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O velho PTB paulista (partido, sindicato e governo em São Paulo -1945/1964)

MOVIMENTOS SOCIAIS: QUESTÕES CONCEITUAIS

ARTIGOS

O velho PTB paulista (partido, sindicato e governo em São Paulo -1945/1964)

Maria Victoria Benevides

Professora da Faculdade de Educação da USP e membro do CEDEC

"O PTB é aquele que desce às camadas mais humildes para alimentar a mesa dos que não têm pão, nem mesmo o pão da esperança de melhores dias. Nasceu na calçada das ruas, foram os humildes que a ele se agregaram, os desgarrados colocados à margem da sociedade, no dizer de Augusto Comte; foram eles que, um dia, sob a genial clarividência de Getúlio Vargas, criaram esta legenda e a lançaram no fragor das grandes lutas em defesa do povo (...) Tem sido, historicamente, o grande fiador na condução das lutas de classe neste país".

Doutel de Andrade, 1963

"Nós somos um partido que é o próprio espelho e retrato do povo brasileiro: patriota, nacionalista, popular, largadão, sem exageros ideológicos, sem sectarismos".

Ivete Vargas, 1978

O "velho PTB" é o primeiro Partido Trabalhista Brasileiro, aquele partido idealizado por Getúlio Vargas para, segundo suas palavras, "servir de anteparo entre os sindicatos e os comunistas". Surgiu na "redemocratização" de 1945 e foi extinto, como os demais partidos, pelo Ato Institucional nº 2, em 1965. O "novo" PTB surgiu após a reforma partidária de 1979 e a disputa pela sigla, entre Leonel Brizóla e Ivete Vargas, terminou favorável para esta última. Em 1988 este novo PTB, se pouco tem a ver com a antiga sedução do trabalhismo getulista, apresenta traços muito semelhantes ao velho PTB de São Paulo, tema deste artigo.

O velho PTB paulista foi eleitoralmente fraco, politicamente desarticulado e ideologicamente inconseqüente1 1 Este texto é uma versão parcial — inclui a introdução e a conclusão — de minha pesquisa sobre o PTB paulista, cuja íntegra será publicada pela Editora Brasiliense no primeiro trimestre de 1989. . Por que, então, pesquisar o PTB de São Paulo? Não seria "injusto" com o partido apresentar exatamente o seu lado mais fraco? A pergunta é pertinente; julgo, no entanto, que o aprofundamento do PTB paulista — dentro da questão nacional do PTB e do trabalhismo — pode ser um estudo útil e necessário, e não apenas a exibição de um possível "caso desviante". Escolhi o PTB paulista por vários motivos, tanto ligados à história dos partidos pré-64, quanto à evolução do quadro partidário após a reforma partidária de 1979-80.

Em primeiro lugar, moveu-me a perplexidade, partilhada por praticamente todos, até o presente, diante da fragilidade do PTB paulista. Como explicá-la, justamente no Estado com supremacia inquestionável no campo do movimento operário e sindical?

Em segundo lugar, a concentração do estudo no PTB paulista levou em conta as evidências no quadro político do Estado a partir de 1982. As conquistas eleitorais do novo PTB em São Paulo, sob a liderança de Ivete Vargas e ainda a sedução do populismo arcaico e autoritário de Jânio Quadros, reforçam a idéia do PTB em associação com certas alas do janismo. Ao mesmo tempo, a integração do filho e herdeiro político de Ademar de Barros aos quadros do PDT — Partido Democrático Trabalhista, partido que se afirma "legítimo sucessor" do antigo PTB, revela o outro lado do trabalhismo paulista, associado ao ademarismo.

Em terceiro lugar — e não menos importante — , creio ser possível entender o estudo sobre o PTB paulista do período populista não como um caso excepcional, mas como um "reflexo antecipado" da problemática mais ampla dos partidos brasileiros. A fragilidade ideológica do velho PTB e sua irresistível adesão a práticas fisiológicas — autojustificadas como "formas legítimas de ação política"! — não se aplicariam, ainda hoje, a outros partidos, ditos "modernos" e "de massa"? Com o conhecimento que temos da experiência partidária, em pleno 1988, seria exagero indagar até que ponto o PTB de Ivete Vargas não seria um PMDB de Orestes Quércia avant-la-lettre?

Ou seja, o PTB paulista suscita um interesse indiscutível, apesar de sua aparente debilidade: nele encontramos convergências das várias forças políticas que atuaram em São Paulo na área do trabalho e dos sindicatos, disputando o voto popular. É também em São Paulo que surgem e se desenvolvem os pequenos partidos trabalhistas, como o PTN (Partido Trabalhista Nacional) e o PST (Partido Social Trabalhista). Estudar o PTB paulista significa, portanto, uma tentativa de compreensão mais abrangente dos partidos políticos; serve, também, para indicar novas pistas sobre a política em São Paulo — ou seja, a defasagem, tantas vezes apontada, entre o poder econômico e o poder político-partidário no estado mais desenvolvido do país, além das contradições e ambigüidades na relação partido-sindicato.

O interesse pessoal por este tema — o trabalhismo em São Paulo — foi reforçado por questões levantadas em meus estudos anteriores sobre os partidos políticos na assim chamada "democracia populista": sobre a aliança PSD-PTB no governo Kubitschek (1976) e sobre a União Democrática Nacional (1980). E, embora existam boas pesquisas sobre o trabalhismo getulista — como a de Angela Castro Gomes e Maria Celina d'Araujo; a de Miguel Bodea sobre o PTB no Rio Grande do Sul e a tese ainda inédita de Lucila Neves Delgado* * A ser publicada pela Editora Marco Zero no 2º semestre de 1989. — desconheço estudos sobre o PTB em São Paulo ou análises aprofundadas sobre a relação partido-sindicato, com a evidente exceção do papel dos comunistas no movimento sindical, tema bastante estudado.2 2 O tema desta pesquisa surgiu dos desdobramentos de um primeiro projeto, bem mais amplo, sobre "Trabalhismo, Partido e Sindicato no Brasil", Iniciado em 1983 no CEDEC, sob minha coordenação e com apoio da FINEP. Esta pesquisa sobre o PTB paulista é de minha exclusiva responsabilidade e contou com apoio da ANPOCS e do CNPq.

A precariedade de estudos sobre o tema revela uma lacuna, tanto mais significativa quando se leva em conta a importância do getulismo na história e na historiografia brasileira contemporânea, assim como a atualidade do debate — tanto o acadêmico quanto o militante — sobre a participação dos trabalhadores na política partidária. Uma das principais motivações para a escolha deste tema foi, justamente, investigar o que poderia explicar a ambigüidade de certas "teses" ou "imagens" sobre o antigo PTB. Trata-se de procurar entender a permanência de uma certa sedução pela "bandeira do trabalhismo getulista" disputada, com iguais reclamos de legitimidade, pelos atuais PTB e PDT. Mas, ao mesmo tempo, constata-se que a esse fascínio pela tradição trabalhista — e a veneração à "carta-testamento" de Vargas — corresponde o repúdio de significativa parcela das forças democráticas. Os militantes do "Novo Sindicalismo", por exemplo, assim como o Partido dos Trabalhadores, denunciam no passado do trabalhismo a manipulação populista, a tutela do Estado sobre o movimento sindical e o peleguismo, na imagem consagrada do Getúlio "pai dos pobres"... porém "mãe dos ricos".

O que pretende esta pesquisa? Trata-se, é evidente, de um estudo histórico — ligado a um rigoroso levantamento de fatos, documentos, entrevistas — capaz de desvendar os cenários e os atores políticos. Trata-se, igualmente, de uma pesquisa que valoriza principalmente toda informação que possibilita a identificação do PTB com as lutas trabalhistas e sindicais. Para este caso específico do PTB paulista, até que ponto petebismo foi sinônimo de getulismo? Ou será que, em São Paulo, petebismo sempre rimou com janismo e ademarismo? De qual populismo estamos falando?

A primeira etapa da pesquisa foi dedicada ao intenso e — dentro do possível — exaustivo levantamento das diversas e dispersas fontes de documentação e/ou informação sobre o antigo PTB. Tarefa bastante complexa em virtude de duas constatações cruciais: a) a precariedade de trabalhos sobre o tema; b) a inexistência de um arquivo oficial do PTB, se é que jamais houve (há controvérsias a respeito; alguns protagonistas afirmam que não existe tal arquivo; outros sugerem que teria desaparecido em 1964), bem como arquivos particulares de petebistas, colocados à disposição de pesquisadores. Essa questão foi, inclusive, enfatizada pelos pesquisadores do CPDOC (o centro de documentação e pesquisa que, por suas próprias origens, teria condições de conservar tais documentos) quando defrontados com a tarefa de redigir o verbete sobre o PTB para o Dicionário Histórico-Bibliográfico elaborado pela instituição. Este levantamento, que consumiu um tempo bem mais amplo do que o previsto, revelou a importância do material do CPDOC, com destaque para as entrevistas3 3 Aproveito a oportunidade para registrar meu entusiasmo com o trabalho desenvolvido no CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação em História Contemporânea do Brasil); seus arquivos e sua documentação da "história oral", além dos excelentes estudos de seus pesquisadores sobre "a era Vargas", foram extremamente úteis para minha pesquisa. ; a obrigatoriedade de se recorrer aos arquivos da imprensa, do TRE de São Paulo e aos Anais da Câmara dos Deputados e da Assembléia Legislativa.

