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Para que servem os idosos?

ESPECIAL

Para que servem os idosos?

Eneida Gonçalves de Macedo Haddad

Docente e pesquisadora de Política Social da UNESP, Autora do livro A Ideologia da Velhice. São Paulo, Cortez Editora, 1986

O jornal Terceira Idade, do Serviço Social do Comércio — Sesc, publicou há algum tempo um artigo, "Solte o corpo: é bom, bonito e barato", recomendando aos idosos que aprendam a tirar prazer do seu corpo, através da dança, do jogo ou da caminhada.

Uma gama de receitas tem sido divulgada nestes últimos anos através de jornais, de revistas especializadas, de palestras proferidas por geriatras e gerontólogos e por "técnicos em velhice" pertencentes a instituições como o Sesc ou Legião Brasileira de Assistência — LBA, estando presente também em alguns dispositivos legais baixados pelo Estado brasileiro. O idoso passou a ser objeto de interesse.

No Brasil, nas últimas duas décadas, cresceu a população considerada idosa. De 1960 a 1970 houve um aumento de 41,6% no número de pessoas com sessenta anos ou mais e de 1970 a 1980 o aumento foi de 53,0%, enquanto que a população geral, nesses mesmos períodos, aumentou de 32,7% e de 27,8%, respectivamente. Ainda que se tenha elevado a esperança média de vida, não melhoraram as condições objetivas de vida da classe trabalhadora e, portanto, as dos idosos a ela pertencentes.

As propostas para a melhoria da qualidade de vida amparam-se na idéia de que, sendo crescente o número de idosos, é preciso assistir essa parte esquecida da sociedade.

As normas ditadas pela gerontologia social — que se propõe, juntamente com a geriatria, a exercer o monopólio científico do saber sobre a velhice — podem ser sintetizadas em"educação", "trabalho" e "família".

Segundo a gerontologia social, a pedagogia da velhice encerra uma saída para a problemática vivida pelos velhos. Instrui os idosos a viverem, graças ao processo de ressocialização, da assimilação das "receitas gerontológicas" relativas à aprendizagem da arte de saber envelhecer, uma existência diferente daquela que é socialmente produzida. "É uma questão de educação"; "há necessidade de se criar escolas que ensinem os homens a serem velhos", insistem os especialistas. Propõem a ação de equipes multi-profissionais coesas em que o sucesso da prática pedagógica depende da utilização de técnicas eficazes.

O trabalho também ocupa lugar privilegiado no ideário gerontológico, sendo indicado como a melhor terapia para o envelhecimento. Desta forma, a proposta da abolição da aposentadoria por tempo de serviço se faz presente em discursos de gerontólogos. A realidade vivida na sociedade de classes brasileira é encoberta: o trabalho assalariado aparece como remédio para que a vida do homem continue tendo sentido. De forma sutil, está sendo questionada a aposentadoria, direito conquistado a duras penas pela classe trabalhadora. Finalmente, os especialistas procuram atingir a família, buscam sensibilizá-la para que assuma o papel de protetora da velhice.

O Estado, por sua vez, estabeleceu no período pós-64 dispositivos normatizadores de assistência ao idoso. Entretanto, dentro do quadro do "novo trabalhismo" imposto pelo Estado autoritário, é cassada a liberdade de associação da sociedade civil. Os sindicatos não têm mais espaço para suas práticas reivindicatorias. É alarmante o empobrecimento da classe trabalhadora em nome do crescimento do capital e do controle da inflação. Paradoxalmente, o governo repressivo, que censura, tortura, ameaça a vida de brasileiros, baixa dispositivos legais com o objetivo de melhorar a qualidade do fim da vida.

