Open-access Movimentos populares na transição inconclusa

ESPECIAL - UNIVERSIDADE

Movimentos populares na transição inconclusa

Edison Nunes

Sociólogo, coordenador do programa de publicações do CEDEC e professor da PUC

I. A presença de "novas práticas urbanas" na recente história brasileira, envolvendo a participação ativa de setores das classes populares, foi amplamente propagandeada como um indicador seguro de que o país caminhava para a reorganização de suas instituições políticas, em especial as que compõem o poder local, no sentido da democracia. Até 1982, quando o povo pode eleger os governadores dos seus estados, pela primeira vez depois que o governo militar decidiu nomeá-los sem consultar as urnas, praticamente todos os setores oposicionistas, e inclusive alguns poucos governistas, sustentavam a participação popular como um requisito básico da democracia que queriam conquistar. Nesse contexto, os discursos políticos, a grande imprensa, as associações profissionais e, inclusive, alguns trabalhos nas universidades esforçaram-se em legitimar e dar visibilidade, no espaço público, às lutas urbanas pela melhoria da qualidade de vida das populações trabalhadoras e espoliadas de nossas cidades.

Penso inclusive que houve uma certa dose de exagero na avaliação da amplitude e potencialidade desses movimentos, o que de modo algum pode ser considerado um erro. É que nem os jornais, nem os políticos e nem os cientistas sociais estariam fazendo uma análise "objetiva" se mutilassem o real da esperança, das vontades, dos valores e das possibilidades que o integram. Como disse Weffort em Por Que Democracia , "nós queríamos ter uma sociedade civil, precisávamos dela para nos defender do Estado monstruoso à nossa frente. Isso significa que se não existisse, precisaríamos inventá-la. Se fosse pequena, precisaríamos engrandecê-la. Não havia lugar para excessos de ceticismo nesta questão, pois só serviriam para tomar os fracos ainda mais fracos. É evidente que quando falo aqui de invenção ou de engrandecimento, não tomo estas palavras no sentido da propaganda artificiosa. Tomo-as como sinais de valores presentes na ação política, e que lhe conferiam sentido exatamente porque a ação pretendia torná-los uma realidade. Numa palavra, nós precisávamos construir a sociedade civil porque queríamos a liberdade".

Conhecemos desde então uma ampla variedade de práticas urbanas populares que se disseminaram por todas as grandes cidades do país, com uma multiplicidade de formas bastante marcadas. Quebra-quebras, invasões de terras urbanas, saques, associações de moradores, inclusive movimentos que tentaram articular outros, como o Movimento Contra a Carestia ou tentativas de federações e confederações de associações (o que apenas pôde ser realizado em alguns estados). Houve inclusive momentos significativos de articulação e apoio aos movimentos grevistas. E, naturalmente, as Comunidades de Base da Igreja católica, que chegaram a ser estimadas no assombroso número de 50 mil em todo o país (ainda que, sem discutir o número propriamente dito, vale a pena lembrar que nem todas podem ser classificadas como "progressistas", como lembrou Renato Ortiz em artigo publicado nesta revista).

1983 constitui um ponto de inflexão. Setores importantes de oposição conquistaram o governo de vários estados da federação — em particular os daqueles mais industrializados e urbanizados —, o que, por outro lado, acirrou a clivagem entre os diferentes partidos surgidos da reforma de 1979, colocando em oposição grupos que, na véspera, lutavam ombro a ombro contra a "ditadura". Tornara-se mais explícita a tarefa que a tão desejada possibilidade do pluralismo trazia para a política nacional: realizar a difícil passagem de práticas orientadas por uma lógica de resistência ao regime para uma ação destinada à construção da representação. Nessa passagem, perdeu-se a unanimidade que existia em torno da importância da participação da sociedade civil para a construção de uma nova ordem democrática. Ou, se preferirem, explicitou-se a disputa em torno do sentido pelo qual a participação popular deveria comparecer na vida política nacional (e registre-se, de passagem, que, para alguns dos novos governadores "de oposição", os movimentos sociais que ajudaram a encorajar durante suas campanhas eleitorais rapidamente tornaram-se pedras nos sapatos).

