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O desenvolvimento do modelo sueco

WELFARE E EXPERIÊNCIAS NEOLIBERAIS

O desenvolvimento do modelo sueco*

Olof Ruin**

A Suécia e sua vida social são marcadas por diversas características, que, tomadas em conjunto, são freqüentemente resumidas com a denominação de "modelo sueco". Ocupar-me-ei, fundamentalmente, de uma delas: o sistema de governo. A política sueca se caracterizou durante muito tempo por um considerável grau de acordo e estabilidade. A expressão bastante evidente dessa estabilidade é o fato de que um mesmo partido conseguiu ocupar o governo durante os últimos sessenta anos, com exceção de um breve período de seis anos entre 1976 e 1982.

Para uma compreensão adequada do clima de conciliação e do grau de estabilidade característicos e ainda vigentes, é necessário deter-se em três períodos do desenvolvimento político da Suécia. O primeiro deles, e de grande duração, compreende a fase que antecede a transição da Suécia - ao final da Primeira Guerra Mundial - para o sistema parlamentar, baseado no princípio do sufrágio universal e igualitário. Ainda que tal transição tenha ocorrido relativamente tarde, o relevante é que se desenvolveu de maneira pacífica, sem violência. O segundo período se iniciou em 1932 com a volta ao governo da social-democracia, estendendo-se praticamente até 1976, ano em que esse partido perdeu o controle do governo. Foi durante esses decênios que se estabeleceu o chamado "modelo sueco". O terceiro período compreende os últimos quinze anos e, embora exiba um grau maior de mobilidade e mesmo de tensões, continua apresentando-se, numa perspectiva internacional, como muito tranqüilo.

A TRANSIÇÃO À DEMOCRACIA PARLAMENTAR

A passagem da Suécia para o regime político atual foi pacífica e também tardia. O atraso na transição não significa, entretanto, que ela aconteceu subitamente. A Suécia já possuía uma longa tradição constitucional, quando em 1917 se aceitou definitivamente a democracia parlamentar, isto é, um sistema de governo baseado em - ou pelo menos tolerado - por uma maioria parlamentar. A Suécia era igualmente portadora de uma longa tradição de participação popular na direção do Estado, no momento em que se instaurou o sufrágio universal e igualitário no começo da década de vinte. Foi justamente o gradualismo do desenvolvimento, que precedeu a instauração do parlamentarismo e do sufrágio universal, o que contribui para explicar que a mudança pudesse dar-se sem a ocorrência de nenhum tipo de revolução.

O Estado nacional sueco — com um rei que provinha de uma família do país — se estabeleceu, do mesmo modo que em outros Estados nacionais europeus, no começo do século XVI. Diferentemente de vários outros Estados europeus, a característica do desenvolvimento constitucional sueco é que o país nunca sofreu períodos de autocracia absoluta. Ao lado do rei sempre existiu um parlamento, cujas raízes remontam à primeira metade do século XV. Contudo, durante as últimas décadas do século XVII e a primeira do século XVIII - isto é, no período final daquele longo período de cem anos no qual a Suécia se elevou à condição de grande potência européia - a posição do rei era tão forte que se aproximava bastante do poder absoluto. Por outro lado, durante grande parte do século XVIII - o chamado período da liberdade - o Parlamento alcançou uma posição de grande poderio, sofrendo com isso a monarquia um grau equivalente de debilitamento. A Constituição aprovada em 1809 caracterizava-se por um equilíbrio de poder entre o rei e o Parlamento. Esse equilíbrio, que continha uma considerável porção de poder pessoal do rei, manteve-se em grande medida durante todo o século XIX.