A pesquisa específica sobre a relação partido/sindicato foi extremamente dificultada pela ausência de quaisquer informações sobre o tema, com exceção da vinculação do movimento sindical com o PCB (ver adiante); ausência que foi suprida, em parte, pela pesquisa no jornal Última Hora4 4 O levantamento inicial na Última Hora e no O Estado de S. Paulo, de 1952 a 1954, foi .realizado por Márcia Leite e Flávia Cesarino Costa, na época pesquisadores do CEDEC. De 1954 a 1965 a responsabilidade pelo levantamento foi minha; consultei a Última Hora de São Paulo nos arquivos da Folha de S. Paulo. Agradeço a gentileza de André Singer e Heloísa Donnard, da FSP. e na documentação sobre a atuação parlamentar no Congresso.

Deve ser ressaltado um dado surpreendente e provocador para novas pesquisas; na extensa (e, em alguns casos, já "clássica") bibliografia sobre o movimento operário e sindical em São Paulo há pouquíssimas referências à relação com partidos políticos, com a já citada exceção do PCB no breve período de sua legalidade. As referências ao PTB são praticamente inexistentes; em alguns casos é citada a atuação de um deputado ou de um líder sindical, sem ser especificado se pertence ao PTB (a parte desta pesquisa sobre a relação PTB — questões trabalhistas ou sindicais foi, portanto, realizada a partir do levantamento nos Anais da Câmara dos Deputados e do material de imprensa). Apenas dois textos, de nosso conhecimento, revelam pelo menos a presença do PTB em movimentos de trabalhadores em São Paulo: o de Fábio Antonio Munhoz ("Sindicalismo e Democracia Populista: a greve de 1957", Cadernos do CEDEC nº 2, 1978) e o de Márcia de Paula Leite ("Trabalhadores, Sindicatos e Partidos: a greve de 1957 em São Paulo", mimeo, CEDEC, 1985).5 5 O livro de Lucília Neves Delgado (O Comando Geral dos Trabalhadores 1961-64, Vozes, 1986) assim como o de José Alvaro Moisés {Greve de Massa e Crise Política, Polis, 1978) não abordam a questão, embora constituam relatos minuciosos de movimentos no período (os dois são aqui lembrados porque o CGT, embora nacional, tinha forte liderança paulista, com Dante Pelacani, filiado ao PTB, e a greve de 1953 ocorreu em São Paulo). O livro de Maria Andréa Loyola — Os Sindicatos e o PTB, estudo de caso em Minas Gerais, Ed. Vozes, 1980 — limita-se à pesquisa em Juiz de Fora sobre sindicato, cabendo uma parte ínfima ao já ínfimo PTB local (esta pesquisa já estava terminada quando tomamos conhecimento do projeto de estudo sobre o PTB paulista de Virgínia Pellegrini, da PUC de São Paulo).

O QUE FOI O PTB PAULISTA?

Em breve registro, para situar o tema: o que foi o PTB? Dos três grandes partidos que atuaram nos quase vinte anos da "democracia populista" — PSD, UDN e PTB — o PTB registrou o maior crescimento na Câmara Federal: 22 deputados em 1945, 66 em 1958 e 116 em 1962, quando se tornou o segundo partido nacional. E, três anos mais tarde, por ocasião da extinção dos partidos, o PTB contava com o maior número de diretórios regionais, municipais e locais, em todos os estados. Em 1964, com a derrocada do regime democrático, o PTB era o partido no poder.

Além dessas referências da organização partidária, o antigo PTB permanece associado aos temas mais polêmicos do período, como o próprio getulismo, os alcances e limites do populismo e a constante oscilação entre conciliação e radicalização das lutas políticas e sociais. O PTB é, ao mesmo tempo, lembrado pelas reformas de base ("na lei ou na marra") e pelos vícios do peleguismo e da tutela estatal sobre os sindicatos. Existe o "PTB dos latifundiários" e o PTB que luta pela Reforma Agrária; o PTB das favelas e o PTB da "burguesia nacional"; o PTB dos intelectuais e o PTB dos operários; o PTB dos comunistas e o PTB dos "fisiológicos", o PTB hegemônico no Rio Grande do Sul, o PTB paradoxalmente fraco em São Paulo e o PTB "carismático" do antigo Distrito Federal. Enfim, tantas imagens, tantas faces, quanto questões a serem retomadas e analisadas,

O PTB sempre foi, em todo o país, o partido mais identificado com a política trabalhista — de inspiração getulista e nacionalista — e com o sindicalismo urbano. A identificação podia variar — na intensidade do apoio e da formação da imagem pública — de acordo com a. conjuntura, o peso relativo das lideranças nacionais (Getúlio, Jango, Brizóla) em cada região, ou com a dinâmica das alianças e do movimento sindical. Mas a mística de "partido dos trabalhadores", partido do povo, persistiu, prontamente reconhecida, apesar da competição constante do PTB com os comunistas, com as dissidências trabalhistas e, a partir de São Paulo, com o irresistível apelo populista de Ademar de Barros e Jânio Quadros.

Em certos estados, a identificação do PTB com os trabalhadores urbanos — como no Rio de Janeiro — e com a tradição getulista — como no Rio Grande do Sul — era facilitada por óbvias raízes históricas e pela competição restrita no campo do trabalhismo. Na antiga capital, por exemplo, a polarização getulismo/antigetulismo consagrava, com igual força, o PTB e a UDN; os demais partidos se alinhavam na mesma dicotomia, mas sempre sob a liderança dos petebistas ou udenistas. Era o partido dos pobres contra o partido dos cartolas... (o que, talvez, explique a penetração popular do partido de Brizola, ainda hoje, no Rio).

Em São Paulo a situação era bastante diversa. O trabalhismo, como expressão partidária e "ideológica" permanecia alvo de constante disputa, no plano eleitoral e na luta sindical. O PTB paulista, mesmo no seu período mais articulado, nunca pôde se arvorar em "dono do trabalhismo" e tampouco em líder inconteste do movimento sindical. O janismo e o ademarismo não repudiavam Getúlio e também eram "do povo"; os comunistas (sob várias legendas partidárias) controlavam boa parte dos sindicatos (freqüentemente em aliança com os janistas) e a "família trabalhista" incluía aqueles pequenos partidos que Getúlio Vargas ironizava como "os partidos da Sloper, as bijuterias políticas": o PRT, Partido Rural Trabalhista; o PTN, Partido Trabalhista Nacional; o PST, Partido Social Trabalhista e, mais tarde, MTR, Movimento Trabalhista Renovador. Todos disputavam o eleitorado do maior parque industrial brasileiro. A força do movimento dos trabalhadores em São Paulo tornava-se, paradoxalmente, um dos motivos para a relativa fraqueza do PTB, o qual, além de todas as mazelas decorrentes da instabilidade de sua direção, via-se permanentemente desafiado em vários "fronts".

A história do PTB paulista é tão acidentada quanto mal contada. Organizado a partir do "queremismo" e do movimento "Constituinte com Getúlio" — como já ocorrera no Rio — o partido apresenta-se em todas as eleições desde 1945, quando elege o senador Marcondes Filho e, com a votação de Getúlio Vargas, consegue uma bancada de seis membros na Constituinte. Embora fraco de votos e de lideranças com prestígio nacional inquestionável, participa de todos os governos — no nível estadual e federal — em virtude de alianças, acordos e até "pequenas traições". O PTB paulista envolve-se nas disputas políticas nos sindicatos e nas greves de trabalhadores, mas não consegue ter uma posição "hegemônica" no movimento sindical, dividido entre várias correntes e sob a forte influência dos militantes comunistas.

A trajetória do PTB é marcada pelas constantes lutas internas que o levavam a fragmentar-se em grupos e "alas", sempre cambiantes. A intervenção da direção nacional tornava-se rotina — as chamadas "comissões de re-estruturação" substituíam diretórios que supostamente deveriam ser eleitos. Em vinte anos, o partido teve oito diretórios e todos, sem exceção, resultaram em cisões e defecções fatais para a consolidação do partido. A imprensa da época chega a registrar expressões francamente pejorativas para identificar o clima de discórdia no partido que, em certo momento, chegou a cogitar da autodissolução (João Goulart teria pensado, em certa época, em fixar residência em São Paulo para estruturar uma seção forte — e sob seu comando — contra os "desvios ideológicos" dos supostos radicais). A fragmentação do partido é assim resumida por Fernando Henrique Cardoso: "As disputas pela liderança interna do PTB a nível nacional e o clientelismo oportunístico de lideranças pouco comprometidas com os interesses políticos da massa de empregados e trabalhadores que o partido formalmente dizia representar, fragmentou o PTB paulista entre o personalismo e o prestígio de uns poucos líderes secundários e o controle da máquina pela deputada Ivete Vargas" (1975).