Assim, não demorou para que os movimentos populares, que ontem contavam apenas com a oposição da polícia e de alguns políticos "mais duros", descobrissem que lhes sobraram somente uns poucos aliados. E seu acesso ao espaço público, por isso mesmo, tornara-se cada vez mais difícil.

O movimento pelas "Diretas-Já", que em 1984 colocou milhões de pessoas nas praças das grandes cidades do país, ilustra bem a paradoxal força dos movimentos populares no país. Este movimento, apesar de desfraldar uma bandeira eminentemente político-institucional, foi caudatário de diversas associações de bairros, do sindicalismo e das bases da Igreja, transformando-se na maior mobilização popular da história do país. Apesar disso, limitou-se a pressionar o Congresso e aprovar uma emenda à Constituição que viabilizaria as eleições diretas para presidente da República. Como uma significativa porção dos parlamentares não cedeu à pressão, mesmo porque o movimento não dispunha de qualquer meio eficaz de sanção, não apenas foi derrotado, como foi incapaz de articular uma alternativa. Apresentada à nação como única forma "viável" de prosseguir o processo de transição, o projeto de eleger um oposicionista no Colégio Eleitoral, abandonando a luta pelas diretas, encontrou nos movimentos populares uma resistência pífia: apenas alguns deles, juntamente com a Igreja católica e o Partido dos Trabalhadores — PT, tentaram sem sucesso a continuidade da luta.

Outro exemplo na mesma direção foi a disputa em torno da convocação da Assembléia Constituinte. Em suas manifestações públicas, a maioria dos movimentos populares apoiavam a proposta da convocação da Constituinte independente do Congresso, inclusive com a presença de representantes dos movimentos sindical e social, não filiados aos partidos políticos. A decisão coube ao presidente da República e ao Congresso Nacional, que votou um "Congresso Constituinte", o que significa que a nova Constituição está sendo escrita por um corpo político instituído pela Constituição que se deseja abolir. Esta solução, evidentemente, favorece a continuidade dos atuais parlamentares e das forças sociais que representam, valendo lembrar que, segundo a legislação em vigor, cabem aos estados menos industrializados, urbanizados e populosos uma representação desproporcionalmente maior que a dos demais estados. Também nesse caso a reação foi extremamente débil. Algumas entidades da"sociedade civil", algumas associações de bairros e organismos da Igreja católica e do PT constituíram os "Plenários Pró-Participação Popular na Constituinte", que continuaram a luta por uma Constituinte independente do Congresso. Se chegaram a ser ouvidos (pela imprensa e pela maioria dos partidos políticos), não foram levados a sério.

Cabe, então, perguntar por que e como foi possível que uma série de movimentos populares, que chegaram a obter importantes conquistas durante o regime militar (e não apenas ao nível dos chamados "efeitos urbanos", mas também no sentido de introduzir elementos novos na cultura política do país) e a serem reconhecidos em todas as grandes cidades, se mostraram incapazes de comparecer com o mesmo vigor numa conjuntura mais democrática. Pensamos que a resposta repousa em parte no caráter que assumiu a transição brasileira e, por outro lado, ao caráter da participação popular nesse processo político.

