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A Europa unida entre a associação e a barbárie

Europe between association and barbarism

Resumos

Numa intervenção feita antes da definição da União Européia o autor, militante da causa européia, adverte para a alternativa: associação ou barbárie. Neste final da década suas palavras ganham perturbadora atualidade.


Speaking before the definition of the European Union the author, deeply involved in the European cause, warns about the alternative: association or barbarism. As the decade comes to its end his words gain a perturbing actuality.


ORDEM MUNDIAL

A Europa unida entre a associação e a barbárie* * O presente texto foi originalmente apresentado em conferência no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo em novembro de 1993. Com a autorização do IEA/USP Lua Nova o publica agora, num momento em que as considerações de Morin, datadas como poderiam parecer à primeira vista, revelam todo o seu alcance e também sua atualidade. Tradução de Gabriel Cohn.

Europe between association and barbarism

Edgar Morin

RESUMO

Numa intervenção feita antes da definição da União Européia o autor, militante da causa européia, adverte para a alternativa: associação ou barbárie. Neste final da década suas palavras ganham perturbadora atualidade.

ABSTRACT

Speaking before the definition of the European Union the author, deeply involved in the European cause, warns about the alternative: association or barbarism. As the decade comes to its end his words gain a perturbing actuality.

O tema que tratarei está entre os mais graves na minha ordem de preocupações. Tentarei expor, em grandes linhas, como percebo pessoalmente a crise da Europa. Partirei do fim da Segunda Guerra Mundial para dizer que a idéia da Europa, a muito antiga idéia de federar a Europa, aparece no século XVI e depois reaparece no século XVIII e no XIX (atenuada) e, sobretudo, no século XX — eras marcadas por guerras permanentes ininterruptas, intraeuropéias. A Europa produziu-se através da guerra. E finalmente essas guerras terminaram na maneira mais atroz e, em duas ocasiões, por uma espécie de suicídio da Europa, a de 14-18 e a de 39-45. Pode-se dizer que a idéia européia, que renasce sem cessar mas sempre muito marginalizada toma corpo com esse objetivo: "tentemos viver uma Europa que não conheça mais a guerra e, principalmente, a mais fraticida de todas, a que confrontou a França e a Alemanha em 1870, em 1914 e em 1940".

A idéia européia original é talvez uma idéia política no sentido mais profundo do termo, com esta dimensão ética: "superamos a guerra, entendamos-nos sobre as bases do passado que compartilhamos". Convivemos com a idéia de comunidade européia, termo extremamente impreciso. Há muitas discussões sobre os termos federalismo e confederação, por mais que a fronteira entre eles seja imprecisa. É verdade que fazer a Europa não se resume em dizer "vamos fazer uma federação, uma confederação", ainda que isso possa dar forma à idéia de Europa. Mas, como bem disse Delors, "a Europa é um objeto não identificado". Trata-se de criar algo que ultrapassa as nações sem evidentemente deixar de reconhecer a existência das nações.

Inicialmente essa idéia era sustentada tanto pelos democratas cristãos quanto pelos socialistas. Uns pensavam na Europa ocidental, talvez numa Europa de novo fundamentalmente cristã. Os outros, os socialistas, cujo partido guardava traços do seu internacionalismo ao manter alguns vínculos com os outros partidos socialistas, pensavam numa Europa socialista. Seja como for, uns e outros estavam de acordo quanto a fazer uma Europa política. Mas esse projeto de uma Europa política e militar encontrou resistências muito grandes e fracassou. A Europa política não foi tentada e a Europa militar foi um malogro.

A idéia primeira, na origem da Europa, é a de superar as guerras, especialmente a guerra franco-alemã. Ela se consolida com a guerra fria. A cortina de ferro que se estabelece e o enorme perigo potencial representado pela União Soviética, num clima de tensão interna, reforçam o argumento europeu restrito ao Ocidente. Essas circunstâncias oferecem uma razão adicional para unir-se.

Mas esse argumento permanece secundário diante da consideração, que se fazia, de que "se for preciso defender-se, pois bem, há os Estados Unidos, a OTAN etc..." A idéia fundamental, política, permaneceu portanto a idéia principal, mas os passos em falso e os malogros logo incitaram os grandes partidários da Europa (os Monnet, os Schuman) a encará-la como um rio que se defronta com uma montanha rochosa que ele não consegue atravessar nem erodir. Fará então um grande meandro, contornará a montanha para seguir seu curso rumo a uma embocadura, o mar. Esse desvio era a economia. Ele se justificava tanto mais quanto os anos 50-55-60 testemunharam o muito grande crescimento econômico dos países da Europa ocidental. É a partir desse momento que, com base numa comunidade do carvão e do aço, concebe-se a criação de uma mercado comum. A marcha rumo ao mercado comum foi muito longa, pois somente no ano passado ele finalmente se concretizou. Muito longa, com dificuldades de adaptação que suscitaram uma intervenção reguladora, uma espécie de burocracia em Bruxelas, que ulteriormente desempenhou um papel um papel negativo, pela lembrança das prescrições um tanto estreitas e muito abstratas que ministrou. Essa Europa econômica tomou tempo, mas avançava. De todo modo o processo de unificação européia só poderia ser muito longo. Primeiro porque se tratava de nações muito fortes, que se haviam constituído e vivido sob um regime de soberania absoluta. Era portanto muito difícil levá-las a admitir a existência de um nível supranacional. Depois, porque era necessário avançar com base num consenso e não sob o império de uma nação hegemônica, que acelerasse a unificação. Quando, por exemplo, houve a unificação italiana ou a alemã, o processo foi acelerado, no primeiro caso pela monarquia de Piemonte, que interveio militarmente para apressá-la, e no segundo pela monarquia prussiana, que, tendo ganho a guerra contra a França em 1871, instituiu o Reich no palácio de Versailles. O processo foi portanto acelerado por uma potência dominante. A base da Europa parece ser a hegemonia franco-alemã, mas ela é de um tipo particular, pois une os dois ex-inimigos. Além disso, potências como a Inglaterra, a Holanda, a Bélgica, a Itália também desempenham um papel. Não existe segunda categoria nas instituições européias. É preciso portanto avançar junto, o que torna lento o processo.

