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Dez teses acerca dos movimentos sociais

MOVIMENTOS SOCIAIS: QUESTÕES CONCEITUAIS

ARTIGOS

Dez teses acerca dos movimentos sociais* * Tradução de Suely Bastos

André Gunder FrankI; Marta FuentesII

IEconomista, professor da Universidade de Amsterdam no Instituto de Estudos Sócio-econômicos para as Regiões em Desenvolvimento

IIHistoriadora, com mestrado no Instituto de Estudos Sociais de Haia

Este ensaio desenvolverá as seguintes teses:

1. Os "novos" movimentos sociais não são novos, ainda que tenham algumas características novas; e os movimentos sociais "clássicos" são relativamente novos e provavelmente temporários.

2. Os movimentos sociais demonstram muita variedade e mutabilidade, mas têm em comum a mobilização individual baseada num sentimento de moralidade e (in)justiça e num poder social baseado na mobilização social contra as privações (exclusões) e pela sobrevivência e identidade.

3. A força e importância dos movimentos sociais é cíclica e relacionada a longos ciclos políticos, econômicos e (talvez associados a estes) ideológicos. Quando mudam as condições que dão origem aos movimentos sociais (a raiz das ações destes movimentos e/ou, com mais freqüência, devido à transformação das circunstâncias), estes tendem a desaparecer.

4. É importante diferenciar a composição de classe dos movimentos sociais, que no Ocidente são predominantemente movimentos de classe média, de classe popular no Sul e uma mescla de ambos no Leste.

5. Há muitos tipos de movimentos sociais. A maioria destes busca mais a autonomia do que o poder estatal; e os que buscam o poder estatal tendem a negar sua natureza de movimentos sociais.

6. Embora a maioria dos movimentos sociais seja mais defensiva que ofensiva e tenda a ser transitória, são agentes importantes (hoje em dia e no futuro talvez os mais importantes) de transformação social.

7. Os movimentos sociais aparecem como os agentes e os reintérpretes de um "desligamento" do capitalismo contemporâneo e da "transição para o socialismo".

8. É provável que alguns movimentos sociais tenham uma militância em comum, ou que sejam mais compatíveis entre si e permitam formar coalizões com outros. Também existem movimentos que têm conflitos e competem entre si. Pode ser útil investigar estas relações.

9. De qualquer modo, dado que os movimentos sociais, assim como o teatro de rua, escrevem seus próprios argumentos (roteiros) — se é que os têm — à medida que avançam, qualquer receita de agendas ou estratégias, para não falar de táticas, por parte de pessoas alheias a eles — para não mencionar os intelectuais — provavelmente será, no melhor dos casos, irrelevante, e contraproducente, no pior dos casos.

10. Concluindo, os movimentos sociais de agora servem para ampliar, aprofundar e até mesmo para redefinir a democracia tradicional do Estado político e a democracia econômica para uma democracia civil numa sociedade civil.

1. OS "NOVOS" MOVIMENTOS SOCIAIS SÃO VELHOS, MAS TÊM ALGUMAS CARACTERÍSTICAS NOVAS

Os múltiplos movimentos sociais do Ocidente, do Sul e do Leste que hoje em dia são denominados "novos" constituem, com raras exceções, novas formas de movimentos sociais que existiram através dos tempos. Ironicamente, os movimentos "clássicos" da classe trabalhadora e sindicais surgiram principalmente no século passado e, com o passar do tempo, parecem ser mais um fenômeno transitório relacionado com o desenvolvimento do capitalismo industrial.

Só os movimentos ecológicos/verdes e os pacifistas podem ser chamados legitimamente de "novos", e isto porque respondem a necessidades sociais que foram geradas mais recentemente pelo desenvolvimento mundial. A ameaça à subsistência e ao bem-estar, produto da degradação generalizada do meio ambiente, é resultado do desenvolvimento industrial recente; na atualidade, esta ameaça deu origem a novos movimentos ecologistas/verdes que têm uma natureza primordialmente defensiva. Os recentes desenvolvimentos tecnológicos para a guerra ameaçam a vida de grandes massas da população e, por sua vez, geram os novos movimentos pela paz. Mas mesmo estes não são totalmente novos. O desenvolvimento (colonialista/imperialista) capitalista mundial já havia causado (ou estivera baseado em) uma severa degradação ambiental em muitas partes do Terceiro Mundo (como a ocorrida depois da Conquista das Américas, as guerras e o tráfico de escravos na África, o saque de Bengala), que despertou movimentos sociais defensivos que abarcavam, mas não estavam circunscritos à problemática ambiental, tais como os movimentos dos indígenas norte-americanos e dos aborígenes australianos, que aparecem outra vez na atualidade. É claro que em épocas anteriores a guerra já dizimou e ameaçou amplas populações e também produziu nestas movimentos sociais defensivos. Em sua obra teatral Lisístrata, Aristófanes, antecipando-se a nossa era, descreveu um movimento pacifista de mulheres.

Os movimentos "clássicos" da classe trabalhadora, dos operários e dos sindicatos podem ser vistos agora como movimentos sociais especiais, que surgiram e continuarão surgindo em lugares e épocas específicas. A industrialização capitalista ocidental fez surgir a classe operária industrial e suas reivindicações, as quais se expressaram por meio de movimentos sindicais e da sindicalização da classe operária. No entanto, estes movimentos foram definidos e delimitados pelas circunstâncias concretas de seu próprio tempo e espaço — durante o processo de industrialização em cada região e setor, e em função das privações e das identidades que estas geraram. "Trabalhadores do mundo, uni-vos" e "a revolução proletária" foram pouco mais do que grandes slogans vazios. Com a mutável divisão do trabalho internacional, até os slogans perderam seu significado. Os movimentos operários e dos sindicatos do Ocidente estão se desmoronando, enquanto crescem naqueles lugares do Sul e do Leste onde a industrialização local e o desenvolvimento global foram gerando condições e reivindicações, análogas. Portanto, os movimentos operários, que foram erroneamente denominados como movimentos sociais "clássicos", devem ser vistos como um fenômeno recente e temporário. Além disso, estes movimentos sempre foram orientados para o local, para o regional e, no melhor dos casos, para a nação ou o Estado. Examinaremos seu papel na demanda pelo poder estatal quando discutirmos estes últimos, mais adiante.

No entanto, uma nova característica de muitos movimentos sociais contemporâneos é que, além de sua aparição espontânea e de sua mutabilidade e adaptabilidade, eles herdaram a capacidade organizativa e a liderança dos velhos movimentos obreiristas, dos partidos políticos e da Igreja e outras organizações, e recolheram destes aqueles quadros de direção desiludidos com as limitações das velhas formas organizativas e que agora buscam a criação de novas formas. Esta contribuição organizativa pode significar um recurso importante para os novos movimentos sociais, em comparação a seus precursores históricos, organizados de uma forma muito menos rigorosa, mas também pode conter as sementes da futura institucionalização de alguns deles.

Outro aspecto que talvez também possa ser considerado novo destes "novos" movimentos sociais é o fato de que, comparados com muitos dos movimentos sociais, agora tendem a ser mais monoclassistas ou de um único estrato social — classe média no Ocidente e populares e da classe operária no Sul. No entanto, considerando este critério de novidade, os velhos movimentos "clássicos" da classe operária também são novos e alguns movimentos étnicos, nacionais e religiosos da atualidade são velhos, tal como o constataremos quando discutirmos mais adiante a composição de classe dos movimentos sociais.