II. Ainda segundo Weffort, o terror patrocinado pelos órgãos de repressão do Estado e a luta armada — na qual significativos setores da esquerda depositaram suas esperanças — foram fatores importantes de "desorganização" e ruptura do "sistema político brasileiro", entre 1969e 1973, tornando "estéril o terreno onde qualquer política de esquerda, de centro ou de direita, poderia prosperar". Ante à violência, as instituições políticas, que já haviam sido duramente golpeadas com a "Revolução de 64", se aniquilaram. Por outro lado, a força calou as organizações populares e sindicais que têm então muitos de seus líderes presos ou exilados, um bom número deles torturados e mortos. O próprio poder do Estado não escapou à destruição que desencadeou. É que a total impunidade e irresponsabilidade dos agentes da repressão favoreceram que sua ação fosse dirigida pelos interesses pessoais, transformando os aparelhos de Estado em coisa privada, associando-se à corrupção. Neste período, o poder da Presidência da República de governar o país empalideceu face à ação de algo muito parecido a um bando de gangsters. A violência compareceu não como a "parteira da história" mas como a promotora da "ordem do garrote e da paz dos cemitérios", isto é, como sua assassina.

Este caos provocou reações acentuadas em praticamente todas as posições políticas, inclusive setores militares interessados em restaurar a governabilidade da nação através do restabelecimento da disciplina no interior das Forças Armadas, propiciando uma atitude nova em relação ao Estado, à sociedade civil e à democracia. A volta do Estado de Direito passou a ser uma reivindicação, em primeiro lugar das oposições liberais, que hegemonizaram o conjunto das oposições, inclusive as de cunho popular e operário. Por iniciativa do presidente da República, iniciou-se em 1974 o processo conhecido como "Abertura", que vai marcar o início da mais longa transição — de um regime autoritário para um outro " mais democrático" — de que se tem notícia na história.

Como se sabe, o Estado autoritário jamais chegou a abolir o Parlamento e as eleições, com exceção para os cargos executivos federais e estaduais e para os prefeitos e vice-prefeitos das capitais e demais cidades consideradas de interesse para a segurança nacional. A abertura promovida pelo governo Geisel tinha como uma de suas metas a revalorização das eleições como fonte de legitimidade do regime, em parte baseado em falsas expectativas extraídas da vitória que seu partido — a Arena — obtivera no pleito de 1970. Em que pese a forte repressão política e a censura à imprensa, a relativa liberdade concedida à propaganda eleitoral possibilitou ao MDB, o partido de oposição, obter uma significativa vitória nas eleições de 1974, fato que surpreendeu os própios dirigentes e militantes do partido, invertendo as expectativas de todos os que estavam atentos ao momento político. As pesquisas eleitorais revelaram que os votos oposicionistas se concentraram nas grandes cidades das regiões mais industrializadas do país. E, ao menos no caso da cidade de São Paulo, onde o fenômeno foi mais estudado, a concentração de votos na oposição deu-se precisamente nos bairros mais pobres.

O que deve ser ressaltado é que esta manifestação inusitada das massas populares urbanas, no cenário político da abertura, não foi organizada nem pelo partido da oposição — que recebeu uma quantidade de votos muito desproporcional aos recursos de poder que tinha em mãos — nem pelos grupos de esquerda, derrotados e sem grande relevância, e que, além disso, alimentavam sérias dúvidas em relação à "posição de classe" dos políticos e do próprio MDB, alguns tendo inclusive patrocinado uma campanha pelo "voto nulo". Além disso, a esquerda, que já naquela época acreditava numa ação de resistência a nível institucional, teve uma parte considerável dos vínculos com suas bases populares destruídos pela repressão.

Tratava-se de uma ampla mudança nas expectativas do eleitorado urbano e não apenas de um fenômeno esporádico. As eleições assumiram, a partir de então, um caráter plebiscitário, fato que se estenderá durante a década de 70, estando presente, em algum grau, nos escrutínios de 1982 e 1985 (este para prefeitos das capitais e cidades consideradas de interesse para a segurança nacional). Isto significou que se operava uma importante mudança na cultura política das massas urbanas com efeitos que seguramente extrapolaram o momento do voto. Passou-se a identificar o MDB como o partido dos pobres que empreendia uma luta contra o partidos dos ricos e do governo. Votava-se, na verdade, contra e não a favor de um projeto político determinado. E tudo deveria se passar desta forma, uma vez que a explicitação de um projeto significaria necessariamente estabelecer confrontos indesejáveis entre as oposições, que só seriam vitoriosas pela sua união.