Além disso, aquele Parlamento que — com influência variável - existiu de forma contínua na vida do Estado sueco, sempre teve um caráter popular. Até 1866, o Parlamento sueco compreendia quatro estados ou classes: a nobreza, o clero,' a burguesia e o campesinato. O caráter popular, "democrático", estava representado pelo estado camponês. Ao longo de sua história, a Suécia nunca experimentou períodos de clara servidão feudal, nem tampouco períodos nos quais a classe camponesa proprietária de terra tivesse sido totalmente marginalizada, excluída pela nobreza latifundiária. O campesinato se manteve ao longo dos séculos como uma força independente no fazer social da Suécia. Sua situação se viu adicionalmente fortalecida no Parlamento bicameral, que em 1866 substituiu o velho Parlamento dos quatro estados. O direito de voto passou a depender do cumprimento de uma série de condições econômicas, que foram satisfeitas pelos camponeses que possuíam terra. Não obstante, essa reforma da legislação eleitoral significou que apenas por volta de 20% da população masculina adulta obtiveram o direito ao sufrágio, enquanto a mulher continuava totalmente excluída dele. Os trabalhadores e as pessoas de pouca renda e sem propriedade de terra permaneceram marginalizados da política, numa Suécia que ainda continuava a ser muito pobre.

É significativo em relação ao caráter pacífico do desenvolvimento sueco que - embora muitos ainda carecessem do direito de votar - todos, entretanto, tinham a oportunidade de participar dos diversos movimentos populares de organização democrática que surgiram no país ao final do século XIX. Esses movimentos, por sua vez, sofriam a influência da prolongada tradição sueca de atividade popular na vida social. Surgiram deste modo um movimento de abstêmios, que organizava a luta contra o alcoolismo, e diversos movimentos religiosos independentes, que ofereciam a possibilidade de praticar a fé cristã à margem da igreja estatal luterana. Constituíram-se sindicatos com a missão de lutar por melhores condições de trabalho e agrupamentos cooperativos para a obtenção e distribuição de bens de consumo mais baratos. Na primavera de 1889, há exatamente 100 anos, criava-se — como mais um dos movimentos populares — o Partido Trabalhista Social-democrata da Suécia. Uma pessoa podia ser simultaneamente membro dessas diferentes organizações, podendo lutar simultaneamente contra o alcoolismo, por melhores condições de trabalho, maiores direitos políticos etc. Na Suécia, esses movimentos populares constituíram verdadeiras escolas de treinamento democrático, numa época em que o sistema parlamentar e o sufrágio universal e igualitário ainda não estavam completamente desenvolvidos.

Durante suas primeiras três décadas de existência, o Partido Social-democrata assumiu, justamente como uma de suas tarefas centrais, a instauração definitiva e plena do direito de sufrágio e o estabelecimento de um sistema parlamentar aceito por todos, inclusive pelo rei. Em favor desses objetivos, o partido colaborou estreitamente com os setores liberais, ao mesmo tempo que devia enfrentar aqueles que no interior do partido se impacientavam com a lentidão desse trabalho de reformas e sonhavam com a adoção de medidas revolucionárias. O primeiro líder autêntico do partido, Hjalmar Branting, um intelectual proveniente da classe alta, sempre enfatizava a importância da não-violência e do reformismo. Os adversários da social-democracia durante estes primeiros decênios eram fundamentalmente os setores conservadores, além do rei. Foi, entretanto, um governo conservador que conseguiu em 1909 a primeira extensão de direito de voto nas eleições para o Parlamento. Uma segunda reforma no mesmo sentido foi aprovada quase uma década depois, por proposta de um governo liberal-social-democrata. A própria existência de tal governo - que o rei se viu obrigado a aceitar em 1917 - constituiu em si uma prova de que o monarca e também, os setores conservadores do país - aceitava finalmente a democracia parlamentar. A Suécia continuava sendo uma monarquia, apesar de poucos anos depois, em 1920, constituir-se pela primeira vez num governo integrado unicamente por membros do Partido Social-democrata, partido em princípio republicano. Podemos afirmar, então, que com a manutenção do sistema antigo da monarquia ficava consumada a transição pacífica para uma nova forma de governo.

O ESTABELECIMENTO DO MODELO SUECO

As características às quais se costuma associar o modelo sueco desenvolveram-se entre o início da década de trinta e o começo da década de setenta. Um elemento básico muito significativo para o desenvolvimento ocorrido durante esse período, que nunca deve ser esquecido, foi a vigência de condições econômicas favoráveis. A Suécia — país anteriormente pobre e de industrialização tardia - foi pouco a pouco enriquecendo-se mediante a obtenção de mercados onde foi colocando produtos industriais sofisticados, com base em um conjunto de invenções e inovações desenvolvidas por volta de 1900 e também na posse de recursos naturais de grande valor, tais como bosques, reservas minerais e energia hidráulica. Nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, essa força econômica cresceu ainda mais, posto que a capacidade industrial do país estava intacta - a Suécia conseguira livrar-se da guerra - e os produtos suecos eram necessários para a reconstrução da Europa.

