formal e substancial das políticas.
Palavras-chave:
Desmonte de políticas públicas; Extrema direita; Governo Bolsonaro; Políticas para mulheres; Políticas de igualdade racial; Políticas LGBTQIA+
Abstract:
In this paper, we analyze how changes in public policies during the Bolsonaro government in Brazil led to the dismantling of policies for women, racial equality, and LGBTQIA+ rights. Engaging with the literature on policy dismantling, we examine changes in the bureaucratic structure, governmental programs, and budget expenses within these three policy areas in the Ministry of Woman, Family, and Human Rights between 2019 and 2022. Our analysis draws on official documents and interviews with policy managers and counselors. Based on our empirical findings, we argue that the dismantling processes in these areas were intentional, processual, and progressive. We highlight the low-visibility dismantling strategies (such as dismantling by default and arena shifting) that emerged during previous administrations (Dilma and Temer) and demonstrate that the Bolsonaro administration deepened the dismantling by employing combined strategies, including dismantling by arena shifting, symbolic action, and active dismantling. These strategies had significant effects on the density, as well as on the formal and substantive intensity, of these policies.
Keywords:
Policy dismantling; Far-right; Bolsonaro government; Policies for women; Racial equality policies; LGBTQIA+ policies
Introdução
Neste artigo, analisamos as mudanças em políticas públicas da área de direitos humanos comparativamente em três setores - políticas para mulheres, de igualdade racial e para LGBTQIA+ -, examinando os processos de desmonte ocorridos no governo Bolsonaro entre 2019 e 20221. Realizamos essa análise mapeando transformações na estrutura burocrática, nos programas governamentais e na execução orçamentária desses setores no âmbito do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), sob a gestão da ministra Damares Alves. Dessa forma, este estudo explora a seguinte questão: como as mudanças nas políticas públicas no governo Bolsonaro produziram o desmonte das políticas para mulheres, de igualdade racial e de direitos de LGBTQIA+? Com base na literatura sobre os processos de desmonte de políticas públicas (Bauer e Knill, 2012; Bauer et al., 2012, 2021), buscamos identificar as estratégias de desmonte utilizadas nesses setores e examinar seus efeitos sobre a densidade e a intensidade das políticas.
Este artigo se soma à literatura que tem analisado os processos de desmonte observados ao longo do governo de extrema direita de Jair Bolsonaro no Brasil. Estudos apontam que esse governo articulou um discurso populista com significados políticos, religiosos e morais, cujo entrelaçamento discursivo alicerçou mudanças em políticas públicas (Marques e Carlos, 2025; Lynch e Cassimiro, 2022). Nesse período, políticas públicas de diversas áreas sofreram processos de descaracterização, desinstitucionalização e desmonte (Faria e Lima, 2024; Gomide; Silva e Leopoldi, 2023; Milhorance, 2021). Observou-se também a desinstitucionalização de instituições participativas como comitês, conselhos e conferências de políticas setoriais na burocracia estatal (Bezerra et al., 2024; Tatagiba et al., 2022). Essa dinâmica de desmonte e reconfiguração de políticas públicas afetou sobretudo os serviços e políticas nas áreas sociais, ambientais e de direitos humanos (Silva, 2023; Grisa e Niederle, 2021; Sabourin; Craviotti e Milhorance, 2020).
Não obstante o desmonte de políticas possa assumir “formas omissas ou silenciosas”, dado o alto custo da impopularidade da decisão (Bauer et al., 2012), este processo no Brasil tem sido retratado, pelo contrário, como uma estratégia deliberada da extrema direita em articulação aos interesses e valores de suas bases eleitorais (Grisa e Niederle, 2021; Silva, 2023; Milhorance, 2022). Também tem sido caracterizado por uma lógica autoritária de “desorganização e desmonte da burocracia pública” e de suas capacidades estatais numa escalada progressiva (Silva, 2023, p. 486). Segundo Silva, ao invés de sutil, o “desmonte autoritário de políticas públicas” no governo Bolsonaro consiste em ataque direto e deliberado aos recursos e instituições que sustentam as políticas e o Estado como um todo (2023, p. 476).
Os estudos indicam, ainda, as dinâmicas de desmonte nos setores de políticas de interesse deste artigo. Nas políticas públicas para mulheres, Tokarski et al. (2023) mensuram o desmonte por meio de indicadores de densidade e de intensidade da política, identificando as mudanças institucionais e orçamentárias e no conteúdo da política pautado pela deslegitimação da categoria de “gênero”. Nas políticas de igualdade racial, Silva (2024) analisou as estratégias de desmonte a partir de indicadores de mudanças na estrutura organizacional e no orçamento do setor, bem como da desvalorização discursiva das políticas de igualdade racial. Na política para LGBTQIA+, Pereira, Aragusuku e Teixeira (2023) demonstram o desmonte da estrutura organizacional e participativa, bem como dos programas e recursos orçamentários nesse setor, a partir da incorporação das chamadas “políticas públicas familiares”. Neste artigo, buscamos contribuir com os estudos ao analisar comparativamente esses três setores para compreender a especificidade dos processos de desmonte de políticas públicas na área dos direitos humanos. A pesquisa empírica articula multimétodos numa base de dados de documentos governamentais e de entrevistas com gestores e conselheiros.
Argumentamos que o desmonte das políticas para mulheres, de igualdade racial e para LGBTQIA+ no governo Bolsonaro foi intencional, processual e progressivo, indo de formas menos visíveis e sutis para formas mais visíveis e ativas. Sua intencionalidade consiste na decisão deliberada de operar estratégias de desmonte voltadas às mudanças nas políticas públicas, alinhada a uma agenda pragmática em um governo populista de extrema direita. Sua processualidade remete ao desmonte desde os governos precedentes (Dilma e Temer), por meio de estratégias de baixa visibilidade (desmonte por omissão e por mudança de arena) que afetaram a densidade e a intensidade formal das políticas. Por fim, a progressividade do desmonte opera no governo Bolsonaro pelo aprofundamento do processo, por intermédio da combinação entre estratégias de baixa e alta visibilidade (desmonte por mudança de arena, por ação simbólica e ativo), com efeitos na densidade e na intensidade formal e substancial das políticas.
Este artigo segue estruturado em quatro seções, acompanhadas desta introdução. Na primeira seção, apresentamos a abordagem sobre desmonte de políticas públicas. Na segunda, expomos o desenho metodológico da pesquisa. Na terceira seção, analisamos as transformações nas políticas para mulheres, de igualdade racial e de direitos de LGBTQIA+ no governo Bolsonaro, com ênfase nos efeitos de redução na densidade da política e na sua intensidade formal e substancial, através de indicadores de estrutura burocrática, orçamentária e programas. Por fim, a quarta seção formaliza a comparação entre os setores quanto às estratégias de desmonte e seus efeitos. Na conclusão sintetizamos os principais achados e contribuições.
Desmonte de políticas públicas
O desmonte de políticas públicas (policy dismantling) tem sido interpretado por parte da literatura como um tipo específico de mudança institucional, sendo desenvolvidos modelos e conceitos próprios para sua análise. Bauer et al. (2012, p. 5) definem o desmonte de políticas públicas como “o corte, redução, diminuição ou até mesmo a total substituição/eliminação de políticas públicas existentes”. Os estudos de Bauer et al. (2012) e Bauer e Knill (2012) desenvolveram um framework abrangente para analisar, em diferentes setores, as dimensões que permitem a mensuração do desmonte, as condições que favorecem o desmonte de políticas, as diferentes estratégias de desmonte empregues pelos governos e os seus diversos efeitos.