Há quem diga, inclusive, que o sucesso alcançado pelo MDB foi possível somente porque seu eleitorado podia ser caracterizado por um grau extremamente precário de estruturação ideológica. "Entre eles, a pobreza dos estoques de informação política e a ausência de lealdades prévias configuraram um campo fértil para a pregação emedebista."

Um balanço da literatura sobre as eleições desta época realizado por Amaury de Souza mostra que a imagem que milhões de eleitores faziam do MDB era composta por poucos elementos: a condenação de um modelo de desenvolvimento econômico que implicava o empobrecimento da maioria da população; a reivindicação de eleições diretas para todos os níveis do poder executivo e, acima de tudo, o repúdio à noção de que o eleitorado fosse imaturo ou incapaz de votar de modo sensato. "Mas esses elementos foram suficientes para ampliar, pela via eleitoral, o modestíssimo espaço político reservado à oposição no plano da abertura..." Não é difícil estabelecer a relação entre esta situação de "carência de informação política e ausência de lealdade prévias" à interrupção, promovida pelo terror, dos processos de articulação social que vigoravam anteriormente e cuja memória se esmaecia numa sociedade marcada por transformações sócio-econômicas profundas, em particular por processos de industrialização e urbanização acentuadas.

Configura-se, desta forma, a presença espontânea da maioria da população, na criação de significados novos para a cultura política, que não podem ser menosprezados na análise da participação popular nos anos seguintes. O voto de protesto, ou plebiscitário, constituía, na verdade, apenas uma das indicações de que as coisas mudaram nas práticas urbanas das classes populares.

III. Um mês antes das eleições de 19 74 ocorreram os dois primeiros acontecimentos de uma série que perduraria sem interrupções até 1984 , concentrando-se no Rio de Janeiro e em São Paulo. Tratou-se de uma onda de quebra-quebras, analisadas por José Álvaro Moisés e Verena Martinez Alier, que atingiu os meios de transporte coletivos que servem às populações trabalhadoras mais pauperizadas e segrega-

das dessas cidades. No Rio de Janeiro, o enguiço de uma composição e o conseqüente atraso da viagem foi motivo para que 3 mil passageiros apedrejassem e ateassem fogo em três vagões do trem. Em Brasília, exatamente no mesmo dia, quarenta ônibus foram depredados pelos moradores das cidades-satélites, por ocasião da introdução de um sistema hierarquizado de tarifas que obrigaria os mais pobres — a imensa maioria dos usuários dos transportes públicos — a se espremerem em veículos superlotados ao mesmo tempo em que outros faziam o mesmo trajeto praticamente vazios, conduzindo um pequeno número de "privilegiados". Após este "incidente" as autoridades locais restabelecem o sistema anterior. Em que pese a coincidência, nada indica que tivesse havido qualquer coordenação entre estes dois eventos que constituíram as primeiras manifestações de protesto de massa desde que a repressão recrudesceu.

Para se ter uma idéia da dimensão assumida por essa vaga de quebra-quebras basta observar que, de novembro de 1974 a abril de 1984, registramos nada menos do que setenta ocorrências apenas em trens e estações de São Paulo e Rio de Janeiro. Em um primeiro momento, a vaga de quebras localizou-se na região metropolitana do Rio de Janeiro, atingindo um tal grau de violência e contumácia que mobilizou o próprio presidente da República. Imediatamente foi posto em ação um plano de emergência para os subúrbios cariocas, com a liberação de uma verba significativa do Conselho de Desenvolvimento Econômico."A injeção maciça de investimentos (...) fez com que a média de atrasos baixasse de 30 para 10 minutos" e aumentasse em quase 50% o número de composições em operação. Em 1976 a onda deslocou-se para a região metropolitana de São Paulo, onde em apenas seis meses ocorreram nove depredações — o que também acabou por convencer as autoridades federais da necessidade de implementação de um plano de emergência. A onda será retomada em 1979, com um número significativamente maior de ocorrências em São Paulo , perdurando até abril de 1984.