Ocupar-me-ei em primeiro lugar da estabilidade política sueca nesses decênios. Essa estabilidade se expressa, principalmente, na estrutura dos partidos e nas relações que se dão entre eles. No momento da instauração da democracia parlamentar na Suécia, cinco correntes políticas estavam representadas nele. O fato notável é que esta mesma estrutura parlamentar de cinco partidos se manteve praticamente sem modificações até as eleições gerais de 1988, ano em que um sexto partido conseguiu ingressar no Parlamento. Três dos cinco partidos aos quais nos referimos inicialmente eram de caráter não socialista e costumavam ser classificados como partidos burgueses. São eles: o Partido Conservador, durante muito tempo chamado a Direita e originalmente cético com relação à democracia parlamentar e ao sufrágio universal e igualitário como método para a eleição de ambas as Câmaras; o partido dos liberais, atualmente chamado Partido Popular e com o qual os social-democratas colaboraram no início do século; finalmente, um partido criado pelos agricultores e durante muito tempo denominado Liga Camponesa, o atual Partido de Centro. Dois dos cinco partidos primeiramente mencionados eram de caráter socialista, a saber: o Partido Social-democrata e o Partido Comunista, remontando a origem deste último a uma cisão da social-democracia produzida ao final da Primeira Guerra Mundial. O sexto partido, que há um ano conseguiu ingressar no parlamento, situando-se ao lado dos cinco partidos antes mencionados, é ambientalista - os "verdes".

A social-democracia foi sempre e de forma contundente o maior partido político da Suécia. Nas eleições gerais de 1932 — que precederam o longo período da social-democracia no governo - o partido obteve isoladamente 41,7% dos sufrágios. Nas eleições realizadas durante as quatro décadas seguintes, a social-democracia alcançou sempre porcentagens maiores. Em seis oportunidades conseguiu mais que 50%, obtendo maioria entre os eleitores. O Partido Comunista - salvo num par de vezes - sempre foi pequeno, com uma quota habitual de 4 a 6%. A mobilidade eleitoral sempre foi maior entre os três partidos burgueses. Assim, por exemplo, os conservadores foram o maior partido burguês no período compreendido entre as duas guerras mundiais, os liberais dominaram o campo burguês nas primeiras décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, e o Partido de Centro durante os anos setenta. Em geral, a quota eleitoral comum a cada um dos três partidos burgueses oscilou entre 10 e 20%. Graças a seu poderio parlamentar, o Partido Social-democrata — com exceção de 100 dias no verão de 1936 — ocupou ininterruptamente o governo durante as décadas em que a Suécia moderna foi sendo formada, ainda que nem sempre como único partido integrante do governo. Entre 1936 e 1939 a social-democracia governou em conjunto com o Partido Agrário e durante a Segunda Guerra Mundial estabeleceu um governo de unidade nacional com os três partidos burgueses, excluindo desse governo os comunistas. Finalmente, na década de cinqüenta, a social-democracia governou mais de uma vez, agora durante seis anos, em coalizão com a Liga Camponesa, rebatizada nessa mesma década como Partido de Centro. Os governos nos quais a social-democracia era o único partido integrante nem sempre foram governos de maioria. Freqüentemente se encontrou numa situação de minoria parlamentar, dependendo do concurso de outros grupos para a aprovação de suas propostas.

É uma manifestação adicional da estabilidade da política sueca o fato de que a social-democracia não só tem sido o partido governante por tanto tempo como também, se organizou com um número pequeno de líderes ao longo de sua história. Hjalmar Branting, seu primeiro líder, foi sucedido por Per Albin Hansson, que foi primeiro-ministro de 1932 - quando a social-democracia retornou ao governo - até sua morte, em 1946. Per Albin Hanson foi sucedido por Tage Erlander, que, por sua vez, foi chefe do partido e primeiro-ministro sem qualquer interrupção entre 1946 e 1969, isto é, por um período recorde de 23 anos. Tage Erlander foi sucedido por seu colaborador, Olaf Palm.