Sejam novos ou velhos, os "novos movimentos sociais" contemporâneos são de longe os que mais mobilizam a maioria das pessoas em torno de preocupações comuns. Muito mais que os "clássicos" movimentos classistas, os movimentos sociais motivam e mobilizam centenas de milhões de pessoas em todos os lugares da Terra — principalmente fora das instituições políticas e sociais que consideram inadequadas às suas necessidades — , razão pela qual recorrem aos "novos" movimentos sociais 'que, em grande medida, não foram institucionalizados. Este deslocamento popular para os movimentos sociais se manifesta ainda nas mobilizações e movimentos sociais que buscam uma identidade e/ou os que respondem a um chamado específico e que possuem laços muito frágeis ou inexistentes de pertencimento: exemplos destes são a resposta dos jovens (movimento?) à música rock em todo o mundo e ao futebol na Europa e outros lugares; nas milhares de pessoas de país a país que responderam espontaneamente às visitas do Papa (muito mais do que a igreja católica como instituição); e na resposta massiva e espontânea ao chamado extra (político) institucional de Bob Geldof contra a fome na África: Band Aid, Live Aid e Sport Aid. Este último foi um chamado e uma resposta não só por compaixão, mas pelo sentido moral da injustiça em toda esta situação. Vemos, portanto, que algumas destas formas de mobilização social que não implicam militância têm mais em comum com os movimentos sociais que alguns dos que se autodenominaram "movimentos", tais como os Movimentos de Esquerda Revolucionária (MIR) da Bolívia, Chile, Peru e Venezuela, que são (ou eram) realmente partidos políticos leninistas de centralismo democrático, e/ou o "movimento" sandinista na Nicarágua, que criou uma coalizão de organizações de massas, todas as quais buscavam tomar e administrar o poder estatal, para não mencionar o Movimento dos Não-Alinhados, que é uma coalizão de Estados e de seus governos no poder e de modo algum um verdadeiro movimento social de libertação dos povos.

2. OS MOVIMENTOS SOCIAIS SE DIFERENCIAM ENTRE SI, MAS COMPARTILHAM SUA MOTIVAÇÃO MORAL E SEU PODER SOCIAL

A seleção de alguns tipos ideais e características escolhidas dos movimentos sociais possivelmente facilitará nossa análise, embora, é claro, este exercício seja perigoso, pela variedade e mutabilidade destes movimentos (referimo-nos aos tipos "ideais" no sentido weberiano de uma destilação analítica de características que não se encontram em sua forma pura no mundo real). Podemos distinguir entre movimentos ofensivos (uma minoria) e defensivos (a maioria). Numa dimensão relacionada, mas diferente, podemos distinguir entre movimentos progressivos, regressivos e escapistas. Uma terceira dimensão ou característica parece ser a preponderância da mulher em vez do homem — e, portanto, aparentemente, uma menor hierarquização entre os membros ou líderes dos movimentos. Uma quarta dimensão é a da luta armada, especialmente pelo poder estatal, ou luta desarmada e, especialmente, luta não-violenta, seja esta defensiva ou ofensiva. Não pode ser coincidência que os movimentos armados coincidam com os mais hierarquizados e os desarmados com aqueles em que a participação da mulher é preponderante (mesmo quando as mulheres também participam da luta armada). Poucos movimentos são ao mesmo tempo ofensivos, no sentido de buscar a transformação da ordem estabelecida, e progressistas, no sentido de buscar uma ordem melhor para si mesmos ou para o mundo. Normalmente, estes movimentos são liderados ou formados principalmente por mulheres, especialmente, é claro, o movimento de mulheres como tal. A grande maioria dos movimentos é defensiva. Muitos buscam proteger conquistas recentes (às vezes progressistas). Exemplos disto são os movimentos estudantis (que nos anos 1986-7 reapareceram na França, Espanha, México e China, com um apogeu que não se via desde 1967-8) e muitos milhares de movimentos comunitários no Terceiro Mundo, que buscavam defender a subsistência de seus membros contra o assédio da crise econômica e da repressão política. Alguns movimentos defensivos buscam proteger o meio ambiente ou manter a paz, ou ambas as coisas, como os Verdes na Alemanha. Outros movimentos reagem de maneira defensiva contra as usurpações modernas, oferecendo o regresso a uma (primordialmente mítica) idade dourada, como, por exemplo, ao Islã do século VIL Muitos movimentos são escapistas ou têm importantes componentes que o são, já que, de maneira ofensiva ou defensiva, buscam uma salvação milenar das provações e atribulações do mundo real, como os cultos religiosos.

Variados como são e têm sido estes movimentos sociais, se eles têm algumas características em comum são as de compartilhar a força da moralidade e um sentido de (in)justiça na mobilização individual e no poder da mobilização social no desenvolvimento de sua força social. O pertencimento individual ou a participação e motivação em toda classe de movimentos sociais possui um forte componente moral e uma preocupação defensiva com a justiça na ordem social mundial. Podemos dizer, então, que os movimentos sociais mobilizam seus membros de forma defensiva/ofensiva contra uma injustiça percebida a partir de um sentido moral compartilhado, tal como foi analisado por Barrington Moore em sua obra A Injustiça. As Bases Sociais da Obediência e da Revolta. A moralidade e a justiça/injustiça, tanto no passado como no presente, foram as forças motivacionais e sustentadoras dos movimentos sociais, talvez num maior grau que a privação da subsistência e/ou a identidade, produtos da exploração e da opressão por meio da qual a moralidade e a (in)justiça se manifestam. No entanto, esta moralidade e esta preocupação com a (in)justiça estão referidas primordialmente a "nós", e o grupo social percebido como "nós" foi e continua sendo muito variável, como entre a família, tribo, aldeia, grupo étnico, nação, país, Primeiro, Segundo ou Terceiro Mundo, a humanidade etc., e gênero, classe, estratificação, casta, raça e outros agrupamentos ou combinações destas. O que nos mobiliza é esta privação/opressão/injustiça com respeito a "nós", de qualquer forma que "nós" nos definamos ou nos percebamos. Então, cada movimento social serve não só para lutar contra a privação, mas, ao fazê-lo, também (re)afirma a identidade das pessoas ativas no movimento e talvez também a daqueles "nós" pelos quais o movimento atua. Estes movimentos sociais, portanto, longe de serem novos, caracterizam a vida social da humanidade em muitas épocas e lugares.

Ao mesmo tempo, os movimentos sociais geram e exercem o poder social por meio de suas mobilizações sociais e de seus participantes. Este poder social é gerado pelo movimento social como tal e, ao mesmo tempo, derivado deste, e não por alguma instituição, seja esta política ou não. Além disso, a institucionalização debilita os movimentos sociais e o poder político do Estado os nega. Os movimentos sociais requerem uma organização flexível, adaptativa e não-autoritária que dirija o poder social na busca de metas sociais, as quais não podem ser alcançadas só por meio da espontaneidade fortuita. Mas esta organização flexível não tem de necessariamente implicar a institucionalização, que limita e restringe o poder social destes movimentos. É assim que estes movimentos sociais auto-organizados enfrentam o poder (estatal) existente, com um novo poder social, o qual altera o poder político. O lema do movimento de mulheres, de que o pessoal é político, também se aplica, a fortiori, aos movimentos sociais, que também redefinem o poder político. Tal como o observou Luciana Castelina, uma militante em muitos movimentos sociais (e alguns partidos políticos): "Somos um movimento porque nos movemos" — e até movem o poder político.

3. OS MOVIMENTOS SOCIAIS SÃO CÍCLICOS

Os movimentos sociais são cíclicos em dois sentidos. Em primeiro lugar, respondem às circunstâncias, que variam segundo as flutuações e os ciclos políticos, econômicos e, talvez, ideológicos. Em segundo lugar, os movimentos sociais tendem a ter ciclos de vida próprios. Os movimentos como tais, assim como seus membros, sua mobilização e sua força tendem a ser cíclicos, já que mobilizam as pessoas em resposta a (principalmente contra, e em menor grau a favor de) circunstâncias que, em si mesmas, são de caráter cíclico.