No que se refere às suas dimensões, esse conceito concebe uma diferenciação entre a “densidade da política” (policy density) e a “intensidade da política” (policy intensity), como indicadores para o estudo do desmonte (Bauer e Knill, 2012). A densidade da política descreve o grau em que uma determinada política é considerada na ação governamental. A densidade pode ser avaliada por indicadores empíricos, como o número de políticas ou de instrumentos de políticas existentes. Nessa dimensão, a extinção de políticas ou de seus instrumentos é um indicador importante de desmonte.
Por seu turno, a intensidade da política descreve o quanto a política é desenhada a partir de critérios restritos ou “generosos”. A intensidade de uma política pode ser subdividida em substancial e formal. A intensidade substancial se refere à definição do escopo e do nível da intervenção governamental por meio da política, por exemplo, na definição de seu enfoque ou ainda dos valores e critérios de elegibilidade a benefícios governamentais. Ao passo que, a intensidade formal refere-se “aos fatores que afetam a probabilidade de que critérios substanciais sejam efetivamente alcançados” (Bauer e Knill, 2012, p. 35). Entre os indicadores formais, os autores destacam: (i) as capacidades de fiscalização das normas estabelecidas pela política; (ii) as capacidades administrativas para sua efetivação; e (iii) as capacidades procedimentais para sua implementação, como a participação de atores afetados pelas decisões e os procedimentos de monitoramento (Bauer e Knill, 2012).
Bauer e Knill (2012) propõem, ainda, quatro tipos ideais de estratégias de desmonte de políticas, que se diferenciam em duas dimensões: a) o grau em que a decisão de desmontar é tomada de forma ativa, produzindo uma decisão formal e; b) o grau em que os atores políticos querem ocultar ou visibilizar sua ação de desmonte. Seguindo esses critérios os autores propõem quatro tipos de estratégias de desmonte, conforme o Quadro 1:
O “desmonte por omissão (ou default)” é a forma mais sutil de desmonte, caracterizada pela baixa visibilidade e pela ausência de decisão formal. O desmonte se dá pela redução do nível de atividade nas políticas existentes ou pela ausência de ajustes às condições externas. Exemplos incluem a ausência de reajuste de benefícios diante de processos inflacionários ou, ainda, a ausência de incremento do orçamento diante de fenômenos que agravem o problema ao qual a política responde.
A estratégia de “desmonte por mudança de arena” também possui baixa visibilidade, porém é resultado de decisões ativas em favor do desmonte. Nessa estratégia, as decisões a respeito de uma política pública são deliberadamente transferidas para outra arena política ou, ainda, as bases organizacionais e regras da arena responsável pela política são modificadas de forma a produzir efeitos de desmonte. Exemplos dessa estratégia incluem a mudança de uma política para outros órgãos ou níveis de governo ou, ainda, a alteração dos mecanismos de participação ou das características organizacionais do setor que pode produzir efeitos de desmonte. Embora a mudança de arena implique que a decisão seja efetivamente tomada, ela pode ser não perceptível para os beneficiários da política pública, o que reduz os custos do desmonte.
Por seu turno, o “desmonte por ação simbólica” possui alta visibilidade da decisão, mas com ausência de uma decisão ativa. Nesse caso, os atores políticos declaram deliberadamente suas intenções de desmonte, sem efetivá-lo de forma consistente na prática. Essa estratégia tende a ser utilizada quando a decisão pelo desmonte representa potenciais benefícios para os governantes, mas constrangimentos institucionais impedem sua realização plena, que permanece no nível simbólico. Neste artigo, ampliamos o uso dessa categoria e consideramos quaisquer declarações públicas que buscam anunciar o desmonte de uma política pública ou legitimá-lo, mesmo quando efetivado na prática.
Por fim, o “desmonte ativo” envolve uma alta visibilidade aliada a uma decisão ativa com clara preferência pelo desmonte. Nesse caso, o tomador de decisão efetiva de forma visível o desmonte de uma política existente. Essa decisão pode ser motivada por demandas políticas, ou por razões ideológicas e eleitorais e é possível diante da ausência ou debilidade de constrangimentos institucionais que a restrinjam. A percepção dos atores de que os constrangimentos institucionais são baixos pode facilitar sua decisão, somada à percepção de que os benefícios da decisão são superiores aos custos.
Articulando as dimensões e estratégias de desmonte mencionadas, o desmonte de políticas públicas pode ser definido como:
[…] uma mudança de natureza direta ou indireta, oculta ou simbólica que diminui a quantidade de políticas públicas em uma região específica, reduz o número de instrumentos usados e/ou reduz sua intensidade. Pode envolver mudanças em elementos centrais às políticas públicas e/ou pode ser alcançado através da manipulação das capacidades de implementá-las e monitorá-las (Bauer et al., 2012, p. 36).
Embora inicialmente utilizado para examinar o enfraquecimento de políticas sociais e ambientais em contextos de austeridade fiscal e crise econômica, o conceito de desmonte vem sendo aplicado pelos próprios autores para examinar mudanças de políticas públicas motivadas por decisões de governos de extrema direita na década corrente. Bauer, Peters e Pierre (2021, p. 2) argumentam que líderes populistas “se dedicam a moldar a administração em novos formatos iliberais” aplicando cinco estratégias de desmonte: (i) a transformação estrutural; (ii) a redistribuição de recursos; (iii) a domesticação das equipes; (iv) a aplicação de normas iliberais; e (v) a redução da transparência. Para Bauer et al. (2021), não somente os sistemas político e jurídico são afetados pelos “retrocessos democráticos” observados nas últimas décadas, mas também a administração pública, em especial, em sua capacidade de implementação de políticas públicas.
Já Bauer e Becker (2020) analisam vários casos de efeitos de desmonte sobre a burocracia pública provocada por governos populistas e identificam cinco processos: captura, desmonte, sabotagem e reforma. Quando o líder populista detém uma visão negativa sobre determinada política pública e isso coincide com um arcabouço administrativo frágil, o desmonte surge como consequência. Isso quer dizer que quando a estrutura administrativa e a formalização legal de uma política pública são frágeis, ela se torna mais suscetível ao desmonte, reconfiguração ou descontinuidade diante da emergência de governos de extrema direita. Afinados a essa compreensão processual do desmonte de políticas públicas que destaca o papel das decisões governamentais precedentes e do nível de institucionalização das políticas, concebemos as estratégias de desmonte como dinâmicas que se combinam e se complementam no processo.
Procedimentos metodológicos
A análise das mudanças nas políticas para mulheres, de promoção da igualdade racial e de direitos de LGBTQIA+ no governo Bolsonaro com enfoque no MMFDH e nos processos de desmonte, ocorreu por meio de três indicadores empíricos: (a) estrutura burocrática; (b) dotação e execução orçamentária e; (c) mudanças nos programas.2
Para analisar a estrutura burocrática, mapeamos atos normativos que alteraram a estrutura regimental e o quadro demonstrativo dos cargos em comissão e das funções de confiança do MMFDH, no período de 2019 a 2022, identificando mudanças nos órgãos destinados às políticas em comparação ao governo precedente.
Para análise do ciclo orçamentário extraímos do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento do Governo Federal (SIOP) os dados referentes à dotação orçamentária e aos gastos das unidades do executivo federal responsáveis pelas políticas de direitos humanos. Os valores foram corrigidos pela inflação a partir do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) para o ano de 2022. Obtivemos uma base de dados ampla com informações sobre diversos setores de políticas públicas subordinados ao MMFDH. Para identificar os gastos específicos nos três setores, a filtragem utilizou palavras-chave3. Além disso, os dados do ciclo orçamentário foram coletados para o período de 2003 a 2022, possibilitando compreender os efeitos das mudanças no governo Bolsonaro sobre a evolução dos gastos orçamentários comparativamente aos governos anteriores.