Merece atenção a grande cota de colaboração e acordo que caracteriza o desenvolvimento político no processo de construção da Suécia moderna, o que não exclui que por vezes surgissem contradições de importância entre os partidos políticos. Voltarei a este último aspecto mais adiante. O que interessa destacar é que a social-democracia, como partido de governo, conseguiu em diversas áreas e matérias por-se de acordo com um ou mais partidos de oposição. Não estamos nos referindo exclusivamente àquelas matérias que freqüentemente costumam incitar a cooperação entre partidos — como é o caso das políticas exterior, da defesa e constitucional - mas justamente àquelas áreas que representaram passos importantes no desenvolvimento da Suécia em direção a um amplo e avançado welfare state.

Isso começou meio ano após o Partido Social-democrata assumir o governo em 1932 com o que na política sueca se costumou chamar de o acordo diante da crise. O desemprego industrial era alto e os camponeses obtinham preços baixos por seus produtos. O governo social-democrata e o Partido Agrário estabeleceram um acordo no Parlamento em torno de um extenso programa anti-crise, que consistia na criação de novas fontes de trabalho com auxílio de fundos públicos e diversas formas de proteção e apoio à agricultura. Durante os anos seguintes foram sendo sucessivamente adotados diversos programas de política social, que consistiam, com freqüência, em medidas de caráter geral, com base na idéia de que todos deveriam beneficiar-se delas, independentemente do nível econômico.

Essas medidas eram em geral financiadas por impostos. A aspiração desses programas era a articulação de uma verdadeira rede de proteção em torno dos cidadãos. A expressão "lar do povo", cunhada por Per Albin Hansson, tentava simbolizar o objetivo da luta: as pessoas podiam sentir-se tão seguras na sociedade como se sentiam no interior de seus lares.

Este trabalho de reformas sociais prosseguiu e se acelerou no período de após-guerra. Desenvolveu-se um permanente esforço para manter baixa a taxa de desemprego, tomaram-se decisões para proporcionar praticamente a todos os cidadãos cuidados médicos gratuitos, melhoraram-se as pensões etc. Posteriormente, esse trabalho de assistência social foi mudando de natureza, diminuindo seu caráter de luta contra a miséria e respondendo cada vez mais à crescente demanda social de serviços e bens de diferente índole. Apesar de já terem obtido um nível primário da assistência social, as pessoas continuavam reclamando novas prestações do setor público. Contrariamente ao esperado, as demandas se intensificavam. Paralelamente à elevação gradual do nível de vida eram pedidas melhores moradias, melhor saúde pública, melhores escolas e universidades, melhores estradas para os automóveis, melhor assistência às regiões em dificuldade, etc. O setor público - responsável pelo financiamento e administração dessas atividades - crescia assim permanentemente, representando também uma cota cada vez maior do Produto Nacional Bruto (PNB). Tage Erlander, verdadeiro símbolo dessa sucessiva ampliação do setor público, cunhou neste sentido a expressão "sociedade forte", que em certa medida substitui a expressão anterior "lar do povo". Este vasto sistema de bem-estar social, financiado em principio com base nos impostos e que freqüentemente, ainda que não sempre, foi construído num contexto de unidade política, constitui uma parte muito essencial do modelo sueco.

Outra dimensão que se costuma incluir no conceito de modelo sueco é o conjunto de relações que constituem o mercado de trabalho. Também estas últimas se caracterizam - durante o período em questão - por um alto grau de colaboração entre empregadores e empregados, entre o capital e os trabalhadores. Ambas as partes se encontravam fortemente organizadas, o que facilitou o estabelecimento de diversos acordos, sendo o Acordo de Saltsjobaden de 1938 o mais importante deles. Os acordos visavam promover a tranqüilidade e eficiência do mercado de trabalho. Desta forma, o capital podia contar com uma força de trabalho bem qualificada e os trabalhadores obtinham como contrapartida salários relativamente altos. Quando se produziam situações em que empresas quebravam em conseqüência - entre outras causas - de um nível de salários muito elevado, o Estado intervinha com uma política ativa em relação ao mercado de trabalho, direcionada simultaneamente para a reeducação e recolocação da força de trabalho afetada. Estas relações relativamente harmônicas entre o capital e o trabalho também alcançaram seu momento culminante em 1960, quando os líderes da Associação Patronal Sueca (SAF) e da Central de Trabalhadores da Suécia (LO) realizaram uma viagem internacional conjunta falando da situação de colaboração entre as classes vigentes na Suécia.

