Resumo
A concepção liberal da desobediência civil, reforçada pelos méritos filosóficos da abordagem de John Rawls, vem se constituindo como uma das perspectivas mais influentes sobre o tema na teoria política contemporânea. Este artigo procura confrontar essa concepção hegemônica à luz de um modelo eminentemente político e democraticamente mais exigente, que identificaremos por concepção democrática de desobediência civil e que tem na obra de Habermas uma expressão paradigmática. Assim, argumentaremos que a desobediência civil democrática nos oferece uma abordagem política potencialmente mais transformadora à medida que permite vociferar novas demandas emergentes na sociedade civil, interpretações renovadas sobre a justiça, um canal de luta por novos direitos, além de uma ampliação das formas de participação democrática.
Palavras-chave:
Desobediência civil; Jürgen Habermas; Democracia
Abstract
The liberal conception of civil disobedience, reinforced by the philosophical merits of John Rawls’ approach, has become one of the most influential perspectives on the subject in contemporary political theory. This paper seeks to challenge this hegemonic conception in light of a primarily political and democratically more demanding model, which we will identify as the democratic conception of civil disobedience, prominently expressed in the work of Habermas. Thus, we will argue that democratic civil disobedience offers a potentially more transformative political approach as it allows for the voicing of new emerging demands in civil society, renewed interpretations of justice, a channel for advocating new rights, and an expansion of forms of democratic participation.
Keywords:
Civil Disobedience; Jürgen Habermas; Democracy
Introdução
Os protestos estadunidenses contra a Guerra do Vietnã, a mobilização em prol de direitos civis nos Estados Unidos, as manifestações antinucleares em todo o Ocidente e as lutas pela descolonização e pela independência do Sul global podem ser mencionados como acontecimentos políticos que impulsionaram a ideia de desobediência civil para o centro das preocupações de alguns dos mais destacados teóricos políticos, filósofos morais e juristas do século XX (Delmas, 2018, p. 24). Hannah Arendt, Ronald Dworkin, Jürgen Habermas e John Rawls foram algumas das vozes responsáveis por delinear os contornos conceituais que balizaram, e seguem orientando, a nossa compreensão teórica da desobediência civil, além de oferecer uma defesa da sua prática como parte da gramática democrática de contestação e de resistência às diversas formas de injustiça.
Não podemos atribuir a John Rawls o posto de pioneiro, mas certamente ele foi o responsável por uma das definições de desobediência civil mais influentes da teoria política. Ao comentar Uma teoria da justiça, Robert Nozick argumentou: “Desde sua publicação, os filósofos políticos são obrigados a trabalhar dentro dos limites da teoria de Rawls ou, então, explicar por que não o fazem” (2018, p. 236). Embora Nozick se referisse de modo mais geral à teoria da justiça como equidade, poderíamos estender as mesmas considerações à desobediência civil: seja entre os críticos ou entre aqueles que se dispõem a levar adiante o legado de Rawls, a concepção de desobediência civil apresentada em Uma teoria da justiça se tornou um ponto de partida comum para esse debate teórico. A força da tradição liberal também tem sido responsável por colocá-la como um alvo recorrente de críticas e objeções de paradigmas concorrentes, que buscam provar os méritos de suas abordagens ante o modelo liberal hegemônico.
Assim, os objetivos deste artigo são: (1) apresentar uma concepção de desobediência civil a partir da obra de Jürgen Habermas, assumindo o autor como representante paradigmático daquilo que, na esteira de Scheuerman (2018), poderíamos chamar de desobediência civil democrática; (2) confrontar a concepção liberal da desobediência civil com uma concepção eminentemente política e democraticamente mais exigente. Embora as propostas de Rawls e Habermas sejam conceitualmente bastante parecidas, conforme buscaremos demonstrar, os autores diferem significativamente no modelo de justificação da desobediência civil e, sobretudo, na função que cada um espera que ela possa desempenhar em sociedades democráticas. Dessa forma, argumentaremos que a desobediência civil democrática nos oferece uma abordagem política potencialmente mais transformadora à medida que permite vociferar novas demandas emergentes na sociedade civil, interpretações renovadas sobre a justiça, um canal de luta por novos direitos, além de uma ampliação das formas de participação democrática.
Os passos que nos conduzirão a esse objetivo estão divididos em cinco seções. (I) Buscaremos indicar algumas das críticas principais à abordagem liberal da desobediência civil e que serviram como pontapé inicial para o desenvolvimento de uma abordagem alternativa. (II) Apresentaremos uma primeira aproximação de Habermas com o tema da desobediência civil, assumindo seu texto da década de 1980 como uma baliza fundamental. Na sequência, (III) apresentaremos os contornos mais amplos da teoria da democracia deliberativa, desenvolvida por Habermas nos anos de 1990 e que tem sua formulação mais canônica em Facticidade e validade; esse passo nos serve de enquadramento, de modo que possamos (IV) discutir o modo como Habermas inclui a desobediência civil em sua teoria da circulação do poder. A última seção, à guisa de considerações finais, (V) busca derivar alguns aspectos importantes da teoria habermasiana para uma abordagem democrática da desobediência civil e indicar alguns dos méritos e possibilidades ensejadas por esse quadro referencial.
É necessária uma alternativa à desobediência civil liberal?
A necessidade de uma alternativa ao modelo liberal da desobediência civil se justificaria, segundo os críticos, por razões de natureza política e filosófica. No âmbito político, Scheuerman (2018, p. 55) identifica um crescente e flagrante descontentamento dos cidadãos com o desempenho imperfeito dos regimes democráticos e com mecanismos tradicionais de participação política em algumas das mais antigas democracias do mundo (Mounk, 2019). Essa desconfiança, que teria seus lastros históricos nos anos de 1970, segue ecoando entre cidadãos que, cada vez mais, estão dispostos a protestar por meios não convencionais ou legalmente suspeitos, por uma pluralidade de pautas, mesmo quando seus direitos individuais não parecem ameaçados (Scheuerman, 2018, p. 55).
Assumindo as democracias constitucionais1 como um pressuposto, a teoria da desobediência civil liberal se limitaria ao controle dos excessos do governo da maioria, para preservar o equilíbrio fundamental entre majoritarismo e os direitos civis e políticos básicos dos indivíduos. Quando os direitos civis e políticos fundamentais de uma minoria são sistematicamente violados e os mecanismos institucionais normais de reparação falham, a desobediência civil pode ajudar a desencadear ações corretivas. Logo, a desobediência civil, para a abordagem liberal, teria a função de conter a democracia em nome da justiça (Rawls, 2008, p. 476). O que autores como Scheuerman (2018, p. 58), Celikates (2016a, p. 5) e Cohen e Arato (1994, p. 570) questionam é: e quanto à violação de leis que visam mais do que garantir as liberdades individuais contra maiorias tirânicas? Ou ainda: em democracias injustas, o que podemos dizer, de um ponto de vista liberal, sobre os contornos apropriados para a ação política de cidadãos descontentes? Essas questões indicam algumas das insatisfações filosóficas com as respostas liberais e abrem caminho para o desenvolvimento de um modelo alternativo.
De um lado, o modelo liberal de desobediência civil foi profundamente influenciado pela luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, especialmente por líderes como Martin Luther King e Rosa Parks. Por outro lado, uma série de protestos envolvendo ilegalidades politicamente motivadas, ocorridos tanto no passado quanto no presente e em diversos contextos, parece escapar das categorias definidas por esse modelo liberal. Isso se deve à diversidade de reivindicações, que frequentemente vão além da luta por direitos individuais. Exemplos dessas novas formas de protesto incluem o movimento pacifista que liderou manifestações na Alemanha em 1983 contra a instalação de mísseis nucleares da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN); o Occupy Wall Street, que tomou as ruas de Nova York em 2011 em manifestação contrária a crescente desigualdade econômica e a influência desproporcional das corporações na política americana; e, mais recentemente, o movimento Black Lives Matter, que surgiu como resposta à brutalidade policial e à injustiça racial enfrentada pela população negra nos Estados Unidos.
