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Violência social: acidentados no trabalho

ESPECIAL

Violência social: acidentados no trabalho

Amélia Cohn

Professora-doutora do Departamento de Medicina Preventiva da USP e pesquisadora do CEDEC

Se Deus é brasileiro, como afirma o dito popular, não há como deixar de pensar que o diabo também é. Senão, como entender que o estado físico e os acidentes com jogadores de futebol comovam durante meses a opinião pública e, ao mesmo tempo, passem absolutamente despercebidas a mutilação física e a opressão à saúde de milhares de trabalhadores — fato permanente e cotidiano? Para não se falar nos surtos de dengue, febre amarela, malária, previstos há três anos e contra os quais não se tomaram as necessárias medidas.

O fato é que, independentemente da nacionalidade das entidades que personificam o bem e o mal, há de se enfrentar a realidade: até o presente momento, matar mosquito não dava votos, portanto, não trazia dividendos políticos. Da mesma forma, os mecanismos sociais que envolvem a questão dos acidentes de trabalho não só os encobrem — tornando-os socialmente invisíveis —, como o processo de acumulação e desenvolvimento brasileiros têm como característica a exploração altamente predatória da força de trabalho.

Enquanto os surtos epidêmicos (como os atuais, e o da meningite, em meados da década de 70 em São Paulo) são causados em grande parte pelas precárias condições de vida da população brasileira e a inexistência de prioridades governamentais para as políticas sociais, inclusive as de saúde, os acidentes de trabalho assumem, na nossa realidade, um caráter endêmico, isto é, apresenta certa freqüência que não ultrapassa determinado nível estipulado como aceitável.

De fato, de 1969 até 1982, o número de acidentes do trabalho por ano — leves e graves — nunca ficou abaixo da casa do milhão.

Nos anos de 1974 e 1975, quando o país assumiu a liderança mundial na sua capacidade de mutilar o trabalhador, o número de acidentados aproximou-se do assombroso total de 2 milhões. A partir de então, assistiu-se a um progressivo decrescimento no número de acidentes, atingindo-se em 1982 o patamar de 1970.

Mas se, a partir de meados da década de 70, há uma redução em números absolutos de aproximadamente 40% dos acidentes de trabalho, sua gravidade tende a aumentar: de 1978 a 1982 cresceu em 53% o número de acidentes que resultaram em incapacidade permanente, em 40% os casos que resultaram em invalidez e em 4% os casos que resultaram na morte do trabalhador.

Diante de tais fatos, impõe-se registrar que, se os períodos de crescimento acelerado de acidentes do trabalho correspondem a períodos de aquecimento da economia, seu aumento jamais é proporcional ao aumento da força de trabalho absorvida pela atividade econômica. Do que se deduz que esses surtos econômicos foram acompanhados por acentuada aceleração do ritmo e deterioração das próprias condições de trabalho, aumentando, portanto, a periculosidade, que jamais pode ser confundida, como leva a crer o discurso oficial, como sendo inerente ao próprio trabalho.

Explicado o aumento da gravidade dos acidentes, resta entender por que diminuiu o número global de acidentes de 1975 a 1982. Em primeiro lugar, diante da imagem trazida a público de que o contingente de acidentados em 1975 lotaria o Estádio do Maracanã e do fato de termos sido alçados à condição de campeões mundiais em acidentes do trabalho justamente num governo — Geisel — que se esforçava por reintroduzir em seu discurso a temática da prioridade social, em outubro de 1976 promulga-se a Lei nº 6.367. Dentre outras medidas, essa lei transferiu para as empresas empregadoras a responsabilidade — que deixou de ser do INPS — dos primeiros quinze dias de afastamento provocado por acidente. Muito embora a notificação de todo e qualquer acidente continue sendo compulsória, nem sempre é interesse da empresa encaminhar a notificação deles, dadas as condições de contrato do seguro de acidentes do trabalho. Em segundo lugar, como o trabalhador que se acidenta é um trabalhador estigmatizado, preterido em admissões e preferido nas demissões, ele próprio também tem interesse em não notificar ou sequer deixar transparecer pequenos acidentes. São freqüentes depoimentos de trabalhadores segundo os quais cortar-se ou arrancar unha do dedo são eventos comuns e, portanto, não são acidentes.

Mas, se a lei de 1976 resolve, a nível dos dados oficiais, a questão dos acidentes do trabalho, a nível da violência e da contundência com que atinge os trabalhadores ela continua a mesma, se não agravada agora pelo pretenso encaminhamento de solução.