Por que digo isso? É porque às vezes se tem a impressão de que, se os acontecimentos explosivos do Leste tivessem ocorrido um pouco mais tarde, talvez tivesse acontecido algo diferente. O que? A oportunidade que bruscamente se encontra aberta nos anos 89-90-91 é evidentemente a da derrocada de um império do qual não apenas as potências dependentes, os protetorados que eram a Tchecoslováquia, a Polônia, a Romênia recuperam a sua independência, mas em cujo interior se criam nações soberanas, quando elas haviam desaparecido há muito tempo ou mesmo jamais haviam existido. É então que em todo lugar, na Polônia, na República Tcheca ou na Rússia se manifesta numa sede de Europa, porque esses países têm a impressão de terem sido privados pelas restrições, as alfândegas, as polícias etc. - privadas de conhecer a Europa, sua cultura, sua prosperidade. Há uma reivindicação de Europa e talvez uma oportunidade se abrisse, naquele momento, de que as peças separadas da Europa se reencontrassem. É esse, se resto, o momento escolhido por Mitterand para lançar a idéia de uma grande confederação. Essa idéia primeiro seduziu o presidente tcheco Havel, que depois a abandonou um pouco. Por que? Porque quase no mesmo tempo a França, talvez por inabilidade diplomática, dizia à Tchecoslováquia (ou a outros países, como a Hungria), para quem entrar na Europa é entrar no mercado comum, pois é a única instituição européia existente. "Não, vocês não podem entrar no mercado comum, vocês não estão preparados". "Mas quando poderemos entrar?" "Ah, esperem, é preciso esperar" - e nem mesmo se ofereceu um prazo a esses países. A partir desse momento os americanos e os alemães disseram aos tchecos como aos outros: "Escutem, essa grande confederação é um brinquedo para diverti-los, mas se vocês querem dinheiro, somos nós que poderemos ajudá-los e não os franceses". Assim esse projeto de grande confederação, do qual tive a alegria de poder participar, estando em Praga no decorrer dessa mal-sucedida reunião, abortou. Não apenas abortou: uma outra cortina de ferro se instalou no sentido inverso (não a mesma que a instaurada por Stalin, evidentemente).

Em primeiro lugar, como uma enorme crise se instala a Leste, cria-se um grande fantasma de migração em massa de eslavos inundando a Europa ocidental. Esse fantasma também é sustentado pelo medo de ver chegarem as populações dos países do Terceiro Mundo, com sua demografia galopante. Ele levou a medidas restritivas quanto a vistos, entre outras, e a um medo da imigração. Em segundo lugar, tão logo esses países dispuseram-se a exportar, com preços extremamente competitivos (por exemplo a Polônia podia oferecer carne bovina e outros produtos, especialmente agrícolas, muito baratos) os protestos dos camponeses franceses ou das organizações sindicais criaram uma barragem. Em conseqüência eles rapidamente tiveram a impressão de estarem sendo asfixiados economicamente por aqueles que deveriam ajudá-los. O sonho do Oeste, que era muito grande, o sonho da Europa, que parecia querer concretizar-se, pois todo mundo se dera as mãos em 89-90-91, bruscamente vem abaixo e uma separação permanece.

Esse é somente um aspecto do problema. Agora é preciso examinar essa crise do Leste, que comporta três crises, talvez três crises em uma. O primeiro aspecto da crise é econômico. Isso diz respeito, sobretudo na Rússia mas também nos outros países, à dificuldade lógica de tratar o problema posto pela passagem de uma economia totalmente burocratizada, esclerosada, a uma economia de mercado, que deveria trazer rapidamente as vantagens e o bem-estar visíveis no Ocidente. A esse respeito duas teses se defrontavam. Pode-se tentar fazê-lo progressivamente. Mas todo o empenho progressivo esbarra na paralisia, com a esclerose do sistema, e não se pode avançar com pequenas passadas. De resto Sakharov dizia: "Quando se quer saltar um precipício não se tenta dar dois saltos. É preciso dar um único salto". Daí o sucesso da tese dos radicais, dos liberais, que dizem: É preciso quebrar tudo do antigo sistema. Haverá um período muito difícil mas que não durará. E depois todo o mecanismo da economia assumirá uma nova vida e uma nova saúde". Foi o caminho seguido na Polônia. Ele provocou, no plano das cifras, um certo sucesso, com a retomada da produção, enquanto, no plano psicológico moral e humano, ele é percebido como um desastre. Por que? Lá, como em todos os lugares de resto, passaram-se anos, não se ganhou vantagem alguma das esperadas e perderam-se todas as seguranças que pareciam asseguradas para sempre, pois o antigo sistema tinha as vantagens do welfare, com creches e outras organizações sociais. Em Moscou, por exemplo, mesmo sendo o sistema hospitalar de baixa qualidade, comparável a um sistema de Terceiro Mundo, essa grande capital intelectual oferecia apesar de tudo um mínimo de vantagens.