A desobediência civil democrática ganha força à medida que nos oferece ferramentas teóricas que nos permitem olhar para as novas cenas de protesto como uma força democratizadora, não apenas como uma reação temporária a situações extremas ou excepcionais, mas como um componente essencial de uma sociedade democrática. Dito de outro modo: desobediência civil, quando compreendida de forma mais abrangente e, às vezes, politicamente radical, como parte da gramática democrática de contestação, e não apenas como recurso último, pode ajudar a ampliar o repertório de participação política, a iluminar as deficiências democráticas de longo alcance e abrir a porta para reformas amplas, em maior consonância com os anseios e as vozes das ruas. Desafio político este com o qual nem mesmo o rigor filosófico da abordagem liberal da desobediência civil parecia capaz de lidar.
Dessa forma, autores como William E. Scheuerman (2018, p. 35) e Robin Celikates (2016b, p. 40) acusam a abordagem liberal, da qual Rawls (2008) é um representante paradigmático, de esbarrar em problemas que eles consideram serem decisivos. Ao enfatizar a desobediência civil como prática legítima, isto é, como forma de reação a casos restritos de violação de liberdades (individuais e políticas) fundamentais, a teoria rawlsiana deixa de fora do escopo de possibilidades da desobediência a questões relativas à política social e econômica, além das violações de outros tipos de direitos tidos como menos fundamentais.
Segundo os críticos, seria demasiadamente redutor ignorar formas de injustiça e opressão que não se encaixam nas considerações de Rawls, excluindo esses movimentos do âmbito legítimo da desobediência civil. Restringir-se a reivindicações por direitos individuais, como propõe a tradição liberal, negligenciaria outras formas de desigualdade, sofrimento e déficits democráticos que limitam o engajamento cidadão nos processos de deliberação política. Isso configuraria uma visão teórica restrita e, segundo Scheuerman e Celikates, uma postura moralmente indiferente ao sofrimento dos injustiçados, além de tornar a desobediência civil excessivamente acomodada ao status quo, apontando para possibilidades ínfimas de mudança.
Ao limitar sua teorização sobre a desobediência civil aos casos de sociedades quase justas e aos casos de violação flagrante do primeiro princípio de justiça, Rawls (2008, p. 464) não pôde considerar os apelos e anseios mais radicais por transformação social que podem emergir de uma sociedade civil efusiva. Como pontuam Cohen e Arato (1994, p. 574), o impulso político da desobediência civil liberal restringe-se a uma postura puramente defensiva por parte daqueles cujos direitos foram violados. Celikates (2016b, p. 40) acrescenta que, dada certa generalidade dos princípios de justiça, as violações do princípio de diferença não são, de antemão, mais ou menos claras do que violações dos outros princípios. Além disso, sendo o princípio de diferença pensado originalmente para regular as desigualdades socioeconômicas, quando negligenciada suas recomendações, tais desigualdades podem ultrapassar certa medida tolerável de desigualdade de renda e riqueza e afetar o valor justo das liberdades básicas (especialmente a liberdade política) enfatizada pelo próprio Rawls, fazendo com que desigualdades que não têm origem na dimensão política, a atravessem2.
Rawls (2008) afasta da possibilidade legítima de desobediência civil, e parece condenar à resignação, aqueles cujos direitos civis e políticos não foram desrespeitados, mas que acreditam que os canais institucionais existentes de participação e manifestação política não são suficientemente inclusivos e democráticos. Na visão de Cohen e Arato (1994, p. 574), essa seria uma concepção bastante estática da função da desobediência civil: ela pode corrigir violações dos direitos existentes, pode estabilizar a regra da maioria ou, no máximo, pode garantir que os direitos de todos sejam respeitados. Embora sejam funções certamente importantes em qualquer sociedade democrática que almeje a justiça, resta saber se é também uma forma suficiente de conceber as possibilidades abertas pela ideia de desobediência civil.
Assim, parte da resposta oferecida por Cohen e Arato (1994, p. 582) sobre a necessidade de uma abordagem alternativa ao liberalismo para a desobediência civil passa pela necessidade de uma justificação da desobediência civil como possibilidade não apenas nos casos de defesa de direitos básicos, reconhecidos e violados, mas como um componente crucial de mudança dentro de uma democracia constitucional. Trata-se, assim, de compreender a desobediência civil também como uma fonte importante para a “criação” e institucionalização de direitos: “O papel da ação cidadã politicamente relevante é, portanto, expandido para além das reações defensivas a violações específicas dos direitos individuais para incluir questões sobre quais princípios, quais normas, devem ser transformados em lei” (Cohen; Arato, 1994, p. 582, tradução nossa). Isso significa que deveríamos deixar aos próprios atores e às práticas sociais a determinação sobre os temas passíveis de contestação através da desobediência civil.
Na mesma linha, Scheuerman (2018, p. 40) também formulou uma crítica às funções que a desobediência civil pode desempenhar na teoria rawlsiana. Para Rawls (2008, p. 454), os infratores politicamente motivados e convencidos de suas razões para desobedecer civilmente deveriam apelar ao senso de justiça compartilhado por seus concidadãos. Esse é um modo de ver a desobediência civil apenas como um corretivo aos mal-entendidos da maioria na interpretação de ideais de justiça já existentes e compartilhados. Em tom irônico, Scheuerman diz que a desobediência civil liberal não é mais do que um “post-it” dos grupos oprimidos às maiorias políticas esquecidas, isto é, um lembrete sobre os acordos e princípios pré-fixados em uma sociedade democrática quase justa.
Ao recomendar que os cidadãos que têm seus direitos violados apelem ao senso de justiça, Rawls faz dessa uma ideia fundamental para seu conceito de desobediência civil. Rawls (2008, p. 455) argumenta que o senso de justiça compartilhado pelos cidadãos de uma sociedade democrática se encontraria mais ou menos institucionalizado na Constituição. Após a convenção constitucional, e a ratificação de uma constituição, a concepção de justiça é institucionalizada. Ao povo, caberia o papel de reforçar, em suas práticas cotidianas, os princípios constitucionalmente fixados de uma vez por todas, tirando da sociedade civil a possibilidade de que possam emergir impulsos criativos e demandas pelo próprio aprofundamento democrático. Em suma, justificam Cohen e Arato (1994, p. 577, tradução nossa): “Armado com essa teoria, Rawls é aparentemente capaz de circunscrever a ‘soberania’ ou a autoridade extrainstitucional do ‘povo’ expressa em atos de desobediência civil dentro dos limites estreitos da defesa dos direitos que todos, em princípio, já possuem”.
Uma concepção alternativa ao modelo liberal deve reconhecer o fato de que a constituição é um projeto permanentemente inacabado e que sua interpretação e as leis que dela derivam são, em parte, desenvolvidas por meio da experimentação dos próprios cidadãos. Esse processo guarda tensões que são próprias da dinâmica do Estado democrático de direito e que, portanto, não podem ser eliminadas. Como a lei nunca está fixada definitivamente, a abordagem democrática concebe a possibilidade de que o processo de revisão e de adaptação possa ser auxiliado pela desobediência civil, capaz de indicar inovações e correções sem as quais uma democracia constitucional não poderia alimentar a crença de seus cidadãos na legitimidade contínua de um ordenamento jurídico e institucional herdado do passado (Cohen; Arato, 1994, p. 578).
Celikates (2016b, p. 38), por sua vez, argumenta que a ênfase que o senso de justiça ocupa na concepção de desobediência civil de Rawls constituiria também um sério problema, evidenciando sua rigidez. Isso porque, segundo o crítico, em sociedades democráticas desiguais, como a maioria das que conhecemos, a desobediência civil muitas vezes se volta precisamente contra o senso de justiça predominante entre a maioria dos cidadãos. Nesse contexto, a desobediência civil não se limita a apelar para que o senso de justiça seja restaurado, mas o coloca como alvo da própria contestação, exigindo mudanças e reformas que Rawls (2008) teria negligenciado ao desenvolver sua teoria voltada exclusivamente para os casos de “sociedades quase justas”.