Pretenso porque a tendência decrescente da curva de acidentes a partir de 1976 é atribuída não aos motivos acima apontados, mas às sucessivas campanhas de prevenção de acidentes, de iniciativa do governo. Embora não se negue sua eficácia — principalmente no caso de acidentes leves —, há que se reconhecer seus limites. Há que se reconhecer, sobretudo, que a tônica dessas campanhas recai sobre o cuidado que o trabalhador deve ter para não se acidentar. Basta examinar cartazes de prevenção de acidentes fixados no interior das empresas, em que são comuns dizeres do seguinte tipo: "Elimine os acidentes antes que eles o eliminem ", " A segurança é com você", ou ainda "Você está fazendo tudo para evitar acidentes?" Ao assim procederem, depreende-se que o sentido das campanhas é menos o de prevenir acidentes e mais o de responsabilizar e culpar o trabalhador pela sua ocorrência.

Herval Pina Ribeiro e Francisco Lacaz, pesquisadores do DIESAT (Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisa de Saúde e dos Ambientes de Trabalho), vão mais longe na crítica das campanhas oficiais de prevenção de acidentes de trabalho. Para eles, a própria ênfase do governo na utilização dos equipamentos de proteção individual significa transferir para os trabalhadores não apenas o custo social do acidente, mas a própria responsabilidade de sua ocorrência. Ao assim proceder, o governo assume a explicação de que, na maioria dos casos, o acidente é devido aos atos inseguros cometidos pelos trabalhadores, que, em suma, estariam se automutilando.

Mutilados, culpados e doentes

Como a causa básica dos acidentes do trabalho é atribuída ao próprio trabalhador, este se vê na condição de mutilado e culpado. De fato, as interpretações vigentes sobre as causas dos acidentes do trabalho dividem-se em duas vertentes: uma que a atribui ao ato inseguro do trabalhador, outra que a atribui, dadas determinadas características do trabalhador, à existência de tipos mais propensos a se acidentarem. Ambas têm em comum o fato de atribuírem fundamentalmente ao trabalhador a responsabilidade pelo acidente, e não às condições e organização do trabalho. De fato, a Fundacentro, órgão do Ministério do Trabalho, encarregado da segurança e medicina do trabalho, interpreta que 98% dos acidentes ocorrem devido a atos inseguros e condições inseguras de trabalho, mas, deste percentual, 80% dos casos são atribuídos aos atos inseguros dos trabalhadores, enquanto somente 18% são atribuídos às condições inseguras de trabalho.

E, de fato, se a eficácia das campanhas de prevenção de acidentes é limitada, o mesmo não se pode dizer da eficácia do conjunto de medidas e da atuação do Estado no setor, que respondem em última análise aos interesses do capital: o próprio trabalhador assume a responsabilidade pelo acidente. Foi o que se depreendeu a partir das entrevistas que realizamos com acidentados graves do trabalho, quando, mesmo diante de uma máquina desconhecida ou no exercício de uma outra função que não a sua, o trabalhador chama para si a culpa pelo acidente. Muito embora nos depoimentos em que era solicitada uma descrição do acidente contassem todos os elementos que levavam à necessária conclusão de que a causa do acidente eram as precárias condições de trabalho e o não-controle do processo do trabalho pelo trabalhador, este sempre o interpretava como sendo sua a culpa.

Isso apesar de o risco do acidente — não inerente ao trabalho, como quer fazer crer a verdade oficial, mas às condições do trabalho e de sua exploração — não poupar sequer a força de trabalho mais madura e, portanto, supõe-se, mais treinada e adaptada ao padrão altamente predatório de sua exploração, nem a mais qualificada. Todos estão expostos aos riscos, mesmo que em graus diferenciados de periculosidade, e a essa situação se submetem na busca de garantia do emprego num mercado de trabalho altamente competitivo e com alto grau de rotatividade da mão-de-obra. Não é, pois, de espantar, que parcela significativa dos acidentados graves do trabalho estava há menos de 90 dias no emprego (portanto, ainda em estágio probatório), como também não espanta o fato de maior tempo de permanência do trabalhador em São Paulo, por exemplo, não diminuir sua exposição ao risco de acidentar-se.

Se, no caso dos acidentes do trabalho, a fala oficial e a própria evolução da legislação evoluem no sentido de responsabilizar o trabalhador e desresponsabilizar o empregador, transformando os acidentes em fatalidades inevitáveis ou, quando evitáveis, na dependência exclusiva da postura de permanente vigilância do empregado, no caso das doenças profissionais — de menor visibilidade —, responsabilizar o trabalhador apresenta maiores dificuldades. Mas nem por isso incontornáveis por parte dos interesses patronais.

Em 1975, no Brasil, a incidência de doenças incapacitantes foi de 74/1000 segurados da Previdência Social. As cinco patologias, por ordem decrescente, responsáveis por 33% desses casos, foram: neuroses, hipertensão arterial, osteartrose, epilepsia e tuberculose. Para não se falar em situações específicas, como a de Cubatão, próximo ao litoral paulista, e os casos de leucopenia.