As tensões e o desacordo que também existiam na vida política e social sueca durante esse período — freqüentemente caracterizado como uma época dourada na história da Suécia — referiam-se a matérias ideológicas de largo espectro, assim como também - e com freqüência - a questões concretas e imediatas de política econômica.

A social-democracia se apresentava como socialista, ao mesmo tempo que na política cotidiana renunciava a toda ambição concreta em tal sentido, pelo menos como é habitualmente entendido por outros partidos semelhantes, isto é, como a estatização dos recursos naturais, da indústria, dos bancos. A propriedade social não era definida como um objetivo em si mesmo, permanecendo a indústria fundamentalmente em mãos privadas. Não obstante, existia uma disposição para -mediante diversos mecanismos - disciplinar o capital, combater excessos e deformações capitalistas e limitar lucros.

De sua parte, os partidos burgueses reagiam com desconfiança diante das declarações social-democratas que asseguravam que não buscavam a estatização da indústria, e com certa freqüência montavam campanhas públicas, atribuindo à social-democracia amplas ambições socializantes, acusando-a especialmente de procurar uma regulamentação desnecessária e o controle do setor industrial. Assim, por exemplo, no final da década de quarenta ocorreu um forte debate político sobre o que se entendia como planejamento da economia. Dez anos depois, no final da década de cinqüenta, desenvolveu-se outra dura batalha política, desta vez acerca de uma questão de política social concretamente, sobre o projeto de "pensão adicional", o que à primeira vista poderia parecer surpreendente. A enorme controvérsia suscitada se explica em parte pelo fato de que tal projeto continha elementos que contribuíam para aumentar o grau de influência do Estado na indústria, já que esta última teria que pagar cotas a fundos de pensão, administrados publicamente.

Os problemas de política econômica corrente desatavam continuamente contradições bastante difíceis entre o governo e a oposição. Particularmente agudas costumavam ser as contradições que tratavam dos impostos, sua extensão e orientação. Os representantes social-democratas argumentavam a favor de impostos sobre os salários, a propriedade e a venda de mercadorias, propondo além disso com freqüência a elevação desses impostos, como mecanismo de financiamento daqueles programas públicos anteriormente aprovados com acordos majoritários dos partidos. Embora com força variável, os partidos não-socialistas costumavam acusar a social-democracia de subestimar os efeitos dinâmicos de um sistema tributário com uma carga impositiva menor e de forçar deliberadamente urna política de "socialização" que, mediante sua política tributária orientava os recursos para o setor público, permitindo-lhe a redistribuição dos recursos disponíveis entre os cidadãos.

Uma pergunta inevitável, com relação ao período que estamos considerando é: como foi possível que um único partido, o Social-democrata, pudesse dominar por um período tão longo e de maneira tão efetiva a política da Suécia? Parte da resposta já foi dada. O Partido Social-democrata tinha uma orientação reformista, pragmática e evitava levar adiante propostas que pudessem despertar temores, concentrando-se basicamente naquelas reformas suscetíveis de levar ao apoio amplas maiorias. Existem, contudo, outros fatores que contribuem para explicar a longa permanência da social-democracia no poder. O partido conseguiu escolher com êxito aquelas questões que freqüentemente tendem a provocar a divisão em outros partidos socialistas. Referimo-nos a matérias tais como o significado e o alcance das medidas de socialização, a política de defesa, as relações internacionais e a atitude frente aos blocos militares e outros sistemas de aliança. O conflito interno mais difícil da social-democracia sueca durante esse período foi justamente acerca de uma questão da política de defesa, a saber, se a Suécia devia ou não construir armas atômicas, para cujo desenvolvimento o país possuía condições técnicas suficientes. No final dos anos cinqüenta e começo dos sessenta, o partido resolveu, mediante sucessivos adiamentos do assunto, não incorporar armas atômicas na já forte defesa sueca.