Em resumo, a abordagem liberal da desobediência civil, especialmente a teoria de Rawls, possui méritos filosóficos e uma reconhecida trajetória conceitual, mesmo entre os críticos. Contudo, sua rigidez teórica parece restringir o conceito de desobediência civil, ajustando-o a reformas modestas em democracias “quase justas” (Rawls, 2008, p. 452), em que se espera dos cidadãos apenas atenção a violações ocasionais de direitos. Essa concepção é não apenas limitada, mas excessivamente cautelosa quanto ao potencial transformador da desobediência civil. O desafio da abordagem democrática da desobediência civil é, assim, conceber uma política mais radical da sociedade civil, sem incorrer em um fundamentalismo revolucionário.
Habermas e a desobediência civil como guardiã da democracia
No início dos anos 1980, uma onda de manifestações tomou as ruas da Alemanha, trazendo novidades em suas pautas, composição e formas de mobilização. Essas manifestações de massa abordavam temas diversos, como questões ecológicas, pacifistas e feministas. As estratégias incluíam performances artísticas, piquetes, ocupações de imóveis contra a especulação imobiliária e grandes projetos urbanísticos, além de bloqueios temporários em construções de rodovias e aeroportos (Melo, 2019, p. 300). Esses elementos indicavam uma nova cena de protestos, cujas raízes, segundo Habermas (2015, p. 129), remontavam à década anterior e poderiam ser compreendidos no escopo da desobediência civil.
Essa profusão na sociedade civil, mais do que indicar uma iminente revolução e um descontentamento generalizado com o regime político, é lida por Habermas (2015) como o sintoma de uma cultura política democrática madura, acostumada à liberdade e que sabe reagir quando sua autonomia e autoridade são postas em risco: “Toda democracia ligada ao Estado de direito que é segura de si mesma considera a desobediência civil como componente normalizado, visto que necessário, de sua cultura política” (Habermas, 2015, p. 131).
Dois são os sintomas dessa maturidade política: (i) a identificação popular com os princípios constitucionais de um Estado democrático; (ii) a compreensão das manifestações, por parte dos próprios manifestantes, como um ato simbólico. Trata-se, então, da convicção de que a desobediência civil, mesmo que deliberadamente ilegal em sua forma, preserva o propósito de apelar à capacidade de discernimento e ao senso de justiça da maioria dos concidadãos, um dos fundamentos legitimadores da ordem do Estado democrático de direito.
Na prática, a desobediência civil é vista por Habermas (2015, p. 133) como um recurso mobilizado para despertar na sociedade civil e nas elites políticas a disposição em reabrir a deliberação a respeito de alguma norma vigente, política ou lei que consideram ilegítimas. Nas palavras do autor, a desobediência civil deve ser entendida como:
[…] um protesto moralmente fundamentado, ao qual não podem subjazer convicções da fé privada ou interesses próprios; ela é um ato público, que via de regra é anunciado e cujo decurso pode ser calculado pela polícia; ela inclui a infração propositada de diversas normas jurídicas, sem afetar a obediência a ordem jurídica em seu todo; ela requer a disposição de responder pelas consequências jurídicas da infração de normas; a infração de regras em que se manifesta a desobediência civil tem um caráter exclusivamente simbólico - e disso já resulta restrição aos meios de protestos isentos de violência (Habermas, 2015, p. 134).
É inequívoca a semelhança, e certo alinhamento, entre o conceito de desobediência civil cunhado por Habermas e aquele defendido por John Rawls (2008, p. 455), embora o próprio filósofo alemão admita que, no outono de 1983, quando abordou o tema pela primeira vez, não sabia ao certo precisar até que ponto a sua proposta coincidia ou divergia daquela contida em Uma teoria da justiça. Como Rawls, Habermas entende a desobediência civil como um protesto simbólico, não violento, moralmente motivado, mas que não pode ter como base reivindicações egoístas ou concepções particulares de bem. Além disso, o infrator deve demonstrar disposição em arcar, juridicamente, com as consequências de suas ações ilegais.
A proposta que Habermas busca desenvolver, contudo, estaria atrelada à filosofia do direito e posiciona a desobediência civil na tensão constitutiva entre a legitimidade e a legalidade de uma democracia constitucional. Essa seria também uma forma de responder aos argumentos legalistas que buscavam criminalizar os movimentos sociais emergentes nas novas cenas de protestos da Alemanha, indicando os limites daquilo que Habermas chamou de “legalismo autoritário”. Em suma, explica Melo (2019, p. 299), trata-se de distinguir a ideia de legalidade e legitimidade e indicar que a legitimidade política não é mera decorrência da legalidade estabelecida pelo direito.
A legitimidade do Estado democrático de direito exige que os cidadãos reconheçam a ordem jurídica e depositem nela confiança, não apenas temor por sua capacidade de impor sanções: “A lealdade à lei deve resultar de um reconhecimento com discernimento e, por conta disso, voluntário daquela pretensão normativa à justiça que toda ordem jurídica levanta” (Habermas, 2015, p. 136). Em suma, os cidadãos de uma democracia política só devem obediência às leis se, e na medida em que, a lei se apoia em princípios dignos de reconhecimento, de modo a tornar aquilo que é legal e legítimo. Esse reconhecimento se apoia no pressuposto de que, nas democracias, a lei é o resultado de um processo de deliberação pública que é, por fim, transformado em ordem legal pelas instituições políticas e jurídicas que conferem um caráter positivo à vontade política dos cidadãos.
Como comenta Melo (2019, p. 303), a desobediência civil habermasiana ressalta, normativamente, a distinção entre aquilo que é legal e aquilo que é a pretensão de legitimidade do Estado democrático de direito. A autoridade política que se assenta apenas sobre as bases da legalidade e dos procedimentos jurídicos não passaria de um “legalismo autoritário” que pouco tem a ver com uma democracia, no sentido que lhe atribuímos aqui. O Estado democrático de direito é constituído de uma tensão insolúvel entre legitimidade e legalidade, o que Melo (2019, p. 303) identifica como a tarefa paradoxal do Estado de direito, que não pode assumir uma forma institucionalmente garantida. A desobediência civil, por sua vez, “aponta justamente para este paradoxo ao ressaltar que regulações legais podem ser ilegítimas mesmo no Estado democrático de direito, ou seja, tanto ‘ao reconhecer as violações legais à legitimidade’ quanto ao ‘agir também ilegalmente por discernimento moral’” (Melo, 2019, p. 303).
O que é próprio do modelo democrático é que Habermas (2015) passou a ver a desobediência civil como um incentivo à democracia, um canal possível de atividade democrática popular suspensa entre o direito positivo e a legitimidade que vem das ruas. Nesse ínterim, a desobediência civil pode desempenhar um papel não apenas de defesa dos direitos individuais, como criticou Cohen e Arato (1994) no modelo liberal, mas assumir um potencial de reconfiguração da democracia e do governo constitucional (Scheuerman, 2018, p. 59).
A história europeia dos direitos fundamentais representa, para Habermas (2015, p. 140), o exemplo de um processo de aprendizagem política coletiva, marcada por conquistas e contragolpes, de modo que ainda hoje devemos nos perguntar, e talvez duvidar, se esse projeto já se encontra concluído. A história democrática é semelhante. Ela não nos permite, e talvez não permitirá jamais, nem mesmo às gerações futuras, ver-se como meros herdeiros felizes das conquistas do passado:
O Estado de direito em seu todo aparece, dessa perspectiva histórica, não como um construto acabado, mas como um empreendimento suscetível, vulnerável, voltado seja para produzir, conservar, renovar ou ampliar, sob circunstâncias cambiantes, uma ordem jurídica legítima. Visto que esse projeto é inconcluso, também os órgãos constitucionais de modo algum se excetuam dessa suscetibilidade (Habermas, 2015, p. 139-140).
É justamente por apontar para o paradoxo do Estado de direito que os atos de desobediência civil integram o projeto político permanente de construção de uma democracia constitucional e, por isso, representam a pedra de toque da democracia, ou o sintoma de uma cultura política democrática madura.