Esses países estão metidos entre dois sistemas, com a agravante da constatação de que não basta liberar os preços e liberar a economia, de que o mercado não cria as instituições que permitem seu funcionamento harmonioso mas que de antemão são necessárias instituições: um direito, notários, títulos de propriedade, um Estado forte que ministra a regulação e pune os corruptores, as máfias e outros, enfim, todo um conjunto produzido ao longo da evolução histórica. Dirão alguns que entretanto nos Estados Unidos há máfias, etc. Sem dúvida. E há também acordos entre as máfias e os políticos (talvez não só nos Estados Unidos). Mas no sistema soviético, e principalmente nas regiões afastadas de Moscou rumo à Ásia, havia desde logo uma máfia extremamente poderosa que estava no poder: era o Partido. Vale dizer que já no Partido tudo se fazia por "bakchich", por serviços mútuos, por corrupção. Nas grandes cidades juntavam-se a isso novas máfias formadas por gângsteres "normais" por assim dizer, praticantes da extorsão ou monopolizadores de certos setores da distribuição. Por exemplo, quando alguém tentava estabelecer-se na pequena livre empresa, era extorquido pelo Partido e também pela máfia, por quatro ou cinco rackets. Nem mesmo nos filmes americanos se vê isso!

Temos então essa crise econômica, que é muito diferente conforme o país, a ninguém encontrou a solução para sair dela. O economista francês Maurice Aliais extraiu disso o princípio: "é preciso programar a desprogramação e planificar a desplanificação". Isso é muito bom, mas como aplicá-lo? Os economistas do Leste apenas conheciam o funcionamento da sua economia (e olha lá!). Da mesma forma os economistas do Oeste só conheciam o funcionamento da economia do Oeste. Ora, ninguém havia pensado antes no problema da transição. Ninguém havia pensado, imaginado as enormes dificuldades. Observem o que nos parecia e ainda nos parece incoerente: Gorbachev, como o asno de Buridan, hesitou dois anos dizendo "é preciso ir lá, vamos, vamos" enquanto os outros diziam "atenção, devagar, devagar". Ele morreu disso, sua morte política adveio dessa hesitação. Yeltsin fez o mesmo. Trata-se de um problema terrível, que indica que a crise é muito grande.

O segundo aspecto dessa crise é político, porque a aspiração à democracia era absolutamente generalizada. Ora, a democracia é um sistema complexo, que se nutre da diversidade e dos conflitos. Ela é capaz, por suas regras, por seus procedimentos (eleições, representação etc) de regular os conflitos que não são físicos, não são violentos mas se tornam conflitos de idéias, de opiniões, mediante sanções periódicas no momento eleitoral. A democracia vive portanto dessa diversidade. Mas quando uma democracia é jovem é certo que os conflitos ameaçam destrui-la. Vê-se muito bem historicamente que é preciso muito tempo para que haja uma arraigamento estável da democracia. É o caso da Inglaterra, que se beneficiou da sua insalubridade. Mesmo a França, país muito democrático, conheceu o Império, o retorno dos reis, Luiz Napoleão Bonaparte, o marechal Pétain. A democracia é um sistema muito difícil de estabelecer e uma crise econômica violenta não lhe é em geral favorável.

Chegamos ao terceiro aspecto dessa crise: a crise nacional. Crise nacional em que sentido? De fato todos esses países novos ou velhos renovados haviam vivido no seio de três impérios multi-seculares: o império otomano, o império austro-húngaro, o império czarista tornado soviético. E no curso dos séculos produziram-se mesclas, caleidoscópios populacionais. Havia colonos alemães na Romênia, na Silésia... Mas não falemos dos alemães, porque esquece-se que a limpeza étnica das populações alemãs foi feita em 1914. Os alemães dos Sudetos foram expulsos. Os alemães da Polônia (que se havia apoderado da Silésia) foram expulsos, porque os próprios poloneses que se encontravam na Ucrânia, conquistada pelos russos, foram expulsos para ocupar o lugar dos alemães. E os alemães de Dantzig foram expulsos. Enfim, houve uma primeira depuração étnica. Esquece-se demais que a passagem da civilização da cidade para a civilização da nação traduz-se freqüentemente, de maneira mais ou menos cruel - a menos cruel fazendo-se em tempo de paz, a mais cruel em tempo de guerra - por procedimentos de limpeza étnica. E o que se deu por duas vezes entre a Turquia e a Grécia. Quanto ao mais, havia situações impossíveis, que o Tratado de Versalhes havia regrado muito mal. Isso porque ele havia estabelecido o desmembramento do império otomano, que se encontrava na situação de um dos vencidos na guerra, e o desmembramento do império austro-húngaro, que hoje muitos começam a lamentar, porque naquele império havia movimentos de nacionalidade, uma espécie de grande federação policêntrica em marcha. É aí que o austro-marxismo, digamos os austro-marxistas, haviam reconhecido a realidade das nacionalidades e tentavam respeitá-las. Poder-se-ia pensar que num conjunto como esse não haveria problema de minorias, porque esses problemas vêm da criação de uma fronteira nacional impermeável, que engloba minorias relativas a uma outra nação, também dotada de fronteiras impermeáveis. O tratado de Versalhes tentou criar entidades poliétnicas porque ele não tinha como dissolver em micro-nações essas partes herdeiras do império otomano e do império austro-húngaro. Assim, criou a Tchecoslováquia. A Tchecoslováquia não era somente eslovacos e tchecos. Havia uma parte denominada Rússia Sub-Carpática, que era ucraniana. Havia também três ou quatro milhões de alemães, que ocupavam os montes Sudetos. Do ponto de vista geo-estratégico eles eram evidentemente uma segurança fundamental para a Tchecoslováquia, mas, dos pontos de vista étnico e do direito dos povos, encontravam-se alienados em um novo Estado soberano.