Parecem existir ciclos culturais/ideológicos, políticos/militares e econômicos/tecnológicos que incidem nos movimentos sociais. Também existem participantes/observadores destes movimentos que lhes dão mais peso, ou até peso exclusivo, a um ou outro destes ciclos sociais. O nome de Sorokin está associado ao dos amplos ciclos ideológicos, o de Modelski aos ciclos políticos/de guerra, e Kondratieff e Schumpeter aos econômicos e tecnológicos. Recentemente, Arthur J. Schlesinger Jr., 'baseando-se em parte no trabalho de seu pai, descreveu um ciclo político-ideológico de trinta anos nos Estados Unidos, de fases que se alternam: as de responsabilidade social progressista (dos Progressistas dos anos 1910, o New Deal nos 30, e a Nova Fronteira/Grande Sociedade — direitos civis e movimentos contra a Guerra do Vietnam, dos anos 60) e as fases individualistas (de Coolidge nos 20, a macarthista dos 50, e a reagonômica dos 80), e esta última vai gerar outra fase de movimento social progressista nos 90. A renovada crise econômica mundial e as invenções tecnológicas das últimas duas décadas conduziram a um interesse científico renovado e popular nos amplos ciclos econômicos/tecnológicos, a nível mundial e em suas possíveis relações com os ciclos políticos/ideológicos, ou inclusive sua influência determinante sobre estes. Uma análise detalhada destes ciclos (e dos debates acerca de se os ciclos ideológicos, os políticos ou os econômicos são dominantes) está fora do alcance deste trabalho. No entanto, para compreender os movimentos sociais contemporâneos é essencial contextualizá-los dentro destes movimentos cíclicos, já que estes os moldam e até podem dar origem a eles. Além do mais, não seria inteiramente errado considerar a possibilidade (nós argumentaríamos, a alta probabilidade) de que existam ciclos econômicos-políticos com componentes ideológicos e que nos encontremos na atualidade numa fase B de descenso de um ciclo ou onda longa de "Kondratieff", que exerce uma influência importante ou até geradora dos movimentos sociais contemporâneos (incluídos aqueles que Schlesinger analisou e predisse).

O ciclo longo de Kondratieff estava numa fase ascendente no início deste século, numa longa fase descendente de "crise" no entreguerra (em que parte do ciclo se encaixam as duas guerras mundiais também está em discussão), uma de recuperação durante o pós-guerra, e outra vez uma fase de "crise" descendente começando em meados dos anos 60 ou, de forma mais explícita, desde 1973. Aparentemente, os movimentos sociais do último século se fizeram mais numerosos e adquiriram uma maior força na última fase descendente de 1873 a 1896, durante o período de crise do entreguerra neste século, e uma vez mais na época atual de crise econômica, política, social, cultural, ideológica e assim por diante. Uma leitura desta evidência histórica nos pode sugerir que os movimentos sociais se debilitam em número e poder durante os períodos de auge econômico (embora nos anos 60 se tenham visto muitos movimentos na América do Norte e do Sul, Europa, África e Ásia) e revivem durante períodos de recessão econômica. No entanto, no início são principalmente defensivos e muitas vezes regressivos e individualistas (como na última década). Depois, quando a recessão econômica afeta negativamente a subsistência e a identidade dos povos, os movimentos sociais se tornam mais ofensivos, progressistas e socialmente responsáveis. É isto que prognostica Schlesinger para a década dos 90 nos Estados Unidos, e é algo que talvez já se possa observar com caráter incipiente na popularidade da nova música de rock de protesto e no êxito da obra teatral Os Miseráveis em 1987 etc. É claro que este deslocamento para os movimentos sociais e comunitários já ocorreu em grande parte do Terceiro Mundo, como resposta à propagação da crise econômica mundial que, na América Latina e na África, é de maior gravidade que a dos anos 30.

Portanto, muitas das razões e dos determinantes para o atual auge e força dos movimentos sociais devem ser buscados em seu contexto histórico cíclico, de modo que muitos de seus membros considerem que estão se mobilizando de forma autônoma na busca de ideais que parecem ser atemporais e universais, tais como a verdadeira religião, a nação essencial, ou a comunidade real. O desenvolvimento da atual crise político-econômica a nível mundial e suas múltiplas ramificações nas diferentes partes do mundo está gerando e agravando (sentimentos de) privação econômica, política, cultural e de identidade, assim como de agravo moral ao sentimento de justiça de milhões de pessoas em todo o mundo.

A crise econômica mundial, especificamente, reduziu a confiança popular no Estado nacional e em suas instituições políticas tradicionais como defensoras e promotoras dos interesses do povo. No Ocidente, o Estado do Bem-estar social-democrata se vê ameaçado pela bancarrota econômica e pela paralisia política, especialmente frente a forças econômicas mundiais além de seu controle. No Sul, o Estado está sujeito à militarização e ao autoritarismo nacionais e à dependência econômica e à debilidade no contexto internacional. No Leste, o Estado é visto como opressor no político (como no Sul), mas economicamente impotente (como no Ocidente), assim como socialmente corrupto e, portanto, como um modelo pouco atraente para ser imitado por outros países. Portanto, durante esta crise, em quase nenhuma parte é o "poder do Estado" um desiderato ou instrumento adequado para satisfazer as necessidades populares. Por isso, as pessoas, em todos os lugares — embora de formas distintas — buscam avançar, ou pelo menos proteção ou afirmação ou liberdade, por meio de múltiplos movimentos sociais não-estatais que, desta forma, buscam reorganizar a vida social e redefinir a vida política.

Em muitos casos, particularmente entre as camadas médias, as circunstâncias novas que deterioram suas vidas contradizem o auge anterior de suas expectativas e aspirações. Cada vez mais as populações se sentem mais impotentes e/ou se dão conta de que suas sagradas instituições políticas, sociais e culturais são cada vez menos capazes de protegê-las e apoiá-las. Buscam, portanto, e talvez paradoxalmente, uma renovação ou potencialização por meio dos movimentos sociais, que são primordialmente defensores da subsistência e/ou da identidade, como os movimentos de comunidades locais urbanas e rurais, os movimentos étnicos/nacionalistas e alguns movimentos religiosos, ou com freqüência movimentos escapistas, como os cultos religiosos e espiritistas que vêm se multiplicando, ou alguns movimentos fundamentalistas. Os movimentos ecológicos, pela paz e de mulheres — separados ou em combinação com outros movimentos sociais — parecem responder também à mesma privação e impotência geradas pela crise e buscam limitá-la ou se sobrepor a ela, de forma defensiva. Estes movimentos lutam por uma melhoria das condições só de uma maneira marginal e defensiva, como é o caso do movimento de mulheres, que busca melhorar a posição social da mulher, assim como a própria sociedade, embora isto se dê em um período em que a crise econômica aja em detrimento das oportunidades econômicas da mulher.

Assim como os movimentos sociais chegam e crescem ciclicamente em resposta às circunstâncias que mudam, assim também desaparecem outra vez. É claro que se as reivindicações de um movimento social particular são resolvidas, este tende a perder força à medida que sua razão de ser começa a desaparecer (ou se institucionaliza, perdendo seu caráter de movimento social). Não obstante, é mais comum que sejam as circunstâncias que mudem (e isto independentemente do movimento social ou só de forma parcial devido a este), e o movimento perde sua atração e sua força ao deixar de ter pertinência, ou se transforma (ou seus membros se passam a) em outro movimento com novas reivindicações. No entanto, tratando-se de movimentos que, em vez de institucionalizar a ação, mobilizam as pessoas, tendem a perder sua força à medida que diminui sua capacidade de mobilização, mesmo que estes todavia sejam exitosos ou pertinentes às circunstâncias existentes.

Esta tendência para o envelhecimento e a morte é especialmente marcada nos movimentos sociais dependentes de um líder carismático para a mobilização de seus membros. Os diversos movimentos de 1968 e a maioria dos movimentos camponeses e revolucionários constituem exemplos dramáticos deste ciclo de vida dos movimentos sociais.