Em regimes democráticos, como o Brasil, o ordenamento político-jurídico conta com um conjunto robusto de procedimentos e mecanismos de revisão que devem ser percorridos por uma proposta de lei. Isso envolve, por exemplo, no Legislativo, o trabalho das Comissões Especiais e o bicameralismo; no Executivo, a necessidade de sanção presidencial; no Judiciário, a possibilidade de veto da Suprema Corte. Essa complexa arquitetura institucional compõe uma engrenagem que nos ajuda a ilustrar, e atestar, a elevada necessidade de revisão e autocorreção da lei no Estado democrático de direito. A desobediência civil é para Habermas (2015, p. 140) uma possibilidade extrainstitucional de revisão dos comandos legais, aberta aos cidadãos de uma democracia.
Ao reconhecer a desobediência civil como recurso último, Habermas não sugere que os cidadãos devam percorrer previamente um caminho institucional antes de considerar uma manifestação ilegal. Em vez disso, ele destaca a urgência desse recurso na sociedade civil. Os oprimidos, que primeiro sentem o peso da injustiça, geralmente possuem poucas oportunidades de influência política e raros espaços para serem ouvidos por parlamentares, partidos ou mídias de massa. Também carecem de meios para pressionar representantes, como ameaças de corte de financiamento eleitoral. Assim, a pressão plebiscitária da desobediência civil surge para eles como último recurso para revisar, conter ou propor pautas.
Ao caracterizar a desobediência civil como indutora da legitimidade democrática, Habermas (2015, p. 144) pretende também afastar o conceito das possibilidades de ser apreendido pelo polo da legalidade. Ele se opõe àqueles que defendem a juridificação da desobediência civil, seja pelos caminhos da interpretação radical do direito de manifestação e reunião, seja pelas tentativas de tradução das fundamentações feitas no âmbito da teoria moral e do direito em fórmulas de justificação juridicamente aplicáveis. A desobediência civil não pode, e não deve, ser domada pelo direito positivo. O efeito da normatização envolve a eliminação do risco pessoal envolvido na desobediência e que constitui, para Habermas (2015, p. 144), o fundamento moral do protesto, como forma de atestar o apelo sincero aos concidadãos. No entanto, normativamente, a ilegalidade da desobediência civil também é fundamental porque reforça que o Estado democrático de direito, e o ordenamento jurídico que é parte de sua sustentação, apontam e dependem do poder legitimador que repousa permanentemente na sociedade civil.
Ao interpretar as novas cenas de protestos alemães na chave da desobediência civil, Habermas (2015) também alarga as possibilidades de justificação de tal ato e se afasta das exigências de Rawls (2008, p. 464), segundo o qual a desobediência civil só é legítima em casos de violações dos direitos individuais fundamentais. Ao recorrerem à desobediência civil para protestar contra a instalação de foguetes e mísseis nucleares na Alemanha, os cidadãos não podem se valer da mesma justificação de todos aqueles e aquelas que lutaram por direitos civis nos Estados Unidos e que, em vias gerais, podem encontrar mais respaldo na justificação liberal.
Como assinalou Scheuerman (2018, p. 72), os protestos ilegais na Alemanha denunciavam o modo como o governo em Bonn conduzia as questões envolvendo fontes energéticas e a corrida armamentista sem um amplo debate público. O que os cidadãos exigiam é que as decisões fossem tomadas após um extenso debate público, não por meio de “atalhos” decisionistas democraticamente duvidosos. Em suma, o que estava em jogo era a reconexão do fio que liga a legalidade e a legitimidade. Em outras palavras, o que justificaria os atos ilegais de desobediência nesse contexto são os esforços de superação dos déficits democráticos no processo de decisão.
Ao analisar o ensaio escrito por Habermas em 1983, do ponto de vista de uma concepção democrática da desobediência civil, Felipe Silva (2018, p. 211) identifica o que acredita ser uma ambiguidade. A desobediência civil é justificada para Habermas (2015) quando os comandos legais não satisfazem os requisitos implícitos de legitimidade do direito. A legitimidade em um Estado democrático de direito, por sua vez, estaria atrelada aos procedimentos democráticos, que, por sua vez, assentam-se sobre princípios capazes de conquistar aquiescência universal.
Assim, continua Silva (2018, p. 211), de um lado, Habermas (2015, p. 144) argumenta que a desobediência civil estaria apoiada em um padrão democrático-procedimental de legitimidade. “A desobediência civil tira sua dignidade da pretensão de legitimação do Estado democrático de direito, fincada em um patamar elevado” (Habermas, 2015, p. 144). Por outro lado, Habermas confere aos próprios procedimentos de legitimação do direito um caráter moral, os quais são apresentados como parte da própria estrutura do Estado constitucional moderno: “São decisivos somente os princípios morais convincentes para todos, nos quais o estado constitucional moderno funda a expectativa de ser reconhecido por seus cidadãos de modo próprio” (Habermas, 2015, p. 139).
Para Silva (2018, p. 2011-2), isso significa que a mediação entre formação democrática da vontade e o direito é feita por meio do recurso à moral. Direito e democracia estariam subordinados aos princípios morais, introduzidos por Habermas mediante uma reinterpretação da filosofia prática de Kant e pela própria influência da teoria de Rawls. Para Silva (2018, p. 212), esta é precisamente a dúvida manifestada por Habermas (2015) ao dizer, no seu texto, que não tinha clareza sobre até que ponto sua teoria concordava com aquela apresentada anteriormente pelo filósofo liberal.
Os laços entre uma fundamentação moral do direito e da política só serão rompidos por Habermas alguns anos mais tarde, em Soberania popular como procedimento, de 1988, e ganha contornos mais bem acabados em 1992, com a publicação de Facticidade e validade. Isso porque é somente na obra de 1992 que o alemão insere em sua interpretação da desobediência civil os conceitos de autonomia e esfera pública, e os liga a uma teoria da circulação do poder, como veremos nas próximas seções.
A teoria deliberativa da democracia: uma nova moldura teórica
No ano de 1992, Facticidade e Validade surge como expressão mais bem acabada de muitos dos esboços e indicações já contidas em textos anteriores, como em Soberania popular como procedimento, de 1988, e o prefácio de Mudança estrutural da esfera pública, escrito no ano de 1990. Em Facticidade e Validade, Habermas dedica especial atenção ao papel da esfera pública e sua penetração mais efetiva no político. Essa é também uma tentativa de responder de modo mais realista à questão sobre a ação recíproca entre solidariedade sócio-integrativa do mundo da vida e os procedimentos político-administrativos, de modo a mostrar que sua teoria do agir comunicativo não é cega à realidade institucional.
A mudança que permite a Habermas (2020) esse redimensionamento do político em sua relação com a esfera pública está ancorado em um processo de normatização que se inicia pela formação da opinião e da vontade nas esferas públicas informais e que acaba desaguando nas instâncias formais de decisão. O nexo entre os processos informais de formação da opinião e da vontade e sua absorção pelo núcleo decisório da política passa pela institucionalização de práticas comunicativas que, por sua vez, está assentada numa ampla concepção de democracia deliberativa.
O ponto de partida é a identificação de uma tensão insolúvel entre facticidade e validade que perpassa como fio condutor da teoria do direito e da democracia habermasiana. De um lado, a facticidade se revela na capacidade de imposição do direito pelo Estado, isto é, na força de fazer cumprir um comando legal. Contudo, no direito moderno, a facticidade se interliga à exigência de um processo de normatização que reclama para si racionalidade, pela qual busca assegurar a liberdade de seus parceiros e destinatários e de onde deriva sua validade. Assim, pode-se falar que a facticidade do direito está vinculada à sua validade social na medida em que consegue se impor enquanto norma de conduta generalizada; já a sua legitimidade vincula-se a um processo legislativo racional que lhe dá origem a partir de justificações dessa regra do ponto de vista pragmático, ético ou moral (Habermas, 2020, p. 64).
Um olhar para o direito a partir de sua dimensão fática revela uma estreita relação com o arranjo institucional capaz de regular expectativas de comportamentos e de garantir o seu cumprimento a partir da possibilidade de recurso a um reservatório de meios coercitivos. Com isso, o direito, visto a partir de sua grandeza empírica, tende a associar a submissão à norma à possibilidade de punição em casos de comportamentos que desviam da expectativa legal. Um olhar para a validade do direito nos obriga a explicar como os atores se associam livremente a grupos juridicamente regulados. Nesse caso, o direito se revela como expressão e realização de valores compartilhados. Os atores, assim, não obedecem à norma exclusivamente por conta do eco violento de uma coerção imposta de fora, mas se apropriam do direito como coerção moral e o traduzem em motivos próprios, expressão da própria autonomia.
