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A impertinência da pertinência: reflexões em torno do pensamento sobre o Brasil nos Estados Unidos

The impertinence of belonging: reflections around thought about Brazil in the United States

Resumos

Quando se deixa o Brasil por uma experiência acadêmica no exterior, ele pode tornar-se um significante estranho, um espaço que o sujeito deve representar e que, no entanto, ele não pode mais reconhecer completamente. O que é o Brasil num ambiente acadêmico como o norte-americano, em que o país é visto como caudatário de uma tradição "latino-americana" que grande parte dos brasileiros mal reconhece como sua? Será a América Latina uma construção simbólica coerente e estável somente da perspectiva da comunidade acadêmica anglófona? O que significa perguntar-se sobre a literatura brasileira fora do Brasil? Estas e outras questões serão tratadas aqui, para ao fim perguntar se a pertinência não é o mais impertinente entre os nossos mais acalentados sentimentos.

Pensamento brasileiro; Linguagem e nação; América Latina; Universalismo; Estudos de área


When one leaves Brazil for an academic experience abroad, "Brazil" can become a strange signifier, a space one is supposed to represent but which one cannot completely recognize anymore. What is Brazil in a North-American academic environment where Brazil itself is seen as part of a "Latin-American" tradition that for most Brazilians is barely recognized as theirs? Is it possible that Latin America as a coherent symbolic construct is only pertinent from the perspective of an English-speaking academic community? What does it mean to raise questions about Brazilian literature when we are abroad? These and other questions will be addressed here in order to ask if belonging is not the least pertinent of our most cherished feelings.

Brazilian thought; Language and nation; Latin America; Universalism; Area studies


DOSSIÊ PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO

A impertinência da pertinência: reflexões em torno do pensamento sobre o Brasil nos Estados Unidos

The impertinence of belonging: reflections around thought about Brazil in the United States

Pedro Meira Monteiro

Professor do Departamento de Espanhol e Português da Universidade de Princeton

RESUMO

Quando se deixa o Brasil por uma experiência acadêmica no exterior, ele pode tornar-se um significante estranho, um espaço que o sujeito deve representar e que, no entanto, ele não pode mais reconhecer completamente. O que é o Brasil num ambiente acadêmico como o norte-americano, em que o país é visto como caudatário de uma tradição "latino-americana" que grande parte dos brasileiros mal reconhece como sua? Será a América Latina uma construção simbólica coerente e estável somente da perspectiva da comunidade acadêmica anglófona? O que significa perguntar-se sobre a literatura brasileira fora do Brasil? Estas e outras questões serão tratadas aqui, para ao fim perguntar se a pertinência não é o mais impertinente entre os nossos mais acalentados sentimentos.

Palavras-chave: Pensamento brasileiro; Linguagem e nação; América Latina; Universalismo; Estudos de área.

ABSTRACT

When one leaves Brazil for an academic experience abroad, "Brazil" can become a strange signifier, a space one is supposed to represent but which one cannot completely recognize anymore. What is Brazil in a North-American academic environment where Brazil itself is seen as part of a "Latin-American" tradition that for most Brazilians is barely recognized as theirs? Is it possible that Latin America as a coherent symbolic construct is only pertinent from the perspective of an English-speaking academic community? What does it mean to raise questions about Brazilian literature when we are abroad? These and other questions will be addressed here in order to ask if belonging is not the least pertinent of our most cherished feelings.

Keywords: Brazilian thought; Language and nation; Latin America; Universalism; Area studies.

Retomo aqui argumentos desenvolvidos ao longo dos últimos anos a respeito da condição de se estudar o Brasil nos Estados Unidos, ou a partir dos Estados Unidos. Há um tom autobiográfico mais ou menos inescapável nesta reflexão, que, no entanto, não pretende expor um caso "exemplar". A menos que, por "exemplar", se compreenda aquilo que pode servir como abertura de uma perspectiva de investigação sobre um problema amplo, que em si ultrapassa em muito a experiência individual (Monteiro, 2008a).

Entretanto, no balanço entre o anedotário pessoal que todos carregamos e o sentido de uma experiência coletiva, deve-se assinalar que nos últimos anos parece haver um reaquecimento da reflexão sobre o Brasil nos Estados Unidos, especialmente no âmbito dos estudos literários – do qual não se exclui, é claro, o que aqui se nomeia "pensamento social".

Constrói-se o pensamento sobre o Brasil a partir de uma produção longeva, muitas vezes insuspeitadamente rica para aqueles que estão no país. Mas, sobretudo, constrói-se o pensamento a partir de um diálogo continuado com os centros produtores de reflexão acadêmica no Brasil. Insista-se então que o "Brasil", a despeito do que aqui se vai sugerir, é a fonte principal de onde emana a orientação do debate intelectual, embora a reflexão feita às margens (e os Estados Unidos estão "às margens", na geografia específica dos estudos sobre o Brasil) possa deslocar, mais ou menos, os eixos prevalecentes na discussão brasileira. Produção brasileira... sobre o Brasil, uma vez mais.

A quantidade de referências ao "Brasil" será então uma armadilha inescapável neste texto, assim como a utilização de aspas. Desse modo, pretendo simplesmente apontar o momento no qual o Brasil surge inequivocamente como constructo, em tudo próximo da fantasia intelectual (ou fantasia dos intelectuais) sobre essa unidade problemática que, quanto mais dela nos distanciamos, mais se torna interessante, e mais profundamente problemática.

Deslocamento: de onde (e sobre o que) se fala?

Desde que o deixei para iniciar uma carreira acadêmica nos Estados Unidos, onde eu viria a lecionar literatura brasileira na Universidade de Princeton, o "Brasil" tornou-se um significante estranho, um espaço que eu deveria representar, e que no entanto não posso mais reconhecer completamente. O que é o Brasil num ambiente acadêmico como o norte-americano, no qual o país é visto como caudatário de uma tradição "latino-americana" que para grande parte dos brasileiros mal é reconhecida como sendo a sua? Será possível que a América Latina como construção simbólica coerente e estável somente seria possível da perspectiva de uma comunidade acadêmica anglófona? O desafio aqui é orientar-se por estas questões para então perguntar se a pertinência não é, afinal, um dos menos pertinentes entre os nossos mais fundos sentimentos.