A estes eventos devem ser somados os quebra-quebras de ônibus urbanos. Entre 1976 e 1978 uma série de depredações atingiram os ônibus de São Paulo e Belo Horizonte (MG). Alguns anos mais tarde, uma nova onda de quebras se abateu sobre várias cidades, entre elas Salvador (BA), onde quatrocentos veículos sofreram a ação dos populares; São Luís (MA); João Pessoa (PB); Rio de Janeiro (RJ); e São Paulo (SP). Desta vez, as manifestações eclodiram no bojo de passeatas organizadas pelo Movimento Contra a Carestia, que reclamava das recentes elevações das tarifas dos transportes urbanos. Como se sabe, este movimento tentou unificar as diversas mobilizações populares que atuavam na esfera da reprodução, subsumindo as reivindicações pontuais numa expressão mais geral: a carestia ou custo de vida.

A explicação para o surgimento desse tipo de protesto toma como base as "contradições urbanas", exponenciadas por se dar em uma sociedade capitalista dependente onde vigora um modo de acumulação de "base pobre". E, por outro lado, parte do caráter excludente do sistema político, isto é, da ausência de qualquer canal institucional válido para as massas urbanas expressarem suas aspirações. De fato, durante a "democracia populista", foram as eleições o único meio da população fazer valer, no contexto urbano, sua vontade, ainda que de maneira precária, através da relação direta com os políticos que dependiam de seu voto. Mas as eleições para prefeito das capitais haviam sido suprimidas pelo governo militar, sendo estes escolhidos pelos governadores, por sua vez nomeados pelo presidente da República e escrutinados num conchavo (bastante tenso) entre o comando das Forças Armadas. Ademais, se persistiam eleições para o Legislativo — em todos os níveis —, a perda de seu poder foi notável inclusive no sentido de legislar sobre as políticas públicas que afetam a reprodução dos trabalhadores nas cidades. Também do ponto de vista orçamentário, houve uma tremenda concentração em detrimento dos municípios e estados. A todas estas dificuldades de acesso da população aos mecanismos de tomada de decisões some-se o medo. Vivia-se uma situação em que toda a reivindicação era tida como ilegítima e identificada com a subversão.

Em tais circunstâncias, qualquer ação que visasse protestar contra a precariedade dos equipamentos urbanos — e certamente qualquer outra questão relevante de interesse público — deveria se dirigir diretamente ao Estado e, mais precisamente, aos órgãos executivos, quando não aos próprios ministros e presidente. Isso explica por que a primeira grande reunião que daria origem ao Movimento Contra a Carestia, que em 1976 reuniu 5 mil pessoas em São Paulo para protestar contra as altas do custo de vida e o congelamento dos salários, dirige uma carta diretamente à Presidência da República. Em 1978 o mesmo movimento insiste em dirigir a esta instância de poder um abaixo-assinado com 1 milhão e 300 mil assinaturas. Outras ações eminentemente políticas, como o Movimento Brasileiro pela Anistia dos presos políticos e exilados, tiveram procedimento análogo. Talvez a única grande exceção a esta lógica tenha sido a malograda Campanha pelas Diretas-Já, que reivindicava que o Legislativo recuperasse as prerrogativas e dignidade usurpadas e, com elas, a construção de uma forma nova de representação. E, talvez, este tenha sido o motivo de seu fracasso. Vale lembrar que muitos parlamentares do PMDB votaram contra a emenda ou se ausentaram do plenário.