Desse modo produz-se um vínculo conceitual entre o caráter coercitivo e o caráter modificável do direito positivo, por um lado, e o modo de legislação que cria a legitimidade, por outro. Por isso, do ponto de vista normativo, não existe apenas um vínculo histórico e casual entre a teoria do direito e a teoria da democracia, mas sim um vínculo conceitual ou interno (Habermas, 2018, p. 420-421).
Na medida em que o direito moderno se amalgama ao Estado, fazendo do poder político e jurídico duas faces de uma só moeda, entre eles se estabelece uma relação de pressuposição mútua naquilo que vem sendo identificado por Estado de direito, que traz para o seu interior a tensão entre facticidade e validade. O poder político, na figura central do Estado, torna-se o responsável pelas sanções e execuções da jurisdição, contudo, o poder político não é exterior ao poder jurídico. Na figura do Estado de direito, o poder político exige o jurídico. O próprio Estado se estabelece sob a forma reguladora do direito, isto é, “o poder político só pode desenvolver-se através de um código jurídico institucionalizado na forma de direitos fundamentais” (Habermas, 2020, p. 185).
A ideia de um poder político juridicamente regulado exige que as decisões coletivamente vinculantes se alimentem da legitimidade de um direito legitimamente estatuído. Nas complexas sociedades pós-tradicionais, marcadas pelo pluralismo de valores e concepções de bem, as justificações racionalmente aceitas como legítimas por uma comunidade de parceiros do direito só podem encontrar força num processo discursivo de formação da opinião e da vontade política (Habermas, 2020, p. 186). Com isso, Habermas prepara o terreno para a inserção de sua teoria do discurso na moldura mais ampla de uma teoria democrática.
Nesse enquadramento, a ideia de autonomia também desempenha um papel fundamental. Quer dizer, a ideia segundo a qual os cidadãos de um Estado democrático de direito não apenas devem reconhecer a validade do direito como meros comandos impositivos, é preciso que os cidadãos não sejam meros “destinatários do direito”, mas também se reconheçam enquanto “autores do direito”. Como destaca Melo (2019, p. 305-6), esse modo de relacionar autonomia e direito revela um vínculo intrínseco entre o próprio direito e a práxis política autônoma dos cidadãos, o que, na modernidade, constitui a única fonte de legitimidade justificável. Em outras palavras, a modernidade política tornou a soberania popular, como prática de autodeterminação dos cidadãos que são vistos e se veem como livres e iguais, a única fonte de legitimação possível.
O conceito de autonomia política, quando trazido para o interior de uma teoria do discurso, invoca uma concepção do direito legítimo que depende do acionamento das liberdades comunicativas dos cidadãos, o que coloca a legislação na dependência do poder comunicativo. Acompanhando Hannah Arendt, Habermas (2020, p. 198-199) afirma ser o poder comunicativo aquele que se forma da mobilização discursiva dos cidadãos em torno de um tema e se dissolve tão logo os cidadãos se espalham, o que leva o teórico alemão a afirmar: “Segundo esse modelo, o direito e o poder comunicativo surgem cooriginariamente da ‘opinião sobre a qual muitos estão publicamente de acordo’” (Habermas, 2020, p. 199). Portanto, o poder comunicativo só emerge enquanto tal do interior de uma esfera pública que preserva intacta as estruturas da intersubjetividade de uma comunicação livre e não deformada que exige “um modo de pensar ampliado”.
O exercício da autonomia política sob a forma de poder comunicativo, isto é, sob a forma discursiva de uma vontade comum, visa influenciar a atuação do poder político administrativo. Para isso, ele deve poder migrar para o interior do sistema político, cabendo ao direito operar como o médium por meio do qual o poder comunicativo pode ser traduzido em poder administrativo. A formação política da vontade iniciada pelos cidadãos se encerraria nas decisões sobre políticas e leis que precisariam ser formuladas na linguagem do direito (Habermas, 2020, p. 223).
Na teoria discursiva proposta por Habermas (2020, p. 225), a soberania popular deve ser entendida a partir da seguinte máxima: “todo poder político deriva do poder comunicativo dos cidadãos”. O poder político deve se orientar e se legitimar mediante as leis criadas pelos cidadãos para eles mesmos, por meio de um processo de formação da opinião e da vontade política estruturado discursivamente, o que leva o autor a afirmar a inviabilidade de um Estado de direito sem “democracia radical”.
Assim, se o sistema político é, em geral, concebido como uma estrutura impermeável à vontade dos cidadãos, capaz de impor suas decisões de cima para baixo por meio de processos endógenos que prescindiriam da participação democrática, comentam Silva e Melo (2020, p. 20), o que Habermas busca demonstrar são as condições de possibilidade para a formação democrática de um “contrapoder” que pode atuar de baixo para cima, seja para incluir vozes e grupos silenciados no processo político, seja para demandar maior democratização e inclusão dos processos decisórios:
[…] para que possam se compreender simultaneamente como destinatários e autores das leis, cidadãos e cidadãs precisam ser capazes de fazer que as experiências cotidianas que provocam indignação e revolta (exclusão social, formas de preconceito, violência urbana etc.) sejam publicamente tematizadas pela sociedade civil a ponto de fazer ‘vibrar as estruturas’ que definem ‘as relações de força entre sociedade civil e sistema político’ (Silva; Melo, 2020, p. 20).
Habermas (2020, p. 379) aloca a teoria do discurso no centro da teoria do direito e no coração do processo democrático. Contudo, sua concepção acerca da democracia traz consigo consequências tanto para uma teoria da sociedade centrada na figura do Estado, enquanto guardião de uma sociedade econômica, quanto para uma concepção que projeta no Estado a figura institucional de uma comunidade ética.
Tais consequências também podem ser expressas a partir de uma tensão entre normatividade e empiria protagonizada, no correr do século XX, pelas disputas entre os modelos de democracia mais marcadamente liberais e seus adversários de maior teor republicano. O alemão acredita ser capaz de superar tal impasse por meio de um procedimento democrático deliberativo que assimila elementos de ambos os paradigmas sem, com isso, filiar-se a algum deles. Esse modelo alternativo de democracia proposto por Habermas (2018) é apresentado pelo autor mediante uma reconstrução teórica que modela de forma estilizada as bases da abordagem liberal e republicana.
A diferença decisiva entre os dois modelos precedentes reside na compreensão do papel que cabe ao processo democrático. No modelo liberal, a política é, sobretudo, a disputa por posições de acesso ao poder administrativo. O êxito dos concorrentes é medido de acordo com o número de votos conquistados, ou seja, agregando às preferências individuais em lógica semelhante à do mercado. Já para o modelo republicano, a formação de opinião e vontade política está ancorada nas estruturas de uma comunicação pública com vista ao entendimento mútuo: “O paradigma da política no sentido de uma prática de autodeterminação dos cidadãos não é o do mercado, mas sim o diálogo” (Habermas, 2018, p. 405). Portanto, é o embate argumentativo da arena política que confere força legitimadora às decisões.
Como vantagem da concepção republicana, Habermas (2018, p. 406) enxerga sua pretensão de se firmar em sentido radicalmente democrático, isto é, como autodeterminação e organização pelos cidadãos por via comunicativa. A desvantagem republicana, quando comparado ao modelo liberal, estaria, sobretudo, no elevado grau de idealismo, por tornar o processo democrático dependente das virtudes cívicas e de um bem comum. Para o autor, o erro republicano reside então na ideia de uma condução estritamente ética dos discursos políticos. É preciso, então, um procedimento refinado que possa conduzir à expectativa de acordos razoáveis, sendo que os próprios pressupostos e procedimentos precisam ser justificados do ponto de vista de uma normatividade universalista e não somente determinada por acordos éticos estabelecidos no interior de uma comunidade de indivíduos particulares.