Por fim, a análise das mudanças nos programas foi feita através de documentos disponíveis no site do MMFDH, de documentos oficiais como Relatório de Balanço de Gestão, Plano Plurianual (PPA) e de atos normativos (decretos, portarias e resoluções) relativos à gestão. Em complemento, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com gestores do ministério, ativistas e conselheiros que atuam nas políticas para mulheres (14 entrevistas em 2023) e nas políticas para LGBTQIA+ (7 entrevistas em 2021)4. A mensuração das mudanças nos programas nos três setores tomou como base os antecedentes das políticas nos governos pregressos, fornecido por trabalhos científicos.
Os indicadores empíricos se relacionam com as dimensões do desmonte de políticas públicas propostas por Bauer e Knill (2012), conforme o Quadro 2. A “intensidade da política” em sua subdimensão formal é analisada por meio de mudanças na estrutura burocrática e orçamentária, examinando-se a existência de órgãos e cargos e de orçamento destinados às políticas como indicadores de capacidades administrativas (burocráticas e orçamentárias) e mudanças nos canais de participação e monitoramento como indicadores de capacidades procedimentais. Já a intensidade substancial é analisada por meio dos programas, identificando-se mudanças em seu escopo e público-alvo. Por seu turno, a “densidade da política” em suas subdimensões política e instrumental é analisada através das mudanças em programas, examinando-se a criação de programas e de instrumentos de políticas ou a sua extinção.
Desmonte de políticas públicas no governo Bolsonaro (2019 a 2022)
Desmonte de políticas para mulheres
A análise do desmonte de políticas públicas para mulheres considera como antecedentes a trajetória de institucionalização da política. O processo de consolidação da política teve como marco a criação da Secretaria Especial Nacional de Políticas para as Mulheres (SPM), com status de ministério, nos governos Lula (Partido dos Trabalhadores - PT) entre 2003 e 2014. Três aspectos foram marcantes: (i) a criação de uma burocracia pública e orçamento próprio, incluindo o fortalecimento do Conselho Nacional de Políticas para as Mulheres (CNPM), a realização das Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres em 2004, 2007, 2011 e 2016 e do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM) nas edições de 2004, 2007 e 2011; (ii) a transversalidade de gênero na execução dos programas e ações da SPM e; (iii) a ampliação dos temas da política incluindo violência contra a mulher, trabalho, saúde, educação e gestão (Tokarski et alli, 2023; Matos e Alvarez, 2018).
O processo de desmonte das políticas para mulheres foi iniciado nos governos Dilma e Temer (2015 a 2018). As mudanças na estrutura burocrática da pasta começaram no segundo governo Dilma (PT), em 2015, com o rebaixamento da posição institucional da SPM e sua incorporação ao Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos (MMIRJDH), com impactos na gestão orçamentária e na capacidade de execução do planejamento. Após o impeachment de Dilma em 2016, no governo Temer (PMDB), a pasta de mulheres sofreu três episódios de instabilidade institucional: (a) rebaixamento hierárquico da SPM ao integrar o Ministério da Justiça e Cidadania (2016); (b) renomeação para Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres (SNPM) e deslocamento para a Secretaria de Governo da Presidência (2017); (c) transferência para o Ministério de Direitos Humanos (2018). Ademais, em 2018, Temer extinguiu o Departamento de Articulação Institucional e Ações Temáticas da SNPM e o Comitê de Articulação e Monitoramento foi descontinuado. No mesmo ano, a transferência do Ligue 180 da SNPM para a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos gerou impactos no planejamento e monitoramento na área de violência contra mulher. Essas transformações na estrutura burocrática da SNPM nos governos Dilma e Temer revelam mudanças na intensidade formal da política, com impactos sobretudo sobre as capacidades administrativas.
Já a evolução do ciclo orçamentário indica um decréscimo nos investimentos do setor no período de 2016 a 2018 comparativamente ao período precedente (Gráfico 1). Também é possível observar um enfoque nas temáticas relacionadas às áreas de violência e trabalho evidenciadas nos dados do orçamento. O decréscimo nos valores e o enfoque temático produziram efeitos sobre a densidade da política. Todavia, a intensidade substancial da política (escopo e públicos-alvo) ainda não tinha sofrido mudanças.
O processo de desmonte de políticas para as mulheres foi aprofundado com o retrocesso democrático no governo de extrema direita de Bolsonaro, entre 2019 e 2022, que agiu intencionalmente, deliberadamente e conscientemente para o desmantelamento das políticas para mulheres por meio do combate à chamada “ideologia de gênero”. Sob Bolsonaro, a adoção de estratégias conjuntas de desmonte da política para mulheres conduziu para uma mudança na intensidade formal e substancial da política e na sua densidade, conforme veremos.
As mudanças na intensidade formal da política foram tangenciadas tanto pela redução nas capacidades administrativas (estrutura burocrática e orçamento) quanto pela redução das capacidades procedimentais de implementação (conselhos, conferências, comitês e canais). Nessa dimensão, a criação do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) em 2019 e a migração da SNPM para essa estrutura não significou uma mera transição ministerial. Além de reduzir as capacidades administrativas e procedimentais, a criação do MMFDH circunscreveu as políticas para mulheres numa nova arena onde a categoria de gênero foi deslegitimada na esfera dos direitos humanos. Cargos de alto escalão foram ocupados por gestores com posição antigênero, como a ministra Damares Alves e a Secretária-executiva adjunta.
A equidade de gênero foi substituída por uma concepção neoconservadora de família que buscou reposicionar o papel social da mulher na sociedade (Biroli, 2020). Foi imputado à mulher um significado cerceado à família, com conteúdo sexista, misógino e moralmente conservador, desrespeitando os direitos e as liberdades fundamentais. As mudanças na estrutura burocrática do MMFDH introduziram uma nova lógica na perspectiva dos direitos humanos e dos direitos das mulheres, por meio do advento das chamadas “políticas familiares” (Portaria n. 3.136/2019). A transversalidade da família passou a orientar todas as ações e políticas do ministério, com impactos na implementação das políticas para as mulheres outrora pautadas nas conferências e no PNPM.
Nesse propósito foi instituída a Secretaria Nacional da Família (SNF) e seu Observatório Nacional da Família (Portaria n. 1.643/2020) na mesma posição hierárquica da SNPM. No entanto, a SNF assumiu uma função de transversalidade que ampliou sua autoridade e competência hierárquica sobre as políticas para as mulheres e demais políticas de direitos humanos (Gestora, 1 de junho de 2023). A Secretaria Nacional da Família tinha como atribuição “a formação, o fortalecimento e a promoção da família” através de “políticas de articulação dos temas e das ações governamentais”, numa perspectiva de transversalidade das ações; além disso, buscava “articular ações intersetoriais, interinstitucionais, interfederativa e internacionais”, e “promover a inserção de uma perspectiva de família em todas as áreas de atuação do governo federal”, por meio da “implementação de políticas familiares transversais” (Decreto 10.883/2021). A transversalidade e a intersetorialidade foram introduzidas como princípios norteadores da SNF, ao mesmo tempo que subtraídos das competências e responsabilidades políticas da SNPM.
Estas mudanças nas capacidades administrativas do MMFDH foram acompanhadas por alterações na estrutura burocrática da SNPM. Isso ocorreu com a criação do Departamento de Promoção da Dignidade da Mulher, formado pela Coordenação-Geral de Atenção Integral à Gestante e à Maternidade, e a Coordenação-Geral de Assuntos e Desafios Socioculturais. Sua competência eram as políticas materno-infantis, com posição contrária à interrupção da gravidez, mesmo em casos de aborto legal. Afinada às políticas familiares e antiaborto, a entrada do tema da “dignidade da mulher”5 na agenda governamental foi orientada pela perspectiva ideológica do Movimento pela Vida e do Nascituro (Gestora, 30 de maio de 2023).