Comecemos pela viagem, que prefigura todo e qualquer deslocamento. Embora não haja nada de novo em descrever a relação entre literatura e viagem, ou literatura e exílio, é preciso lembrar, de início, que a conexão entre a escrita e o deslocamento invade a percepção da literatura. Penso aqui nas reflexões de Edward Said (2000) em relação ao exílio, para limitar-me a um pensamento crítico segundo o qual referir-se à literatura somente é possível quando há deslocamento, isto é, quando o sujeito, seja ele o escritor ou a personagem, deixou aquilo que lhe é familiar. Sem tal viagem não haveria nada de importante a contar. Mas todos sabemos – e o sabemos sobretudo por causa da literatura – que um relato não é jamais uma história completamente nova. No plano linguístico e, de modo mais abrangente, no plano cultural, o sujeito precisa daquilo que já conhece para poder contar a experiência do que desconhece. A experiência do novo se converte, então, na saga de um abandono: eu conto o que encontro, mas para fazê-lo preciso daquilo que deixei e não é mais possível alcançar. Aquilo que deixei pode fazer parte de uma paisagem específica, embora participe também de algo apenas localizável num plano psicológico, no qual ações e sentimentos são reconhecidos como "meus", ou "nossos".

Não será casual se a teoria contemporânea, em especial num ambiente acadêmico anglófono, se compraz com a ideia de espaços "in-between", como têm sido compreendidos e nomeados na linguagem dos estudos pós-coloniais, e já, pioneiramente, na forma como Silviano Santiago percebera o discurso latino-americano como um "entrelugar" (Santiago, 1978). Para além do evidente incômodo com as fronteiras nacionais (incômodo expresso tão claramente no desejo de tornar concretas tais fronteiras, convertendo-as em uma espécie de military compound que, em si mesmo, é a evidência da esclerose de um projeto político que se fia em fronteiras claras), há, na imaginação de um espaço que fica "in-between", uma profunda compreensão do fenômeno da linguagem.

Afinal, a linguagem é o espaço em que o familiar se encontra com o estranho, no qual a casa, a morada do sujeito, se desestabiliza e se revela em toda sua precariedade. A linguagem, sabemo-lo por simples intuição ou pela teoria contemporânea mesma, refere-se àquilo que não está mais presente, àquilo que sou incapaz de manter; àquilo, enfim, que se me escapa pelas mãos. Sabemos que, quando falamos ou escrevemos, procuramos tornar presente algo que desejaríamos ver aqui, mas cuja presença somente é possível através da linguagem. Daí é que o sujeito fala, a partir desse lugar, e também deste lugar em que a falta se apresenta.

"Aquilo que falta" e o "estranhamento" são categorias inescapáveis para a discussão da experiência subjetiva da migração. A ninguém escapará que o solo no qual nos movemos, quando falamos de deslocamento e sentido, é também aquele franqueado pela psicanálise. O conhecimento psicanalítico permite – talvez melhor que nenhum outro – entender que o sujeito não pode constituir-se senão mediante a falta e o abandono, que são o ponto de partida para o reconhecimento de tudo aquilo que eu desejo compreender1 1 Penso aqui, especialmente, nas considerações de Lacan sobre a "angústia" como resultado de uma falta especial (Lacan, 2004). Em termos freudianos, o sujeito termina sempre por experimentar o momento em que o estranho ( Unheimlich) e o familiar se encontram. Na releitura lacaniana, a angústia aparece quando o familiar falta, ou melhor, quando a falta familiar faz falta, dando à luz o paradoxo de que uma falta está faltando. As complicações teóricas daí advindas dificilmente poderiam se resumir à ideia de que a ausência do objeto desejado é suficiente para sustentar o desejo. O momento de invasão do familiar (mesmo em sua falta) pelo estranho (sinistro) é o que marca a experiência em tela, permitindo a Lacan falar em angústia. No nosso caso, o objeto em questão pode ser tanto o sujeito ("o" latino-americano) quanto um constructo teórico como a "América Latina", sendo que ambos, como se verá, são constantamente invadidos pelo estranho. .

Deixa o Brasil pra lá2 2 É curioso que o jogo com as palavras seja impossível com a língua inglesa, e que a versão norte-americana deste subtítulo tenha se desdobrado em "leave it there, or never mind" (Monteiro, 2008a).

É inevitável perguntar-se sobre o valor da própria experiência. O que significa deixar o Brasil, iniciando uma história que não é propriamente a do exilado, mas a do expatriado, de quem deixa o país embora tenha a opção de ficar? O que acarreta deixar um ambiente acadêmico como o brasileiro para instalar-se numa universidade nos Estados Unidos? O que pode trazer de novo pensar a literatura brasileira, ou antes o "pensamento brasileiro", a partir da academia norte-americana?

Em primeiro lugar, há um dado fundamental na experiência de acadêmicos brasileiros trabalhando fora do Brasil, que os diferencia de grande parte de seus colegas "latino-americanos". É que não se pode justificar o deslocamento aos Estados Unidos como uma consequência da precariedade do sistema acadêmico brasileiro, da falta de oportunidades ou dos baixos salários de um professor universitário. Esta pode ser a realidade de vários países latino-americanos, mas não é, evidentemente, o caso do Brasil3 3 Aqueles que conhecem a realidade dos departamentos de "Espanhol e Português" nos Estados Unidos sabem que o significativo fluxo de estudantes de pós-graduação hispano-americanos se deve principalmente à falta de possibilidades para continuar os estudos em seus países de origem. Este não é o caso do Brasil, evidentemente, onde um sistema relativamente forte de pesquisa e pós-graduação é plenamente sustentado pelo Estado. Para uma discussão do sistema acadêmico brasileiro a partir da experiência da Universidade de São Paulo, ver Schwartzman (2006). .

Meu deslocamento, portanto, tem a ver menos com uma imposição de circunstâncias adversas, e muito mais com uma opção. É claro que tal opção, como aliás toda e qualquer opção, esconde desejos inconfessos, razões ocultas, fantasias das quais o sujeito nem sempre é plenamente consciente. Não cabe aqui entrar em detalhes pessoais, mas é certo que tal "opção" obrigou-me a romper uma parede espessa de ressentimentos, composta principalmente por aquele antiamericanismo tão arraigado entre intelectuais de esquerda no Brasil. Não à toa, ainda hoje percebo, entre alguns antigos professores e colegas brasileiros, uma reação ambígua diante de meu deslocamento, como se houvera uma traição original, uma entrega despudorada a esse Outro temido, admirado e repudiado, que são os Estados Unidos.

Aí se instaura, creio, um primeiro e importante problema, extremamente produtivo do ponto de vista intelectual: o espaço interdito em que penetro quando inicio o questionamento sobre o Brasil. E aí surgem, é claro, as primeiras perguntas, que muito me assombraram em meus anos iniciais como professor em Princeton. O interesse norte-americano pelo "Brasil" não esconderia, no fundo, o desejo de exploração econômica de um país pobre e desprotegido? Estaria eu tornando-me o agente orgânico de um saber que tão-somente alimenta e capacita as elites econômicas e políticas dos Estados Unidos? O que ensino não será imediatamente instrumentalizado para uma dominação que eu repudio? Serei eu o funcionário de uma máquina econômica e ideológica que coopta intelectuais estrangeiros, pondo-os a serviço da exploração secular da América Latina?