O conceito de uma política deliberativa somente ganha uma referência empírica quando levamos em conta a multiplicidade de formas de comunicação nas quais uma vontade comum se forma não somente pela via de uma autocompreensão ética, mas também pelo equilíbrio de interesses e compromissos, pela escolha de meios segundo a racionalidade com respeito a fins, pela fundamentação moral e exames de coerência jurídica (Habermas, 2018, p. 408).
Com esse balanço, Habermas (2018, p. 409), então, procura desenvolver o terceiro modelo de democracia, alicerçando seus procedimentos sobre condições comunicativas que permitam o desenvolvimento de uma esfera pública capaz de se constituir como âmbito de formação da vontade política por meio de processos comunicativos entre os cidadãos, entendidos como livres e iguais. Trata-se, sobretudo, de uma concepção procedimental de democracia, assentada sobre as exigências normativas de ampliação da participação dos indivíduos nos processos de deliberação e decisão e no fomento de uma cultura política democrática. É nesse sentido que podemos dizer que a democracia deliberativa habermasiana deve ser entendida como uma concepção procedimental, que se concentra em “quem participa” e em “como fazê-lo”, não dizendo nada sobre “o que” deve ser decidido.
A democracia deliberativa de matriz habermasiana encarna o processo democrático em sentido mais fortemente normativo do que o modelo liberal, mas é menos normativa do que o modelo republicano. Em consonância com o republicanismo, a teoria do discurso reserva papel nevrálgico para o processo político de formação da opinião e da vontade e à ideia de razão pública como fonte de legitimidade da norma democrática, sem comprometer, com isso, a constituição jurídico-estatal ou relegá-la a um papel secundário. Mais que isso, nas palavras de Habermas (2018, p. 412), a teoria do discurso “concebe os direitos fundamentais e princípios do Estado de direito como uma resposta consequente à questão sobre como institucionalizar os pressupostos comunicativos exigentes do procedimento democrático”. Com isso, a teoria do discurso não torna a efetivação de uma política deliberativa dependente de um conjunto de cidadãos capazes de agir coletivamente, mas sim da institucionalização dos procedimentos que lhe digam respeito.
Em suma, podemos apontar a concepção de política deliberativa nos moldes propostos por Habermas, como uma tentativa de formular uma teoria da democracia a partir de duas tradições teórico-políticas: a concepção de autonomia pública da teoria política republicana (vontade geral e soberania popular) com a concepção de autonomia privada da teoria política liberal (interesses particulares e liberdades individuais). Por isso, ela pode ser aceita, ao mesmo tempo, como um meio-termo e uma alternativa aos outros dois modelos.
O princípio procedimental da democracia deliberativa pretende amarrar um procedimento de normatização que, no fundo, significa um processo de institucionalização que visa garantir formalmente uma participação igual nos processos de formação discursiva da opinião e da vontade, e estabelece, com isso, um procedimento legítimo de normatização. Esse procedimento é expresso pela própria deliberação, que, segundo Habermas (2020, p. 454), constitui o próprio âmago do procedimento democrático. Nesse caminho, via deliberação, os pressupostos comunicativos de formação da opinião e da vontade funcionam como as “comportas” mais importantes para a racionalização discursiva das decisões no âmbito institucional.
A formação da opinião se dá por meio de uma rede de comunicação pública e inclusiva de esferas públicas subculturais que vão se sobrepondo umas às outras, cujas fronteiras e limites, sociais e temporais, são de grande fluidez e de difícil demarcação, o que Habermas (2020, p. 394) chama de “público fraco”. Sua formação se daria de modo mais ou menos espontâneo no quadro mais amplo de uma sociedade pluralista e no contexto de reconhecimento dos direitos humanos. É mediante esses públicos fracos que se tem o início dos fluxos comunicacionais, em princípio informais. Tomados em sua totalidade, esses públicos formam um complexo anárquico que não pode ser completamente regulado.
Na teoria deliberativa, do ponto de vista normativo, o que empresta força legitimadora ao procedimento é justamente o percurso, isto é, a base argumentativa de fundamentação discursiva que se desenrola na esfera pública. É a partir do respeito ao procedimento que Habermas (2020, p. 454) fundamenta uma medida para a legitimidade da influência exercida pela opinião pública sobre a esfera formal do sistema político.
Cabe à esfera pública cumprir a função de uma “estrutura intermediária” capaz de estabelecer o vínculo entre o Estado e o sistema político, de um lado, e os processos comunicativos do mundo da vida, de outro. É na esfera pública que se desenvolve um raciocínio de natureza pública de formação da opinião e da vontade política, enraizado no próprio mundo da vida. Nesse sentido, a esfera pública constitui-se como uma “caixa de ressonância” dotada de um sistema de “sensores” sensíveis a toda a sociedade e capaz de filtrar e sintetizar os temas, argumentos e contribuições repercutidos no interior desse “espaço social”, transpondo, assim, para o sistema político os conflitos presentes na sociedade civil. Com isso, ela exerce influência e busca direcionar os processos de regulação e circulação do poder no núcleo decisório do sistema político por meio de uma abertura estrutural, sensível e porosa que, por sua vez, está ancorada no mundo da vida (Habermas, 2020, p. 474).
Esse é também o sentido da metáfora das eclusas, elaborada por Habermas: no modelo de eclusas, o sistema político é pensado a partir do Estado de direito e consiste em um centro (parlamento, tribunais, burocracia administrativa etc.) e uma periferia, localizada nas franjas dos processos comunicativos do próprio mundo da vida. Os influxos comunicativos da periferia precisam transpor as comportas dos procedimentos democráticos e do próprio Estado para que possam desaguar nos centros de tomada de decisão. Nesse sentido, as reivindicações e as vontades políticas da “periferia” podem migrar para dentro da própria administração. Assim, a esfera pública é ainda a mediadora da relação entre Estado e sociedade civil.
Habermas (2020, p. 458) adverte que a esfera pública não pode ser entendida como uma instituição, tampouco como uma organização. Ela também não se constitui enquanto um sistema, pois, ainda que seja possível delinear alguns de seus limites internos, exteriormente ela segue exigindo que seus horizontes permaneçam abertos e porosos. Uma das características fundamentais da esfera pública é sua constituição enquanto espaço irrestrito de comunicação e deliberação pública. Inserida em um contexto amplo de uma teoria procedimental da democracia, os conteúdos da esfera pública não podem ser estabelecidos a priori, tampouco limitados ou restringidos, estando, pelo menos em princípio, aberta a todo âmbito social. Ao tratar da esfera pública, Habermas (2020) reforça o caráter procedimental de sua teoria deliberativa, dando ênfase à necessidade de manter a esfera pública sempre indeterminada quanto ao conteúdo da agenda política e aos indivíduos e grupos que nela podem figurar. É por isso que o autor não quer, nem pode, descrever com precisão as suas linhas internas e externas.
É por meio de uma ideia procedimental de deliberação pública que os “contornos” da esfera pública se forjam durante os processos de identificação, filtragem e interpretação acerca de temas e contribuições que emergem das esferas públicas autônomas e são conduzidos para os foros formais e institucionalizados do sistema político e administrativo. É nesse procedimento de justificação da legitimidade que se realiza a normatividade da esfera pública.
Essa renovada concepção teórica de democracia em Habermas visa capturar os novos anseios de uma sociedade civil em efervescência e as lutas sociais do último quarto do século passado, profundamente transformadas pelo fim das experiências autoritárias que, à esquerda ou à direita, marcaram o século XX. A teoria deliberativa de Habermas (2020) busca, assim, abarcar um contexto em que o movimento por mais democracia e sua tradução em direitos não se opõe ao Estado democrático de direito, mas integra a luta por sua plena realização.
A desobediência civil em uma teoria da circulação do poder
Se a teoria deliberativa da democracia condensada em Facticidade e validade representa o desenvolvimento mais bem acabado de insights já apresentados por Habermas em trabalhos anteriores, o modelo de circulação do poder, apresentado no Capítulo VIII da referida obra, representa uma tradução eminentemente sociológica dos processos de disputa e influência do poder político entre os atores da sociedade civil e o sistema político, até então pouco explorada por Habermas entre os anos que separam a publicação de Teoria da ação comunicativa, em 1981, e Facticidade e validade, no início dos anos de 1990.