As capacidades administrativas também foram afetadas pelos baixos investimentos orçamentários, conforme Gráfico 1. A acentuada redução na dotação do orçamento a partir de 2016 se manteve, sobretudo, no primeiro ano de governo (2019). Após crescimento do orçamento em 2020 e 2021, observa-se nova queda durante o último ano do governo Bolsonaro (2022). Além disso, o maior montante de recursos executados ocorreu na área de “proteção à vida e fortalecimento da família”, seguida de “enfrentamento à violência contra mulher”, em prejuízo das demais temáticas.
As mudanças na intensidade formal da política são evidenciadas ainda pela redução nas capacidades procedimentais de implementação e monitoramento. Destaca-se a decisão do MMFDH de unificação entre o Ligue 180 (Central de Atendimento à Mulher) e o Disque 100 (Disque Direitos Humanos), em 2020. Essa fusão impediu o tratamento especializado das denúncias sobre violência doméstica pela SNPM, requisito fundamental para o planejamento da política. Além disso, a fusão também desvirtuou o propósito do Disque 180, somado a descontinuidade da capacitação técnica das atendentes, com impactos sobre a qualidade dos serviços ofertados às mulheres vítimas de violência (Gestora, 21 de junho de 2023).
Por fim, os efeitos nas capacidades procedimentais ocorreram pela interferência na participação institucionalizada no Conselho Nacional de Políticas para as Mulheres (CNPM) e pela não realização da V Conferência Nacional de Políticas para Mulheres. Apesar da decisão de Bolsonaro pela extinção dos conselhos (Decreto n. 9.759), em 2019, o funcionamento do CNPM foi garantido por lei. Porém, o conselho não ficou imune às tentativas de manipulação governamental. Ao contrário, sofreu alterações na sua composição e interferência nas comissões internas (Conselheira, 7 de junho de 23). Segundo a entrevistada, o conselho restou como único espaço de participação da sociedade civil na estrutura de governo, afetado em suas ações, mas agindo como espaço de resistência contra os retrocessos na política pública. A não realização da conferência nacional afetou a revisão do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, considerado o principal instrumento de planejamento e gestão da política. A ausência do Departamento de Articulação Institucional na SNPM dificultou a articulação do movimento feminista e de mulheres para realização da conferência, em torno das pautas de gênero e de políticas para mulheres (Gestora, 30 de maio de 2023).
Em síntese, as transformações na estrutura burocrática e orçamentária da SNPM confirmam uma redução sistemática da intensidade formal das políticas para mulheres, afetando as capacidades administrativas e as capacidades procedimentais para enforcement. Mas não só. As mudanças na política também afetaram a sua intensidade substancial promovendo o aprofundamento do desmonte, cujo nível da intervenção governamental altera o escopo ou conteúdo normativo da política e o seu público-alvo. Tal processo foi tangenciado pela substituição da transversalidade de gênero pela transversalidade da família, ancorado em disputa narrativa e simbólica sobre os sentidos das políticas para as mulheres. A exclusão da transversalidade de gênero como eixo estruturante, da interseccionalidade com raça e classe e da intersetorialidade com segurança, trabalho, saúde e educação, transfigurou o escopo e o público-alvo das políticas.
Finalmente, a densidade da política para mulheres foi afetada pela redução da abrangência das áreas de atuação que limitou a política a três temas - trabalho, violência e materno-infantis. Os temas “trabalho e autonomia da mulher” e “violência doméstica” se inserem no PNPM e nas recomendações das conferências, enquanto “materno-infantil” consiste em novo tema. Essas transformações na abrangência temática ocorrem em prejuízo das áreas saúde, educação, participação e gestão.
Ao mesmo tempo, as mudanças na densidade instrumental ocorreram pela diminuição na quantidade de instrumentos de políticas. Os programas e projetos implementados pela SNPM e previstos no PPA 2020-2023 foram apresentados no relatório Balanço de Gestão 2019-2022 do MMFDH em torno de dez entregas (MMFDH, 2022). Essas mudanças nos instrumentos correspondem a dois aspectos: (i) descontinuidade e (ii) reconfiguração. A descontinuidade consiste na interrupção da implementação de planos e programas: Plano Nacional de Políticas para Mulheres; programas com recorte de gênero, por exemplo, voltados à saúde reprodutiva e à atenção integral da saúde da mulher, à interseccionalidade de gênero, raça, sexualidade e classe; e ações na área da educação, trabalho e participação política.
Ao passo que, a reconfiguração se refere a programas e projetos governamentais antes existentes que foram mantidos, porém com novo escopo, diretrizes, conteúdo ou público-alvo; além da criação de novos instrumentos. No tema violência doméstica, houve a reconfiguração do Programa Mulher Viver sem Violência, de 2013, no Programa Mulher Segura e Protegida, instituído em 2019 e composto pelos projetos Casa da Mulher Brasileira e Ligue 180 (preexistentes) e pelo Projeto Salve uma Mulher. Também integra esse programa o Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres (preexistente) e o Plano Nacional de Enfrentamento ao Feminicídio, criado em 2021. No mesmo ano foi criado o Programa Maria da Penha Vai à Escola para divulgação e promoção da Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006) nas escolas. No tema trabalho, houve a reconfiguração do Projeto Mulheres Mil, criado em 2011, no Programa Qualifica Mulher instituído em 2020, voltado à qualificação profissional e ao empreendedorismo de mulheres em situação de vulnerabilidade. Houve ainda a reconfiguração do projeto Mais Mulheres no Poder, criado pela SPM em 2008, por projeto de mesmo nome instaurado em 2020, acerca da participação de mulheres na política.
Na área materno-infantil (antes inexistente), a reconfiguração consistiu na criação de novos projetos com conteúdo ajustado à perspectiva antigênero e antifeminista: o Programa Mães do Brasil instituído em 2022 e composto pelos Projeto Mães Unidas e Projeto Agricultura da Vida. Implantado pelo Departamento de Dignidade da Mulher, o programa remete à saúde materno-infantil, à formação de mulheres para a maternidade e à qualificação profissional de mulheres mães (MMFDH, 2022, p. 115). Na gestão do MMFDH, dois públicos-alvo foram prioridade da SNPM - as mulheres vítimas de violência doméstica e as mulheres mães -, sendo os programas, projetos e ações voltados para essas beneficiárias.
Desmonte das políticas de igualdade racial
A trajetória das políticas públicas de promoção da igualdade racial, envolveu etapas de consolidação, estagnação e retrocesso (Guimarães, 2022). Entre 2003 e 2014, houve iniciativas de consolidação institucional das políticas de igualdade racial. A criação da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), em 2003, que adquiriu status de ministério no governo Lula, foi um marco do período. Em seguida, foram criados o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR) e a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial (PNPIR). Em 2009, foi editado o Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Planapir). Em 2013, foi criado o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir) com o objetivo de articular, coordenar e estimular a implementação de políticas de igualdade racial pelos entes federativos. Além da realização das Conferências Nacionais de Promoção da Igualdade Racial (Conapir).
A Seppir veio se somar à Fundação Cultural Palmares (FCP) para ampliar e transversalizar a agenda de igualdade racial. Porém, enquanto a FCP se dedicava à preservação e fortalecimento da cultura afro-brasileira e à demarcação de territórios quilombolas, a Seppir deu maior ênfase às políticas de ação afirmativa, a partir do Programa Nacional de Ações Afirmativas (Rios, 2018). A Seppir realizou a difusão subnacional das políticas de igualdade racial, a partir da criação do Fórum Intergovernamental de Promoção da Igualdade Racial (Fipir) em 2004 (Moreira, 2022). Em 2010, a estrutura burocrática da Seppir era formada pela Secretaria de Planejamento e Formulação de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Secretaria de Políticas de Ações Afirmativas e Secretaria de Políticas para Comunidades Tradicionais. A institucionalização da agenda de igualdade racial também ocorreu no Congresso nesse período, mediante a aprovação de legislações sobre ações afirmativas e outros temas.