O tom no fundo infantil dessas perguntas (e de todas as possíveis respostas positivas a elas) deixa poucas dúvidas sobre estarmos diante de um fantasma muito antigo, que evidentemente não é meu apenas, nem é exclusivo de minha geração. A aproximação com os Estados Unidos tem a ver, afinal, com a fascinação diante do "monstro" que se esconde atrás dos nossos mais fundos temores. Para caminhar por área abertamente freudiana, suponho que o "monstro" em cujos domínios proibidos eu penetro é, justamente, o grande e terrível Pai-explorador ameaçando cortar o que tenho de mais precioso, isto é, meu tesouro latino-americano.

No coração do monstro4 4 É exatamente ao entrar nos Estados Unidos pela baía de Nova york, em 1893, que o poeta nicaraguense Rubén Darío se refere a " el corazón del monstruo" (Darío, 1952), expressão que se tornaria célebre na pena de Martí.

Um admirador qualquer da literatura brasileira reconhecerá aí um tópos muito especial. Refiro-me a Macunaíma, o "herói de nossa gente," anti-herói cômico e sem caráter que Mário de Andrade criou na década de 1920. Como se sabe, a saga de Macunaíma refere-se à busca de um amuleto sagrado roubado pelo "gigante Piaimã", que come gente e guarda consigo, na grande cidade corrompida, a pedra preciosa que o herói pretende recuperar e levar de volta à floresta (Andrade, 1996).

Para além dos evidentes traços rabelaisianos (que a crítica brasileira já trabalhou em luxuosa interpretação), Macunaíma desenvolve-se a partir de um sentimento de perda, da falta de uma explicação, da ausência de um sentido que somente a pedra preciosa, como amuleto a um só tempo misterioso e sagrado, traria de volta. Seguindo as pegadas de Macunaíma, poderíamos perguntar-nos: será que o sentido que busco, ou a falta de sentido a que respondo, não é já o resultado da presença inquietante e ameaçadora do gigante? Não será o gigante, justamente, quem guarda o segredo da busca, a pedra preciosa que supomos roubada?

Macunaíma tem uma relação tensa e muitas vezes estranha com a América Latina, como aliás muitos dos modernistas brasileiros, e como muitos dos brasileiros, tout court. Na trama rapsódica de Mário de Andrade, sabe-se que o gigante Piaimã é também, em uma de suas muitas metamorfoses, um "regatão peruano". E Macunaíma, como lembra o crítico argentino-brasileiro Raúl Antelo, deixa, numa ilha isolada e distante, a sua "consciência latino-americana", antes de iniciar sua jornada em busca do amuleto perdido (Antelo, 1986).

Aqui se apresenta o deslocamento mais importante de toda a história que, de alguma forma, vou contando. Diante do monstro, ou no próprio coração do monstro, é que um brasileiro pode perceber novamente o óbvio: a América Latina existe, e o Brasil talvez faça parte dela. Não seria preciso lembrar senão de passagem a história dos "area studies" para perceber os programas de estudos latino-americanos, em que tantos nos abrigamos na academia norte-americana, como frutos de um olhar interessado lançado pelo gigante do norte sobre os vizinhos pobres do sul.

Se por um lado o conceito de "América Latina" é uma criação original do espírito imperialista francês no século XIX, quando o termo ganhou relevância política e crítica no Segundo Império5 5 H á controvérsias sobre o primeiro momento em que o termo (América Latina) teria sido utilizado. Diniz (2007) sugere que o conceito foi provavelmente usado pela primeira vez por Charles Calvo, no seu Recueil complet des traités, de 1862. Jorge Schwartz, contudo, afirma que "o termo América Latina, surge pela primeira vez em 1836, em artigo de Michel Chevalier, retomado com vigor pelo escritor e diplomata colombiano José Maria Torres Caicedo", autor do tratado Unión latino-americana, de 1865. Ainda de acordo com Schwartz, a ideia de que o termo teria sido "cunhado e difundido pelos ideólogos de Napoleão III, como justificativa da invasão do México", não passa de engano (Schwartz, 1993). Para um amplo debate da razão imperial que preside a concepção de uma América "hispânica", ver Díaz Quiñones (2006). , não será exagerado dizer que, hoje em dia, a América Latina é possível, como constructo teórico e produto imaginário, graças principalmente à academia norte-americana, onde o conceito é perfeitamente operacional e um professor de literatura brasileira (com todos os seus esforços estendidos à história do "pensamento social") estará sempre exposto ao cânon hispano-americano, tornando impossível que se restrinja à área lusófona da América6 6 Pertencer ao campo de "português" de um departamento de Espanhol e Português, ou de línguas românicas, abre necessariamente uma frente em que um novo "Outro" se revela. Refiro-me aqui à literatura portuguesa, mas também às literaturas do espaço pós-colonial lusófono, aí incluídas África e Ásia (Monteiro, 2008b). Para um panorama dos debates contemporâneos de crítica literária e cultural sobre a América Latina, num livro que sintomaticamente não contém um único artigo de um crítico brasileiro (ainda que Raúl Antelo trabalhe com temas "brasileiros" em sua contribuição), ver Sánchez Prado (2006). .

Para ser mais exato, e para aventurar-me a uma explicação secante, a América Latina como unidade teórica subsiste graças àquilo que, no contexto da Guerra Fria, era o temor profundo de perder as "Américas" para um Outro que, naquele momento, tinha cara e nome. Hoje esse Outro perdeu muito de sua consistência, como aliás pode sugerir o relativo desinteresse pelo "latino-americano", quando comparado a outros campos, ou a outros "Outros" muito mais em voga na preferência de estudantes e scholars, que respondem sempre às urgências do cenário político internacional, no qual o monstro, afinal, parece progressivamente perder sua pujança e seu prestígio7 7 O relat ório de 2007 da Modern Language Association ("Enrollments in languages other than English in United States institutions of higher education") mostra que, entre 2002 e 2006, o aumento no número de matrículas em português nas instituições superiores dos Estados Unidos foi significativamente mais modesto do que em línguas como árabe e chinês (Furman, Goldberg e Lusin, 2007). .

A América Latina no espelho norte-americano

Insisto na ideia de que o relativo silêncio no Brasil em relação aos "irmãos latino-americanos" (a despeito da retórica diplomática empenhada em reafirmar os nossos laços de parentesco8 8 A express ão ("nossos irmãos latino-americanos") é encontradiça na retórica oficial da diplomacia brasileira. Ver, por exemplo, Amorim (2005). ), assim como o fato de que a "América Latina" seja um significante que frequentemente dispara entre brasileiros a noção da América espanhola, possa ser superado, ou pelo menos questionado, a partir da academia norte-americana.