Além dos órgãos do Executivo, conforme o caso, as empresas estatais gestoras de serviços públicos também foram alvo de reivindicações, uma vez que concentravam grande poder de decisão. O que importa ressaltar é que, enquanto tais, o Legislativo, os partidos políticos, as instituições da sociedade civil, o Judiciário (que sob a ditadura perdeu sua autonomia e ao qual a maioria da população nunca teve acesso) não dispõem de meios para se interpor entre as demandas das classes populares e quem pode atendê-las, tal é a concentração de poder e a falta de instrumentos institucionais que os limitam.

Ademais, a hipótese da falta de canais institucionais para a expressão das demandas populares é reforçada através da análise dos quebras protagonizados por operários da construção civil. Os principais ocorreram entre 1977 e 1979 no Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Dos onze eventos ocorridos no Rio, nove se deram nos canteiros de obra do Metrô. Por um estudo detalhado destes eventos, realizados por Licia Valladares, ficamos sabendo que eles só ocorreram depois que os operários procuraram seu sindicato para apresentar queixa contra o fato da empreiteira estar servindo comida estragada. Não apenas o sindicato não atuou a favor dos reclamantes como fez a queixa chegar ao conhecimento de seus patrões, que imediatamente despediram esses trabalhadores. Uma lembrança importante, neste caso, é a de que, em virtude de uma legislação de inspiração fascista que regula a vida sindical no país, a burocracia sindical é amplamente irresponsável em relação às suas bases. Em Belo Horizonte o movimento eclode no bojo de uma greve, no momento em que o governo do estado, devidamente pressionado pelos poderes da União, interrompeu unilateralmente as negociações, inclusive negando aos trabalhadores o acesso a espaços para se reunirem. No mesmo ano, esse quadro vai repetir-se na greve dos bancários de São Paulo.

A persistência dos quebra-quebras, bem como do voto plebiscitário, demonstra que permanece colocada a questão da falta ou insuficiência de canais institucionais, ao mesmo tempo em que denuncia a extrema concentração do poder. Por outro lado, a prática de resistência que caracteriza o processo de abertura, se logra obter concessões do poder, tem sido incapaz de suprir esta deficiência do sistema político. E isso permanece verdadeiro, como veremos, para práticas urbanas organizadas.

IV. No início dos anos 70, começam a surgir em diferentes bairros das cidades brasileiras formas muito variadas de práticas associativas. São sociedades de "amigos de bairro" (SABs), grupos de leitura dos Evangelhos organizados por padres progressistas, grupos de compras comunitárias, clubes de mães, comunidades que tentam criar e gerir suas próprias creches, grupos de operários que não podem fazer suas reuniões nas fábricas e sindicatos, etc. Ai constituíam-se pontos de encontro de vários setores que haviam experimentado a derrota e para os quais os espaços públicos estavam fechados. Como ensina Vera Silva Telles, "ativistas operários, militantes de esquerda, padres e freiras progressistas, paroquianos ligados aos núcleos comunitários" juntavam-se com antigos cabos eleitorais de políticos populistas, ex-integrantes de SABs, militantes do movimento estudantil, professores de escolas públicas que alimentavam sonhos difusos de liberdade e de progresso, jovens que buscavam suas identidades e o seu lugar nos conflitos do mundo, enfim, encontravam-se as mais diferentes trajetórias de vida. Protegidos pelas relações pessoais que caracterizam a vida desses bairros, transformaram esses locais na única alternativa viável e segura para a reunião, na maioria dos casos sob a proteção da Igreja católica. Não temos até hoje indicadores seguros para avaliar as dimensões desse fenômeno, mas pelo relato de experiências de vida de lideranças de movimentos sociais podemos supor que fosse relativamente generalizado, pelo menos nos principais centros urbanos das regiões mais industrializadas.