Entre 2015 e 2018, período de estagnação da agenda de políticas de igualdade racial, ocorreu o rebaixamento institucional da Seppir com sua integração ao Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e dos Direitos Humanos (MMIRDH). Apesar dos indícios de retrocesso, o governo Dilma criou em 2016 um novo arranjo institucional: o Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), órgão colegiado de caráter consultivo, integrante da estrutura do Ministério do Meio Ambiente (MMA), com o objetivo de acompanhar e monitorar políticas públicas para os povos e comunidades tradicionais. No governo Temer, a pasta de igualdade racial passou por dois rebaixamentos hierárquicos. Em 2016, as competências do MMRJDH foram transferidas para o Ministério da Justiça e Cidadania (MJC), as políticas da Seppir descontinuadas e sua institucionalidade reduzida. Em 2017, a agora Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SNPIR) foi deslocada para o Ministério dos Direitos Humanos (MDH). A fusão e redução hierárquica implicou na perda da capacidade de ação e influência da agenda de igualdade racial.
Nos governos Dilma e Temer, notamos ainda uma oscilação no ciclo orçamentário da política, embora com relativo aumento em comparação com o primeiro governo Dilma, no qual houve redução orçamentária (Gráfico 2). Tais mudanças na estrutura burocrática e orçamentária reduziram a intensidade formal da política, impactando órgãos, cargos e orçamento, ou seja, suas capacidades administrativas. A densidade da política e dos seus instrumentos foi afetada através da redução dos programas de promoção da igualdade racial. No PPA 2012-2015 havia cinco programas e ações voltados para essa agenda, reduzidos para dois no PPA 2016-2019. E o primeiro governo Dilma interrompeu o financiamento do Programa Brasil Quilombola, excluindo-o oficialmente no PPA 2016-2019.
O desmonte da agenda de igualdade racial sofreu novos reveses no governo Bolsonaro (2019 a 2022). Bolsonaro mobilizou discursos contrários às políticas de igualdade racial e/ou racistas com relativa frequência (Campos, 2021). Ainda em campanha, afirmou em discurso que quilombolas “chegam a pesar sete arrobas […] e nem servem para procriar”. Campos (2021) destaca que quando seus discursos não eram explicitamente racistas, Bolsonaro tentava negar o racismo se utilizando de anedotas pessoais e recontando seu convívio próximo com pessoas não brancas.
Tais discursos tiveram efeitos práticos no governo. A SNPIR foi mantida na estrutura burocrática do MMFDH com notável rebaixamento hierárquico, circunscrita aos Departamento de Políticas Étnico-Raciais e Departamento de Monitoramento de Políticas Étnico-Raciais, afetando sua intensidade formal em termos de capacidades administrativas. As mudanças nas capacidades administrativas também são visíveis no ciclo orçamentário das políticas de igualdade racial (Gráfico 2). A partir de 2019, houve um desmonte da política via estrangulamento orçamentário. Bolsonaro cortou recursos da SNPIR, alocando na pasta, entre 2019 e 2022, apenas 1,3% dos recursos do MMFDH (INESC, 2023). Para o PPA 2020-2023, o governo excluiu negros e quilombolas e extinguiu o Programa Enfrentamento ao Racismo e Promoção da Igualdade Racial, incorporando suas ações ao Programa Proteção à Vida, Fortalecimento da Família, Promoção e Defesa dos Direitos Humanos para Todos. Ao passo que o Programa Cultura: Preservação, Promoção e Acesso foi substituído pelo Programa Cultura, cujo objetivo passou a ser a promoção de direitos humanos com foco no amparo à família. O MMFDH esvaziou a agenda de políticas de igualdade racial ao executar orçamentos significativamente reduzidos para a temática.
A intensidade formal da política também foi reduzida em suas capacidades procedimentais através do Decreto n. 9.759/2019, que extinguiu comitês, comissões e grupos de trabalhos da administração federal, a exemplo da extinção do Comitê de Articulação e Monitoramento do Planapir e outros colegiados do CNPIR. O CNPIR e o CNPCT foram mantidos dentro da estrutura da SNPIR, porém institucionalmente fragilizados e com orçamentos reduzidos. As estratégias de enfraquecimento desses conselhos envolveram ainda a não nomeação de membros da sociedade civil e a alteração de mandatos. Também afetaram as capacidades procedimentais a não realização da V CONAPIR e a não revisão do Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial, importante instrumento para o planejamento e gestão das políticas públicas.
Além disso, o termo igualdade racial foi substituído por “igualdade para todos” nos documentos e comunicações oficiais da SNPIR. A ênfase do MMFDH em estabelecer uma conexão entre direitos humanos e políticas familiares conferiu prioridade a políticas voltadas para a infância, mulheres e famílias e invisibilizou as políticas de igualdade racial. As atribuições da SNPIR passaram a ser “implementar, formular, apoiar, articular e avaliar políticas públicas para promoção da igualdade étnico-racial, considerada a perspectiva da família, o fortalecimento de vínculos familiares e a solidariedade intergeracional” (Decreto 10.883/2021). Nesse sentido, ocorreu a redução da intensidade substancial da política uma vez que tanto o escopo quanto o público-alvo da política foram reconfigurados.
Já a densidade da política na SNPIR foi modificada com a exclusão de terminologias, a substituição de programas e a submissão dos direitos humanos às chamadas políticas familiares, reduzindo seu escopo de atuação. O enfrentamento ao racismo deixou de ser prioridade no PPA 2020-2023, além da retirada da dimensão transversal das políticas de igualdade racial. O fato de apenas uma ação ser voltada para a temática racial indica não apenas omissão, mas a invisibilização das desigualdades raciais no MMFDH.
O governo Bolsonaro também interferiu na estrutura burocrática da FCP. A nomeação de Sérgio Camargo (PL) para a presidência da FCP marcou o início do processo de inflexão na trajetória da fundação, com mudanças em sua intensidade substancial. Camargo se apresentava como “negro de direita e antivitimista” e se notabilizou por suas críticas ao movimento negro, declarações polêmicas contra artistas e intelectuais de esquerda e por promover revisionismo histórico relativizando o racismo e a escravidão (Campos, 2021).
Observamos uma dinâmica de enfraquecimento da intensidade formal da Fundação, em suas capacidades procedimentais e administrativas. Em 2020, Camargo excluiu sete órgãos colegiados da FCP e revogou nomeações dos seguintes comitês e comissões: Comitê Gestor do Parque Memorial Quilombo dos Palmares; Comissão Permanente de Tomada de Contas Especial; Comitê de Governança; Comitê de Dados Abertos; Comissão Gestora do Plano de Gestão de Logística Sustentável; Comissão Especial de Inventário e de Desfazimento de Bens e; Comitê de Segurança da Informação. Em 2022, reorganizou a estrutura administrativa da FCP, enxugando cargos e competências (Decreto n. 11.203): reduziu o número de representantes do conselho curador, eliminou a representação indígena e diminuiu a capacidade propositiva e deliberativa do conselho, entre outros. O decreto transferiu a competência para registro e expedição de certidão de autodefinição como remanescente dos quilombos do Departamento de Proteção ao Patrimônio Afro-Brasileiro para o presidente da FCP. A medida foi criticada pela Coordenação Nacional de Articulação de Comunidades Negras Rurais e Quilombolas (Conaq) porque violava o Art. 6 da Convenção 169 da OIT que garante a consulta aos povos afetados para emissão de certificação.
Desmonte de políticas LGBTQIA+
No caso das políticas LGBTQIA+, ainda que sua consolidação tenha tido início nos governos Lula (2003-2010), seu desmonte teve um início precoce, já no primeiro governo Dilma (2011-2014). Após um período de relativa estagnação no segundo governo Dilma (2015-2016) e no governo Temer (2016-2018), o desmonte foi aprofundado progressivamente ao longo do governo Jair Bolsonaro (2019-2022).