Outra explicação do poder da social-democracia sueca é que esta conseguiu manter uma vinculação muito íntima com o movimento sindical, ainda quando a relação partido-sindicato nem sempre tenha sido isenta de rusgas e tensões. O padrão de comportamento do corpo eleitoral sueco foi também por longo tempo coerente com a estrutura de classes e por isso bastante estável. Uma parte muito considerável da votação social-democrata continuava provindo de trabalhadores manuais, mesmo quando o partido - durante a década de cinqüenta - já tinha começado a introduzir-se nas camadas médias. Por último, a Suécia contou até 1970 com uma Constituição que em alguma medida favorecia justamente a social-democracia. O mecanismo indireto mediante o qual se elegia uma das duas Câmaras - em princípios equiparadas em suas atribuições — outorgava automaticamente a um partido grande como a social-democracia um conjunto de vantagens adicionais.

O MODELO SUECO QUESTIONADO

Nas décadas de setenta e oitenta, a temperatura política na Suécia se elevou alguns graus, se a comparamos àquela que havia prevalecido basicamente durante as quatro décadas anteriores.

As condições formais da atividade política tinham mudado. Uma nova Constituição substituía a anterior, vigente no fundamental desde 1809. As modificações constitucionais mais importantes se deram em três planos: em primeiro lugar, o Parlamento, anteriormente dividido em duas câmaras, foi substituído por um sistema unicameral; em segundo lugar, o sistema eleitoral anterior de tipo proporcional foi substituído por outro muito mais estrito, que garantia a todos os partidos que alcançassem pelo menos 4% dos votos emitidos uma representação parlamentar percentualmente idêntica à sua força eleitoral; por último, as eleições ao Parlamento e às corporações locais - que anteriormente ocorriam a cada quatro anos e separadamente — seriam realizadas simultaneamente, num mesmo dia, e a cada três anos. Tudo isso contribuiu para conferir mais dramaticidade à política sueca.

Também as relações interpartidárias mudaram um pouco. Os três partidos burgueses, que com freqüência tinham caminhado separadamente, mostravam agora maior disposição e êxito no terreno da colaboração interburguesa. Os dois partidos socialistas desenvolveram também melhores relações, ainda que, como antes, nunca chegassem a organizar um sistema regular de colaboração. O Partido Social-democrata continuou sendo de longe o maior partido, embora tivesse uma média de votação um pouco inferior à média das décadas precedentes. O controle quase permanente do governo exercido pelo Partido Social-democrata desde 1932 foi quebrado em 1976, quando os três partidos burgueses formavam um governo de coalizão, no qual se sucederam, durante os seis anos seguintes diversos tipos de ministérios burgueses. Em 1982, a social-democracia conseguiu, entretanto, recuperar o controle do governo. A modificação das relações partidárias fez com que a Suécia — apesar da manutenção de um sistema pluripartidarista - se aproximasse do sistema clássico do bipartidarismo anglo-saxão: um bloco burguês oposto a um bloco socialista. Recentemente, entretanto, este tipo de visão do espectro político começou novamente a diluir-se, em conseqüência da incorporação ao Parlamento dos "verdes", partido novo e independente dos blocos antes mencionados.

As figuras dominantes da política sueca destas décadas foram também personalidades novas. Olof Palm, que em 1969 tinha sucedido a Tage Erlander como líder social-democrata, manteve-se como tal durante 16 anos, até aquela noite de fevereiro de 1986 em que foi assassinado numa rua central de Estocolmo. Ingvar Carlsson assumiu então como o quinto chefe na história de um partido, próximo a cumprir 100 anos de existência. Como a figura política mais importante do setor burguês durante esse período surgia Thorbjorn Falldin, um agricultor do norte da Suécia e chefe do Partido de Centro, que ocupou o cargo de primeiro-ministro durante cinco dos seis anos em que os partidos burgueses contaram com maioria parlamentar. Atualmente aposentou-se da política.