A Iugoslávia parecia um conjunto muito mais harmonioso, pois todos esses iugoslavos eram os eslavos do Sul, tinham a mesma origem nas grandes invasões dos séculos V e VI, falavam a mesma língua. Além disso, os croatas haviam exprimido o desejo, retomado pelos sérvios, de poder reunir-se sobre as ruínas tanto do império otomano quanto do império austro-húngaro.

Outras nações foram formadas em favor dos amigos dos Aliados. Por exemplo, a romênia, aliada da França e da Inglaterra. Ela recebeu a região da Transilvânia, que é uma região étnicamente húngara. Os vencidos foram desfavorecidos, os vencedores foram favorecidos. Tudo isso tronou virulento o problema dessas etnias mescladas.

Na Iugoslávia isso começou muito mal porque a dominação da monarquia sérvia sobre os croatas e os muçulmanos (muçulmanos que ainda eram chamados assim porque Tito ainda não lhes havia dado sua nacionalidade) provocou o descontentamento dos croatas. De sorte que, quando Hitler chegou a essa parte da Europa, foi-lhe fácil partir a Tchecoslováquia, separar a Eslováquia, fazer uma Croacia à qual deu a Bósnia-Herzegovina (um protetorado dos sérvios) a desmembrar todas essas realidades. Em conseqüência pode-se dizer que o comunismo iugoslavo, a resistência contra o nazismo, foram um fator federador dessas nacionalidades croatas, sérvias, bósnias. É verdade que houve colaboradores dos nazistas, mas no seio de todas essas nacionalidades houve também resistentes. O próprio Tito era um croata e o Komintein compreendeu muito bem que devia abandonar sua linha política, que era anti-iugoslava, pois pensava que, se os comunistas se assenhorassem da Iugoslávia, seria melhor conservar esse conjunto e impedir uma divisão entre o Leste e o Oeste. A Iugoslávia fez sua ressurreição na resistência, através de massacres internos absolutamente abomináveis, (ao lado dos quais os de hoje não são piores, infelizmente - dos dois lados, bem entendido), ela se viu dotada de uma coesão imprevista graças à ameaça soviética após a excomunhão de Tito, pois ele resistiu, uma espécie de espírito nacional poderoso, pois, como sabemos, as nações se fortificam graças aos inimigos. Eles tinham um inimigo, e a resistência à União Soviética foi portanto um cimento.

Os dirigentes comunistas iugoslavos estavam inicialmente persuadidos de que iriam, após sua ruptura, fazer um verdadeiro socialismo. Seria o verdadeiro socialismo graças à autogestão e não um socialismo burocrático de tipo stalinista. É por isso que podemos tentar compreender porque as coisas foram tão terríveis na Iugoslávia, num certo sentido mais terríveis do que na União Soviética, ainda que aquilo que se passa na Geórgia ou na Armênia ou no Azerbaijão seja absolutamente trágico. Desde os anos 60 parecia que a autogestão não estabelecia nenhuma cultura, nenhuma realidade socialista: vale dizer que ruía o socialismo dos sonhos dos dirigentes da Iugoslávia. E como esse sonho não se realizava começava a retornar aos seus espíritos a idéia nacional, mas não a idéia nacional iugoslávia: Kardelj é esloveno, Rankovich é sérvio, Djilas é montenegrino. Trata-se de uma representação poliétnica e polinacional. Assim, Rankovich conta em suas memórias, escritas antes dele tornar-se presidente provisório da Iugoslávia, que, durante uma discussão com Kardelj no começo dos anos 60, este lhe disse: "Você sabe, no fundo a Iugoslávia é um Estado provisório e artificial. Nós os eslovenos iremos com os italianos e os austríacos. Depois vocês sérvios irão com os búlgaros e os gregos". Essa retomada da nacionalidade se fortifica porque é ao mesmo tempo uma retomada da religião católica e ortodoxa. Mas o que vai favorecer a explosão é que um passado morto retorna, um passado quase bimilenar.

Os croatas e os sérvios viveram duas experiências históricas absolutamente diferentes. Esse fato é mascarado pela língua comum, mas é revelado pela escrita diferente (cirílica ou latina). Os croatas colocaram-se sob a influência latina e foram catolicizados, os sérvios colocaram-se sob a influência bizantina e foram ortodoxizados. Em seguida os croatas foram integrados no império dos Habsburgo e tornaram-se um elemento dotado de um pouco de autonomia. Eles se tornaram fiéis súditos dos Hadsburgo e freqüentemente lhes forneceram excelentes soldados. Por seu lado, os sérvios são esmagados pelos turcos. A Sérvia não viverá senão pela resistência. De resto, uma das causas da tragédia atual é que no curso dos séculos XVII e XVIII, quando das incursões dos exércitos dos Hadsburgo em territórios turcos, populações vêm instalar-se nas krainas, especialmente naquela que atualmente se encontra quase ao Oeste da Croácia, porque os homens estão prontos para bater-se nos exércitos austríacos para reconquistar Belgrado, com o sonho de que a Áustria fosse liberar Constantinopla do Levante. Essas populações são atualmente uma das causas do conflito.