Embora o PTB tenha sido, no período 46-64, o partido de maior crescimento nacional, o PTB paulista sofreu crises e baixas, quase ao ponto do desaparecimento no estado (em 1954 elege 8 deputados federais é em 1958, apenas 5). A explicação conhecida para esse fenômeno consiste em apontar uma certa "conspiração" das cúpulas dos grandes partidos da aliança dominante (PTB e PSD) contra o possível crescimento do PTB paulista. Um PTB forte em São Paulo ameaçaria tanto a supremacia gaúcha quanto a "conciliação conservadora" dos mineiros (esta é, inclusive, parte da análise que sugerimos em trabalhos anteriores: Benevides, 1976.)

Tal interpretação, no entanto, se ainda nos parece correta, revela-se insuficiente. É necessário acrescentar, em primeiro lugar, que, se o PTB foi ostensivamente fraco em São Paulo, o mesmo ocorreu, nesse estado, com os dois grandes partidos nacionais, UDN e PSD. Idêntico raciocínio, que provoca a perplexidade diante da fragilidade do PTB paulista, não se aplicaria aos outros? Pois se é verdade que em São Paulo teríamos as melhores condições para o desenvolvimento de um sólido partido de trabalhadores, igualmente as teríamos para consolidar os partidos das classes dominantes, em virtude da concentração de capital industrial, financeiro e rural. Ao que parece, os representantes da burguesia também estavam partidariamente divididos (embora predominassem no PSD e na UDN, são também visíveis no próprio PTB). E tinham, sobretudo, seus interesses representados e defendidos em outras instâncias — como Federação das Indústrias, Sociedade Rural, Associação Comercial — mantendo contatos diretos, fora da intermediação partidária, com os órgãos financeiros do Estado (tratava-se, portanto, do "peleguismo dourado" das classes produtoras, de que fala Roberto Gusmão). Assim, se o PTB era eleitoralmente fraco, dispunha de recursos de poder em virtude do acesso privilegiado ao Ministério do Trabalho.

Em segundo lugar, a partir da análise do material de imprensa, dos arquivos e das entrevistas, é possível indicarmos outras pistas, igualmente importantes, para qualificar aquela fragilidade do PTB paulista:

• as enormes dificuldades para a consolidação dos diretórios municipais, em virtude da variação e da fragmentação . das lealdades ao governo estadual (polarização Jânio x Ademar). Um exemplo é especialmente interessante: após a surpreendente vitória de Jânio Quadros para a prefeitura de São Paulo em 1953, os diretórios municipais do PTB paulista (com uma única exceção) "bandearam-se" para o janismo, abandonando o candidato do partido às eleições governamentais de 1954;

• as constantes lutas internas na cúpula estadual, entre outros motivos como reflexo das correntes de Hugo Borghi x Ivete Vargas; predomina o caciquismo e o personalismo dos dirigentes, que impedem — muitas vezes recorrendo a expedientes escusos — a emergência de lideranças efetivamente populares;

• as divisões no movimento sindical; os acordos com os comunistas e a crescente importância das lideranças janistas nos sindicatos; a identificação do PTB com o peleguismo sindical, reforçando-se os vínculos de dependência com os órgãos estatais (Ministério do Trabalho, Previdência Social, Delegacias Regionais);

• a constante indefinição programática, até mesmo em relação ao que seria "trabalhismo" e "getulismo", apresentados vagamente como a "herança da carta-testamento de Getúlio", mas cujo conteúdo podia variar de acordo com o momento político;

• a ambigüidade crescente em relação aos comunistas, pois, ao mesmo tempo que precisavam fazer aliança com o PCB e contar com os votos de seu eleitorado cativo, os petebistas deviam fazer profissão de fé anticomunista (cabe lembrar que, na época, a identificação dos nacionalistas com os "vermelhos" era muito freqüente).

Todos esses fatores não excluem, a nosso ver, o interesse — e, mesmo, a cumplicidade-ativa — das lideranças nacionais do PTB em manter a seção paulista mais desarticulada. O que convém deixar claro é que aqueles fatores atuavam independentemente da "conspiração gaúcha".

Outro ponto a ser esclarecido diz respeito à questão sindical. Não afirmamos que o PTB paulista era fraco porque não tinha identificação com os trabalhadores e seus sindicatos — mas, sim, que esta identificação manteve-se, enquanto organização, no nível mais tradicional da representação política conhecida no Brasil: elitista, da cooptação pelo peleguismo, de maneira a formar, no máximo, um partido para os trabalhadores, e não de trabalhadores.

Tais pontos serão abordados nos capítulos seguintes. Seria interessante, no entanto, já destacar a versão mais freqüente sobre as causas da fragilidade do PTB paulista. Os poucos analistas do sistema partidário em São Paulo, no período pré-64, são unânimes em apontar as "conveniências" da cúpula nacional do partido. Para Fernando Henrique Cardoso (1975), "o controle do trabalhismo por Getúlio Vargas e depois por João Goulart, requeria, na luta interna do PTB, uma secção paulista relativamente fraca (...). Posto à margem o Partido Comunista, interesses nacionais, no caso do PTB, contrariavam as tendências favoráveis à constituição de um real partido de massas em São Paulo".

Essa versão é confirmada por depoimentos de vários dirigentes do PTB paulista. Ivete Vargas é categórica: "O PTB de São Paulo foi trucidado. Nunca o PTB nacional deu recursos, nunca ajudou, nunca facilitou a vida. O PTB funcionava em função do Rio Grande do Sul: a principal parcela dos recursos ia para lá, e as alianças nos outros estados eram feitas em função do apoio ao candidato de lá. Por exemplo, o PTB de São Paulo teve que apoiar o candidato do Ademar para conseguir o apoio do PSP à candidatura do Brizóla no Rio Grande do Sul."

Jorge Duque Estrada concorda com Ivete, mas tenta justificar a atitude da cúpula para "moderar" os paulistas: "Dr. Getúlio, por contingência de caráter político-econômico, era obrigado a nos conter. Éramos uma espécie de carne para leão. Ele tinha que amansar os leões de São Paulo e nós éramos o filet mignon. Os leões eram os grandes industriais, a FIESP. Nos confundiam com os comunistas. Greve, tomar a fábrica, etc. Getúlio tinha que contentar a Igreja, os industriais, os paulistas quatrocentões, a ala rural. Nós éramos contidos. O Ademar foi beneficiado; carregou gente do PTB, furtou atas de madrugada etc. Foi precursor do Watergate." (entrevistas CPDOC).

Para Roberto Gusmão, o PTB paulista é mantido como uma agremiação propositadamente heterogêna; na área sindical pode se entender com os comunistas, mas na direção partidária predominam representantes mais ligados ao PSD e ao PSP, do que à área sindicalista e a Jango. O PTB paulista não podia crescer e ameaçar a hegemonia gaúcha (Pasqualini, Jango, Ferrari, Brizola, Getúlio e família — O PTB era "feudo" dos gaúchos!) Forte, o PTB poderia derrubar o ademarismo e até reivindicar o governo do estado, o que não interessava aos gaúchos, nem ao mineiros, nem aos cariocas. Todos conspiravam contra o PTB de São Paulo! O PTB do Rio podia e devia ser forte; podia, porque era mais facilmente controlável, por ser a sede do governo e por ter um nível de sindicalização inferior ao de São Paulo; devia, frente à agressividade da UDN nesse estado, ao lado da insignificância do PSD. Além disso, sendo sede do governo, o PTB contava com o apoio direto dos deputados e senadores da bancada federal (entrevista à autora). Para Canuto Mendes de Almeida, ilustre professor e dirigente do PTB estadual, foi o próprio Getúlio que manteve o partido "na mais rigorosa e harmônica desorganização em São Paulo. O PTB poderia servir de instrumento de mobilização — principalmente frente à ameaça comunista — , mas governar, só com o PSD, inclusive para facilitar os entendimentos com a UDN" (entrevista à autora). José Gomes Talarico confirma, igualmente, que a fraqueza do PTB paulista "era proposital" (CPDOC).