É claro que a história também tem tendências acumulativas a longo prazo, além de ciclos. Mas estas tendências acumulativas históricas parecem não terem sido geradas primordialmente pelos movimentos sociais, embora alguns grandes movimentos sociais tenham podido contribuir para elas. Exemplos disso podem ser os grandes movimentos religiosos do passado, como o cristianismo, o Islã ou a Reforma. É amplamente aceito também o fato de que movimentos políticos como a Revolução Francesa, a Russa e a Chinesa transformaram o mundo para sempre. Mas pode-se colocar igualmente que não tiveram um efeito acumulativo sobre o mundo inteiro e que foram submetidas a reveses consideráveis em suas próprias nações. Tal como o colocaremos adiante, o socialismo real e existente não parece ser hoje em dia uma tendência acumulativa a longo prazo, o que contradiz o que sustentavam seus proponentes e o que alguns ainda defendem. A grande maioria dos movimentos sociais deixa poucas marcas acumulativas na história. Além disso, é provável que nenhum movimento social tenha conseguido tudo o que se propôs, ou exatamente tudo o que seus participantes (que com freqüência tinham pontos de vista diferentes) propunham. Com efeito, muitos, se não todos os movimentos sociais do passado, produziram conseqüências diferentes daquelas a que se propunham.

4. A COMPOSIÇÃO DE CLASSE DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

Os novos movimentos sociais do Ocidente estão baseados principalmente na classe média. Esta composição de classe reflete, obviamente, a mutável estratificação da sociedade ocidental para formas cada vez mais polares. A reserva relativa e absoluta da população de classe média se viu aumentada pela redução relativa e hoje em dia quase absoluta da força trabalhadora industrial, como a força trabalhadora agrícola que a antecedeu, e pelo crescimento do emprego no setor de serviços terciarios (mesmo que grande parte deste ganhe baixos salários) e do auto-emprego. A redução no emprego da classe trabalhadora industrial não só reduziu o tamanho deste setor social como também sua força organizativa, sua militância e a consciência dos movimentos "clássicos" da classe trabalhadora e seu movimento sindical. As reivindicações em torno da ecologia, da paz, dos direitos da mulher, da organização comunitária e da identidade, incluindo a etnicidade e o nacionalismo das minorias, parecem ser sentidas e estar relacionadas com as demandas por justiça principalmente da classe média no Ocidente. No entanto, movimentos como os étnicos, nacionais e alguns movimentos religiosos parecem abarcar outras classes e estratos sociais. Os movimentos minoritários, em particular, tais como o movimento negro pelos direitos civis e o movimento latino-chicano dos Estados Unidos, se têm uma base popular substancial, grande parte de sua liderança e de suas demandas exitosas provêm da classe média. Parece que só o chauvinismo nacionalista e talvez a religiosidade fundamentalista (mas não os cultos religiosos e espiritualistas) mobilizam de forma mais massiva a classe trabalhadora e algumas pessoas dos grupos minoritários. Embora possivelmente a maior parte das reivindicações destas pessoas esteja relacionada com uma situação de privação cada vez mais grave e com uma mobilidade social reduzida ou invertida e, portanto, tenha uma base econômica, estas reivindicações se expressam principalmente por meio de sua lealdade com relação a movimentos sociais que seguem demandas feministas, ecológicas, de pacifistas, comunitárias, étnicas/nacionalistas e ideológicas.

No Terceiro Mundo, os movimentos sociais são principalmente de classe popular, Esta classe não só tem muito mais peso no Terceiro Mundo como seus membros estão submetidos a privações e à injustiça (sentida), o que faz com que se mobilizem em e através dos movimentos sociais. Somando-se a isto, o peso internacional e nacional/doméstico da crise econômica mundial da atualidade recai de tal forma sobre estas pessoas, que de per si já têm um nível de rendas muito baixo, o que coloca seriamente em perigo sua sobrevivência física e econômica e sua identidade cultural. Portanto, têm de se mobilizar para se defender, na ausência de instituições sociais e políticas que as defendam. Estes movimentos sociais no Terceiro Mundo são ao mesmo tempo cooperativos e competitivos ou conflitivos. Há toda uma gama destes movimentos sociais que parecem ser espontâneos e locais; são movimentos/organizações tanto rurais como urbanos que buscam defender a subsistência de seus membros por meio do consumo, da distribuição e da produção cooperativa e estão entre os movimentos mais numerosos, ativos e populares. Exemplos disto são os sacolões; distribuidores e, freqüentemente, produtores de necessidades básicas, como o pão; organizadores, reivindicadores ou negociadores e, às vezes, lutadores por infra-estrutura comunitária, como a terra agrícola e urbana, a água, a eletricidade, o transporte etc. Podiam-se contar recentemente mais de 1.500 deste tipo de agrupamentos locais comunitários, só no Rio de Janeiro, e na Índia estão cada vez mais ativos/difundidos em suas 600 mil aldeias.

Em outras palavras, a "luta de classes", em grande parte do Terceiro Mundo, continua e até se intensifica, mas toma a forma ou se expressa por meio de muitos movimentos sociais, além da forma "clássica" de força de trabalho (sindical) versus capital e "seu" Estado. Estes movimentos sociais e organizações populares representam outros instrumentos e expressões da luta das populações contra a exploração e a opressão e por sua sobrevivência e identidade, dentro de uma sociedade complexa e dependente em que estes movimentos constituem esforços e instrumentos de potencialização democrática. No Terceiro Mundo, a região, a localidade, a residência, a ocupação, a estratificação, a raça, a cor, a etnicidade, a linguagem, a religião etc, de forma individual e em combinações complexas, são elementos e instrumentos de dominação e libertação. Os movimentos sociais e a "luta de classes" que, inevitavelmente, estes expressam, também devem refletir esta estrutura e este processo econômico, político, social e cultural complexo.

No entanto, estes movimentos sociais freqüentemente têm uma liderança de classe média, e nisso são bastante similares aos movimentos dos trabalhadores e camponeses anteriores; ironicamente, hoje em dia oferecem algumas oportunidades de emprego e de satisfação em seu trabalho a membros da classe média e da intelectualidade que, de outra forma, estariam sem emprego, tais como profissionais liberais, professores, sacerdotes etc, os quais oferecem a estes movimentos sociais do Terceiro Mundo seus serviços como líderes, organizadores e conselheiros.

Na maioria das vezes, estes movimentos comunitários locais se imbricam com movimentos religiosos e étnicos, que lhes dão força e promovem a defesa e afirmação da identidade popular. Não obstante, no Terceiro Mundo, os movimentos étnicos, nacionais e religiosos também atravessam mais as classes sociais. Também existe uma série de movimentos étnicos, religiosos e "comunais" que mobilizam alguns grupos contra outros, como é o caso no Sudeste Asiático (hindus, muçulmanos, sikhs, tâmules, em Assam, e muitos outros) e em outras partes do Terceiro Mundo — talvez o caso mais dramático e trágico seja o do Líbano. O crescimento destes grupos comunais, e às vezes raciais, no Terceiro Mundo está diretamente relacionado com a gravidade da crise econômica e da crise política do Estado ou do partido, assim como com o grau de descumprimento de suas aspirações e expectativas no passado.

O (denominado) Leste socialista não está em nada distante deste movimento mundial na direção dos movimentos sociais. Os 10 milhões mobilizados pelo Solidariedade na Polônia, assim como os movimentos na China, são exemplos bem conhecidos, mas eles também se apresentam cada vez com mais freqüência em outras regiões na Europa Oriental e na União Soviética. Os movimentos sociais do Leste socialista também parecem abarcar ou combinar mais membros de distintas classes/estratos que no caso do Ocidente ou do Sul, em correspondência à posição intermediária que o Leste socialista ocupa entre o Ocidente capitalista industrializado e o Sul do Terceiro Mundo (isso se estas categorias ainda têm alguma utilidade ou significado, o que é algo cada vez mais questionável). Como no resto do mundo, e obedecendo a razões similares, assim como também a circunstâncias mutáveis, por todos os países socialistas estão crescendo movimentos étnicos, nacionalistas, religiosos, ecológicos, pacifistas, de mulheres, regionais/comunitários e outros movimentos de protesto, com participantes provenientes de diferentes setores sociais.