Eis portanto destinos históricos diferentes. Tem-se a impressão de que tudo isso seria esquecido quando da criação da primeira Iugoslávia. Mas a decomposição do comunismo e a decadência, a crise total do futuro que marca o mundo - pois não é apenas o futuro radioso prometido pelo comunismo que vem abaixo mas são todas as perspectivas abertas pela certeza do progresso, que parecia seguro não somente no mundo ocidental mas que se haviam disseminado pelo mundo - essa incerteza, enfim, provoca esse formidável retorno ao passado. Acrescentemos a isso que de fato os novos dirigentes nacionalistas da Sérvia e da Croácia são antigos aparatchiks que compreenderam muito bem que o único modo de refazer uma carreira política consiste em converter-se com o máximo de violência nacionalista. Eles são os nacionalistas mais exaltados e, entre sí, eles não têm a arte da diplomacia: quando discutem, tratam das suas fronteiras, eles colocam revólveres sobre a mesa. Eles discutiram desse modo durante dois anos. Sua incapacidade para se entenderem, para fazer compromissos, é um conjunto de fatores que levaram o incêndio a deflagrar-se na Iugoslávia com a secessão croata.

Tratei mais demoradamente desse caso da Iugoslávia porque ele é exemplar. Ele leva ao paroxismo todos os problemas que se situam nessa Europa de minorias e de imbricações na qual você tem membros da sua etnia que estão no estrangeiro e estrangeiros que estão com você. E trata-se de nações, repito, cuja vontade democrática de modo algum é acompanhada de instituições democráticas. É preciso ver como são tratados, por exemplo, os não-croatas na Croácia. Eles não têm passaporte, e assim por diante. Bem entendido, isso não é pura e simplesmente o antigo regime totalitário: há pequenos setores de liberdade, de imprensa crítica, muito marginalizados. Os grandes meios de comunicação são controlados pelo poder. Trata-se de fato de ditaduras, especialmente na Sérvia, na qual o Partido reconverteu-se, na sua passividade, ao pan-servismo.

Nessas condições tem-se simultaneamente a crise da democracia, que se resolve na auto-destruição dessa democracia nascente, com alguns resíduos (como eleições mais ou menos controladas de tempos em tempos) e a crise econômica, agravada pela guerra e a histeria nacionalista. De resto, a situação é extrema na Iugoslávia porque desde o início a televisão serva e a televisão croata mostraram as mesmas imagens: pessoas de 60 anos que narram como, crianças, elas viram sua mãe violada, seu pai emasculado, seu irmão massacrado. Evidentemente os sérvios contam isso dos croatas, os quais por sua vez têm testemunhas que narram isso a respeito dos sérvios (os tichniks, que haviam eles próprios feito massacres croatas). Tudo isso ressuscitou um passado de ódio quando este parecia acalmado, adormecido em todo o caso. Quanto aos mestiços, que são muito numerosos (nas cidades da Bósnia 30% das pessoas são mescladas: filhas de croatas, de sérvios e dos chamados muçulmanos) eles se calam.

Essa situação explosiva é potencialmente a da Rússia. Ei aí uma potência muito maior que a Sérvia, com enormes meios, que atualmente tem minorias na Ucrânia, nos países bálticos, na Ásia central, em todas essas novas repúblicas. Imaginem uma agravação da crise! O que é extraordinário até o momento é o caráter sábio e racional do povo russo. Deus sabe que há hipernacionalistas que tentam criar um clima de revide. E a aliança entre os nacionalistas, os hipernacionalistas e os ex-comunistas não é meramente circunstancial: uns e outros querem reconstruir o império. O perigo potencial está na Rússia. Não sigo que a Rússia vá reconquistar terras para reencontrar suas minorias russófonas (de resto muito maltratadas, como em certos países bálticos) e eu espero que não. Mas estamos diante de uma situação de crise assustadora e até o momento incontrolada.

Retorno ao caso iugoslavo justamente a propósito disso. Eis aqui portanto um país no qual teoricamente teria sido possível aos europeus intervirem. De início pela ameaça, pois bastaria dizer: "não, não toleramos isso". Por exemplo, antes da deflagração das hostilidades na Bósnia Herzegovina, que se mantivera neutra por longo tempo enquanto a guerra crepitava na Croácia, antes desse evento que todo mundo esperava, e temia. Mitterand disse: "Não interviremos se houver guerra". Major disse: "Não interviremos". E Milosevic que é um homem muito prudente, compreendeu muito bem que a porta estava aberta, e avançou. Isso revelou à comunidade européia sua própria importância. Os governos não interviram: houve algumas declarações humanitárias. Em contrapartida as populações foram fortemente emocionadas pelas televisão, por todas as cenas terríveis, a começar pelo bombardeio de Bukovar e pelo que se passa quotidianamente. Há um sentimento terrível de impotência da população, que está totalmente desorientada e se pergunta sobre o que faz a Comunidade Européia. Não há, bem entendido, um movimento na população tipo "alistemo-nos e vamos combater na Sérvia", mas há um sentimento de impotência, de frustração e de decepção.

Mas a situação é ainda mais grave. Quando a Croácia declarou sua independência ela pediu reconhecimento, o que desencadeou uma cadeia de reconhecimentos da Bósnia-Herzegovina e da Macedônia. Uma comissão européia, denominada comissão Badinter, disse então: "Sim, vamos reconhecer essas nações, desde que seja tratada a questão das minorias" (evidentemente da minoria sérvia na Croácia, mas igualmente da Bósnia-Herzegovina, que é composta de três minorias, pois nenhuma delas tem maioria absoluta). Ora, sem aguardar os resultados dessa negociação, para a qual poderia haver pressão européia, a Alemanha reconheceu a Croácia, e foi seguida logo depois pela França. Era o primeiro ato político autônomo, quer dizer fora de concertação, da Alemanha desde 1945. Por que a França reconheceu a Croácia? O argumento oficial é que havia tal indignação na Alemanha que era necessário fazer alguma coisa. Mas, de fato, um problema fundamental influenciou a política oficial francesa naquele momento: a França reconheceu a Croácia e os outros países para não se separar da Alemanha, porque ela entende que o eixo franco-alemão é essencial e não deve ser desfeito. Ao mesmo tempo a França deixa passar o que fazem os sérvios porque considera, e isso é muito importante, que a Alemanha unificou-se de maneira inteiramente inesperada e surpreendente — Mitterand ficou no início extremamente perplexo com essa situação de fato — e que se torna uma potência muito forte. Além disso, ao redor dela reconstrói-se uma Mitteleuropa, porque os investimentos mais importantes são feitos na economia húngara, tcheca etc. Reconstitui-se, portanto, uma potência central, e se a Europa se desloca isso é uma situação trágica, porque os ocidentais, franceses e ingleses, não terão mais, como em 1914, os contrapesos ao leste constituído pelos seus aliados russos, romenos, gregos e sérvios. A Sérvia era a aliada tradicional da França. Que ocorrerá se não mais houver esse contrapeso ao leste? Daí a idéia subjacente: "Deixemos que se faça uma Croácia forte, mas que haja pelo menos uma Sérvia forte". E, nos Estados Unidos, assim como há um lobby pró-croatas há um lobby pró-sérvios, favorável; a essa Sérvia forte.