Voltando aos pontos acima levantados, como hipóteses alternativas, vale a pena registrar como as lutas internas eram assumidas, por alguns, com certa simpatia — como se fizessem parte do "folclore" do partido. Alzira Vargas lembra o apelido do primeiro presidente estadual do PTB — Nelson Fernandes, conhecido como "Nelson botinada" porque, segundo ela, "resolvia os problemas do partido a botinadas" (aliás, depois de sua morte, "todo mundo queria ser presidente do PTB paulista", diz). Jorge Duque Estrada, por sua vez, relata o episódio da convenção contra o mesmo Nelson Fernandes, quando petebistas saem empurrados e carregam o portão de ferro do prédio das classes laboriosas: "Não ganhamos no voto, ganhamos fisicamente, Isso é uma coisa que honra muito o PTB, porque no princípio ele não é apenas um corpo de doutrinas, ele tem força física" (entrevistas CPDOC).

Um dos exemplos mais concretos da divisão petebista é dado na campanha para as eleições presidenciais de 1955: no diretório estadual do PTB organizam-se dois "comitês pró-JK", com poderes equivalentes, e que não se comunicam — o liderado por Porfírio da Paz e o de Newton Santos. Nas eleições para a prefeitura, em 1953, outro exemplo curioso: os candidatos a vice em todas as chapas eram do PTB.

Alzira Vargas — chamada "babá do PTB" — assinala que "o PTB de São Paulo foi um dos que mais trabalho deu como organização". As brigas internas minavam a capacidade das lideranças consolidarem-se, pois "cada elemento que subia um pouquinho punha uma banana para o outro escorregar" (depoimento CPDOC). Ivete Vargas confirma, lembrando que de 1946 a 1958 no PTB paulista não se conseguia terminar o mandato dos diretórios. Mas acentua que as dissidências, quase permanentes, refletiam grupos eventuais, que se uniam contra a direção estadual num determinado momento e depois se desmanchavam. Não eram grupos ideológicos ou ligados a líderes. Às vezes eram grupinhos regionais — como o de Eumene Machado na Alta Sorocabana; o de Paulo Ornelas de Carvalho na Alta Paulista; o de Euzébio Rocha na Noroeste. O Hugo Borghi tinha liderança estadual e nacional, mas sai do PTB (entrevista CPDOC).

Roberto Gusmão6 6 Em 1988, Roberto Gusmão é vice-presidente nacional do segundo PTB. , adversário de Ivete no estado, dá uma versão ligeiramente diferente: "O PTB paulista não tinha eleições para a direção — os presidentes eram "impostos de cima", como Ivete Vargas, Olavo Fontoura (industrial), Mário Aprile (industrial), Mário Pimenta de Moura (alto funcionário da Justiça do Trabalho), muito mais ligados aos interesses das classes dominantes e do PSD do que aos compromissos trabalhistas. As direções regionais eram permanentemente minadas pela corrupção ademarista e pelo conjunto de forças reacionárias que acenavam com o 'perigo comunista. Um exemplo típico é o do famoso major Newton Santos (gaúcho), que destruiu o PTB durante dez anos, em função de interesses pessoais, fazendo os mais absurdos e contraditórios acordos com Ademar e os pelegos de todos os tipos" (entrevista à autora).

Ivete Vargas afirma, ainda, que "a legenda do PTB era considerada simpática em São Paulo, embora não houvesse cobrança, por parte do eleitorado paulista, de fidelidade do político à legenda". Essa afirmação corrobora a constatação da altíssima taxa de "migração" partidária no PTB paulista, o que torna muito difícil identificar os "petebistas fiéis". Com raras exceções — e Ivete Vargas é a principal — os nomes mais conhecidos do PTB paulista pertenceram a mais de um partido, como Eusébio Rocha, Nelson Omegna, Toledo Piza, Hugo Borghi, Miguel Reale e até mesmo Porfírio da Paz (identificado como "trabalhista nº 1" de São Paulo), entre outros.

Além da fragmentação e .das lutas internas, o PTB paulista destacou-se pelo mais explícito fisiologismo — entendido como as transações políticas visando a nomeações e benesses públicos, a transformação da política em negócio (e não negociação), a confusão consciente entre público e privado. O exemplo mais eloqüente desse fisiologismo é dado pela atuação, sempre eficiente, de Ivete Vargas — "dona" da máquina, pelo menos a partir de 1955, e dos contatos dos bastidores com políticos, empresários e governantes. Na sua visão, é claro, não se tratava de "fisiologismo" — mas da própria arte de fazer política... com competência, senso de oportunidade e até mesmo do "dever". Como diz: "Se empreguismo houve, o que pretendi muitas vezes, como era de meu dever, e como qualquer político faz, foi assistir aos companheiros necessitados, desde que honrados e capacitados. Se me joguei na luta de conseguir alguns cargos, foi precisamente pela imposição de alguns, cujo apetite é voraz" (O ESP, 24-06-60). Em outra ocasião ela já confessara ter nomeado, no governo Kubitschek, "vários delegados de autarquia, dois ou três cargos federais, diretores federais etc.", e como vários deles a traíram, no diretório, ela simplesmente pedira a Juscelino Kubitschek que os demitisse (entrevista CPDOC).

Em nome desse "senso do dever político", as lideranças petebistas, como Ivete, defenderão a adesão a políticos adversários entre si (Ademar e Jânio), rompendo, se necessário, com o próprio candidato do partido. Basta lembrar que, para o governo do estado, Ivete e "seu" PTB apóiam Ademar em 1947, Jânio em 1954, novamente Ademar em 1958 e, finalmente, o udenista José Bonifácio em 1962 — desta vez para afastar, ora vejam, nada menos do que a ameaça do ademarismo e do janismo. Em Ademar, em Jânio, em José Bonifácio, o PTB ivetista identificava, cada um com seu talento, os compromissos com "o verdadeiro trabalhismo de Getúlio Vargas".

Outro dado a ser enfatizado — como mais um elemento para caracterizar a originalidade do PTB paulista — refere-se à facilidade com que o partido promovia expurgos, com sumários processos de expulsão que incluíam "grandes nomes", como, por exemplo, Hugo Borghi e Roberto Gusmão. Na mesma linha, cabe registrar o constante envolvimento do partido, através de seus líderes, com os mais variados "escândalos" — Borghi e o escândalo do algodão, o major Newton Santos e o escândalo da juta, Frota Moreira e o escândalo do desvio do fundo sindical etc. E os casos de corrupção nos institutos de previdência, que rendiam tão bons dividendos para a oposição udenista, eram denunciados por políticos do próprio partido.

O último ponto — da relação do partido com o movimento sindical — é, certamente, o mais importante e também o mais difícil de ser analisado. O que existe, quase como assertiva do senso comum, é a convicção de que o PTB paulista se beneficiava, apesar de fraco eleitoralmente, de sua penetração nos sindicatos pela via do "peleguismo". Peleguismo esse que se expande como reflexão do fisiologismo na área mais especificamente partidária. A questão está desdobrada em diferentes tópicos, na segunda parte dedicada ao tema "partido e sindicato". Adiante-se, no entanto, que os dados de nossa pesquisa permitem reafirmar e qualificar aquele "peleguismo", denunciado até mesmo por algumas lideranças sindicais do próprio PTB, como o deputado Salvador Lossaco. Aliás, o antigo líder petebista Doutel de Andrade assinala que o PTB paulista tinha uma estrutura forte a combatê-lo: a FIESP, que oferecia empregos aos líderes trabalhistas — os quais acabavam defendendo interesses patronais, ou que mantinha pelegos na área sindical (entrevista à autora).

O depoimento de Eusébio Rocha — que foi deputado pelo PTB paulista — ilustra bem a relação tutelar de órgãos do Ministério do Trabalho com o partido — o que fomentava o "peleguismo". Segundo ele, a Delegação Regional do Trabalho de São Paulo "era uma sucursal do partido, funcionava 100% para o partido. Seus funcionários trabalhavam tranqüilamente para o PTB. A delegacia fornecia máquinas de escrever, funcionários para datilografar as coisas, eventualmente uns passes de trem..." (entrevista CPDOC). Nessa mesma linha, Moniz Bandeira não hesita em afirmar que "o aparelho sindical, montado a partir de 1930, serviu-lhe (ao PTB) como ossatura, tornando-se o Ministério do Trabalho, na ausência de uma central operária, sua fonte de poder" (1978, p. 28).

De qualquer modo, a relação do PTB paulista com os trabalhadores e seus sindicatos permanece a questão crucial e mais complexa desta pesquisa. Por vários motivos que podem ser enumerados: a) a fragmentação da disputa partidária na área sindical: comunistas e trabalhistas de várias tendências, janistas, janguistas, ademaristas e até udenistas, estes seduzidos pelo Movimento Trabalhista Renovador, de Fernando Ferrari, e pelo Movimento Renovador Sindical; b) a não identificação partidária das lideranças sindicais, que repudiavam um possível "controle partidário" e, em alguns casos até mesmo a idéia de "fazer política"; c) a vinculação das lideranças sindicais diretamente com as "chefias" dos órgãos do Estado (Trabalho e Previdência Social), passando por cima da militância no partido; d) a criação de organizações sindicais "paralelas" (como PAC, PUI, PUA etc.) nas quais "se diluíam" as preferências partidárias; e) a dificuldade para o registro de candidaturas de trabalhadores pelo PTB, que eram prejudicados ou pelo veto da própria cúpula partidária ou pela impugnação no TRE, sob a acusação de serem "comunistas"; 0 a escassez de pesquisas sobre "voto e classe social" em São Paulo e para aquele período (além do estudo de Aziz Simão, a segunda pesquisa, de nosso conhecimento refere-se às eleições de 1958; para o período pós-74 há muitas e boas pesquisas).