É a partir desse modelo de circulação do poder que a ideia de desobediência civil é retomada por Habermas em 1992. Contudo, Habermas o faz, como é característico de sua obra, sem sinalizar uma clara revisão, ou sem sequer mencionar o seu texto escrito no outono de 1983. Ao contrário, as obras que parecem desempenhar um papel de referência no debate teórico encampado por Habermas são o seminal trabalho de Cohen e Arato (1994), além da permanência da teoria de John Rawls (2008). Assim, mais do que alterações no conceito, convém analisar o modo como Habermas (2020) reposiciona a ideia de desobediência civil no interior do seu novo quadro teórico.
Em uma das definições e ilustrações que Habermas (2020, p. 458) oferece ao tratar da esfera pública, o autor a descreve como uma “caixa de ressonância”, uma espécie de “sistema de alarmes e sensores” que estariam dispersos em toda a sociedade. Na metáfora de Habermas, os alarmes soam quando os atores da sociedade civil tematizam na esfera pública os problemas sociais que identificam no mundo da vida, dramatizando-os para que possam se projetar e ser assumidos e elaborados pelo sistema político. Como adverte o autor, a função de “sinalização” que faz soar os alarmes precisa ser complementada por uma problematização eficaz, capaz de acompanhar e controlar o próprio tratamento que é dado ao problema quando é absorvido pela institucionalidade política.
Aquilo que constitui um problema politicamente relevante não pode ser dado de antemão, como não pode ser fixa a demarcação entre o que constitui a esfera privada e aquilo que são os temas próprios da esfera pública. Embora sejam regidas por ideais distintos, como intimidade e publicidade, os temas pertencentes a cada uma das esferas podem transitar nos fluxos comunicativos à medida que são trazidos pelos atores sociais e tematizados na esfera pública (Habermas, 2020, p. 465).
Convém destacar, ainda, o modo como a ideia de esfera pública se relaciona com a concepção habermasiana de sociedade civil. Traduzido nos termos de Habermas (2020, p. 465): “O núcleo da sociedade civil é formado por um caráter associativo, que institucionaliza discursos voltados à solução de questões de interesse geral no quadro de esferas públicas organizadas”. Assim, a sociedade civil seria entendida, agora, de modo ampliado, como algo que abarca associações, organizações e movimentos não estatais e não econômicos que surgem de forma mais ou menos espontânea.
A atuação desses atores da sociedade civil na esfera pública tem por objetivo a influência sobre o poder político. A opinião pública, que surge de uma mobilização conjunta dos atores na esfera pública, representa, nas palavras de Habermas (2020, p. 472), uma “grandeza empírica capaz de produzir movimento”. Essa influência produz movimento à medida que passa pelos filtros dos procedimentos institucionalizados de formação da opinião e da vontade e adentra as instâncias decisórias para ser traduzido em uma linguagem de direito. Essa é a forma pela qual a atuação conjunta dos cidadãos se converte em soberania popular.
Ao insistir na influência política como objetivo dos movimentos emergentes na sociedade civil, Habermas (2020, p. 472) também pretende afastar do âmbito de atuação legítima nas democracias liberais a aspiração de movimentos que tem por objetivo a tomada do poder político. Em outras palavras, o que o autor indica é a necessidade de renúncia às aspirações de movimentos que almejam a organização da sociedade em seu todo, não como influência do sistema político constituído pelo Estado de direito, mas como um macrossujeito privilegiado que age com pretensões revolucionárias que pretende colocar toda a sociedade sob seu controle e agir em nome dela.
Embora os percursos possam variar, o processo de escalada de um problema passa pela “consciência da crise” nas periferias da esfera pública (o soar dos alarmes), isto é, pela tematização do problema por um grupo que, mediante a comunicação pública informal, vai fazendo com que as demandas ecoem e se espraiem nas preocupações que ganham relevância na esfera pública, até que possa receber a atenção do centro do poder, ou seja, até que o problema possa desaguar nas instituições políticas. No topo dessa escalada, que conta com diversos degraus, está a desobediência civil, uma forma de protesto “subinstitucional” capaz de intensificar a manifestação e a pressão por legitimação.
Em Facticidade e validade, a desobediência civil é entendida por Habermas (2020, p. 485) como protestos não violentos de transgressão simbólica das decisões vinculantes que, embora dotadas de legalidade, quando analisada do ponto de vista dos ritos políticos institucionalizados e contidos na Constituição, são tidos como ilegítimos pelos grupos organizados da sociedade civil que consideram que os ritos e procedimentos que dão sustentação popular à democracia foram negligenciados, seja por ausência de debates, pelo sufocamento de vozes ou por recursos decisionistas que permitem a tomada de decisão desamparada de um processo público de formação da opinião e da vontade política.
[…] em vez de argumentar a favor da incompatibilidade substancial de certas leis ou políticas com os princípios da justiça ou da lei como um “código público partilhado”, a desobediência democrática aponta para défices processuais e democráticos que tornam o processo de formação de opinião e vontade e de tomada de decisão questionável, independentemente de se considerar o seu resultado substancialmente problemático ou não (Celikates, 2016a, p. 9).
Sob a perspectiva da abordagem democrática, a desobediência civil se distancia de uma interpretação que enfatiza os cidadãos como meros portadores de direitos individuais, assumindo uma natureza predominantemente política e coletiva. A desobediência civil democrática representa um ato de confrontação contra a autoridade estatal vertical - o que Celikates (2016a, p. 8) definiu como poder constituído - em favor da autoridade horizontal dos cidadãos e dos governados, o poder constituinte.
A justificativa da lógica procedimental, que foca nos processos democráticos de formação da opinião e da vontade, não descarta razões substantivas, ou seja, os desacordos sobre os resultados como motivos legítimos para a desobediência civil. Essas possibilidades são abertas pelas práticas políticas de contestação nas ruas dentro de uma política deliberativa. A abordagem democrática, no entanto, destaca a desobediência civil como contestação política em contextos de “inércia deliberativa” - quando há bloqueios nos processos institucionais que impedem certos temas ou posições de integrarem o debate público ou de serem traduzidos em decisões formais (Celikates, 2016a, p. 8).
A desobediência civil habermasiana se dirige simultaneamente a dois destinatários. De um lado, (I) ela representa um apelo às autoridades públicas e representantes eleitos pela reabertura da deliberação política já encerrada. O objetivo é, portanto, que os decisores possam reconsiderar a decisão à luz da crítica pública e da pressão plebiscitária que brota das ruas. De outro lado, (II) a desobediência civil representa um apelo ao que foi chamado por Rawls (2008, p. 453) de “senso de justiça” dos concidadãos. Nesse sentido, então, têm-se os próprios cidadãos de uma democracia como destinatários. O objetivo é mobilizá-los e engajá-los no debate público em torno de temas controvertidos.
Independente do objeto próprio de controvérsia, a desobediência civil sempre reclama o reacoplamento da formação política constituída da vontade com os processos de comunicação da esfera pública. A mensagem desse subtexto se dirige a um sistema político que, em razão de sua constituição baseada no Estado de direito, não pode se separar da sociedade civil e se tornar independente da periferia. Com isso, a desobediência civil se refere à sua própria origem em uma sociedade civil que, em casos de crise, atualiza os conteúdos normativos do Estado democrático de direito no médium da opinião pública, voltando-se contra a inércia sistêmica da política institucional (Habermas, 2020, p. 485).
Convém destacar ainda o modo como Habermas liga a sua definição de desobediência civil não ao seu trabalho anterior sobre o tema, mas ao conceito oferecido por Cohen e Arato (1994, p. 587), que, segundo Habermas (2020, p. 485), condensa preocupações caras à sua própria obra, como também aos trabalhos de Rawls e Dworkin.