Tudo isso revela uma impotência que, no meu entender, é muito grave e muito desesperador. Eu era um adolescente quando da guerra civil espanhola, mas vivi como um desastre histórico que transcendia a Espanha a queda de Barcelona e, claro, a derrota da Espanha republicana. Subjetivamente, ainda que as condições sejam inteiramente diferentes, sinto a mesma coisa em relação à Bósnia-Herzegovina.

Além disso e este era um pouco o sentido das minhas intervenções no momento de Maastrich e Sarajevo, põe-se a questão de saber o que se quer fazer a partir de Maastrich. Uma Europa que seja um pouco o espelho daquilo que existe em Sarajevo? Pois, o que era Sarajevo? Era uma cidade poliétnica, com muitas religiões mas também com muita gente laica e não religiosa, uma cidade que tivera seis sinagogas (os judeus tendo sido depois aniquilados pelo hitlerismo). Era uma cidade de muito grande tolerância, um caso único na Europa. Podia-se também pensar que a Bósnia-Herzegovina já era o símbolo daquilo que queremos fazer na Europa. É por isso que eu sinto o assassinato da Bósnia Herzegovina como o assassinato da idéia de Europa. Além disso, não se deve esquecer quais podem ser as conseqüências - incalculáveis - de todos esses eventos no sentido da deslocação. Temos então essa enorme crise, cujas repercussões já se fazem sentir ao Oeste, sendo a palavra "crise" fraca para a Europa central e oriental. Mas antes de tratar dessas repercussões quero de todo modo dizer uma palavra sobre um fenômeno muito curioso.

Os primeiros modelos de estados nacionais são a França, a Inglaterra, a Espanha. A Alemanha e a Itália somente se formaram no século XIX. A França é um país muito exemplar, poliétnico. A heterogeneidade das populações que fazem a França hoje é de início mil vezes maior do que na Iugoslávia, na qual havia todo um fundo étnico comum e uma língua comum. A França é a francização. Aquilo que se chamava o francien era a língua que se falava na île de France e no Orleanais. A França integra-se, e nem sempre de modo suave. Foi preciso um processo multisecular para que gentes tão diversas como bretões, flamengos, alsacianos, languedocianos, corsos e tantos outros se tornassem franceses. De modo geral os estados nacionais modernos fizeram-se segundo esse modelo; vale dizer, espaços de civilização não apenas mais amplos do que a cidade como mais amplos do que a etnia — enquanto, como vemos, em todos esses países atualmente em crise é a etnia que almeja ser um estado nacional.

No fundo a fórmula análoga à França era a Iugoslávia. Esse país fracassou completamente. Não se dispunha dos séculos que teve a França, nem mesmo de algumas dezenas de anos que pudessem permitir sua integração. Pelo contrário, vemos inimigos que, nas condições mais perversas, querem guardar em seu seio as minorias estrangeiras, para evitar problemas de fronteiras de estratégia, de defesa.

Voltemos à crise e suas repercussões. Minha interpretação é a seguinte: nessa crise do futuro na qual o mundo está mergulhado, o futuro, estando enfermo, provocou um movimento rumo no passado, de retorno às raízes étnicas ou religiosas. Nesse contexto, a fórmula do estado nacional que a Europa ocidental legou ao mundo é aquela que permite ao mesmo tempo a satisfação dessa retomada do passado e a criação de um sentimento de comunidade forte, com a idéia de pátria. "Pátria" é uma palavra masculina-feminina que comporta a substância maternal, com a idéia de mãe pátria à qual devemos amor porque ela nos ama e nos protege, e a substância paternal, o estado que exige obediência e oferece a proteção, o exército e a técnica. Em outras palavras, essa idéia de nação satisfaz essa necessidade de segurança a de comunidade. É por isso que temos reivindicações de estados-nações não somente entre os croatas mas também entre os moldavos e entre os gagauzes (que são uma minoria turca cristã da Moldávia). Todos querem seu Estado-nação.

Trata-se de um fenômeno da deslocação face à Europa. Fazer a Europa não tinha por objetivo contrariar essas aspirações à autonomia, à soberania, pois a riqueza da Europa é a sua diversidade, e é bom que essa diversidade se exprima por meios autônomos. A aspiração à soberania é muito válida, mas ela não pode ser absoluta: é rumo a isso que progride a Europa ocidental. Os estados-nações persistem. Mas os grandes problemas — econômicos, ecológicos, de drogas, ferroviários etc — que ultrapassam suas competências devem ser tratados em associação e não mais isoladamente. Ora, enfrentamos ao Leste um impulso de soberania, uma exigência de soberania absoluta que almeja hoje a independência de todas as considerações econômicas mais elementares. Mesmo a Eslovênia étnicamente homogênea está numa situação de crise abominável porque suas complementaridades naturais com o resto da Iugoslávia desapareceram sem que outras fossem estabelecidas com o resto da Europa. Tudo isso cria uma depressão econômica. A única indústria que anda, diz-se meio por pilhéria nesses países, é a do arame farpado, a que permite estabelecer fronteiras. Em contrapartida, o restante não anda.