Não se trata, é claro, de simples elogio do espaço institucional e acadêmico que os programas de estudos latino-americanos oferecem. Trata-se apenas de perceber que o reconhecimento do "Outro" latino-americano – que, para o Brasil, é a América espanhola – é um movimento facilitado pela academia norte-americana. Nesse sentido, penso que minha experiência pessoal possa ser ilustrativa, desde que tomada como parte de uma complexa experiência cultural, ou seja, vivida por inúmeros acadêmicos brasileiros que trabalham hoje no campo de estudos luso-brasileiros principalmente a partir dos Estados Unidos. É significativo, por exemplo, que nos departamentos de Espanhol e Português seja impossível, para um professor de literatura brasileira, desconhecer olimpicamente – como se faz amiúde no Brasil – a tradição literária hispano-americana. O contrário (que os acadêmicos hispano-americanos desconheçam olimpicamente a tradição brasileira e as especificidades do campo de estudos luso-brasileiros) é, no entanto, possível e aliás comum em tais departamentos. Trata-se, afinal, de uma batalha surda, que se expressa à perfeição na utilização das línguas: qualquer colega de departamento hispanofalante, nesse contexto, pode se dar ao luxo de desconhecer o português, enquanto para um scholar do Brasil o desconhecimento completo do espanhol pode ser um suicídio intelectual.

Na academia americana dão-se condições propícias para aquilo que outro crítico argentino-brasileiro, Jorge Schwartz, chamou de "Abaixo Tordesilhas!"9 9 Schwartz remete o interesse de intelectuais brasileiros pela tradi ção literária hispano-americana a autores como José Veríssimo, Mário de Andrade, Brito Broca, Manuel Bandeira e, mais recentemente, Antonio Candido e Haroldo de Campos. É claro que atualmente outras tentativas de "derrubar" a linha imaginária de Tordesilhas podem ser encontradas. Para o caso do profícuo diálogo argentino-brasileiro, ver, por exemplo, Artundo (2004), Gelado (2006), Garramuño (2009), Miceli (2010) e Blanco (2010). É óbvio que não se pode esquecer a importância, embora relativa, da área de literatura hispano-americana em diversas universidades brasileiras onde a perspectiva comparativa tem também seu lugar. Como recordação basta pensar nos trabalhos já clássicos e paradigmáticos de Davi Arrigucci Jr. . A propósito, foi com um colega peruano (com quem ministrei um curso sobre literatura colonial nas Américas portuguesa e espanhola) que descobri ser "Tordesilhas" um referente praticamente vazio para o lado de lá da América Latina. De fato, poucos hispano-americanos sabem que a linha imaginária de Tordesilhas marcou, durante mais de duzentos anos, a divisão das possessões castelhanas e portuguesas na América. No Brasil, entretanto, eu aprendi no primário, como tantos de meus compatriotas, o significado da "linha de Tordesilhas". As crianças brasileiras são educadas para separar-se do Outro latino-americano10 10 No plano das metáforas infantis, penso no discurso de José Veríssimo, por ocasião da visita de Rubén Darío à Academia Brasileira de Letras em 1912: "Filhos do mesmo continente, quase da mesma terra, oriundos de povos, em suma da mesma raça, ou pelo menos da mesma formação cultural, com grandes interesses comuns, vivemos nós, Latino-Americanos, pouco mais que alheios e indiferentes uns aos outros e nos ignorando quase que por completo" (Schwartz, 1993, p. 185). .

A relação problemática entre os que estão separados pela linha imaginária de Tordesilhas se intensifica e se dramatiza especialmente a partir da academia norte-americana, onde é possível encontrar filiações e áreas comuns que, no ambiente familiar da universidade brasileira, passam muitas vezes despercebidas. No Brasil nos esquecemos daquilo de que os Estados Unidos vão nos lembrar: o Outro ao lado vive obsedado por um fantasma, e por uma autoridade ameaçadora, que nos torna realmente mais próximos, em nossas diferenças. Tal fantasma, partilhado ao fim por hispano-americanos e brasileiros, é, uma vez mais, o gigante do norte com sua sombra que desperta ódio e inveja.

O que pretendo aqui sugerir poderia ser resumido nos seguintes termos: a unidade latino-americana é uma hipótese epistemológica cuja força aumenta conforme penetramos o espaço da academia norte-americana, onde podemos identificar-nos como "Latin Americanists" mesmo quando nosso campo se restringe a uma região dentro do que se costuma chamar América Latina.

Levando o argumento aos seus limites, do ponto de vista de um brasileiro isso se dá por uma razão precisa: há uma fantasia, comum a hispano-americanos e brasileiros, sobre a diferença em relação ao "irmão mais forte e afortunado" que são os Estados Unidos, nas palavras de Caetano Veloso11 11 Na introdu ção a Verdade tropical, Caetano sugere que, quando se procura compreender a "totalidade absolutamente outra a que chamaram de Brasil", seria inevitável o paralelo com os Estados Unidos: "Se todos os países do mundo têm, hoje, de se medir com a 'América', de se posicionar em face do Império Americano, e se os outros países das Américas o têm que fazer de modo ainda mais direto − cotejando suas respectivas histórias com a do seu irmão mais forte e afortunado −, o caso do Brasil apresenta a agravante de ser um espelhamento mais evidente e um alheamento mais radical. O Brasil é o outro gigante da América, o outro melting pot de raças e culturas, o outro paraíso prometido a imigrantes europeus e asiáticos, o Outro. O duplo, a sombra, o negativo da aventura do Novo Mundo. O epíteto de 'gigante adormecido', aplicado aos Estados Unidos pelo almirante yamamoto, será tomado por qualquer brasileiro como referente ao Brasil, e confundido com o já considerado agourento 'deitado eternamente em berço esplêndido' da letra do Hino Nacional" (Veloso, 1997, p. 14). . Logicamente, sempre que afirmo a diferença passo a depender do objeto diverso para sustentar meu próprio caráter insubstituível. Isto não quer dizer, necessariamente, que eu possa precisar tal diferença. A unicidade, e a diferença mesma, é fundamentalmente uma fantasia.