5. OS MOVIMENTOS SOCIAIS E O PODER ESTATAL

A maioria dos movimentos sociais não busca o poder estatal mas a autonomia, inclusive frente ao próprio Estado. Para muitos observadores e. participantes, esta afirmação é uma obviedade, já que não buscar o poder — e muito menos exercê-lo — é o sine qua non de um movimento social, pois o poder estatal negaria a própria essência e os propósitos da maioria dos movimentos sociais. Esta incompatibilidade entre movimento social e poder estatal talvez se apresente de maneira mais intuitivamente óbvia no movimento de mulheres. Por outro lado, para participantes e observadores dos movimentos sociais, não é nada satisfatório defini-los ou descrevê-los em termos do que não são. Os mais numerosos entre os movimentos sociais, aqueles baseados na comunidade, que individualmente são de pequena escala, obviamente não podem buscar o poder estatal. Além disso, assim como os movimentos de mulheres, só a noção do poder estatal, ou mesmo do poder político de partido, negaria em grande medida sua essência e objetivos de base. Estes movimentos comunitários mobilizam e organizam seus membros na busca de fins materiais e não-materiais que consideram que lhes foram negados injustamente pelo Estado e suas instituições, incluindo os partidos políticos. Entre os fins e métodos não-materiais de muitos movimentos comunitários locais está o desenvolvimento de uma democracia mais participativa e de base e de uma autodeterminação de baixo para cima. Estes percebem que eles lhes são negados pelo Estado e seu sistema político. Estes movimentos comunitários buscam, portanto, conseguir uma maior autodeterminação para si mesmos dentro do Estado, ou evitar totalmente o Estado. Estes tipos de movimentos comunitários se multiplicaram recentemente por todo o Sul e pelo Ocidente, e talvez menos no Leste. No Sul, por necessidade, os movimentos comunitários ocupam-se mais das necessidades materiais e, freqüentemente, da própria sobrevivência, enquanto no Ocidente muitos destes movimentos podem se dedicar mais à democracia participativa local e de base. É claro que as forças — para eles incontroláveis — da economia nacional e mundial limitam severamente seu espaço de atuação. Os próprios Estados nacionais não têm poder suficiente — e não protegem as comunidades — frente às forças econômicas mundiais que estão além de seu controle. É por isto que, ironicamente, já que têm ainda menos poder, as comunidades locais tratam de se proteger por meio de sua potencialização e de estratégias próprias. A ação e a direção coletiva são promovidas e protegidas conscientemente e a concentração do poder é rechaçada como corruptora (é como se falassem com uma prosa actoniana).

O outro lado da mesma moeda é a desilusão e a frustração progressivas de muitas populações com a própria economia, especialmente em períodos de crise econômica. "Crescimento econômico", "desenvolvimento econômico", "as metas econômicas", "os meios econômicos", "as necessidades econômicas", "a austeridade econômica", há muitos slogans e "soluções" econômicas que não satisfazem as necessidades de comunidade, identidade e espiritualidade das populações e, em muitos casos, tampouco seu bem-estar material. Além disso, percebe-se as instituições políticas (estatais) como a serviço destes supostos imperativos econômicos e não como alternativas ou diretoras destes processos. Não é de surpreender, portanto, que as mulheres, especialmente, que é o setor que mais padece os rigores da economia, estejam à frente dos movimentos sociais extra-institucionais, tanto não-econômicos como antieconômicos, que oferecem ou buscam outras soluções e recompensas.

Muitos movimentos sociais também respondem ao sentimento de frustração e de injustiça das pessoas frente às forças político-econômicas fora de seu controle. Muitas destas forças econômicas — às vezes percebidas, às vezes não — surgem da economia mundial em crise. É significativo que, cada vez mais, as pessoas considerem que o Estado e suas instituições, particularmente os partidos políticos, são ineficazes frente a estas forças poderosas. O Estado e o processo político ou não querem ou não podem afrontar, muito menos controlar, estas forças econômicas. Em ambos os casos, tanto o Estado e suas instituições como o processo político e os partidos políticos — naqueles lugares onde estes existem — deixam as populações à mercê de forças às quais estas têm de responder mediante outros meios — seus próprios movimentos sociais. É por isso que as pessoas formam ou passam a participar de movimentos sociais primordialmente de proteção e defesa, com base em assuntos religiosos, étnicos, nacionais, raciais, genéricos, ecológicos e pacifistas, como também comunitários e vários outros temas "únicos". A maioria destes movimentos se mobiliza e se organiza independentemente do Estado, de suas instituições e dos partidos políticos. Não consideram que o Estado ou suas instituições, e particularmente se integrar ou militar nos partidos políticos, sejam as formas adequadas para alcançar suas metas. Além disso, em grande medida a acolhida e a força dos movimentos sociais contemporâneos do Ocidente do Leste e do Sul, assim como sua busca de outras alternativas, são reflexo da desilusão e da frustração das pessoas com o processo político e com os partidos políticos, o Estado e a posse do poder estatal. O que se percebe como o fracasso — em todo o mundo — de partidos e regimes de esquerda, tanto reformistas como revolucionários, para expressar adequadamente o protesto das pessoas e para apresentar alternativas viáveis foi responsável pelo deslocamento popular na direção dos movimentos sociais. Mas, em muitos casos, as reivindicações das populações são contra o Estado e suas instituições. Em alguns casos, os movimentos sociais buscam incidir na ação estatal por meio da pressão externa e, com muito menor freqüência, a interna. Só alguns movimentos nacionalistas ou étnicos, e no mundo islâmico alguns movimentos religiosos, buscam um Estado próprio.

No entanto, um dos principais problemas de e com os movimentos sociais é sua coexistência com Estados nacionais, suas instituições, processos e partidos políticos. Algo que ilumina este problema é o Movimento/Partido Verde na Alemanha. O que foi um movimento ecológico de base se converteu num partido político no Parlamento. A ala realo (realista, realpolitik) coloca que o Estado, o Parlamento, os partidos políticos etc. são um fato da vida que o movimento deve ter em conta e utilizar em benefício próprio e que essa influência pode ser exercida melhor ao entrar nestas instituições e cooperar com outras a partir de dentro. A ala fundi (fundamentalista) coloca que a participação nas instituições do Estado e nas coalizões com outros partidos políticos, como os social-democratas, compromete os fins dos verdes e prostitui seus fundamentos, incluindo o de ser um movimento. Alguns movimentos comunitários e pacifistas, assim como os movimentos étnicos, nacionais e religiosos, enfrentam problemas similares. Além do que possam conseguir à margem do Estado às vezes existe uma pressão poderosa para que os movimentos sociais tratem de atuar no interior do Estado, como parte de um partido político ou como partidos políticos em si mesmos, ou por meio de outra instituição estatal. Mas então estes movimentos correm o perigo de comprometer sua missão, desmobilizar ou repelir seus membros e negar-se como movimentos. A pergunta que se coloca, então, é a de se os meios justificam os fins e se estes fins são mais alcançáveis por meios institucionais distintos do movimento. Além disso, surge a pergunta de se os antigos movimentos sociais, que freqüentemente se formaram como organizações de frentes de massas e partidos políticos, estão sendo substituídos pelos movimentos sociais, os quais, por sua vez, formam ou ingressam em partidos políticos. Se o caso é este, então que diferença restaria entre os antigos e os novos movimentos sociais e o que acontece com os sentimentos e a mobilização extra ou anti-Estado ou partido de muitos membros destes movimentos? Talvez a resposta deva ser buscada recolocando a pergunta na direção do exame do ciclo de vida dos movimentos sociais e a substituição de movimentos novos antigos por movimentos novos.

6. OS MOVIMENTOS SOCIAIS E A TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

Apesar de sua natureza defensiva, de suas limitações e de suas relações com o Estado, que analisamos acima, os movimentos sociais são agentes importantes de transformação social e portadores de uma nova visão. Uma razão da importância dos movimentos sociais, evidentemente, é o vazio que eles preenchem em espaços nos quais o Estado e outras instituições sociais e culturais são incapazes de atuar pelos interesses de seus membros, ou não querem fazê-lo. Além disso, como observamos acima, os movimentos sociais entram em espaços onde não existem instituições, ou quando estas não promovem ou vão contra os interesses da população. Muitas vezes os movimentos se aventuram a ir em lugares onde nem os anjos se atrevem a ir. Embora muitos movimentos sociais, em especial os religiosos, invoquem a santidade dos valores e das práticas tradicionais, outros movimentos sociais são inovadores no social, no cultural e em outros aspectos. No entanto, se desaparecem as circunstâncias que deram à luz e fizeram crescer os movimentos sociais, também desaparece o movimento. Se o movimento consegue os fins a que se propôs ou estes perdem sua relevância, ele perde seu atrativo, perde impulso e se dilui ou petrifica.