A questão que se coloca, portanto, é: até que ponto o PTB paulista, marcado por intensas lutas internas e pela presença tão ostensiva de industriais e altos burocratas, era efetivamente "o partido dos trabalhadores"? Até onde — e de que maneira estendia sua influência no movimento sindical?

O estudo pioneiro de Aziz Simão sobre escolha eleitoral na cidade de São Paulo revela que o voto operário, de 1945 a 1948, orientou-se para o PTB e para o PCB, então na legalidade; do total de votos dados à legenda trabalhista, cerca de 70% provinha de zonas predominantemente operárias. O eleitorado petebista reconhecia os benefícios trazidos pela legislação trabalhista e votava no partido de Getúlio para garanti-los e ampliá-los (Simão, 1951). A tendência se verifica tanto para cargos executivos quanto legislativos, e só mudará com o impacto da sedução janista — a partir de 1953 — e com a dispersão, pelas várias legendas trabalhistas, do voto prioritariamente comunista. Com base na pesquisa de Simão, é possível, portanto, reconhecer, para aquela época somente, a identificação do trabalhador urbano — do operário, melhor dizendo — com o PTB.

Mas, a proliferação de partidos trabalhistas e as alianças com o janismo e o ademarismo, além da já citada migração dispersa dos votos comunistas, dificulta a busca daquela identificação exclusivamente pela opção de voto. Na tentativa de entender de que modo o PTB paulista explicitava, concretamente, seu enraizamento no meio operário e sua defesa do trabalhismo, foi necessário recorrer aos noticiários de imprensa e aos dados sobre a atuação parlamentar.7 7 Reafirme-se, aqui, a intenção desta pesquisa em contribuir para o conhecimento do que foi o PTB em São Paulo com a preocupação inicialmente voltada para os fatos, os personagens, e sua atuação nas diferentes conjunturas. É nesse sentido que ganha peso o destaque para o material de imprensa e para as citações, tão textuais quanto possível, dos depoimentos e das intervenções parlamentares. Insista-se na advertência de que não se pretende enfrentar questões teóricas e/ou doutrinárias, nem sobre partidos políticos nem sobre sindicato e a "ideologia" do trabalhismo; pretende ser uma contribuição para o conhecimento da história política de São Paulo, fornecendo, igualmente, material para reflexão e, espera-se, para novas pesquisas. O que significou levantar o máximo de informações possível sobre o desempenho do partido na defesa dos trabalhadores — movimento sindical, greves, reivindicações salariais — e das teses trabalhistas.

À GUISA DE CONCLUSÃO

Ao término dessa pesquisa, iniciada entre outros motivos pela perplexidade — por que o PTB paulista era tão fraco, se tinha condições para ser forte? — , outra questão se impõe. Os dados revelaram que o PTB foi, em São Paulo, um partido eleitoralmente frágil, politicamente desarticulado e ideologicamente inconsistente. Devastado por um fisiologismo insidioso e pelas constantes lutas internas, o partido chegou a cogitar da fusão com o PSP de Ademar de Barros e, no extremo, da autodissolução.

Sendo assim, é de se indagar o que o mantinha tão visível na cena política e o que justificaria, quinze anos após sua extinção, a disputa renhida entre Leonel Brizola e Ivete pelo direito à sigla PTB. Podemos entender que a disputa se travou em torno da legenda capaz de reviver a sedução do getulismo, do qual ambos se consideravam herdeiros. Mas o que, afinal, atraía nesse partido paradoxalmente fraco — terá sido apenas o aproveitamento, em ponto ótimo, do clientelismo estatal e do peleguismo sindical?

Na tentativa de elucidar essa questão, alguns pontos merecem ser revistos, mesmo correndo-se o risco de retomar "obviedades" já discutidas nos capítulos anteriores. Entre esses pontos, três parecem-nos cruciais: 1) a fraqueza eleitoral do PTB paulista, apesar do relativo sucesso no nível "burocrático-estatal"; 2) a identificação, em momentos alternativos, com o janismo e o ademarismo; 3) a ambigüidade na relação com o movimento sindical.

1. Sobre o primeiro ponto, é evidente que, dono de uma sigla aparentemente mágica — dado o alcance popular da ressonância getulista — o PTB foi um partido instável em São Paulo em termos de competitividade eleitoral. Em dois aspectos essa fragilidade era evidente: a) os petebistas não conseguiram apresentar candidatos próprios ao executivo estadual; b) o PTB elegia reduzidas bancadas para a Câmara Federal e a Assembléia Legislativa. No primeiro caso, o partido oscilava entre Jânio e Ademar, e, quando teve um candidato próprio — Wladimir Toledo Piza, em 1954 — não hesitou em "cristianizá-lo" para acompanhar a maré janista. No segundo caso: O PTB perdeu longe para o PSP em todas as eleições legislativas; chegou a perder até para o PDC e a UDN.

Ao que parece, o PTB paulista preferia "um bom acordo" com um nome forte para o governo do estado — e em cuja vitória apostavam tudo — do que lutar sozinho com candidato próprio. Isso significa que não interessava, à direção do partido, expor-se aos ônus inevitáveis do exercício do poder executivo. Para dirigentes como Newton Santos ou Ivete Vargas — que pareciam conceber a política como "coisa nossa", privatista, personalista e elitista — , as barganhas eleitorais por cargos, comissões, influencias, eram mais importantes do que a execução do programa partidário. É nesse sentido que o PTB paulista se revelava um partido palaciano, "bom de conchavo" e ruim de voto... Observe-se, ainda, que dificilmente as lutas internas eram movidas por divergências em relação a questões programáticas ou, menos ainda, doutrinárias. A fragmentação constante em alas e grupos devia-se, quase sempre, a disputas pessoais, em torno de nomes e cargos. Haja vista a freqüência de expurgos e o abandono da legenda, sem qualquer motivo "ideológico". Ou seja, o personalismo e o caciquismo muito contribuíram para a fraqueza eleitoral do partido. Numa sociedade com baixo nível de politização, na qual predominava a identificação com nomes, e não com partidos ou programas, não é de estranhar que o eleitorado eventualmente "getulista" votasse em candidatos que se identificavam com o "trabalhismo" ou com Getúlio, independentemente da sigla. Os outros partidos trabalhistas — PST, PRT, MTR — certamente apostaram nessa imprecisão e dela se beneficiaram. Um exemplo é eloqüente: "o líder marmiteiro" Hugo Borghi sempre teve boa votação, em qualquer legenda; o mesmo ocorreu com Eusébio Rocha, que saiu do PTB para o PDC.

Observe-se, igualmente, que a ocupação de um alto posto nos diretórios não significava, necessariamente, "vigor eleitoral"; Rodrigo Barjas Filho, presidente regional em 1954, nunca passou das suplências estaduais, o 'mesmo ocorrendo com o industrial petebista Mário Aprile.

O relativo sucesso "burocrático-estatal" não se traduzia exatamente em votos, com a óbvia exceção de Ivete Vargas. Como foi visto, o PTB dispunha de recursos de poder — barganhados em função de apoio eleitoral aos candidatos majoritários, no nível federal e estadual — junto ao Ministério do Trabalho, Previdência Social e órgãos vinculados. A questão que se põe é: se o PTB era "ruim de voto", o que podia valer sua barganha, em termos de apoio eleitoral? A indagação é pertinente e se responde tanto em termos de omissão quanto de ação. No caso negativo, o PTB "ajudava" simplesmente não apresentando candidato próprio para o executivo estadual (e, portanto, só podia mesmo continuar "ruim do voto explícito" na legenda). No caso positivo, o PTB "valia o seu preço" na medida em que reforçava os temas do trabalhismo e do getulismo — como "representações" da sigla mágica — e qualificava-se, portanto, como um adversário "ideológico" importante, com o qual era indispensável compor-se. Nesse segundo caso, a direção paulista certamente exagerava a sua penetração no meio sindical — o trabalhador fiel a Getúlio, a exploração da carta-testamento etc. — como outro eficiente recurso de poder. Tudo isso transformava o PTB em partido imprevisível, mas capaz de atuar, nas eleições, como um verdadeiro fiel da balança. O partido não ganhava eleições, mas podia fazer com que os outros perdessem. (É importante lembrar — sobretudo para o leitor jovem — que as eleições eram muito freqüentes no período, uma vez que não coincidiam as municipais com as eleições para os governos estaduais e a presidência da República. O PTB paulista participou de eleições em 1945, 1947, 1950, 1951, 1953, 1954, 1955, 1957, 1958, 1960 e 1962.)