Para trilhar um caminho bastante conhecido da crítica contemporânea, falar da identidade é enfrentar a diferença como (im)possibilidade, ou como aquilo que Derrida celebremente cunhou de différance12 12 A ideia e a for ça da " différance" vêm do deslocamento, justamente: "nós podemos então chamar de différance essa discórdia 'ativa', em movimento, de forças diferentes e de diferenças de forças que Nietzsche opõe a todo o sistema da gramática metafísica por todos os cantos onde ela comanda a cultura, a filosofia e a ciência" (Derrida, 1972, p. 19). Derrida chama de "gramática metafísica" exatamente aquilo que garantiria à palavra "Brasil" ser pensada a partir de um significado autoevidente, como se a possibilidade de conhecer o Brasil fosse tautologicamente dada pelo próprio Brasil. O que proponho com este meu artigo é exatamente o contrário: conhecer o Brasil só é possível quando se percebe que o signo-Brasil não existe fora daquele sistema de "forças". Em outras palavras, não há gramática em que o significado do "Brasil" seja estável ou conclusivo. É preciso fugir ao signo-Brasil, ao poder mesmo da palavra, para compreender o país não apenas como a construção discursiva que é, mas para entender essa construção como prova de que o "Brasil" não existe fora da linguagem, ou fora daquele universo de forças, de diferenças e différance. Para explorar uma linha algo semelhante, refletindo sobre a tautologia do signo nacional, ver Rocha (2003). . Sumarizando meu argumento, a América Latina é uma postulação quase impossível sem a mediação simbólica dos Estados Unidos, e sem o deslocamento de sentidos por eles disparado, ou que a partir deles se dispara.

Leituras exorbitantes: de Machado de Assis a Shakespeare

Por certo, nem só à condição "latina" se referem as possibilidades abertas por tais desvios, que são afinal o resultado de deslocamentos proporcionados pela própria leitura que se faz fora da órbita do "nacional". Não me parece equivocada a suposição segundo a qual ler de outro lugar, ou desde outro lugar, pode disparar questões que põem em xeque a condição irredutivelmente "local" da literatura. Sirva como exemplo o caso sempre complexo e polêmico de Machado de Assis: de um lado, as leituras em chave "alegórica" a que a senda aberta por Roberto Schwarz convida; de outro, a reação à "redução estrutural" (expressão celebrizada no Brasil por Antonio Candido) que prende a teia machadiana a uma formação histórica específica – específica, ainda que até certo ponto comparável, ao menos dentro do espaço comum que a imaginação do crítico austríaco-brasileiro vai identificar como uma vasta "periferia do capitalismo".

De um lado, Roberto Schwarz e sua reação ao "comparatismo europeu" de Franco Moretti (Schwarcz e Bote-lho, 2008, p. 154), bem como ao "reconhecimento e apropriação" dos "intermediários poliglotas e peritos a que se refere [Pascale] Casanova", àqueles autores, em suma – estrangeiros ou estrangeirados –, cuja proposta heteróclita e descentrada não escapa à zanga de um schwarziano "desconjuntamento"... (Schwarz, 2006, p. 66). Ou então, como no caso sempre notável de Helen Caldwell, Schwarz reconhece o gesto de ousadia crítica de uma mulher, estrangeira ao cânon brasileiro e latino-americano, aficionada a Shakespeare, professora de letras clássicas, que se põe a escrever no início da década de 1960, na Califórnia, para desvendar a prepotência machista de Bento Santiago, em quem Iago e Otelo se cruzam.

No entanto, o reconhecimento tem um preço: ao mesmo tempo em que a elogia, Schwarz sugere que o avanço crítico de Caldwell não vai além de "resultados de tipo universal", obtidos "no espaço como que atemporal e homogêneo das obras-primas do Ocidente, por meio da comparação abstrata de caracteres ou situações, e de análises também elas universalistas" (Schwarz, 2006, p. 70)13 13 Como sustenta o cr ítico, "as diferenças entre Machado, Shakespeare e demais clássicos importam, pois têm desempenho estrutural-histórico, sugerindo mundos correlativos e separados, que esteticamente seria regressivo confundir. A presença ubíqua da cor local não pode ser mera ornamentação, sob pena de rebaixamento artístico. A própria desautorização do narrador masculino, tão esclarecedora, só atinge a plenitude de sua irradiação quando combina os atropelos do ciúme – uma paixão relativamente extraterritorial – às particularidades do patriarcalismo brasileiro do tempo, vinculado a escravidão e clientelismo, assim como à autocomplacência das oligarquias, além de vexado pela sombra do progresso europeu" (Schwarz, 2006, pp. 70-71). .

De outro lado, no entanto, tem-se a reação de Michael Wood, que sutilmente rejeita a sombra da suspeita de "predação" lançada por Schwarz sobre leitores como ele e Susan Sontag, que tiveram talvez o azar de escrever a partir de um lugar facilmente identificável como um arrogante e despreparado "centro" do mundo (e aqui encontramos novamente a ideia da rejeição vigorosa ao "monstro" e a seu poder de sedução). "Como se publicar na New York Review of Books", diz o crítico inglês (que ensina também em Princeton), "fosse viver no centro do mundo cultural – em Paris, por assim dizer, tal como vista de Itaguaí" (Wood, 2009, p. 188).

A questão, portanto, seria menos a busca equívoca de uma abordagem "universal" de um autor nacional, e mais a tentativa de "ligar nossa experiência de leitura a outros contextos, especialmente o nosso próprio", enquanto

o suposto leitor internacional, tendo se tornando um leitor tão nacional quanto lhe é possível, possa proveitosamente voltar para casa e comparar: comparar, não assimilar ou achatar, já que a comparação, quando é ativa, mesmo quando é comicamente ativa, como na ligação feita por Machado entre Paris e Itaguaí, mantém vivos todos os seus componentes e não subordina um ao outro (Wood, 2009, pp. 188-189).

É o "provincianismo intrigante" da própria ideia do universal que chama a atenção do crítico radicalmente estrangeiro que é Michael Wood, para quem o "confinamento final", marca de todo verdadeiro provincianismo, é o aprisionamento da linguagem, ou melhor, o confinamento "dentro de certa linguagem que não sabe quão limitada é, uma linguagem que se tranca, por assim dizer, em sua própria Bastilha" (Wood, 2009, p. 189), nesta conhecida identificação machadiana da Casa Verde como nada menos que uma "outra" Bastilha, onde a razão impera absoluta, pelo menos até começar a desconfiar que a desrazão é sua verdadeira marca.

Fugindo (em parte) ao espectro da crítica machadiana, é no coração do monstro – ainda aqui seguindo a expressão de Darío e Martí –, naquele "centro" maldito, que se torna possível vislumbrar, com especial precisão e abrangência, uma larga tradição de idealização da diferença, que poderíamos já identificar àquela prisão da linguagem, que funciona como uma armadilha montada e sustentada por aqueles que creem na fundamental diferença entre "nós" e "eles". Ironicamente, é Shakespeare, também aqui, quem dá a senha para compreender aquilo que se constrói, sempre no plano da fantasia intelectual (de novo: fantasia dos intelectuais), como radicalmente diferente.