O problema consistia em associar a reivindicação de soberania às de cooperação de confederação e de associação. Trata-se disso, da soberania-associação e dos direitos dos indivíduos, incluindo as minorias; vale dizer, liberdade democrática, expressão da diversidade e necessidade de associação. Eu diria mesmo, direito da Europa, que é o direito de existir. Ora, é precisamente esse objetivo que atualmente está muito mal. O Oeste estabeleceu o mercado comum e compreendeu que era preciso, em seguida dar um passo avante. Um passo político, diplomático, militar, tanto mais quanto ele é fortemente atingido pelos eventos que surgiram no Leste e que lhe agradaria criar um estrutura de acolhida, coisa que não conseguiu fazer. Esse passo é o tratado de Maastricht. Esse tratado é absolutamente ilegível. Sabemos que ele foi adotado com dificuldades. Houve um reflexo muito camponês, especialmente nas zonas rurais, que consistia em dizer: "Já que nada se compreende dele, então não votemos a favor".

Eis aí um tratado que traz em sí esse desenvolvimento integrativo, vale dizer, para além do mercado comum visa Ter um banco comum e numa moeda comum. Ele ultrapassa o aspecto meramente econômico, pois não se trata mais unicamente da abertura das fronteiras, mas de instituições comuns que implicam uma política, um direito social comunitários. A idéia é também de criar uma entidade diplomática, de tentar aumentar os direitos do Parlamento de Estrasburgo, enfim de criar uma dinâmica que foi prejudicada pelo descrédito em que caiu a tecnoburocracia de Bruxelas. Esse argumento foi muito utilizado pelos adversários do Tratado, que chegou no momento de uma tempestade monetária e de uma depressão econômica. Entramos em uma crise econômica a partir de 1973. Verdade que, diversamente da crise de 1929, que irrompe na Wall Street e se espalha pelo mundo em dois anos, atingindo em cheio a Alemanha, onde cria milhões de desempregados e provoca assim a chegada legal de Hitler ao poder, temos uma crise que avança passo a passo, com passos de pombo como diria Nietzsche (mas referindo-se às grandes idéias) e sem que seja compreendida. Pensava-se no início que se tratava das repercussões da crise do petróleo sobre os preços dos outros produtos, depois descobriu-se que se trata de uma crise mais profunda. Atualmente tem-se a idéia de uma crise que se tornou estrutural, agravada pela mutação tecnológica, pela competição desenfreada. Seja como for, a crise cresce e se agrava. Mas todos nós, voltados para os Estados Unidos, temos a esperança de que a aceleração da economia americana arraste, após alguns meses, a economia européia.

Sabe-se agora que a retomada do crescimento não irá por sí própria eliminar o desemprego, e que o desenvolvimento da produtividade pelos novos meios tecnológicos elimina os trabalhadores humanos para substitui-los por máquinas, por técnicas. Essa crise veio lentamente. Isso explica por que não houve revoltas nem choques violentos como houve após a crise de 29, que desencadeou o nazismo, o 6 de fevereiro na França, um clima de motim e de frente popular, a guerra da Espanha, o New Deal de Roosevelt, enfim uma série de eventos enormes, impressionantes. Atualmente não ocorre grande coisa, mas um mal estar profundo se cria e, sobretudo, há essa crise. Existe o desemprego, é o sinal visível, mas há ao mesmo tempo uma espécie de angústia difusa, latente na população. Não basta tomar como bodes expiatórios os trabalhadores imigrados para acalmá-la. Constata-se também o retorno do bode emissário. Há nos países do Leste uma coisa atroz, que não é só o retorno do anti-semitismo mas o ódio dos ciganos, um racismo anti-cigano horrível. Há esses fenômenos na Alemanha, onde jovens incendeiam casas de turcos.

No meu entender todos esses fenômenos são espetaculares mas não inquietantes. Explico-me sobre esse termo, "inquietante". Em 1928 eu teria razoavelmente considerado Hitler como não inquietante, porque não havia crise econômica. Isso quer dizer que, se não tivesse havido a grave crise econômica, Hitler não teria passado do pequeno agitador marginal, com 10% de sufrágios da população. Foi a crise que o impeliu ao poder. Atualmente fenômenos como o hipernacionalismo, como Le Pen na França, não são inquietantes. Não digo que sua esperança de poder jamais se concretizará, mas que não o fará pelo menos enquanto não houver um agravamento forte da crise e que ela não assuma novos aspectos sociais, que ninguém pode excluir.