Não obstante, muitas transformações sociais, mudanças culturais e desenvolvimentos econômicos ocorrem como resultado de instituições, forças, relações etc. que não se circunscrevem nem aos movimentos sociais nem ao processo político dos Estados nacionais. O desenvolvimento econômico mundial, a industrialização, a mudança tecnológica, a "modernização" social e cultural etc. foram e continuam sendo processos que não são impulsionados nem dirigidos pelos movimentos sociais ou pelas instituições políticas (estatais). A intervenção destes tem sido mais de reação que de promoção. Embora não se deva menosprezar a intervenção estatal (como o fazem os proponentes do mercado livre), suas limitações são ainda maiores dentro de uma economia mundial com alguns ciclos e tendências que em grande medida estão além de seu controle. Hoje em dia, até a propriedade e o planejamento "socialista" estatal são incapazes de dirigir e mesmo de manejar as forças da economia mundial.

Esta circunstância nos deve conduzir a ser mais realistas e modestos sobre as perspectivas dos movimentos sociais (ou, para isso, sobre as das instituições políticas) e sobre suas políticas para contrapor e até para modificar estas forças econômicas mundiais e, mais ainda, sobre sua capacidade para escapar aos efeitos destas forças. Mas isto não foi assim. Pelo contrário, as mais poderosas e incontroláveis são as forças da economia mundial, especialmente durante o atual período de crise econômica mundial, mas geram movimentos sociais (e algumas estratégias políticas e ideológicas) que pretendem ao mesmo tempo a autonomia e a imunidade frente a estas forças econômicas mundiais e que prometem se sobrepor ou isolar seus membros em relação a elas. Grande parte da atração dos movimentos sociais provém claramente da força moral de sua promessa de libertar seus participantes das privações profundamente sentidas nas suas necessidades materiais, status social e identidade cultural. Portanto, esperanças objetivamente irracionais de salvação aparecem como chamados subjetivamente racionais para que se enfrente a realidade — e para salvar-se e salvar a alma por meio da participação ativa nos movimentos sociais. A mensagem se converte no meio, para inverter Marshal McLuhan.

As referências neste contexto acerca de movimentos (sociais) "anti-sistêmicos" (por exemplo, por parte de Amin e Wallerstein) têm de ser clarificadas. Muitos movimentos sociais são, com efeito, movimentos anti-sistêmicos no sentido de que os movimentos e seus participantes combatem ou desafiam o sistema ou algum de seus aspectos. Não obstante, muito poucos destes movimentos sociais são anti-sistêmicos em seus esforços, e menos ainda em suas conquistas, para destruir o sistema e substituí-lo por outro ou por nenhum. Há evidência histórica contundente de que os movimentos sociais não são anti-sistêmicos neste sentido. Como observamos acima, as conseqüências sociais dos próprios movimentos sociais não são nada acumulativas. Mais ainda, seus efeitos freqüentemente não são intencionais, de tal forma que estes efeitos são incorporados, se não cooptados pelo sistema, que termina sendo fortalecido e reforçado pelos movimentos sociais que originalmente eram anti-sistêmicos, mas seus resultados não o foram. Há pouca evidência contemporânea que nos leva a pensar que no futuro as perspectivas dos movimentos sociais, assim como suas conseqüências, serão muito diferentes das do passado. De fato, os meios, fins e conseqüências anti-sistêmicas dos movimentos sociais — mesmo que alguns destes sejam cooptados no final — modificam o sistema "só" ao mudar os nexos com este.

7. DESLIGAMENTO E TRANSIÇÃO PARA O SOCIALISMO NOS MOVIMENTOS SOCIAIS

É possível que hoje em dia e no futuro se considere que os movimentos sociais oferecem novas interpretações e novas soluções quanto à problemática do "desligamento" do capitalismo e da "transição para o socialismo". Durante o período de expansão do pós-guerra viu-se que era impossível o desligamento por parte das nações-Estados dependentes do Sul da economia mundial capitalista e de seus ciclos. Durante a crise econômica mundial atual, os Estados socialistas do Leste, com suas economias planificadas, voltaram a ser articulados à economia mundial, assim como a seus ciclos e a seu desenvolvimento tecnológico. Hoje em dia, em todo o mundo, nenhuma economia nacional ou seu Estado, e quase nenhum partido político, consideram seriamente a possibilidade de desligar uma economia nacional da mundial. Portanto, as propostas de desligamento — de que "parem o mundo que eu quero descer" — estão pedindo aos gritos uma reavaliação sobre este tema, por parte daqueles (como um daqueles que escreve este artigo) que mantiveram que esta é uma opção e uma necessidade. Não obstante, se hoje em dia e no futuro predizível não é possível que a nação-Estado e sua economia sejam independentes, talvez não se deva abandonar de todo a idéia do "desligamento", mas sim reinterpretá-la.

A problemática do "desligamento" pode ser reinterpretada por meio dos novos ou diferentes nexos que muitos movimentos sociais estão tratando de estabelecer, tanto entre seus membros e a sociedade, como no interior da própria sociedade. Exemplos disso são os movimentos de mulheres e alguns dos movimentos verdes. Muitos movimentos sociais buscam proteger seus membros física e espiritualmente dos caprichos dos ciclos da economia mundial e propõem diferentes tipos de nexos de seus membros com a economia e a sociedade, assim como a transformação destas. Talvez o "desligamento" deva ser reconceitualizado como mais uma nova forma ou uma forma mudada de articular-se. Neste caso, são os movimentos sociais que hoje em dia estão transformando estas articulações para seus membros. Isto incluiria os movimentos religiosos e espiritualistas que pretendem oferecer isolamento e proteção a seus fiéis crentes dos traumas do mundo secular e, especialmente, alguns movimentos étnicos de minorias, que buscam reafirmar a identidade de seus membros e uma nova articulação com a sociedade que os rodeia.

De maneira semelhante, a problemática e as perspectivas da transição para o socialismo podem ser reinterpretadas à luz da experiência com o socialismo real existente e os movimentos sociais contemporâneos. Comprovou-se que o socialismo real existente foi incapaz de se desligar da economia capitalista mundial. Além disso, apesar de suas conquistas na promoção de um crescimento extensivo (ao mobilizar os recursos humanos e físicos), fracassou no desenvolvimento do crescimento intensivo por meio do desenvolvimento tecnológico. De fato, a própria planificação, que contribuiu para um crescimento nacional, industrial e autárquico, provou ser um obstáculo para um desenvolvimento tecnológico competitivo, dentro de uma economia mundial de mudanças aceleradas. A organização política do socialismo real existente perdeu sua eficácia no nacional e sua atração na esfera internacional. Talvez mais importante que isto seja que cada vez mais está claro que o caminho para um melhor futuro "socialista", que substitua a atual economia mundial capitalista, não passa pelo socialismo real existente. Como observava o planificador polaco Josef Pajetska numa reunião recente na Escola Central de Planificação e Estatística, em Varsóvia, o socialismo real existente está estancado numa via lateral. O mundo avança velozmente no trem expresso, pela via principal, tal como o observou um dos autores do presente artigo, embora pudesse ser para um abismo, como respondeu Pajetska.