Também no caso das doenças incapacitantes, a lógica que prevaleceu foi a de fazer recair sobre o trabalhador o ônus, já que não se pode falar em culpa de ter adquirido uma doença, até prova em contrário. Como interpretar, senão assim, o fato de a atual legislação brasileira ter abolido o conceito de concausa, isto é, de fatores coadjuvantes ou que predispõem ao aparecimento de doenças, o que torna extremamente difícil, no âmbito restrito da lei, caracterizar muitas doenças como doenças de trabalho? Pela lei somente doenças tipicamente ocupacionais, com comprovável relação de causa e efeito entre um agente e a doença, são doenças do trabalho. Segundo o estudo citado, esse é o caso da silicose e da asbestose, mas não o da bissinose, por exemplo, que embora comprovadamente causada pela poeira do algodão cru, pelo fato de os pulmões do bissinótico não se diferenciarem dos pulmões de um bronquítico ou enfisematoso, não há como afirmar e comprovar a referida relação de causa e efeito.

Mas, da mesma forma que, dado o desenvolvimento tecnológico atual, não se pode conceber o trabalho como inerentemente perigoso, também não há como concebê-lo inerentemente nocivo à saúde. A resposta repousa, então, nas condições de trabalho, no fato do trabalhador não exercer nenhum controle sobre o processo de trabalho e ser levado a se submeter a condições altamente perigosas e nocivas à sua integridade física. Complementa o quadro uma legislação trabalhista e previdenciária omissa e o baixo controle do Estado na observação das poucas garantias que a legislação oferece.

Sucateado enquanto força de trabalho, qual o destino do trabalhador?

A violência social

Doente e/ou mutilado, produto de uma concepção prevalecente de que o trabalhador brasileiro é descartável, seu destino, quando inserido formalmente no mercado de trabalho, é procurar a assistência nas instituições do sistema previdenciário.

A trajetória do acidentado grave no trabalho é marcada por um ritual macabro de passagem por sucessivas instituições, onde é a cada novo momento examinado, avaliado e mal-informado sobre sua situação e seu destino. Essa trajetória tem início no momento mesmo do acidente: raras são as empresas que contam com recursos mínimos de socorro imediato. Ao contrário, são freqüentes descrições em que o acidentado foi levado ao hospital por um colega, tendo que esperar por um táxi.

A assistência médica a que tem direito, por outro lado, revela de forma aguda todas as distorções da atual organização de serviços: no geral, ela responde à lógica do capital, do interesse privado. Não são incomuns casos de fratura redundarem em gangrena e amputação de membros, ou a transferência do acidentado politraumatizado para várias instituições médicas segundo suas especialidades.

Submetido a longo tratamento, o acidentado é encaminhado para a perícia médica do serviço previdenciário. Avaliada sua situação física, um dos dois destinos possíveis lhe é imposto: ou a aposentadoria ou a reabilitação profissional. No primeiro caso, o trabalhador é definitivamente afastado da população economicamente ativa e passa a receber um benefício que dificilmente garante sua subsistência e de sua família. No segundo caso, recebendo um auxílio pecuniário — que como regra geral representa um abrupto rebaixamento de seus rendimentos —, é submetido a um tratamento em Centros de Reabilitação Profissional, restrito na prática ao trabalhador urbano, onde o preceito maior é recuperar uma habilidade perdida ou compensá-la, a depender do caso. O exemplo clássico seria o de um indivíduo destro que tem amputada sua mão direita, tendo, portanto, que desenvolver habilidades com a mão esquerda.

A reabilitação, no entanto, longe está de ser profissional: a nova habilidade desenvolvida, por falta de recursos no interior das instituições, não é diretamente referida a uma função laborativa. Institucionalmente considerado reabilitado — após tratamento por um período de até 180 dias —, o destino do trabalhador é o mercado de trabalho. E embora por lei a empresa na qual ocorreu o acidente seja obrigada a reabsorvê-lo, mesmo que em outra função, o trabalhador não tem nenhuma ilusão de que sua reinserção no mercado de trabalho não seja passageira e breve. Sem capacidade de "dar produção", nas condições altamente competitivas e sob a égide da instabilidade de emprego, seu destino é o desemprego e, conseqüentemente, a marginalidade.

Não é pois sem fundamento que o esforço do trabalhador acidentado grave, quando num programa de reabilitação profissional, seja o de prolongar o máximo possível seu período de tratamento, pois o fantasma do desemprego é algo muito palpável. Mais que isso, além de desempregado, pesa-lhe o estigma de sempre querer estar encostado na "caixa", como se o mundo do trabalho, da vida útil, não fosse por ele valorizado.

Seu destino, inapelavelmente traçado a partir do momento do acidente — ponto máximo da violência física — é a marginalidade social. Reconhecido pela sociedade como inapto para o trabalho, é por essa mesma sociedade transformado em invisível para o conjunto dos cidadãos. Sua vida, bem como a de seus familiares, sofre uma ruptura brusca onde a mutilação física é o momento crucial, ao qual se sucedem repetidas violências sociais. A desesperança passa a ser a marca de sua vida, transformando-se de força de trabalho sucateada em cidadão sucateado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Mar 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 1986
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