Durante estas duas décadas surgiram tipos de dificuldades econômicas às quais o país não estava acostumado. A crise do petróleo afetou a Suécia de maneira bastante forte, dado o alto grau de dependência energética da sua indústria. Por outro lado, a indústria sueca, fortemente orientada para a exportação, começou a perder espaços no mercado internacional, devido ao nível relativamente elevado de seus salários e à crescente concorrência produzida com a emergência de novas nações industriais. Áreas centrais da indústria sueca, como por exemplo os estaleiros, tiveram na prática que ser liqüidadas em conseqüência das condições então vigentes no mercado internacional. Durante alguns anos, o ritmo do crescimento econômico diminuiu ou se deteve totalmente, a inflação foi bastante alta e surgiram déficits fiscais que foram parcialmente financiados mediante o endividamento externo.

Estas dificuldades da economia sueca se produziram, basicamente, durante os seis anos de maioria burguesa, ainda que — vale lembrá-lo - os problemas não podem ser atribuídos exclusivamente às medidas adotadas pelos governos burgueses. A situação melhorou relativamente logo após o retorno da social-democracia ao governo, em 1982. Este governo realizou uma drástica desvalorização da coroa e adotou além disso medidas de estímulo ao emprego. A indústria sueca, que em áreas importantes tinha transformado sua estrutura, começou novamente a recuperar terreno no mercado internacional e o endividamento externo, contraído anteriormente com o objetivo de financiar o déficit orçamentário, começou a ser reduzido. Restabeleceu-se uma situação de pleno emprego, permitiu-se que a indústria acumulasse grandes superávits e ao mesmo tempo refreiou-se o gasto público. Este desenvolvimento na Suécia, freqüentemente denominado "política da terceira via", coincidiu antes de tudo com uma evolução da economia mundial rumo a uma conjuntura mais favorável.

Também o conteúdo da política adquiriu durante essas décadas um caráter um tanto diferente, surgindo questões de disputa que tinham — ou pelo menos assim se supunha — um caráter de questionamento direto do sistema, o que resultava num reforço da divisão política em dois blocos. Simultaneamente produziam-se agudas discrepâncias acerca de questões absolutamente novas e que dividiam horizontalmente o espectro político.

Uma questão - por muitos caracterizada como transformadora do sistema - foi o projeto de constituição dos "fundos de assalariados", apresentado pelo Partido Social-democrata e elaborado originalmente no seio do movimento sindical. A proposta consistia na transferência de uma parte dos ganhos das empresas de certo tamanho, a fundos especiais por ramo industrial, geridos por diretórios com uma maioria de representantes dos assalariados. Os defensores do projeto costumavam apresentá-lo como um terceiro passo na luta do movimento operário para a transformação da sociedade; o primeiro passo tinha consistido na conquista da democracia política e o segundo, no estabelecimento de uma sociedade de bem-estar. Agora, finalmente, o cidadão em geral, os assalariados, seriam co-partícipes da propriedade do capital. Os adversários do projeto vociferavam, acusando a social-democracia de ter abandonado seu pragmatismo anterior, de ter tirado sua máscara e de estar disposta a instaurar uma nova e perigosa modalidade de socialismo na sociedade sueca. Comparado com o desenho original, o projeto finalmente aprovado em 1983, após grandes discussões, mostrou-se uma versão muito diluída do primeiro. Posteriormente, o debate - anteriormente tão inflamado - foi paulatinamente esfriando.

Outra questão qualificada como transformadora do sistema foi levantada pelo lado burguês, especialmente por setores conservadores. Estes dirigiam uma forte crítica ao setor público que - depois dos anos de recorde da economia sueca na década de sessenta - tinha continuado a crescer, para alcançar no começo da década de oitenta uma proporção superior a 60% do PNB. A crítica se referia ao próprio tamanho do setor público, isto é, ao enorme volume de dinheiro que este administrava, distribuindo entre diferentes grupos de cidadãos, e para a grande quantidade de empregados públicos. Por outro lado, a crítica atacava a ineficiência e a falta de flexibilidade atribuídas ao setor público, resultante - como se afirmava - da posição monopólica deste. A crítica era acompanhada por exigências de redução do setor público e de privatização de algumas de suas atividades. A social-democracia, que se sentia responsável pela construção desse vasto setor público, tão característico da sociedade sueca, reagiu qualificando tais exigências como um ataque direto ao sistema de bem-estar social. Isso não impediu, entretanto, que no interior da própria social-democracia se produzisse, nos anos oitenta, um intenso debate acerca das diversas possibilidades de transformação da forma de funcionamento do setor público.