Em um nível fundamental da história do pensamento latino-americano (na qual podem e devem ser incluídas, é claro, as tradições do Caribe francês), a imaginação da diferença se arma a partir da secular e tão bem conhecida geografia shakespeareana: Ariel, Caliban e a mediação violenta de Próspero. Refiro-me à redescoberta moderna das personagens de A tempestade, identificada por Chantal zabus como uma "Calibanic genealogy" que emergiria em Caliban: suite de "La tempête" (de 1878), de Renan, e se desdobraria até à crítica mais ou menos feroz aos Estados Unidos que está, de formas de resto tão diversas, em autores como Darío e Rodó. Tal crítica se sustentaria pelo menos até o cânon shakespeareano ser reescrito "da perspectiva de Caliban", quando se tornaria possível, no plano político, reescrever A tempestade como um emblema da condição pós-colonial, nos já referidos e sempre inescapáveis anos 1960, quando rein-terpretações diversas como as de Fernández Retamar, Aimé Césaire ou Frantz Fanon vêm somar às discussões anteriores da etnopsiquiatria, que com Dominique Mannoni inventara o célebre "complexo de Próspero". Mannoni que, na Martinica, fora professor de Césaire, que por sua vez seria professor de Fanon (zabus, 2002, p. 32)14 14 A descoloniza ção como que provou uma necessidade absoluta de escritores pós-coloniais africanos e do Caribe dos anos 1960, bem como intelectuais dissidentes da Europa e América Latina, usarem a ideia contra-hegemônica do Caribe, a fim de desestabilizar o conjuunto de ideias coloniais e chamar pelo desprivilegiamento do Próspero-qua-colonizador(zabus, 2002, p. 9). .

De Rubén Darío a Richard Morse, passando por José Martí, Rodó, Sérgio Buarque, Monteiro Lobato, Gilberto Freyre, Fernández Retamar e tantos outros, a idealização de uma outra América se dá ora em positivo (na maioria dos casos, quando uma América propriamente ibérica, ou latina, desperta admiração e esperança), ora em negativo (quando mal se esconde a admiração pelo "gigante adormecido"). Ou então, um tom ambivalente marca o reconhecimento daquelas "raízes" do Brasil, como no caso clássico e ainda estimulante de Sérgio Buarque de Holanda. Em todas essas frentes, está em pauta o espelho norte-americano, ou o "espelho de Próspero" a que se referiu Richard Morse num livro central para a imaginação latino-americana – um livro escrito e nunca publicado em inglês, mas disponível em português e em espanhol15 15 Retomando a passagem célebre: "Há dois séculos um espelho norte-americano tem sido mostrado agressivamente ao Sul, com consequências inquietantes. Talvez seja a hora de virar esse espelho. Num momento em que a Anglo-América experimenta uma crise de autoconfiança, parece oportuno confrontar-lhe a experiência histórica da Ibero-América, não mais como estudo de um caso de desenvolvimento frustrado, mas como a vivência de uma opção cultural" (Morse, 1988, pp. 1314). Sobre o encantamento de Morse pela Ibero-América, ver Monteiro (2010). .

A tangente do signo

Há um movimento, um deslocamento inicial necessário para que essas questões se armem e possam ganhar coerência e profundidade. Deslocar-se, no caso, pressupõe o abandono de uma posição original, alterando não apenas a perspectiva por meio da qual se vê todo um campo de estudos, mas, sobretudo, nos colocando diante daquilo que aqui se viu nomear como um "entrelugar".

Não se trata, é claro, de imaginar que o estudo das tradições latino-americanas – como um corpo unindo o Brasil à América espanhola – seja possível, ou mesmo desejável, apenas nos Estados Unidos. Não deixa de ser significativo, porém, que dois dos críticos lembrados acima, que postulam tal possibilidade, sejam estrangeiros no Brasil16 16 Tanto Ra úl Antelo como Jorge Schwartz têm se enfronhado, já há bastante tempo, numa espécie de insistente campanha de desprovincianização da literatura brasileira. Importa lembrar, a propósito, que o diálogo entre Antonio Candido e Ángel Rama ganhou especial visibilidade depois que Antelo organizou Antonio Candido y los estudios latinoamericanos na série "Críticas" do Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana da Universidade de Pittsburgh (Antelo, 2001). Aí um exemplo inequívoco de um espaço intermédio, onde uma publicação bilíngue (espanhol e português) torna-se possível graças a uma universidade norte-americana. Não menos significativo é que estas minhas reflexões tenham sido originalmente formuladas como contribuição a um número especial de uma revista norte-americana que se propunha investigar a experiência de expatriados latino-americanos nos Estados Unidos, e sua relação com o que foi deixado (Monteiro, 2008a). .

Há um deslocamento que não é apenas geográfico no gesto de voltar-se para o grande debate latino-americano a partir dos Estados Unidos, isto é, a partir das imagens que se refletem no incômodo espelho norte-americano, em cuja superfície (e, por vezes, enganadora profundidade) acadêmicos de todas as partes da América constroem teorias e hipóteses sobre o que faz da América Latina, América Latina17 17 Evidentemente, parafraseio aqui o DaMatta de O que faz o Brasil, Brasil? (1989), sem esquecer o valor de seus relatos comparativos e contrastivos, forjados a partir de sua experiência de décadas ensinando na universidade de Notre Dame (Da-Matta, 2005). . De toda forma, pode e deve haver também, em tal gesto e em tal movimento, um deslocamento fundamental em relação ao signo de pertinência, ou de pertencimento. Regressando ao espectro "latino-americano", é preciso fugir à órbita do signo-Brasil para, a partir de um pensamento tangencial e especular, atingir esse Outro que morava ao lado e agora habita os mesmos corredores e as mesmas cidades que eu.

É claro que fugir ao signo-Brasil não implica ocultar uma possível identidade "brasileira". Penso, entretanto, naquela tautologia do signo nacional que a crítica pós-colonial pretende romper, para finalmente deixar-se encantar pelo discurso contra-hegemônico advindo daquelas "margens", de derridaica memória. Nas palavras de um campeão da crítica pós-colonial, a diferença cultural não pode ser compreendida "no tempo homogêneo da comunidade nacional"18 18 De acordo com o cr ítico indo-americano, a análise das diferenças culturais "muda a posição de enunciação e as relações em seu interior; não apenas o que é dito, mas de onde se diz; não simplesmente a lógica da articulação mas o tópos da enunciação. O alvo da diferença cultural é re-articular o total do conhecimento da perspectiva da singularidade significante do 'outro' que resiste à totalização – a repetição que não retornará como o mesmo, o menos-na-origem que resulta em estratégias políticas e discursivas nas quais somar não significa adicionar, mas serve para perturbar o cálculo de poder e conhecimento, produzindo outros espaços de significação subalterna. A identidade da diferença cultural não pode, então, existir autonomamente em relação a um objeto ou à prática 'em si', porque a identificação do sujeito do discurso cultural é dialógica ou transferencial, ao estilo da psicanálise. Ela é constituída através do locus do Outro, o que sugere tanto que o objeto da identificação é ambivalente quanto, ainda mais significativamente, que a possibilidade de ação da identificação não é jamais pura ou holística, mas sempre constituída num processo de substituição, deslocamento, ou projeção" (Bhabha, 1990, pp. 312-313). . Haverá sempre, na geografia imaginária que postula o centro e as margens, a possibilidade de perceber que o signo de pertinência falha no momento mesmo em que sou capaz de perguntar-me sobre ele. Se pergunto o que o signo carrega, descubro que ele aponta sempre para aquele Outro que vive próximo e cuja existência eu usualmente nego. Mas somente através do Outro pode-se reconhecer que a autoimagem criada é necessariamente insuficiente. A pergunta sobre o signo de pertinência permite, portanto, postular os limites de significação de uma palavra mágica – Brasil – que eu, entretanto, sou obrigado a buscar, nas entranhas do gigante.