Além disso, é possível que os socialistas utópicos — que Marx condenou como utópicos, em vez de científicos — terminem sendo muito menos utópicos que os supostos socialistas científicos, pois a visão destes últimos terminou sendo muito mais utópica que científica. Talvez os socialistas utópicos tenham sido mais realistas que os científicos e tenham mais em comum com os movimentos sociais de nossos tempos, ao se esforçarem e se organizarem para mudar a sociedade por meio de passos imediatos e pequenos, mas possíveis, que não requeriam a tomada do poder estatal. Além disso, os socialistas utópicos propunham e perseguiam uma série de mudanças sociais e, em particular, uma mudança nas relações entre os sexos que, com o tempo, foram abandonadas e esquecidas pelos socialistas científicos. Em seu livro Eva e o Novo Jerusalém, Barbara Taylor documenta a luta e, até onde pôde, a implementação dos direitos da mulher e da democracia participativa por parte dos socialistas utópicos seguidores de Robert Owen e a importância destas duas lutas entre os que se associaram a Fourier e. Saint-Simon. No jovem Marx, a participação também estava presente como um antídoto contra a alienação. Era um tema que o preocupava, como também preocupa muitos dos movimentos sociais contemporâneos. De modo que muitos movimentos sociais contemporâneos poderiam se beneficiar de uma maior familiarização com as metas, a organização e a experiência dos socialistas utópicos antigos e das de alguns anarquistas também.

Portanto, é possível que a verdadeira transição para uma alternativa "socialista" para a atual economia, sociedade e política mundiais esteja principalmente nas mãos dos movimentos sociais. Estes não só devem intervir quanto à sobrevivência, à salvação da maior quantidade de pessoas possível do abismo ameaçador. Também devemos ver os movimentos sociais como os agentes mais ativos no estabelecimento de novas articulações que possam transformar o mundo em novas direções. No entanto, embora alguns movimentos sociais sejam subnacionais, poucos são nacionais ou internacionais (no sentido de serem entre Estados nacionais), e muitos, como os de mulheres, pacifistas e ecológicos podem ser transnacionais (isto é, não-nacionais) ou de povo a povo no sistema mundial. Portanto, talvez não seja surpreendente que exista mais transnacionalidade entre os movimentos sociais baseados na metrópole que entre os movimentos mais fragmentados do Terceiro Mundo dependente, que também está mais fragmentado. Esta transformação socialista real — se é que ocorre — impulsionada pelos movimentos sociais será, de qualquer modo, mais flexível e variada que qualquer transformação ilusória de "socialismo num país", repetida vez ou outra.

8. COALIZÕES E CONFLITO ENTRE OS MOVIMENTOS SOCIAIS

Sem procurar dar nenhum conselho, pode ser de utilidade indagar sobre as possibilidades de conflito e de coalizões entre distintos tipos de movimentos sociais. Aristófanes já havia assinalado a relação existente entre as mulheres e a paz em sua obra Lisístrata. Riane Eisler encontrou esta relação em épocas muito mais antigas, em sua obra O Cálice e a Espada. Hoje em dia os movimentos pacifistas e de mulheres partilham membros e líderes e definitivamente oferecem possibilidades para a formação de uma coalizão. Esta coincidência em militantes e líderes também é observada entre os movimentos de mulheres e os movimentos comunitários locais. Ou, pelo menos, algumas mulheres, em especial na América Latina, estão ativas nos movimentos comunitários, onde adquirem algumas perspectivas feministas e colocam suas próprias demandas, modificando estes movimentos e suas comunidades, e oxalá também suas sociedades. No Ocidente existem coincidências semelhantes, embora não tão marcadas, entre movimentos comunitários e pacifistas, que também têm uma significativa liderança feminina que se expressa, por exemplo, nas comunidades "nuclearmente livres". Por sua vez, os movimentos ambientais/ecológicos/verdes do Ocidente compartilham metas que são compatíveis com os fins e os membros dos movimentos comunitários, pacifistas e de mulheres. Portanto, todos estes movimentos de mulheres, pacifistas, ambientais e comunitários oferecem múltiplas possibilidades para a formação de coalizões, já que todos eles evitam a busca do poder estatal e quase todas as relações com os partidos políticos. Além disso, graças à preponderância da mulher, estes movimentos têm uma natureza mais comunitária, participativa, democrática, de ajuda mútua e de criação de redes, em vez de relações hierárquicas entre seus membros, e oferecem mais possibilidades de uma maior difusão na sociedade.

Outras áreas de coincidências quanto a membros, de compatibilidade ou de coalizão podem ser observadas entre alguns movimentos religiosos, étnicos, nacionais e, às vezes, raciais. O movimento liderado pelo aiatolá Khomeiny no Irã e alguns de seus seguidores no mundo islâmico é o exemplo mais espetacular disso e têm a seu crédito a. mais exitosa e massiva mobilização dos tempos recentes. Outros exemplos são os sikhs do Punjab, os tâmules do Sri Lanka e talvez o movimento do Solidariedade, na Polônia, dos albaneses no Kosovo iugoslavo, os católicos na Irlanda do Norte e outros exemplos recentes. Mas é necessário destacar que estes movimentos religiosos-étnicos-nacionalistas também buscam o poder estatal ou a autonomia institucional e, às vezes, sua incorporação a um Estado nacional-étnico vizinho. Se as comunidades são homogêneas no religioso e no étnico, podem haver coincidências e coalizões com estes movimentos maiores.

As oportunidades para que se dêem coincidências ou coalizões entre distintos movimentos sociais são ampliadas quando eles têm membros/participantes em comum e/ou inimigos comuns. A participação das mulheres em geral em vários movimentos sociais distintos já foi destacada. No entanto, esta participação em comum também se estende a indivíduos e, particularmente, às mulheres, individualmente, que participam de maneira ativa em vários movimentos sociais simultaneamente e/ou sucessivamente. Estas pessoas estão em posições chaves para criar pontos de contato ou coalizões entre movimentos sociais distintos. Estes pontos de contato também podem surgir da identificação de um ou mais inimigos em comum, tais como um Estado, um governo ou um tirano específico; ou uma instituição social, ou grupo racial ou étnico dominante; ou inimigos menos identificáveis no concreto, como "o Ocidente", "o imperialismo", "o capital", "o Estado", "os estrangeiros", "os homens", "a autoridade" ou "a hierarquia". Não obstante, talvez tanto as oportunidades para formar coalizões como.o caráter de massas e a força da mobilização social se incrementem quando a população percebe que deve se defender contra estes inimigos.

Também existem áreas de conflito e de competição entre os movimentos sociais. Obviamente, os movimentos de distintos grupos religiosos, étnicos e raciais entram em conflito e competem entre si. Além disso, todos estes parecem também entrar em conflito e competir com o movimento de mulheres e, freqüentemente, com o movimento pacifista. Em particular, quase todos os movimentos religiosos, nacionais (nacionalistas) e étnicos — como o movimento dos trabalhadores, e tanto os movimentos como os partidos de inspiração marxista negam e sacrificam os interesses e os movimentos de mulheres. O Irã xiita deliberadamente aumenta a opressão da mulher. No Vietnam e na Nicarágua, como em outros lugares, as mulheres inicialmente participaram de forma ativa e se beneficiaram da luta nacionalista, mas logo viram como se sacrificava um maior avanço de seus interesses frente à prioridade que se deu ao "interesse nacional" e, na Nicarágua, também à importância que se deu ao apoio católico. De maneira semelhante, os movimentos nacionalistas e de libertação nacional em muitas partes da Ásia e da África tendem a ignorar e esquecer, ou até suprimir e combater, os movimentos das minorias étnicas e de seus interesses.