2. Em relação ao segundo ponto: as lutas internas no PTB paulista, cuja fragmentação o deixava em situação desfavorável na competição com o ademarismo e o janismo, surgem como um dos fatores mais evidentes para explicar aquele insucesso eleitoral. Mas, torna-se necessário matizar diferentes aspectos dessa explicação. Se foi simples provar a crise intermitente no partido, as relações com Ademar e Jânio sugerem um quadro de maior complexidade. Com Ademar, a relação se dá com o próprio líder populista e com a máquina, muito eficiente, de seu PSP. Já a relação de "atração-repulsão" do PTB com Jânio Quadros concentra-se no personagem, sabidamente hostil a partidos e cultor de uma perene e impenitente infidelidade a grupos políticos.

Com Ademar, o PTB faz acordos pessoais e alianças partidárias desde 1947, mas permanecem adversários e, em certos momentos, até inimigos, embora em 1947, 1949 e 1951 tenha sido cogitada a fusão entre PTB e PSP. Com Jânio o PTB parece querer "pegar carona", deslumbrado com a extraordinária vitória nas eleições de 1953 para a prefeitura. Às vezes, janismo chega a se confundir com petebismo — e Jânio se elege, não por acaso, deputado federal pelo PTB do Paraná em 1958 — não havendo outra identificação partidária mais explícita. A imprevisibilidade marca profundamente a relação Jânio-PTB (como, aliás, em toda a crônica janista), diferente da relação mais nitidamente "de negócios" com o PSP. A retórica moralista, que garante parte do sucesso do janismo, surge exatamente como contraponto ao pragmatismo do "rouba mas faz" de Ademar e sua máquina.

Mas ambos, Ademar e Jânio,, revelavam a mesma ambigüidade em relação a Getúlio e ao trabalhismo. No tocante às áreas de influência, observa-se uma clara separação: a rivalidade PTB-PSP manifesta-se com maior força no interior e nas pequenas cidades; com os janistas ela ocorre, preferencialmente, na capital e nos sindicatos. Enfim, seja qual for o ângulo da observação, sempre encontraremos petebistas-janistas, mas não petebistas de Ademar. Ivete Vargas, aliás, esclarece que "o grande inimigo do PTB era o PSP e vice-versa; politicamente era difícil apoiar Ademar, mas eleitoralmente, não. Nosso eleitorado aceitava muito bem o acordo com Ademar. Havia uma afinidade" (citado por Sampaio, p. 6l).

Cabe, aqui, lembrar a análise de Francisco Weffort sobre as origens do populismo em São Paulo. O ademarismo floresceu no interior do estado e nos bairros centrais e mais antigos da capital, de pequena densidade operária, da pequena burguesia amedrontada com a ameaça de proletarização. A imagem do "chefe" era valorizada em termos de promessas de "paz, amor e tranqüilidade", sob o manto de um Estado protetor, assistencial até o limite da corrupção. Explorava o profundo ressentimento pessoal — hostil, portanto, à idéia de uma burocracia racional, impessoal e "justa" para todos — pertinente à esperança do desfrute individual. O janismo, ainda na análise de Weffort, abrangia grupos sociais mais estáveis do que os de Ademar; eram mais otimistas em relação às possibilidades de ascensão social, voltando-se para o poder não exatamente pedindo proteção pessoal, mas justiça — não os favores, mas oportunidades de trabalho. A campanha "tostão contra o milhão" sensibilizava setores diferentes dos eleitores de Ademar; eram os da classe média assalariada, dos operários de bairros novos e em expansão. A imagem do "chefe" se confundia com a de um líder asceta, autoritário, implacável, porém justo; a de um Estado impessoal, porém eficiente (Weffort, 1965). Daí, podemos inferir todo o interesse das lideranças petebistas — já que o populismo era inevitável, naquela concepção de se fazer política — em se associar ao melhor dos dois mundos, ora ademarista, ora janista.

3. Quanto ao terceiro ponto — partido e sindicato — , que é também o mais complexo, qualquer avaliação apontará para a ambigüidade, no piano doutrinário, e para o peleguismo, no plano da atuação concreta. O levantamento da presença do PTB no meio sindical e os depoimentos de petebistas revelam dados francamente comprobatórios do peleguismo insidioso, sobretudo dos membros da direção; alguns exemplos merecem novo registro.

• o papel dos representantes partidários no Departamento Intersindical do Ministério do Trabalho, ao controlarem as chapas sindicais para, como diz Roberto Gusmão (hoje vice-presidente nacional do novo PTB), "selecionar os pelegos da confiança do Ministério"; o predomínio dos "ministerialistas";

• o apoio do partido a nomes, para o cargo de Ministro do Trabalho, muito mais identificados com a FIESP ou o PSD, do que com o "autêntico" trabalhismo;

• a falta de empenho do partido para a aprovação de candidaturas efetivamente representativas dos trabalhadores e/ou dos operários (ver as denúncias de Salvador Lossaco sobre as cúpulas partidárias no controle das listas eleitorais);

• a dependência em relação a recursos providos pelas Delegacias do Trabalho e colocados à disposição das lideranças sindicais, como local para reuniões, passagens, material de escritório, secretárias, etc. (ver depoimento de Eusébio Rocha);

• a naturalidade ostentada por dirigentes partidários ao avaliarem a contribuição do pelego — útil e necessário — para enfrentar "os comunistas" (ver depoimentos de Duque Estrada e Nelson Omegna, com visões diferentes);

• o papel moderado e conciliador dos dirigentes durante as greves de trabalhadores (Ivete Vargas, Frota Moreira), muitas vezes atuando como porta-voz não dos trabalhadores, mas do governo;

• a hostilidade explícita da direção partidária às propostas de "moralização" nos Institutos e demais órgãos da Previdência Social (ver oposição do grupo de Ivete Vargas e Newton Santos ao então ministro Almino Affonso).

Outra questão que deve ser lembrada refere-se ao eventual apoio que a defesa do nacionalismo poderia carrear para o partido. Na verdade, é possível argumentar que as bandeiras do nacionalismo — com raras exceções — estiveram sempre muito mais presentes nas lutas sindicais do que no PTB paulista. Palavras de ordem nacionalistas deram a tônica do movimento sindical dos anos 40 até o golpe de 64, passando por temas especificamente trabalhistas e chegando à identificação com as "reformas de base". É claro que essa coloração verde-e-amarela das lideranças sindicais devia-se, em grande parte, à influência dos comunistas. Foi, inicialmente, reforçada pela campanha nacional "o petróleo é nosso" (na qual se destacaram, em São Paulo, futuros petebistas como Eusébio Rocha, Rogê Ferreira e Roberto Gusmão) e, em seguida, pela política industrial de Getúlio Vargas. Tudo isso é sabido. Mas o que permanece pouco claro é a relativa discrição do PTB paulista em relação aos temas nacionalistas, sobretudo após o suicídio de Getúlio. O desenvolvimentismo de Kubitschek, trazendo implícita a ampla entrada de capital estrangeiro, diluiu o fervor do "velho" nacionalismo e certamente conquistou mais adeptos na direção estadual do partido. Esta abandona seus mais combatentes nacionalistas — os militantes da "panela vazia", por exemplo, ou Eusébio Rocha, que jamais voltaria ao "PTB ivetista".

É bom lembrar que, no final dos anos cinqüenta, o nacionalismo deixava de ser "suporte ideológico" exclusivo dos petebistas ou getulistas. A formação da Frente Parlamentar Nacionalista, no Congresso, indica que o nacionalismo "era de todos" — até mesmo da UDN, e, sobretudo, de muitos militares que, ferrenhos nacionalistas, viam com inquietude a agitação no meio operário e sindical.

Se é verdade que o PTB paulista não explorou — como poderia — o tema do nacionalismo, o mesmo não ocorreu com o getulismo. Aí sim, podemos afirmar que o partido explorou ao máximo a "mística" da carta-testamento e de tudo aquilo que pudesse ser apresentado como "as bandeiras de Getúlio". Esse getulismo acaba sendo identificado com o próprio trabalhismo, o que significava compensar a extrema vaguidão ideológica da pretensa doutrina com a exaltação da obra de Getúlio "em favor dos trabalhadores". Um editorial do jornal getulista Última Hora dá o tom dessa eficiente simbiose;

"Dir-se-á que outras legendas não diferem, nos seus objetivos programáticos, dos que o trabalhismo se propõe.

É exato.

Na prática, entretanto, a legislação trabalhista pertence a Getúlio Vargas. Ele inspirou e realizou a Petrobrás. Vem, agora, de bosquejar a Eletrobrás.

No que lhe toca, o PTB é o salário mínimo, é a luta pelo congelamento dos preços, é a campanha pela extensão, ao trabalhador agrícola, das prerrogativas alcançadas pelo trabalhador citadino.