Para ser menos metafórico, uma identidade nem estável nem conclusiva pode ser buscada apenas quando a precariedade do signo (o que o "Brasil", como palavra, comporta, o que revela e esconde, mas sobretudo o que não pode jamais revelar) é percebida. Mas – de volta ao âmbito metafórico – é naquelas entranhas imundas, justamente, quando sou capaz de compreender o espaço que habito, que posso deixar-me contaminar pelo Outro e permitir a ele se revelar num plano que não é nem meu nem dele, mas um terceiro espaço que segue obsedando a todos nós.

Outros materiais

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  • 1
    Penso aqui, especialmente, nas considerações de Lacan sobre a "angústia" como resultado de uma falta especial (Lacan, 2004). Em termos freudianos, o sujeito termina sempre por experimentar o momento em que o estranho (
    Unheimlich) e o familiar se encontram. Na releitura lacaniana, a angústia aparece quando o familiar falta, ou melhor, quando a falta familiar faz falta, dando à luz o paradoxo de que uma falta está faltando. As complicações teóricas daí advindas dificilmente poderiam se resumir à ideia de que a ausência do objeto desejado é suficiente para sustentar o desejo. O momento de invasão do familiar (mesmo em sua falta) pelo estranho (sinistro) é o que marca a experiência em tela, permitindo a Lacan falar em
    angústia. No nosso caso, o objeto em questão pode ser tanto o sujeito ("o" latino-americano) quanto um constructo teórico como a "América Latina", sendo que ambos, como se verá, são constantamente invadidos pelo estranho.
  • 2
    É curioso que o jogo com as palavras seja impossível com a língua inglesa, e que a versão norte-americana deste subtítulo tenha se desdobrado em "leave it there, or never mind" (Monteiro, 2008a).
  • 3
    Aqueles que conhecem a realidade dos departamentos de "Espanhol e Português" nos Estados Unidos sabem que o significativo fluxo de estudantes de pós-graduação hispano-americanos se deve principalmente à falta de possibilidades para continuar os estudos em seus países de origem. Este não é o caso do Brasil, evidentemente, onde um sistema relativamente forte de pesquisa e pós-graduação é plenamente sustentado pelo Estado. Para uma discussão do sistema acadêmico brasileiro a partir da experiência da Universidade de São Paulo, ver Schwartzman (2006).
  • 4
    É exatamente ao entrar nos Estados Unidos pela baía de Nova york, em 1893, que o poeta nicaraguense Rubén Darío se refere a "
    el corazón del monstruo" (Darío, 1952), expressão que se tornaria célebre na pena de Martí.
  • 5
    H á controvérsias sobre o primeiro momento em que o termo (América Latina) teria sido utilizado. Diniz (2007) sugere que o conceito foi provavelmente usado pela primeira vez por Charles Calvo, no seu
    Recueil complet des traités, de 1862. Jorge Schwartz, contudo, afirma que "o termo América Latina, surge pela primeira vez em 1836, em artigo de Michel Chevalier, retomado com vigor pelo escritor e diplomata colombiano José Maria Torres Caicedo", autor do tratado
    Unión latino-americana, de 1865. Ainda de acordo com Schwartz, a ideia de que o termo teria sido "cunhado e difundido pelos ideólogos de Napoleão III, como justificativa da invasão do México", não passa de engano (Schwartz, 1993). Para um amplo debate da razão imperial que preside a concepção de uma América "hispânica", ver Díaz Quiñones (2006).
  • 6
    Pertencer ao campo de "português" de um departamento de Espanhol e Português, ou de línguas românicas, abre necessariamente uma frente em que um novo "Outro" se revela. Refiro-me aqui à literatura portuguesa, mas também às literaturas do espaço pós-colonial lusófono, aí incluídas África e Ásia (Monteiro, 2008b). Para um panorama dos debates contemporâneos de crítica literária e cultural sobre a América Latina, num livro que sintomaticamente não contém um único artigo de um crítico brasileiro (ainda que Raúl Antelo trabalhe com temas "brasileiros" em sua contribuição), ver Sánchez Prado (2006).
  • 7
    O relat ório de 2007 da Modern Language Association ("Enrollments in languages other than English in United States institutions of higher education") mostra que, entre 2002 e 2006, o aumento no número de matrículas em português nas instituições superiores dos Estados Unidos foi significativamente mais modesto do que em línguas como árabe e chinês (Furman, Goldberg e Lusin, 2007).
  • 8
    A express ão ("nossos irmãos latino-americanos") é encontradiça na retórica oficial da diplomacia brasileira. Ver, por exemplo, Amorim (2005).
  • 9
    Schwartz remete o interesse de intelectuais brasileiros pela tradi ção literária hispano-americana a autores como José Veríssimo, Mário de Andrade, Brito Broca, Manuel Bandeira e, mais recentemente, Antonio Candido e Haroldo de Campos. É claro que atualmente outras tentativas de "derrubar" a linha imaginária de Tordesilhas podem ser encontradas. Para o caso do profícuo diálogo argentino-brasileiro, ver, por exemplo, Artundo (2004), Gelado (2006), Garramuño (2009), Miceli (2010) e Blanco (2010). É óbvio que não se pode esquecer a importância, embora relativa, da área de literatura hispano-americana em diversas universidades brasileiras onde a perspectiva comparativa tem também seu lugar. Como recordação basta pensar nos trabalhos já clássicos e paradigmáticos de Davi Arrigucci Jr.
  • 10
    No plano das metáforas infantis, penso no discurso de José Veríssimo, por ocasião da visita de Rubén Darío à Academia Brasileira de Letras em 1912: "Filhos do mesmo continente, quase da mesma terra, oriundos de povos, em suma da mesma raça, ou pelo menos da mesma formação cultural, com grandes interesses comuns, vivemos nós, Latino-Americanos, pouco mais que alheios e indiferentes uns aos outros e nos ignorando quase que por completo" (Schwartz, 1993, p. 185).
  • 11
    Na introdu ção a
    Verdade tropical, Caetano sugere que, quando se procura compreender a "totalidade absolutamente outra a que chamaram de Brasil", seria inevitável o paralelo com os Estados Unidos: "Se todos os países do mundo têm, hoje, de se medir com a 'América', de se posicionar em face do Império Americano, e se os outros países das Américas o têm que fazer de modo ainda mais direto − cotejando suas respectivas histórias com a do seu irmão mais forte e afortunado −, o caso do Brasil apresenta a agravante de ser um espelhamento mais evidente e um alheamento mais radical. O Brasil é o outro gigante da América, o outro