Nos governos Lula, esse setor de políticas públicas foi estruturado a partir da formulação do Programa Brasil sem Homofobia (BSH), em 2004, seguido pelo Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos LGBT (Plano Nacional LGBT), pela criação da Coordenação-Geral de Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CGPDLGBT) em 2009 e pela reformulação do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CNCD/LGBT) em 2010 (Aguião, 2018; Pereira 2017, 2018a).
Nos governos Dilma, no que se refere à estrutura burocrática, a CGPDLGBT e o CNCD/LGBT foram mantidos na estrutura da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH) e, posteriormente, do Ministério da Mulher, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos (MMIGJDH). Porém, nesse governo, ações orçamentárias específicas para essas políticas que haviam surgido na Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2006 deixaram de existir na LOA de 2016. Cabe destacar, contudo, que a trajetória do financiamento de políticas para LGBTQIA+ já era previamente marcada por fragilidades e instabilidades. Observa-se dois picos de dotação orçamentária em 2006/2007 e 2010/2011, mas apenas no primeiro período houve a execução do orçamento pelo executivo federal, sendo o segundo originário de emendas parlamentares em grande parte não executadas (Pereira, 2018). Os governos Dilma, portanto, mantiveram a intensidade formal das políticas para LGTBQIA+ no que se refere às suas capacidades administrativas e procedimentais, mas também seu desfinanciamento e a fragilidade prévia das capacidades administrativas orçamentárias dessas políticas (Gráfico 3).
Nesse governo, os frágeis programas e políticas preexistentes sofreram com descontinuidades diante de um contexto marcado pelo crescimento da ação de parlamentares conservadores que se opunham a essas políticas no Congresso Nacional, inclusive no interior da coalizão governista (Pereira, 2018). Nos governos Lula, as políticas de promoção dos direitos de LGBTQIA+ buscaram incorporar a transversalidade e intersetorialidade através da construção de planos e programas transversais como o BSH (2004) e o Plano Nacional LGBT (2009). Nos governos Dilma, não foram elaborados novos planos mesmo após a realização de dois novos ciclos de conferência na área em 2011 e 2015 (Aguião, 2018; Pereira, 2018; Mello, Brito e Maroja, 2012). Por outro lado, novas ações foram desenvolvidas pela SDH, como o Sistema Nacional de Promoção de Direitos e Enfrentamento à Violência contra LGBT, a edição de relatórios oficiais sobre violência homofóbica no Brasil e a inclusão de um canal específico para denúncias de violação de direitos de LGBT no Disque 100 (Pereira, 2017, 2018). Contudo, algumas das iniciativas desenhadas nos governos Lula foram reconfiguradas e enfraquecidas, como o financiamento a centros de referência de combate à homofobia. Assim, observa-se uma relativa diminuição da densidade dessas políticas na pasta de direitos humanos6.
No governo Temer, houve a manutenção da estrutura organizacional anterior. Com a recriação do Ministério dos Direitos Humanos em 2017, a CGPDLGBT foi alçada ao status de Diretoria de Promoção de Direitos de LGBT (DPDLGBT) e o CNCD/LGBT foi mantido. Uma ação orçamentária específica voltada às políticas foi reincluída na LOA apenas em 2019, observando-se a manutenção da tendência de desfinanciamento da política (Gráfico 3). Novos planos transversais não foram desenvolvidos e iniciativas pontuais foram raras, como por exemplo: a transformação do Sistema Nacional LGBT no Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência LGBTfóbica; a realização de uma campanha publicitária sobre discriminação LGBTfóbica e; o financiamento de uma pesquisa sobre pessoas LGTBQIA+ em privação de liberdade. Assim, a densidade da política sofreu nova redução relativa, com manutenção da sua intensidade substancial e formal, reproduzindo-se as fragilidades preexistentes em suas capacidades administrativas orçamentárias.
É no governo Bolsonaro que o desmonte das políticas para LGBTQIA+ se intensifica e alça maior intencionalidade. Desde o período eleitoral, foram emitidos sinais pelos futuros membros do governo que apontavam para uma dinâmica de desmonte no setor, indicando uma redução em sua intensidade e densidade. Em episódio notório, o então candidato Bolsonaro apresentou em entrevista ao Jornal Nacional o livro “Aparelho Sexual e Cia.” alegando equivocadamente que a obra fazia parte do programa Escola sem Homofobia (vulgo “kit gay”) (Bulgarelli, 2020; Pereira, 2018). No processo de transição de governo houve outras evidências de desmonte. Primeiro, a mudança de nomenclatura da pasta de direitos humanos para integrar o termo “família” que, no discurso da “ideologia de gênero” é definida a partir de uma concepção restritiva e heteronormativa e concebida como “alvo de ameaças” dos movimentos feministas e LGBTQIA+ (Biroli, 2020; Bulgarelli, 2020). Segundo, a nomeação da pastora Damares Alves para a chefia do ministério, uma das principais articuladoras da Frente Parlamentar Evangélica (FPE) e da oposição legislativa às políticas LGTBQIA+ no Congresso Nacional, ao longo dos governos petistas.
Na estrutura burocrática do MMFDH, esse discurso se materializou ao longo da gestão. Negociações entre a burocracia da Diretoria de Promoção dos Direitos de LGBT e a nova ministra garantiram a permanência do órgão no ministério, elevado ao status de Departamento em 2019 e vinculado à Secretaria Nacional de Proteção Global (Gestora, 2021). Porém, no mesmo ano foi extinta a Coordenação-Geral de Diversidade (CGD) da Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres, responsável pela elaboração de políticas públicas para mulheres lésbicas, bissexuais e transexuais. Em 2021, o agora Departamento de Promoção dos Direitos de LGBT (DPDLGBT) foi fundido a outros órgãos para formar o Departamento de Promoção dos Direitos de Minorias Sociais e População em Situação de Risco. Essas mudanças evidenciam uma redução na intensidade formal do setor quanto às suas capacidades administrativas.
No que se refere ao orçamento, observa-se a manutenção de uma tendência preexistente de desfinanciamento e consequente manutenção da fraca intensidade formal da política em suas capacidades administrativas orçamentárias. No ciclo orçamentário, a ação específica para políticas LGBTQIA+ (incluída no governo Temer) foi suprimida por Bolsonaro, sem restabelecimento pela gestão. Além disso, o baixo volume de dotação e execução orçamentária nessa área de políticas sob Bolsonaro manteve a tendência observada desde 2012 (Gráfico 3).
Mudanças nas capacidades procedimentais (intensidade formal) da política ocorreram pela reformulação do CNCD/LGBT em 2019. O conselho foi um dos alvos do decreto nº 9.759 que determinou a extinção de conselhos de políticas públicas na administração federal. Em seu lugar, foi criado o Conselho Nacional de Combate à Discriminação, contudo, sem menção explícita em seu ato de criação às políticas para LGBTQIA+. Ademais, sua composição foi alterada de 30 para 7 membros, apenas 3 da sociedade civil. Na representação do governo, o CNCD passou a integrar apenas representantes de órgãos do MMFDH, dificultando a articulação de ações transversais com outras pastas. Destaca-se, ainda, que o governo Bolsonaro revogou a convocação da 4ª Conferência Nacional LGBT, que havia sido realizada por ato do governo anterior.
A intensidade substancial da política foi transformada junto à reestruturação burocrática e normativa do ministério. A incorporação das “políticas familiares” e a criação da SNF produziram impactos no escopo das políticas para LGBTQIA+. Adotando uma concepção conservadora e antigênero, as políticas familiares se tornaram um dispositivo para o combate à chamada “ideologia de gênero” e para deslegitimação das políticas para LGBTQIA+ (Pereira; Aragusuku e Teixeira, 2023). Nesse sentido, observou-se uma pressão ministerial sob a burocracia do MMFDH pela ocultação do termo “gênero” em suas publicações, em especial, a partir da ação do Conselho Editorial e de Ações Promocionais (Coned), órgão criado em 2020 para controlar os conteúdos dos materiais produzidos pelo ministério (Gestor, 2021).