A desobediência civil envolve atos ilegais, em geral, por parte de atores coletivos, que são públicos, simbólicos e orientados por princípios, abarcando principalmente meios não violentos de protestos e apelando à capacidade de dar razões e ao senso de justiça da população. O objetivo da desobediência civil é persuadir a opinião pública na sociedade civil e política (…) de que uma lei ou política particular é ilegítima e uma mudança, justificada (…). Atores coletivos envolvidos em desobediência civil invocam os princípios utópicos das democracias constitucionais, apelando às ideias dos direitos fundamentais ou da legitimidade democrática. A desobediência civil, portanto, é um meio para reafirmar o vínculo entre sociedade civil e sociedade política (…) quando as tentativas legais de influência da primeira sobre a última falharam ou outras vias foram esgotadas (Cohen; Arato, 1989, p. 587-588 apudHabermas, 2020, p. 486).
Um dos aspectos importantes dessa interpretação oferecida por Habermas (2020, p. 486) é que a desobediência civil representa um momento em que a sociedade civil, por meio da tomada de consciência de uma crise, pode agir para intensificar a pressão da esfera pública sobre o sistema político. Isso indica o modo como o conceito de desobediência civil é agora inserido por Habermas (2020) em um modelo complexo de circulação do poder.
Embora a desobediência civil possa se opor a decisões que obedecem aos ritos institucionais constitucionalmente assegurados, sua justificação se apoia em uma compreensão radicalmente democrática e dinâmica da Constituição como um processo inacabado. Dessa perspectiva, o Estado de direito é um projeto inconcluso, uma espécie de empreendimento vulnerável, falível e que exige a constante revisão: “Essa é a perspectiva dos cidadãos que participam de forma ativa da realização do sistema de direitos e que, estando atentos e apelando às condições modificadas dos contextos, pretendem superar em termos práticos a tensão entre facticidade social e validade” (Habermas, 2020, p. 487).
Ao inserir sua concepção de desobediência civil no interior de um modelo de circulação do poder, Habermas (2020) nos permite reconectar as ideias centrais de autonomia e esfera pública. Como explica Melo (2019, p. 306), em Facticidade e validade,Habermas (2020) nos oferece uma concepção de esfera pública que concebe a possibilidade de um processo de “circulação do poder” em que a atuação dos cidadãos na “periferia” sobre o “centro” do sistema político é capaz de provocar transformações institucionais e o aprofundamento democrático. Dessa forma, a mobilização dos cidadãos em protestos e manifestações políticas de descontentamento, ou outras formas de tematização, dramatização e conflito ajudam a pressionar o sistema político e indicar um processo de erosão da legitimidade democrática.
A desobediência civil, quando analisada de um ponto de vista que estamos identificando como abordagem democrática, representa um momento, ou uma possibilidade, nesse processo de ebulição, em que os cidadãos, por meio de suas práticas, buscam indicar a necessidade de reconexão do vínculo entre a facticidade e a validade do direito. Em suma, explica Melo (2019, p. 308), a desobediência civil consistiria em um “momento dramático em que os cidadãos buscam efetivar uma espécie de contrapoder, que é reivindicado com base na aspiração social por mais autonomia, pela restituição da legitimidade política e em prol de uma democratização radical do Estado de direito” (Melo, 2019, p. 308).
Um modelo democrático de desobediência civil: considerações finais
Se tiver sido bem-sucedido na exposição até aqui, espero ter deixado claro o modo como a ideia de desobediência civil é abordada por Habermas ao longo dos anos de 1980 e 1990. Contudo, convém ainda explorar o segundo objetivo que assumimos, isto é, o modo como essa abordagem habermasiana nos liga, e o que ela acrescenta, ao modelo democrático da desobediência civil, além de indicar alguns de seus limites.
A desobediência civil é reconhecidamente parte da gramática de lutas e contestações políticas em democracias maduras. Ao adotar as categorias de Scheuerman (2018), não pretendemos indicar que o embate entre “desobediência civil liberal” e a “desobediência civil democrática” é uma rivalidade entre forças democráticas e não democráticas. A diferença decisiva está na justificação e no papel que cada uma acredita que possa ser assumido pela desobediência civil nas democracias.
O modelo democrático assume esse nome porque aposta na desobediência civil como um componente mais amplo de contestação e participação política. Trata-se de uma possibilidade de luta para superação dos déficits democráticos, mesmo quando os direitos individuais não estão sob ameaça. Assim, a desobediência civil se torna uma alternativa para lutar contra elites políticas que buscam impor seus interesses mediante atalhos democraticamente duvidosos, como a adoção de medidas impopulares, a aprovação de leis e medidas políticas que não passaram por um amplo debate na esfera pública, ou em contextos de profundas assimetrias nas possibilidades de participação e influência política dos cidadãos.
Habermas (2010) vê, na desobediência civil, uma forma de engajamento político mais “permissivo”, quer dizer, uma prática que não está restrita a casos de injustiça que envolvam a violação de direitos civis básicos, mas o que Celikates (2016, p. 8) descreveu como uma forma de “empoderamento democrático” Desse modo, a desobediência civil é também um instrumento para pautar assuntos na agenda política pública, colocando em evidência demandas e grupos negligenciados, aumentando as informações e a conscientização dos cidadãos envolvidos no processo de deliberação, destacando os déficits democráticos e os efeitos excludentes de certos processos políticos e contribuindo para uma participação mais inclusiva. A teoria habermasiana, embora não seja a única representante dessa abordagem, serve-nos como representante paradigmática à medida que concebe a desobediência civil como um canal disponível para aqueles que buscam assegurar que a democracia seja ativamente praticada pelos cidadãos e efetivamente assegurada pelas instituições (Scheuerman, 2018, p. 72).
Ao conceber a desobediência civil na relação entre o direito positivo e a legitimidade democrática, Habermas permite que ela possa desempenhar um papel criativo e construtivo na interpretação dos textos legais, mas também na proposição de medidas, direitos e na reconfiguração institucional das democracias constitucionais. Assim, Habermas (2020) pôde levar adiante uma insatisfação comum a outros representantes da abordagem democrática da desobediência civil, como Hannah Arendt (2010), Cohen e Arato (1997) e Willian Scheuerman (2018), atribuindo à desobediência civil um papel significativamente mais robusto do que o papel singular de guardiã de direitos e liberdades individuais que eventualmente possam estar sob ameaça (Scheuerman, 2018, p. 59).
Isso é possível devido à interpretação do Estado democrático de direito como um projeto permanentemente inacabado, que exige a constante reinterpretação de suas bases e revitalização de seu conteúdo normativo pelos cidadãos do presente, segundo os seus próprios contextos históricos.
Os cidadãos se veem autorizados a violar a lei quando consideram que ela falha em atender aos próprios padrões normativos exigidos por um Estado democrático de direito. Como explica Scheuerman (2018, p. 75), os cidadãos desobedientes não agem como uma vanguarda revolucionária, mas como cidadãos democráticos que se vêm e são vistos como livres e iguais, pertencentes a uma comunidade política pluralista e que, portanto, apelam ao poder soberano do povo, isto é, à ideia de que os cidadãos comuns podem exercer o poder democraticamente. Portanto, a finalidade democrática torna a desobediência civil justificável. É dessa forma que, agindo fora da lei, os desobedientes civis não atentam contra os pilares de uma democracia constitucional, mas impulsionam e levam adiante esse projeto imperfeito.
Em suma, a desobediência civil democrática nos oferece uma abordagem política voltada para o futuro e para os seus potenciais radicalmente transformadores à medida que permite vociferar novas demandas emergentes na esfera pública, interpretações renovadas sobre a justiça e os direitos, ampliação das formas de participação democrática, além de não excluir a possibilidade de luta por reformas econômicas que tornem o projeto democrático não apenas assentado em uma concepção de igualdade política e moral, mas também economicamente mais igualitário.
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1
Utilizo como intercambiáveis os termos “democracia constitucional” e “Estado democrático de direito”.
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2
Para uma análise sobre o modo como as desigualdades de renda e riqueza podem afetar o valor das liberdades políticas, ver Moraes (2023).
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Guilherme C. de Moraes É doutorando no Programa de Pós-graduação do Departamento de Ciência Política da USP, com bolsa financiada pela Fapesp (2022/09444-8). Nº ORCID: 0000-0002-2240-1142
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
03 Mar 2025 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
05 Jan 2024 -
Aceito
23 Out 2024