Crescem, a partir da década de 70, as sedutoras propostas de "socialização libertadora" e de propagação'da cultura do lazer, remédios eficazes na cura dos males da "terceira idade"; surgem, ao mesmo tempo, programas para combater o estigma a que estão submetidos os idosos solicitando o apoio comunitário. As medidas assistenciais denunciam as articulações entre Estado e gerontologia, ou seja, evidenciam a ideologia da cumplicidade no período, marcado pelo binômio assistencialismo-repressão.

Outras medidas legais referem-se aos ilusórios benefícios financeiros destinados aos idosos, na tentativa de tapar o sol com a peneira. No governo Geisel, por exemplo, em 1974, foi instituído o amparo previdenciário para os maiores de 70 anos e para os inválidos, desde que não exerçam atividade remunerada e não aufiram quaisquer outros rendimentos. Trata-se de renda mensal vitalícia, a cargo do INPS ou do Funrural, igual à metade do maior salário mínimo vigente no país (não podendo ultrapassar 60% do valor do salário mínimo do local de pagamento), e assistência médica nos mesmos moldes da prestada aos demais beneficiários da previdência urbana ou rural.

Na mesma época, em 1975, não bastassem os índices de reajuste do INPS terem sido até então inferiores à inflação, o Estado brasileiro, criativo na arte de reduzir os gastos com os aposentados, passa a aplicar o chamado "valor de referência" no cálculo dos proventos dos que se aposentam: a base de cálculo não é mais o salário mínimo e sim um valor abaixo do mesmo.

Por outro lado, é preciso lembrar que o Sesc há muitos anos vem desenvolvendo, no Estado de São Paulo, atividades voltadas aos idosos, atualmente organizadas em três projetos básicos: Grupos de Convivência de Idosos, Escolas Abertas para a Terceira Idade e Trabalho com Pré-Aposentados. Nestes projetos, as observações pedagógicas dos educadores da velhice são preceitos fundamentais. É preciso não esquecer, também, o papel destacado que ocupa a cultura do lazer nos seus programas destinados aos aposentados. Peça cuidadosamente decorada para garantir leveza à arquitetura da vigilância, o lazer faz parte do pacote dirigido à "terceira idade". Eis que é defendido e concedido aos "velhos em perigo" o que fora combatido e negado durante toda sua existência como força de trabalho: o direito à preguiça. A ideologia da velhice busca triunfar tirando os idosos do Inferno da Solidão e conduzindo-os ao Paraíso Civilizado dos Centros de Lazer.

Por detrás dessa "política assistencialista", que acena para a melhoria da qualidade do fim da vida, está a preocupação do prestativo Estado brasileiro com o ônus que o crescente aumento do número de idosos representa à Previdência Social. Aliás, a preocupação não é só dele. Dos Estados Unidos, da França, de organismos como a ONU e Centro Internacional de Gerontologia Social — GIGS, têm sido constantes — particularmente a partir da década de 70 — os apelos, as recomendações e, até mesmo, as advertências para que o Brasil dispense, enquanto é tempo, "cuidados" especiais ao "problema dos idosos"

E continua trágica a situação dos aposentados, aflitiva a dos pensionistas e sofrível a assistência médico-hospitalar dispensada pelo INAMPS, enfim, falaciosa a Previdência Social no Brasil. O modelo econômico — capitalismo monopolista associado — é incompatível com uma política social que tenha por objetivo servir o homem.

A mudança do sistema previdenciário brasileiro, necessidade que deve se transformar em exigência, só será possível se, no âmbito da política global e no nível da participação e da conscientização, os problemas sociais forem compreendidos in totum, juntamente com a busca de transformação da realidade.

Enquanto isso os idosos crescem numericamente. Crescem, ao mesmo tempo, as estratégias no mundo capitalista para diminuir o "peso" que eles representam. Crescem, também, as estratégias para velar e não revelar a tragédia do fim da vida, para velar e não revelar que vida e morte do trabalhador estão intrinsecamente ligadas, para velar e não revelar que a vida, enquanto totalidade, está em jogo em nossa sociedade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Mar 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 1986
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