    melting pot de raças e culturas, o outro paraíso prometido a imigrantes europeus e asiáticos, o Outro. O duplo, a sombra, o negativo da aventura do Novo Mundo. O epíteto de 'gigante adormecido', aplicado aos Estados Unidos pelo almirante yamamoto, será tomado por qualquer brasileiro como referente ao Brasil, e confundido com o já considerado agourento 'deitado eternamente em berço esplêndido' da letra do Hino Nacional" (Veloso, 1997, p. 14).
  • 12
    A ideia e a for ça da "
    différance" vêm do deslocamento, justamente: "nós podemos então chamar de
    différance essa discórdia 'ativa', em movimento, de forças diferentes e de diferenças de forças que Nietzsche opõe a todo o sistema da gramática metafísica por todos os cantos onde ela comanda a cultura, a filosofia e a ciência" (Derrida, 1972, p. 19). Derrida chama de "gramática metafísica" exatamente aquilo que garantiria à palavra "Brasil" ser pensada a partir de um significado autoevidente, como se a possibilidade de conhecer o Brasil fosse tautologicamente dada pelo próprio Brasil. O que proponho com este meu artigo é exatamente o contrário: conhecer o Brasil só é possível quando se percebe que o signo-Brasil não existe fora daquele sistema de "forças". Em outras palavras, não há gramática em que o significado do "Brasil" seja estável ou conclusivo. É preciso fugir ao signo-Brasil, ao poder mesmo da palavra, para compreender o país não apenas como a construção discursiva que é, mas para entender essa construção como prova de que o "Brasil" não existe fora da linguagem, ou fora daquele universo de forças, de diferenças e
    différance. Para explorar uma linha algo semelhante, refletindo sobre a tautologia do signo nacional, ver Rocha (2003).
  • 13
    Como sustenta o cr ítico, "as diferenças entre Machado, Shakespeare e demais clássicos importam, pois têm desempenho estrutural-histórico, sugerindo mundos correlativos e separados,
    que esteticamente seria regressivo confundir. A presença ubíqua da cor local não pode ser mera ornamentação, sob pena de rebaixamento artístico. A própria desautorização do narrador masculino, tão esclarecedora, só atinge a plenitude de sua irradiação quando combina os atropelos do ciúme – uma paixão relativamente extraterritorial – às particularidades do patriarcalismo brasileiro do tempo, vinculado a escravidão e clientelismo, assim como à autocomplacência das oligarquias, além de vexado pela sombra do progresso europeu" (Schwarz, 2006, pp. 70-71).
  • 14
    A descoloniza ção como que provou uma necessidade absoluta de escritores pós-coloniais africanos e do Caribe dos anos 1960, bem como intelectuais dissidentes da Europa e América Latina, usarem a ideia contra-hegemônica do Caribe, a fim de desestabilizar o conjuunto de ideias coloniais e chamar pelo desprivilegiamento do Próspero-qua-colonizador(zabus, 2002, p. 9).
  • 15
    Retomando a passagem célebre: "Há dois séculos um espelho norte-americano tem sido mostrado agressivamente ao Sul, com consequências inquietantes. Talvez seja a hora de virar esse espelho. Num momento em que a Anglo-América experimenta uma crise de autoconfiança, parece oportuno confrontar-lhe a experiência histórica da Ibero-América, não mais como estudo de um caso de desenvolvimento frustrado, mas como a vivência de uma opção cultural" (Morse, 1988, pp. 1314). Sobre o encantamento de Morse pela Ibero-América, ver Monteiro (2010).
  • 16
    Tanto Ra úl Antelo como Jorge Schwartz têm se enfronhado, já há bastante tempo, numa espécie de insistente campanha de desprovincianização da literatura brasileira. Importa lembrar, a propósito, que o diálogo entre Antonio Candido e Ángel Rama ganhou especial visibilidade depois que Antelo organizou
    Antonio Candido y los estudios latinoamericanos na série "Críticas" do Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana da Universidade de Pittsburgh (Antelo, 2001). Aí um exemplo inequívoco de um espaço intermédio, onde uma publicação bilíngue (espanhol e português) torna-se possível graças a uma universidade norte-americana. Não menos significativo é que estas minhas reflexões tenham sido originalmente formuladas como contribuição a um número especial de uma revista norte-americana que se propunha investigar a experiência de expatriados latino-americanos nos Estados Unidos, e sua relação com o que foi deixado (Monteiro, 2008a).
  • 17
    Evidentemente, parafraseio aqui o DaMatta de
    O que faz o Brasil, Brasil? (1989), sem esquecer o valor de seus relatos comparativos e contrastivos, forjados a partir de sua experiência de décadas ensinando na universidade de Notre Dame (Da-Matta, 2005).
  • 18
    De acordo com o cr ítico indo-americano, a análise das diferenças culturais "muda a posição de enunciação e as relações em seu interior; não apenas o que é dito, mas de onde se diz; não simplesmente a lógica da articulação mas o tópos da enunciação. O alvo da diferença cultural é re-articular o total do conhecimento da perspectiva da singularidade significante do 'outro' que resiste à totalização – a repetição que não retornará como o mesmo, o menos-na-origem que resulta em estratégias políticas e discursivas nas quais somar não significa adicionar, mas serve para perturbar o cálculo de poder e conhecimento, produzindo outros espaços de significação subalterna. A identidade da diferença cultural não pode, então, existir autonomamente em relação a um objeto ou à prática 'em si', porque a identificação do sujeito do discurso cultural é dialógica ou transferencial, ao estilo da psicanálise. Ela é constituída através do
    locus do Outro, o que sugere tanto que o objeto da identificação é ambivalente quanto, ainda mais significativamente, que a possibilidade de ação da identificação não é jamais pura ou holística, mas sempre constituída num processo de substituição, deslocamento, ou projeção" (Bhabha, 1990, pp. 312-313).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Maio 2011
    • Data do Fascículo
      2011
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