É por isso, repito, que não são atualmente essas violências e esses excessos atrozes aquilo que me parece notável no plano da análise da situação. Notáveis são certos fenômenos que ocorrem em massas muito maiores e que denominarei fenômenos de deslocação e de retomada. "Fenômenos", o termo é exagerado. Eu diria "sintomas" de deslocação. Eu não falaria tanto do autonomismo corso, que é um pequeno fenômeno na França. Em contrapartida observe-se esse fenômeno recente da Liga Lombarda, mais amplamente das ligas do Norte na Itália, que propõem a secessão com quase os mesmos argumentos que os dos croatas e dos eslovenos quando eles queriam fazê-la em relação aos sérvios e os macedônios. Que diziam eles? "Nós somos ricos, somos europeus evoluídos, ocidentais. Eles são brutos balcânicos". Vejamos os argumentos dos italianos do Norte, da Liga Lombarda: "Nós somos civilizados e ocidentais. Eles, esses sicilianos e calabreses, são árabes. Além disso, que é esse estado de Roma, podre e corrompido, que nos toma nosso dinheiro quando podemos resolver nossas questões sozinhos?". Trata-se de um sintoma de deslocação numa nação muito grande. Talvez não cheguemos a tanto, espero, mas o sintoma está aí. Na Bélgica, eu não diria que os valões vão separar-se dos flamengos, mas chega-se a um ponto extremo de superexcitação e da vontade separatista, pois, diversamente da Eslováquia e da Boêmia, eles apenas se uniram após 1918, e depois houve o período de separação da Segunda guerra mundial, fenômeno recente. O elemento federador importante é o rei. De maneira paradoxal são os reis que mantêm as unidades nacionais: veja-se a Espanha, que também conhece fatores de separação. Isso parece resolver-se razoavelmente bem, no momento.

Mas, também nesse ponto, sejamos ambivalentes. É preciso sempre ser ambivalente: a filosofia da complexidade impõe-nos ver os dois aspectos dos eventos. O aspecto que eu chamaria positivo é essa vontade de salvar sua própria diversidade, sua própria identidade, sua originalidade. Ora, quanto mais o mundo caminha no rumo de grandes instâncias (e elas faltam tanto no nível europeu para tratar dos grandes problemas quanto no nível mundial: Rio/92 poderia ser assim um começo de um ponto de vista ecológico) mais se tem necessidade de viver na escala local, da política e da cultura concretas. Penso que a Europa é a escala das instâncias supranacionais, das regiões e das cidades. Das cidades: houve há poucos anos em Praga uma reunião dos prefeitos das grandes cidades da Europa, vindos de países muito diferentes, do Leste e do Oeste. Eles se deram conta de que tinham problemas fundamentalmente comuns e apreciaram muito a troca de experiências. Tem-se então a impressão muito reconfortante de que uma Europa das cidades está em vias de fazer-se.

E preciso portanto situar o fenômeno nos seus múltiplos níveis e ver apesar de tudo o lado positivo nesses fenômenos da autonomia. No Leste, entretanto, a reivindicação torna-se obtusa, fechada, sem consideração pelo ambiente político e social. A Liga Lombarda, do seu lado, manifesta também algo de extremamente inquietante. Temos fenômenos de recuo. A Inglaterra tenta ser européia, mas sem abandonar sua velha amante, a América. Com a Europa, ela faz o jogo das aproximações, mas não muito íntimas. Na Alemanha, que era o país mais europeu de todos, no qual havia mais entusiasmo e ardor pela Europa há 10 ou 15 anos, o europeísmo esfriou extremamente. Ela foi levada a introverter-se com a absorção dessa Alemanha do Leste, mundo que por dezenas de anos havia-se tornado outro, com problemas econômicos mas também psicológicos e morais enormes. Além disso (a imprensa está aí como testemunha) o que antes não passava de conversas sussurradas entre diplomatas, "é preciso desconfiar dos alemães", tornou-se público. Por exemplo, a tese francesa sussurrada no momento de Maastrich era a de que seria preciso abraçar firmemente a Alemanha para impedi-la de fugir para outro lado. Por detrás do aparente amor estava o objetivo de mantê-la prisioneira; o que acabou desconectando os alemães. Essa desconfiança nascente da França pela Alemanha nutre-se de diferentes elementos, e nutre ela própria uma desconfiança da Alemanha em relação à França. Há forças opostas em ação. Quanto mais as sentimos mais é preciso lutar contra elas.

Termino justamente num registro holderliniano. Holderlin escreveu este verso em "Patmos": "Onde cresce o perigo cresce também o que salva". Isso quer dizer que o perigo, ao tornar-se enorme, nos leva a tomar consciência, quando não tínhamos consciência enquanto ele avançava com demasiada suavidade. É então que chegam os meios de salvação. Quanto a mim, creio que as forças de deslocação são muito fortes e incontestáveis. Uma das maneiras de lutar contra elas consiste em dar-se conta muito rapidamente das catástrofes para as quais somos impelidos. Talvez só seremos salvos na borda do abismo?

Minha conclusão é a seguinte. Eu formularia a alternativa que se apresenta de maneira simplificada dizendo: "Associação ou barbárie". Com efeito creio profundamente que, ou nos associamos ou é a barbárie.

Quando se considera a história recente da idéia européia, pode-se dizer que os anos 90-91-92 foram bons. Eu diria que as forças da associação ganharam, no curso desses três anos, o primeiro set. Depois vieram os anos 92-93. Devo dizer que as forças da barbárie ganharam o segundo set. Mas o terceiro set ainda não foi jogado. É ele que será disputado a partir de 93. Não tenho qualquer prognóstico, e penso que as forças da barbárie, segundo as probabilidades, são as mais fortes (enfim, as forças da deslocação, da separação, do recuo...).

Sabemos que na história nem sempre o provável se consumou e às vezes nem mesmo se apresentou: foi o improvável que se apresentou. Podemos pois apostar no improvável: eis minha conclusão.

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    O presente texto foi originalmente apresentado em conferência no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo em novembro de 1993. Com a autorização do IEA/USP
    Lua Nova o publica agora, num momento em que as considerações de Morin, datadas como poderiam parecer à primeira vista, revelam todo o seu alcance e também sua atualidade. Tradução de Gabriel Cohn.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Ago 2010
    • Data do Fascículo
      1999
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