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Fragmentos de Eva

Fragmentos de Eva

Flávio Aguiar

Eva fonte

se devora

sôfrega

de amplexo

e reflexo

Vento, ventosa

rubra de sol e pálida de lua

Eva se demora

travessia

A corrente escolta

o corpo transparente

medusa

caravela

Eva

na margem nua

lança

sua audácia

de navegadora lassa

Eva na folhagem

Eva na ramagem

Eva na aragem

Eva: margem

Eva pousa

a mão ávida

na casca sáfara

da árvore da vida

Eva, somente

Eva, de repente

Eva, oblíqua

Eva: bífida

semente

Eva carece

de seu corpo

junto ao fruto

de sua ousada mente

Eva: colhe

Eva: dente

Eva: pomo

Eva: oferenda

Eva conheceu

da árvore secreta

Eva se escolhe

Eva se penetra

Eva

em seu instante

é a saliva

que desliza

pelo dente

a mão

passando rente

ao corpo

da serpente

pelo pomo

da sapiência

Eva

em sua constância

é o corpo

que desliza

rente ao dente

a mão e o pomo

que comungam

a sapiência

a saliva

da serpente

Eva

em sua demência

fica louca

de sapiência

crava o dente

corta o pomo

que desliza

na saliva

pelo corpo

no instante

da serpente

Eva

em seu corpo

se batiza

de saliva

mordeuiva

sarçardente

Eva traga

o inferno

e a serpente

Picada de pecado

Eva se contempla

na pureza da matéria

Eva se entrega

ao rumo descoberto

de visgo, do travo

da polpa e dos frutos

de seu corpo

e assim de tudo que o Criador lhe

houvera posto

Eva conheceu a refez mais a seu gosto

foi ela então que abriu-se toda

em gomos

mal contida pela própria pele,

no êxtase dos sumos

Eva em sua fuga

Eva que se afaga

Eva se afoga

seu corpo

se desfaz

na corrente

de seu sangue

Eva morta

Eva corta

Eva assalta

pelo leite

pelo leito

Eva uva

Eva ave

Eva abrasa

pela sede

de sua fonte

Eva ponte

Eva arado

Eva rente

saliva

seio

medusa

onde ancoram

ouriços e sargaços

PÓS-ESCRITO

Eva deu a Adão

O que nem Deus lhe deu

A maçã, pomo loução

Do mais fundo de tudo seu

Um anjo os tocou do Éden

Adão foi trabalhar a terra

Daí nasceu Abel, que até hoje morre

E também Caim, que até hoje erra

A serpente virou anel

Que Eva traz sempre ao dedo

E se pergunta: por que me fiz mulher

Por que eu fui eu assim tão cedo?

Adão trancou na garganta

O pomo do seu haver

Que o feriu de ausência

No peito do verbo ter

Deus, esse ficou como quis

No céu, a contemplar o inferno

Deixara a solidão infeliz

Tinha assunto pra ser eterno

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Mar 1985
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