E as outras legendas não o são" (UH, 02-06-1954).

Essa identificação visceral com o getulismo (até mesmo pelos laços de família), tornava mais fácil, para as direções partidárias, a encampação, teórica e prática, das teses sobre a tutela estatal sobre os sindicatos. Os dirigentes, em sua maioria, apoiavam os princípios estadonovistas sobre a necessidade da "proteção" do trabalhador, contra o capitalismo, por um Estado justo e protetor. Daí decorria a defesa do atrelamento dos sindicatos ao Ministério do Trabalho e a restrição no direito de greve, definindo-se "legais" e "ilegais" em função do "bempúblico" — identificado com os interesses do Estado.

Enfim, o PTB paulista conseguiu ser, apesar de todos os desvios apontados, o partido mais identificado com o getulismo e o trabalhismo. Justamente por contar, desde as origens "queremistas", com as vantagens de um "acervo" histórico-social inigualável — a "doação" das leis trabalhistas! — e, daí, um eleitorado supostamente cativo (lembre-se que, em 1945, o ditador deposto recebeu 120 mil votos em São Paulo para senador), o PTB provocou a cobiça política e as mais diversas pressões. Seus dirigentes, marcados pelos vícios do personalismo, do caciquismo e do clientelismo — tradicionais na crônica partidária das elites brasileiras — , não souberam e não quiseram superá-las., Aderiram, com grande facilidade, às teses prontas sobre a necessidade de um partido para os trabalhadores "que servisse de anteparo ao avanço comunista no meio operário" (Alzira Vargas). Nesse ponto foram muito bem-sucedidos. Retardaram, durante todo o período populista, o aparecimento de um partido efetivamente de trabalhadores — até mesmo devido à sua aliança, atribulada porém recorrente, com os comunistas. É nesse sentido que o peleguismo foi a ¡orça subterrânea do fraco PTB paulista.

Torna-se necessário retomar, portanto, a hipótese, cara a vários petebistas, de que havia uma "conspiração" dos gaúchos e da direção nacional contra a seção paulista. Mantemos a convicção de que, efetivamente, não houve interesse da cúpula nacional em facilitar o fortalecimento de um único partido trabalhista em São Paulo. Na ótica de seus interesses no plano federal — a manutenção da aliança vitoriosa PSD/PTB — , era mais interessante deixar o trabalhismo "disperso" em vários partidos. Um PTB paulista muito forte — em termos eleitorais e sindicais — poderia escapar ao controle de seus dirigentes e ameaçar aquela promessa de "paz social", de "harmonia entre capital e trabalho", inerente ao espírito do trabalhismo estadonovista. O que é bastante compreensível no contexto histórico do populismo.

Inaceitável, porém, nos parece a versão do PTB paulista de que teria sido vítima da maquinação gaúcha ou pessedista. A direção estadual, que acaba controlando o partido e expurgando-o de "radicais" incômodos, participou ativamente daqueles entendimentos. Todos os acordos, aparentemente espúrios para as eleições majoritárias no estado- apoiando Ademar, Jânio, novamente Ademar, Carvalho Pinto — foram feitos com o consentimento e as bênçãos da cúpula nacional. Assim como todas as famosas "comissões de reestruturação" — que concretizavam a intervenção nacional do partido — contavam com o explícito apoio da ala mais "gaúcha" do PTB paulista. Se é verdade que a direção estadual partilhava da crença na necessidade de penetrar no meio sindical (reforçando, no entanto, o peleguismo) para enfrentar os comunistas, desejava ela igualmente que o PTB fosse um "partido confiável" e dócil aos propósitos conciliatórios da aliança PSD-PTB. Era dessa "confiabilidade" que o PTB paulista retirava os recursos de poder indispensáveis à máquina clientelística do partido. Não é por acaso que o diretório estadual contava com tantos industriais — "contanto que não sejam reacionários", diziam — e tão poucos operários. Não é por acaso, também, que o partido nunca se esforçou para disputar o eleitorado rural — sensível à pregação pedessista e ademarista —, o que certamente lhe traria problemas, no plano nacional, com os aliados do PSD.

Em resumo brevíssimo: o fraco PTB paulista teve sua imagem e sua prática associadas ao getulismo, no plano mais amplo da sociedade, e ao peleguismo no meio sindical. Um dado "positivo" e outro "negativo", que se uniram na composição do perfil de um partido marcado pela ambigüidade e a falta de qualquer perspectiva histórica. Um exemplo evidente de como o populismo — engendrado na ditadura do Estado Novo — contribuiu para consolidar versões perversas da representação política e da participação popular.

A proposta de se analisar o PTB enfocando as relações entre partido, sindicato e governo reclama, também, uma tentativa de resumo. Quanto à relação governo-partído: no sistema político ocidental, europeu ou norte-americano, o partido ou sustenta o governo, ou faz oposição. No comunismo, o partido domina o governo e o Estado. No caso do PTB (e, por analogia, de outros partidos brasileiros), persiste um pacto de bilateralidade entre governo e partido, com regras políticas tácitas. Quanto à relação governo-sindicalo: no sistema político ocidental, o governo contrapõe-se aos sindicatos, ou o contrário. No modelo leninista, o sindicato é correia de transmissão do poder. No trabalhismo getulista, o governo tutela e favorece os sindicatos — e os sindicalistas profissionais — , e os sindicatos acatam as orientações políticas do governo, inclusive, como foi o caso, o ostracismo dos comunistas. Quanto à relação partido e sindicato: no trabalhismo britânico as relações são de tensão e mútua dependência, mas permanecem autônomos em suas esferas de atuação. No comunismo o sindicato é apêndice do partido. No trabalhismo getulista o partido é o intermediário entre o governo e os sindicatos.

Na perspectiva de aprofundamento desta pesquisa, permanece válida a preocupação em entender, no plano nacional, as causas e conseqüências de:

• o impasse vivido pelo PTB, dilacerado entre as manipulações da cúpula dirigente e sua vocação de partido de massas, que não se realizou;

• a identificação imediata entre o PTB e a burocracia do Estado, através do Ministério do Trabalho e o controle sobre os Institutos de Previdência e os sindicatos.

Para uma análise do PTB nacional consideramos como questão crucial a compreensão das relações entre Getúlio Vargas e o PTB nacional, entre getulismo e trabalhismo. Tais relações, aparentemente óbvias, são complexas e diferentes, de acordo com a conjuntura e os atores envolvidos. Dados de entrevistas sobre as lutas internas e a análise "do discurso" já fornecem indicações interessantes. Não se trata apenas de registrar a ocorrência de vários "getulismos"; mas de apontar para o fato de que, mesmo com um denominador comum inquestionável, as variações na identificação PTB-Getúlio exigem um exame mais penetrante. Nos arquivos no CPDOC, por exemplo, há informações que sugerem falta de entrosamento entre Getúlio e seu próprio partido. O petebismo (a máquina, a organização, as lideranças regionais) parece "servir-se" do getulismo — o programa, as bandeiras, o "sangue da carta-testamento" etc. Tema interessante para novas pesquisas.

***

Em maio de 1980, o TSE dava ganho de causa a Ivete Vargas na disputa, com Leonel Brizola, pela legenda trabalhista. Com a reforma partidária que extinguia o bipartidarismo, ambos desejavam ressuscitar aquela sigla aparentemente mágica e mística. Brizola perdeu e chorou. "Um esbulho", dizia. O velho PTB dos trabalhadores, dos nacionalistas, das reformas, dos socialistas — o partido do povo! — não podia cair nas mãos de "um pequeno grupo de oportunistas subservientes ao poder". Tratava-se, sem dúvida, de uma "torpe maquinação do arbítrio", insistiam, inconformados, os militantes fiéis à liderança de Brizola. A indignação era ainda maior pelo fato de ser justamente a seção mais forte do antigo PTB — o PTB gaúcho de Getúlio, Jango e Brizola — , que perdia para o mais fraco. Segundo os brizolistas, o PTB paulista "nunca tivera qualquer identidade com a massa trabalhadora" (Jornal do Brasil, 09-05-1980). Na época, assim vaticinou o jornalista Newton Rodrigues: "de então para cá, o petebismo é isso que aí está. Do colaboracionismo ivetista, passou ao papel de montaria de reserva do conservadorismo mal maquilado, que explora o prestígio residual da legenda. O domínio da sigla por grupos que, efetivamente, jamais tiveram integração partidária e a adesão de empedernidos pedessistas em disponibilidade, prenuncia o fim da legenda, enquanto bandeira, mesmo enganosa, do trabalhismo". (Folha de S. Paulo, pág. 2, 18/01/1986.)

Em outros meios, a vitória de Ivete Vargas foi interpretada sob uma ótica comparativa, que remonta às origens do partido. Pois assim como o velho PTB teria sido criado por Getúlio "para servir de anteparo ao avanço dos comunistas na massa dos trabalhadores" o novo PTB teria sido incentivado pelo General Golbery do Couto e Silva "para bloquear a expansão do PT de Lula e do novo sindicalismo", além, é claro, de "demolir" as óbvias pretensões de Brizola.