Ainda em relação à intensidade substancial das políticas, o escopo e os objetivos das ações desenvolvidas pelo ministério sofreram transformações. Nos governos anteriores, a incorporação do conceito de “homofobia” havia criado um enfoque no combate à violência e à discriminação contra LGBTQIA+, que se expressou em ações como o financiamento de centros de referência, a realização de cursos sobre violência e discriminação nas escolas, a realização de levantamentos oficiais sobre violência homofóbica, a criação de mecanismos de articulação federativa no tema, entre outras (Pereira, 2018; Ramos e Carrara, 2006). Ao contrário, o governo Bolsonaro vetou expressamente ações relacionadas ao combate à LGBTfobia nas escolas (Gestor, 2021). As políticas se distanciaram do enfoque no combate à discriminação e violência, passando a apostar na inclusão pelo mercado e pela empregabilidade como as principais vias de afirmação dos direitos de LGBTQIA+.
Por fim, a densidade da política e de seus instrumentos foi modificada. A ampliação da fragilidade da transversalidade e da intersetorialidade das políticas para LGBTQIA+ foi uma das principais ações de desmonte da área ao longo do governo Bolsonaro. Novos planos transversais de políticas para LGBTQIA+ não foram elaborados e o governo suspendeu a convocação da quarta conferência nacional, que poderia dar origem a um novo plano. Ampliou-se, ainda, a dificuldade de diálogo da burocracia do DPDLGBT com outras pastas do governo federal, muitas chefiadas por ministros que se opunham às políticas para LGBTQIA+ (Gestor, 2021).
As ações realizadas pelo governo Bolsonaro, assim, foram pontuais e pouco articuladas entre si, tais como: os editais de financiamento a ações de promoção de empregabilidade; o financiamento do projeto “Pacto Nacional LGBTI+” desenvolvido pela Universidade Federal do Paraná em parceria com organizações do movimento para oferta de oficinas formativas; o apoio a uma pesquisa sobre o perfil de travestis e transexuais realizada pela Universidade de Brasília; e elaboração de nota técnica com recomendações para prestação de serviços assistenciais para população LGBTQIA+ no âmbito da pandemia de covid-19. Ademais, cabe destacar a baixa visibilidade dessas ações. No site do MMFDH, por exemplo, apenas foram publicizados os editais de financiamento de projetos de empregabilidade e a nota técnica relativa à pandemia de covid-19.
Comparando os casos: estratégias e efeitos do desmonte
Para análise comparativa do desmonte de políticas públicas nos três setores, aplicamos a tipologia de estratégias e de efeitos de mudanças na densidade e na intensidade da política (Bauer e Knill, 2012). Ao compararmos os casos (Quadro 4), é possível observar algumas semelhanças no que se refere ao uso das estratégias de desmonte e seus efeitos, ainda que os casos guardem particularidades entre si. Em linhas gerais, argumentamos a partir da comparação que o desmonte efetuado no período foi intencional, processual e progressivo, indo de formas menos visíveis e sutis para formas mais visíveis e ativas.
O desmonte por omissão, estratégia passiva e menos visível, foi tipicamente utilizado nos governos Dilma e Temer, ainda que também possa ser visto no governo Bolsonaro. Nas políticas para mulheres, o desmonte por omissão ocorreu nos governos Dilma e Temer pela ausência de esforços sistemáticos de ampliação temática e, no setor de igualdade racial, pela estagnação da política. Em ambos os casos a densidade da política foi reduzida. Já nas políticas para LGBTQIA+, a omissão ocorreu em todos os governos devido à ausência de construção de novos planos transversais (reduzindo sua densidade), e a não reversão do desfinanciamento característico dessas políticas (afetando sua intensidade formal).
Já o desmonte por mudança de arena, de caráter ativo, mas pouco visível, ocorreu desde os governos Dilma e Temer. Porém foi utilizado no governo Bolsonaro com uma ampla reestruturação dos órgãos destinados às políticas de direitos humanos, através da criação do MMFDH. A estratégia de desmonte, adotada de forma intencional e progressiva, teve efeitos na intensidade formal dos três setores. Nas políticas para mulheres essa estratégia gerou efeitos sobre as capacidades administrativas, nos governos Dilma e Temer, com o rebaixamento da posição institucional da SPM, a extinção do Comitê de Articulação Institucional e a redução do orçamento. Sob Bolsonaro, as transformações na burocracia se intensificaram com a redução das competências e responsabilidades da SNPM, a criação de órgãos voltados a políticas de caráter antigênero, como as políticas públicas familiares e materno-infantis e a diminuição orçamentária. Também foram afetadas as capacidades procedimentais pela interferência na participação social (CNPM, conferência e comitês), a não revisão do PNPM e pela fusão entre o Ligue 180 e o Disque 100. Nas políticas de igualdade racial, a redução hierárquica da Seppir e da dotação orçamentária, em Dilma e Temer, foi progressivamente ampliada no governo Bolsonaro com a crescente interferência em instituições participativas, a não realização da conferência, a concentração das decisões no presidente da FCP e a extinção de instrumentos de acompanhamento e monitoramento das políticas, além da acentuada diminuição do orçamento. Nas políticas para LGBTQIA+, também se observa o uso progressivo dessa estratégia, com redução orçamentária nos governos Temer e Bolsonaro e, nesse último, mudanças nas capacidades administrativas com a extinção do DPDLGBT e nas capacidades procedimentais com a descaracterização do CNCD e revogação da convocação da conferência.
O desmonte por ação simbólica, com alta visibilidade, mas sem caráter ativo por si só, foi acionado pelo governo Bolsonaro desde o processo eleitoral e da transição de governo. Nesse tipo de estratégia consideramos as declarações discursivas de intenção de desmonte, que podem vir ou não acompanhadas de formas ativas de desmantelamento. Nas políticas para mulheres, o desmonte por ação simbólica consistiu na deslegitimação da categoria de gênero e sua substituição pela categoria de família, acompanhada pela nomeação de gestores antigênero e pela renomeação de órgãos. Nas políticas de igualdade racial, Bolsonaro mobilizou discursos contrários a essas políticas e de negação do racismo. O governo indicou gestores contrários à agenda de igualdade racial para comandar a SNPIR e a FCP. Também substituiu terminologias que remetessem à igualdade racial por “igualdade para todos” em documentos oficiais. No caso das políticas para LGBTQIA+, o desmonte por ação simbólica em Bolsonaro se diferenciou por declarar explicitamente de forma recorrente sua oposição a essas políticas, por nomear ativistas antigênero para cargos no MMFDH, e por invisibilizar e deslegitimar as ações na área. Assim como nas políticas para mulheres, a ofensiva pública à “ideologia de gênero” e a ênfase na categoria família geraram mudanças na densidade e na intensidade substancial da política.
Por fim, o desmonte ativo, a forma mais ativa e visível de desmonte foi empregue em especial no governo Bolsonaro, com efeitos na densidade e na intensidade substancial das políticas. Nas políticas para mulheres, o desmonte ativo no governo Bolsonaro produziu a descontinuidade de programas (e extinção de políticas de gênero) e a reconfiguração de programas preexistentes (e emergência de materno-infantis) denotando a redução da intensidade substancial através da alteração do escopo e do público-alvo, operando ativamente a substituição da transversalidade de gênero pela transversalidade da família. Ao passo que, os efeitos na densidade da política foram de restrição das áreas temáticas à violência e trabalho, de diminuição de instrumentos e de criação de programas orientados por perspectivas antigênero. O desmonte ativo nas políticas de igualdade racial ocorreu, ainda que em menor grau, nos governos Dilma e Temer, quando a densidade política foi alterada com a redução de programas e ações. Em Bolsonaro, houve a descontinuidade e/ou desidratação de programas, a reconfiguração e criação de novos, reduzidos em escopo, com público-alvo modificado (de igualdade racial para “igualdade para todos”), com submissão da agenda de igualdade racial às políticas familiares, com retirada da transversalidade das políticas, com exclusão dos quilombolas e a modificação dos programas e ações de combate ao racismo. Nas políticas para LGBTQIA+, também observado em Dilma e Temer em algumas ações, o desmonte ativo ocorreu amplamente no governo Bolsonaro, destacando-se a mudança de enfoque das ações em direção à ideia de “empregabilidade”, que provocou descontinuidades em ações voltadas ao combate à discriminação e à violência contra LGBTQIA+, em especial, naquelas relacionadas à educação, afetando a densidade e a intensidade substancial das políticas.