Simultaneamente ao desenvolvimento desse tipo de contradições, que tendiam a fortalecer a divisão do espectro político sueco num bloco de direita e outro de esquerda, surgiram também controvérsias não demarcadas nessa escala tradicional de direita-esquerda. Com freqüência trata-se de questões que é possível referir a outra dimensão, aquela existente entre desenvolvimento ou não-desenvolvimento. Tende-se aqui para a produção de um alinhamento diferente, situando-se conservadores, liberais e social-democratas de um lado e o Partido de Centro, os comunistas e o Partido Verde de outro. Os problemas derivados da tensão existente entre esses dois pólos - desenvolvimento contra não-desenvolvimento - podem em alguns casos atravessar também um mesmo partido, o que é especialmente válido para a social-democracia. Nesta ordem de problemas, a questão que tem despertado maior atenção na política sueca é o problema da energia atômica. A Suécia contava, em virtude de sua própria tecnologia - comparativamente bem-sucedida — com um considerável arsenal de energia atômica em 1980. Isso levou posteriormente o Parlamento a adotar uma decisão de princípio que prescreve a supressão gradativa do uso da energia atômica, processo que deve estar concluído até o ano 2010. Entretanto, a matéria é e continuará sendo motivo de tensões e discrepâncias em torno da racionalidade de um plano de desmantelamento como esse. Recentemente, duas matérias passaram a ocupar o primeiro plano do debate político. Ambas estão ligadas em algum grau ao eixo antes mencionado, desenvolvimento contra não-desenvolvimento, e atravessam horizontalmente os blocos políticos tradicionais. Referimo-nos, em primeiro lugar, às relações da Suécia com a Comunidade Européia, que entra numa nova fase de desenvolvimento a partir de 1992, e em segundo lugar, às possibilidades de realizar na Suécia uma reforma tributária profunda.

Já é hora de sintetizar o desenvolvimento da Suécia durante as décadas de setenta e oitenta. Em algumas medidas, o "modelo sueco" — tal como este se desenvolveu durante as décadas imediatamente posteriores à Segunda Guerra Mundial -acabou sendo questionado neste último período. O vasto sistema de bem-estar do país começou a mostrar certos vazios. Alguns setores, como é o caso da educação e da saúde, parecem funcionar de maneira menos eficiente que antes, prestando serviços que são considerados como de qualidade inferior. Também o mercado de trabalho sofreu modificações; as grandes organizações sindicais não foram capazes de negociar centralmente e de maneira tão efetiva como antes os salários dos trabalhadores, provocando-se conflitos trabalhistas em repetidas ocasiões.

Estas outras mudanças no que se considerou como aspectos característicos do "modelo sueco", dificilmente podem ser interpretadas, entretanto, como antecipação de uma aberta liquidação do modelo. O extenso sistema de bem-estar permanece em princípio intacto, apesar das deficiências mencionadas. As condições do mercado de trabalho continuam em muitos aspectos caracterizadas pela tranqüilidade e colaboração, apesar das tensões originadas pelos "fundos dos assalariados" e a freqüência maior de conflitos trabalhistas. Por último, ainda continua existindo uma grande cota de colaboração e concordância na forma de fazer política. E tudo isso, apesar das mudanças ocorridas durante os últimos decênios como conseqüência de novas disposições constitucionais, novas constelações na estrutura dos partidos e o surgimento de problemas de novos tipos. Em geral, pode parecer que atualmente o clima político da Suécia começa a assemelhar-se - de maneira mais acentuada que ao final dos anos setenta e começo dos oitenta - ao clima característico das primeiras décadas do pós-guerra. Mais de uma vez, o debate se tornou menos ideológico e a divisão do campo político em dois blocos abertamente contrapostos pareceria ser hoje novamente menos marcada, prevalecendo na Suécia a tradição pragmática da colaboração.

  • * Publicado anteriormente em GOÑI, José (org.), Democracia, desarollo y equidad. La experiencia de Suecia. Reflexiones para lationamericanos (Caracas, Editorial Nueva Sociedad, 1990).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Set 1991
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