Também são freqüentes os graves conflitos internos nos movimentos sociais quanto aos fins e/ou os meios. É claro que quando os movimentos sociais estão formados em coalizões, especialmente para propósitos táticos temporários, seus participantes podem ter fins e/ou preferências distintas ou conflitivas quanto aos meios. Isto foi comum entre os movimentos antiimperialistas de libertação nacional e os movimentos socialistas do Terceiro Mundo. A combinação de movimentos religiosos com outros movimentos sociais como, por exemplo, os que têm doses significativas de teologia da libertação, também possuem um potencial de conflito interno. De fato, a maioria dos movimentos religiosos ou com uma forte orientação religiosa parecem ter germes importantes de conflito interno entre fins progressistas, de regressão, e até escapistas. O chamado à religião, e muito mais à Igreja, pode ser o principal ou até o único recurso para que a população se mobilize contra um regime repressivo, ou para se sobrepor a circunstâncias opressivas e/ou alienantes. Neste sentido, a religião oferece uma opção libertadora e progressista, como, por exemplo, a teologia da libertação e outros movimentos comunitários relacionados com a Igreja, a Igreja católica polonesa, o movimento contra o xá no Irã, e alguns movimentos étnicos, religiosos/comunais (de defesa) na Ásia. No entanto, a mesma religião e igreja contêm importantes elementos regressivos ou reacionários. Os elementos escapistas ou regressivos são os que oferecem devolver a época de ouro do Islã do século VII, ou até eliminar qualquer indício de ocidentalização. Reacionários num sentido literal são os esforços do. Islã e do catolicismo para devolver ou evitar um maior desenvolvimento progressista nas relações entre os sexos, incluindo o divórcio, o controle da natalidade e as oportunidades sócio-econômicas para a mulher, assim como outros direitos e liberdades cívicas. De fato, a religião, no Ocidente, no Leste e no Sul é, com maior freqüência, mais um instrumento de forças reacionárias que de forças progressistas.

9. A IMPROPRIEDADE DO "BOM" CONSELHO EXTERNO AOS MOVIMENTOS SOCIAIS

À medida que os movimentos sociais continuarem tendo de escrever seus próprios roteiros enquanto avançam não poderão utilizar, e só poderão rechaçar como contraproducentes, qualquer receita de cima ou de fora quanto a para onde devem se dirigir, ou como devem chegar lá. Os movimentos sociais, particularmente, não podem utilizar o tipo de planos detalhados imaginários que foram evitados por Smith e por Marx, mas que tiveram tanta popularidade entre muitos que dizem falar em seu nome. Por esta razão, é difícil encontrar e assimilar bons conselhos para os movimentos sociais por parte de intelectuais ou outras pessoas de boas intenções. Talvez o mais impróprio sejam os conselhos de observadores não-participantes (como nós?). De outro lado, muitos movimentos sociais podem se beneficiar, e o fazem, da visão e das capacidades organizativas de seus participantes, e menos freqüentemente de pessoas externas que passam por eles, que lhes levam algo da visão e/ou experiência de outros movimentos, partidos e instituições. Em especial, muitos movimentos comunitários se beneficiam de ou dependem do apoio de instituições externas, como a Igreja, as organizações não-governamentais e, ocasionalmente, até do Estado. Esta ajuda, e em especial esta dependência, encerram os perigos de cooptação de líderes e intermediários e, em algumas ocasiões, até do movimento social em sua totalidade, por parte destas instituições. Não obstante, o que mais caracteriza os movimentos sociais é que devem fazer as coisas à sua própria maneira. De fato, talvez o mais importante que têm a oferecer os movimentos sociais, tanto a seus participantes/membros como a outros no mundo, é seu método participativo e autotransformador de ensaio/erro, assim como sua adaptabilidade. Aqui está a esperança que oferecem ao futuro.

10. A NOVA DEMOCRACIA CIVIL

Concluindo, pode-se perguntar como é que os movimentos sociais podem ser cíclicos, transitórios, defensivos, mutuamente conflitivos e frágeis (teses 3, 6 e 8) ao mesmo tempo que formam novos laços que servem para transformar a sociedade de hoje (tese 7). A resposta pode ser buscada e talvez encontrada na participação e contribuição dos movimentos sociais na ampliação e redefinição da democracia na sociedade civil.

Na tradição e prática, tanto burguesa como socialista, a formação do Estado e do poder foram o primordial; a democracia foi definida principalmente em termos de participação política e/ou econômica nos assuntos do Estado. Atualmente, o poder e a instituição do Estado são evidentemente cada vez menos adequados para tratar muitos dos problemas, tanto sociais como individuais, em especial na sociedade civil do Ocidente, do Oriente e do Sul. Forças econômicas e políticas mundiais que estão fora de seu controle debilitam o Estado a partir do exterior e o incapacitam para servir os interesses de seus cidadãos no interior. Ao mesmo tempo, o Estado trata inadequada ou negativamente as múltiplas preocupações sociais, culturais e individuais da sociedade (civil) e dos cidadãos. Esta deficiência do poder político (e mesmo da democracia, onde ela existe) ou do Estado talvez se exacerbe durante períodos de crises econômicas ou outras e faça com que as regras estabelecidas do jogo político sejam cada vez mais inadequadas.

Portanto, muitos tipos de movimentos sociais emergem e se mobilizam para reescrever as regras institucionais (e democráticas?) do jogo e do poder políticos — redefinindo assim o próprio jogo — para que, de modo crescente, incluam e se baseiem em novas regras democráticas do poder social/civil. Ao fazerem isso, ajudam a mudar o centro de gravidade sócio-político de uma democracia política ou econômica (ou outro poder) do Estado para uma democracia e poder civis mais participativos dentro da sociedade e cultura civis. Estas se estendem muito mais adiante da família e do lar para outras preocupações onde as mulheres têm uma presença e um papel relativamente maior que na política e na economia.

Há imensas e talvez crescentes áreas onde os cidadãos já não podem — ou lhes é contraproducente — confiar no poder político institucional do Estado. Nestas áreas em que os cidadãos, e cada vez mais as mulheres, se dedicam democraticamente a suas múltiplas e amiúde opostas preocupações econômicas, sociais, de gênero, comunitárias, culturais, religiosas, ideológicas e às vezes políticas. Com este propósito, os cidadãos da sociedade civil formam e se mobilizam através de múltiplos movimentos sociais e organizações não-governamentais autônomas e autogeradoras de poder.

Ao mesmo tempo, e em parte como conseqüência disso, as exigências para a democracia e sua extensão a — ou redefinição na prática como — democracia civil se fazem cada vez mais insistentes. No Ocidente, uma democracia mais participativa se vê acompanhada, ou talvez refletida, numa. baixa na participação eleitoral. No Leste, a nova democracia se manifesta tanto em movimentos sociais civis na China como em milhares de novos clubes civis e outras organizações e demonstrações públicas massivas sob a glasnost na União Soviética e em outros países da Europa Oriental. No Sul, a participação individual e massiva em movimentos e organizações que tratam de reestruturar a sociedade e a cultura assume uma posição primordial, junto com a tomada e o exercício do poder estatal onde cada vez mais falta democracia. Portanto relativamente, à democracia política no Estado, ela também cresce neste processo da democracia civil participatória e autônoma na sociedade civil. Além disso, os movimentos sociais participatórios e autogeradores de poder (com a crescente participação de mulheres) participam de maneira importante neste processo de transformação social.

Agradecemos a Orlando Fals Borda, Karl-Werner Brand, John Friedmann, Gerrit Huizer, Hans Peter Kriesi, Marianne Marchand, Andrée Michel, Betita Martinez, Yildiz Sertel e Marshall Wolfe por seus comentários escritos e a muitos outros amigos por seus comentários orais.

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    Por outro lado, os movimentos camponeses, de comunidades locais, étnicos/nacionalistas, religiosos e até de mulheres/feministas existiram durante séculos e até milênios em muitos lugares do mundo. Mas hoje em dia, muitos destes movimentos são comumente denominados como "novos", embora a história européia conte com numerosos movimentos sociais ao longo da história. Exemplos destes movimentos são as revoltas de escravos em Roma, as Beguine e outros movimentos de mulheres no século XII, alguns dos quais desencadearam a caça às bruxas e outras formas de repressão contra as mulheres, os movimentos/guerras camponesas do século XVI na Alemanha, os conflitos históricos étnicos e nacionais em todo o continente. É claro que, ao longo da história, na Ásia, no mundo árabe e na expansão do Islã, assim como na África e na América Latina, múltiplas formas de movimentos sociais se converteram em agentes de resistência e transformação social.
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    Tradução de Suely Bastos
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 1989
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