A comparação entre os três setores demonstra que há semelhanças nos processos de desmonte. Nelas, o processo de desmantelamento teve início nos governos Dilma e Temer por meio de estratégias menos visíveis (desmonte por omissão e por mudança de arena) e efeitos na densidade e intensidade formal. No governo Bolsonaro, o desmonte se aprofundou intencional e progressivamente. Foi utilizado o desmonte por ação simbólica com alta visibilidade e produzindo efeitos sobre a densidade e a intensidade substancial das políticas. O desmonte por mudança de arena se intensificou com os efeitos ampliados sobre as capacidades administrativas e procedimentais, ao passo que o desmonte ativo transfigurou as políticas ao modificar a sua densidade e sua intensidade substancial. Sob Bolsonaro, nos setores de políticas para mulheres, de igualdade racial e de direitos LGBTQIA+, a exclusão da transversalidade de gênero e de raça (e da interseccionalidade) subjugou os direitos humanos à transversalidade da família, modificando o escopo e o público das políticas públicas.
Por outro lado, as trajetórias de institucionalização das políticas de igualdade racial e para LGBTQIA+ reservam algumas variações, comparativamente à política para mulheres, pois neles observa-se desmonte ativo já em Dilma e Temer. No primeiro caso, sugerimos que isso ocorreu porque a agenda de igualdade racial consiste em política pública fragilmente institucionalizada e não efetivamente consolidada, embora as políticas de ação afirmativa para ingresso no ensino superior público tenham alcançado crescente institucionalização. Nesse período, o desmonte ativo alterou a densidade da política com a redução de programas e ações para quilombolas. Nas políticas para LGBTQIA+, a existência de desmonte ativo desde o governo Dilma ocorreu pela descontinuidade de ações no setor. Estudos indicam que esse desmonte foi motivado por pressões da base conservadora do governo no Congresso Nacional (Pereira, 2018). Contudo, ressaltamos que o desmonte ativo em Dilma e Temer consistiu em mudança na densidade da política, não afetando seu escopo e público-alvo. Ao contrário, sob Bolsonaro além de afetar a densidade da política o desmonte ativo altera sua intensidade substancial. Por fim, o desmonte por omissão no governo Bolsonaro ocorreu pela fragilidade prévia do orçamento das políticas para LGBTQIA+, tornando a manutenção do status quo da política uma estratégia viável.
Conclusões
Este artigo argumenta que as mudanças nas políticas públicas no governo Bolsonaro na área de direitos humanos envolveram quatro estratégias conjuntas de desmonte no decurso do tempo: desmonte por omissão (default), desmonte por ação simbólica, desmonte de arena e desmonte ativo. Assim defendemos que as estratégias de desmonte não são autoexcludentes, pelo contrário, podem ser combinadas e agir concomitantemente ao longo do tempo.
A contribuição para o debate sobre mudanças em políticas públicas no governo Bolsonaro reside no argumento de que o desmonte ocorrido nas áreas de políticas para mulheres, igualdade racial e promoção dos direitos de LGBTQIA+ ocorreu de forma intencional, processual e progressiva. No que se refere à intencionalidade, nos alinhamos à literatura nacional que tem defendido o desmonte não necessariamente como um custo político, mas, pelo contrário, como uma estratégia eleitoral articulada a uma agenda programática em governos populistas de extrema direita. Ou seja, embora parte da literatura suponha que o desmonte de política seja decisão impopular e com custos eleitorais, no governo Bolsonaro a decisão pelo desmonte nos setores de direitos humanos foi intencional, podendo ser vista como uma decisão deliberada direcionada às suas bases de apoiadores.
No que se refere à processualidade e à progressividade, destacamos as decisões de governos precedentes (Dilma e Temer) pelas quais o processo de desmonte ocorreu através de estratégias menos visíveis (desmonte por omissão e por mudança arena), com efeitos limitados à densidade e às capacidades formais (administrativas) das políticas. O desmonte foi progressivamente aprofundado no governo Bolsonaro, pela combinação de estratégias de baixa visibilidade (desmonte de arena) e mais visíveis (ação simbólica e ativo), cujos efeitos incidiram não somente sobre a densidade e a intensidade formal (capacidades administrativas e procedimentais) das políticas, mas na sua intensidade substancial quando o escopo e o público-alvo são modificados.
Por fim, argumentamos que as estratégias de desmonte e os efeitos mais intensos nas políticas para LGBTQIA+ remetem à fragilidade da institucionalização prévia dessa política, comparativamente às políticas para mulheres e de promoção da igualdade racial. Nesses termos, sugerimos que as trajetórias de institucionalização das políticas públicas as tornam mais ou menos suscetíveis às estratégias de desmonte no governo de extrema direita.
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1
Partido Social Liberal (PSL), depois sem partido, depois Partido Liberal (PL).
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2
A pesquisa foi realizada com auxílio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (FAPES Edital Universal 2021) e do Conselho Nacional de Pesquisa e Tecnologia (CNPQ Chamada Universal 2021).
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3
Igualdade racial: Negro(a)(s); Preto(a)(s); Pardo(a)(s); Afrodescendente(s); Afro-brasileiro(a)(s); Igualdade Racial; Cotas; Ações Afirmativas/Ação Afirmativa; Racismo(s); Étnico-racial; Inclusão Racial; Comunidade(s) Tradicional(is); Quilombo(s); Quilombola(s); Anemia Falciforme; Antirracismo(s); Antirracista(s). Mulheres: Mulher(es); Feminista(s); Aborto; Direito Sexual / Direitos Sexuais; Direito(s) Reprodutivo(s); Patriarcal / Patriarcais; Antipatriarcal / Antipatriarcais; Machismo; Sexismo; Misoginia; Feminicídio(s); Lesbocídio(s); Transfeminicídio(s); Gênero(s). LGBTQIA+: Homossexual / Homossexuais; GLS; GLBT; LGBT(Q)(I)(A)(+); Gay(s); Lésbica(s); Bissexual / Bissexuais; Travesti(s); Transexual / Transexuais; Transgênero(s); Queer; Intersexo(s); Assexual / Assexuais; Diversidade Sexual; Orientação Sexual; Identidade de Gênero; Homofobia; Lesbofobia; Transfobia; Bifobia; LGBTfobia; LGBTIfobia.
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4
Não foram realizadas entrevistas para gestores e conselheiros da política de promoção da igualdade racial, sendo consideradas suficientes as evidências documentais nesse setor.
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5
Ou seja, a “integralidade da mulher, na perspectiva da família e da sociedade, buscando o fortalecimento de seus vínculos familiares e sociais e a promoção da solidariedade intergeracional” (MMFDH, 2022, p. 98).
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6
O desmonte da densidade da política foi ainda mais explícito em outros ministérios do governo, como nos setores de cultura e educação, como expressa o célebre veto de Dilma aos materiais produzidos no âmbito do programa Escola sem Homofobia (Pereira, 2020).
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
25 Abr 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
09 Nov 2024 -
Aceito
07 Jan 2025