Em 1988, o PTB paulista pretende disputar o que ainda resta do eleitorado janista, sem descuidar do apoio na área empresarial (Antonio Ermírio). Sua penetração no meio sindical é mínima, sem possibilidades de competir com PMDB, PT e PCs. Configura-se, cada vez mais, como um partido fisiológico. Não consegue reviver o mais pálido brilho do passado getulista — que ficou com o PDT. Não consegue sequer espaço na imprensa que explorava o antigo — hoje inexistente — "clima de pancadaria" das constantes lutas internas do velho PTB paulista. Eficiente legenda de aluguel, é um reflexo do atraso de nossa representação política, sob todos os aspectos.

Embora injusta para o partido como um todo, aplica-se bem ao PTB de São Paulo a conclusão amarga de Francisco Pedro do Couto (1966, pág. 111): "quanto à renovação partidária, esta não se realiza porque os dirigentes tradicionais dos partidos, no caso do PTB, de mentalidade superada pela dinâmica dos fatos políticos, não se apresentam como dirigentes ou líderes — são donos dos partidos. Os do PTB, em especial, sempre preferiam a esperteza fugaz à inteligencia aplicada".

E é justamente para matizar esse tom impenitente de "juízo final" que vale a pena encaminhar algumas questões pendentes — e, possivelmente, provocadoras** ** Acompanho, aqui, as sugestões surgidas durante o seminário de pesquisa no CEDEC, em abril de 1988. . Retoma-se, aqui, a pergunta levantada na introdução: até que ponto o velho PTB paulista não teria antecipado características dos partidos brasileiros, hoje identificados com a "modernidade"? Se é verdade que o populismo dos anos 50 e 60 — no estilo de Ademar e Jânio — viceja, hoje, em alguns estados do Norte e Nordeste (ou, então, na política do governador mineiro Newton Cardoso), o "fisiologismo" imputado ao velho PTB desenvolve-se de forma mais disseminada e... eficiente. Partidos consolidados, com forte imagem "democrática" na política nacional, como o PMDB, justificam com naturalidade "um certo fisiologismo" — entendido como prática legítima de participação no governo e de "responsabilidade diante de seus eleitores". Ao que parece (e lamentavelmente), o grau de "modernidade" de nosso sistema partidário se esgotaria nessa visão cartorial do Estado e da representação política, nessa concepção de partido como essencialmente um mecanismo de agregação de interesses, mas pelo acesso aos recursos de poder através de nomeações, apadrinhamentos" etc. Ao que parece, também, essa "modernidade" perversa seria a contrapartida equivocada — porque muito mal compreendida — das teses freqüentes sobre a impossibilidade de termos, hoje, partidos ideológicos, ou pelo menos programaticamente coerentes, os quais pertenceriam, apenas, à nostalgia dos modelos europeus do século XIX.

Há 25 anos, portanto, já se desenvolviam em São Paulo aquelas condições férteis para reforçar o "clientelismo moderno" (sic), marca registrada do "novo" PTB e de outros partidos atuais, identificados com a idéia de que a política se realiza "naturalmente" e "privilegiadamente" através da máquina partidária e da apropriação de segmentos do Estado. O que, aliás, todo o PTB — o velho e o novo — assumiu com certo êxito. O trabalhismo paulista pré-64 já denunciava o padrão partidário que — ainda mais lamentavelmente — predominaria nesta sociedade tão complexa e dinâmica mas a cujas elites, supostamente esclarecidas, horroriza a idéia de política como transformação e através da participação, fruto da verdadeira soberania popular.

Por tudo isso — e como pesa a tradição neste país de bacharéis, oligarcas e coronéis! — compreende-se a surpresa de muitos com a vitória do Partido dos Trabalhadores (o oposto do velho e do novo PTB) nas últimas eleições municipais de novembro de 1988. É possível, também, que algo mude no cenário dos partidos e da política brasileira.

  • BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita 1976 O Governo Kubitschek, desenvolvimento econômico e estabilidade política, Rio de Janeiro, Paz e Terra.
  • 1981 A UDN e o Udenismo, ambigüidades do liberalismo brasileiro, Rio de Janeiro, Paz e Terra.
  • 1982 O Governo Jânio Quadros, São Paulo, Brasiliense.
  • BODEA, Miguel 1985 Trabalhismo e Populismo: o caso do Rio Grande do Sul (1945-1964), tese de doutorado, Universidade de São Paulo, mimeo.
  • CARDOSO, Fernando Henrique 1975 "Partidos e Deputados em São Paulo", em Cardoso e Lamounier (orgs.): Os Partidos e as Eleições no Brasil, Rio de Janeiro, Paz e Terra.
  • COUTO, Francisco Pedro do 1966 O Voto e o Povo, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
  • GOMES, Angela Maria de Castro e D'ARAUJO, Maria Celina Soares 1987 Getulismo e Trabalhismo: tensões e dimensões do Partido Trabalhista Brasileiro, CPDOC-FGV, Rio de Janeiro.
  • SAMPAIO, Maria Regina 1982 Adhemar de Barros e o PSP, São Paulo, Global. SIMÃO, Aziz 1956 "O Voto Operário em São Paulo", em Revista Brasileira de Estudos Políticos, nş 1.
  • WEFFORT, Francisco C. 1965 "Raízes Sociais do Populismo em São Paulo", em Revista Civilização Brasileira, nş 2.
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    A ser publicada pela Editora Marco Zero no 2º semestre de 1989.
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    Acompanho, aqui, as sugestões surgidas durante o seminário de pesquisa no CEDEC, em abril de 1988.
  • 1
    Este texto é uma versão parcial — inclui a introdução e a conclusão — de minha pesquisa sobre o PTB paulista, cuja íntegra será publicada pela Editora Brasiliense no primeiro trimestre de 1989.
  • 2
    O tema desta pesquisa surgiu dos desdobramentos de um primeiro projeto, bem mais amplo, sobre "Trabalhismo, Partido e Sindicato no Brasil", Iniciado em 1983 no CEDEC, sob minha coordenação e com apoio da FINEP. Esta pesquisa sobre o PTB paulista é de minha exclusiva responsabilidade e contou com apoio da ANPOCS e do CNPq.
  • 3
    Aproveito a oportunidade para registrar meu entusiasmo com o trabalho desenvolvido no CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação em História Contemporânea do Brasil); seus arquivos e sua documentação da "história oral", além dos excelentes estudos de seus pesquisadores sobre "a era Vargas", foram extremamente úteis para minha pesquisa.
  • 4
    O levantamento inicial na
    Última Hora e no O
    Estado de S. Paulo, de 1952 a 1954, foi .realizado por Márcia Leite e Flávia Cesarino Costa, na época pesquisadores do CEDEC. De 1954 a 1965 a responsabilidade pelo levantamento foi minha; consultei a
    Última Hora de São Paulo nos arquivos da
    Folha de S. Paulo. Agradeço a gentileza de André Singer e Heloísa Donnard, da FSP.
  • 5
    O livro de Lucília Neves Delgado (O
    Comando Geral dos Trabalhadores 1961-64, Vozes, 1986) assim como o de José Alvaro Moisés
    {Greve de Massa e Crise Política, Polis, 1978) não abordam a questão, embora constituam relatos minuciosos de movimentos no período (os dois são aqui lembrados porque o CGT, embora nacional, tinha forte liderança paulista, com Dante Pelacani, filiado ao PTB, e a greve de 1953 ocorreu em São Paulo). O livro de Maria Andréa Loyola —
    Os Sindicatos e o PTB, estudo de caso em Minas Gerais, Ed. Vozes, 1980 — limita-se à pesquisa em Juiz de Fora sobre sindicato, cabendo uma parte ínfima ao já ínfimo PTB local (esta pesquisa já estava terminada quando tomamos conhecimento do projeto de estudo sobre o PTB paulista de Virgínia Pellegrini, da PUC de São Paulo).
  • 6
    Em 1988, Roberto Gusmão é vice-presidente nacional do segundo PTB.
  • 7
    Reafirme-se, aqui, a intenção desta pesquisa em contribuir para o conhecimento do que foi o PTB em São Paulo com a preocupação inicialmente voltada para os fatos, os personagens, e sua atuação nas diferentes conjunturas. É nesse sentido que ganha peso o destaque para o material de imprensa e para as citações, tão textuais quanto possível, dos depoimentos e das intervenções parlamentares. Insista-se na advertência de que não se pretende enfrentar questões teóricas e/ou doutrinárias, nem sobre partidos políticos nem sobre sindicato e a "ideologia" do trabalhismo; pretende ser uma contribuição para o conhecimento da história política de São Paulo, fornecendo, igualmente, material para reflexão e, espera-se, para novas pesquisas.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 1989
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