Ao que tudo indica, foram extremamente polimorfos, bebendo nas diferentes experiências de vida de seus integrantes e, pelo menos em parte deles, constituíram grupos de ajuda mútua, prestando serviços aos companheiros que sofriam alguma forma de privação por motivos políticos (como, por exemplo, a impossibilidade de obter emprego por fazer parte de alguma "lista negra"). Esta característica, ao lado da forma terrorista de atuação do Estado, parece ter influenciado a formação de um pensamento segundo o qual caberia exclusivamente à população a gestão e manutenção dos equipamentos sociais de que se utiliza, não procedendo reivindicá-los ao Estado. Conhecemos atuações nesse sentido no caso de creches e de compras comunitárias. Preferiam ter seus próprios equipamentos aos do Estado, não apenas "contaminados ideologicamente", como fonte de sua legitimidade.

Deixando de lado o fato de que tal esquema implica dificuldades consideráveis para seu desempenho, esta postura teve fôlego curto, sendo abandonada no início do processo de abertura. É que, de certa forma, a população passou a ver o Estado com outros olhos e ganhou força, no interior desses grupos, a idéia de que a população é portadora de direitos que devem ser garantidos pelo Estado. Foi o começo de um processo intenso de reivindicações urbanas, com um potencial de proliferação surpreendente, que teve como alvos os mais diferentes aspectos da reprodução social das classes populares em meio urbano. Mas isso ao custo de perder-se de vista — pelo menos momentaneamente — a luta pelo controle ou gestão desses serviços.

Constituindo a grande maioria dos movimentos urbanos, os movimentos urbanos, os movimentos reivindicativos assumiram várias formas organizativas, desde abaixo-assinados até organizações duradouras, ou então grupos formados com um fim específico, como a conquista de um local de moradia através da invasão coletiva de uma área da cidade vazia (estima-se que, de 1981 a 1984, somente em São Paulo , mais de 60 mil pessoas participaram destas invasões que foram comuns em outros estados).

O que é preciso assinalar é que, apesar do vigor dessas lutas, seu padrão normal tem sido a apresentação das reivindicações aos órgãos do poder executivo, que se torna seu interlocutor exclusivo, na maioria dos casos, e que permanece com todo o poder de arbítrio para atender ou não as exigências apresentadas, tolerar ou não a forma de pressão utilizada (que, na maioria dos casos, ou não encontra respaldo na legislação, ou constituem práticas explicitamente ilegais). Tantas e tão profundas são as contradições que emergem com essas práticas que os administradores se tornam capazes de fechar os olhos para práticas ilegais, bem como violar simultaneamente direito líquido e certo, em função de suas conveniências de momento, tal o grau de irresponsabilidade e falta de limites ao poder que está concentrado em suas mãos.

É certo que os movimentos reivindicativos não foram capazes de fazer valer, ao nível da criação de instituições novas e da participação nas existentes, a conquista de "direitos" que passaram a fazer parte da cultura política do país. Em outras palavras, a mobilização popular conseguiu inscrever no centro dos valores políticos a questão social, o que conduziu a ação estatal para uma intensa normalização institucional, no caso das políticas públicas, que não se completa em conseqüência do caráter concentrador de riquezas e, conseqüentemente, excludente do Estado. As classes populares comparecem através de uma "negatividade ativa", incapaz portanto de contribuir na formulação dessas políticas. Em que se pese o fato de que os canais pelos quais ela pudesse comparecer ativamente no processo lhe foram sistematicamente negados, não houve reivindicação no sentido de criá-los. Isso se deve em parte ao fato de que o fundamento da noção de direito, que se cristalizou na cultura política das classes populares, não o associa a nenhum preceito legal ou constitucional, mas a uma espécie de "direito natural fundado na dignidade humana pregada pelo cristianismo", conforme afirma Eder Sader, e também na experiência da "democracia populista". Este fenômeno constitui claro sintoma da exclusão política, mas que tende a reproduzi-la.

Os partidos políticos também têm sido tímidos em elaborar propostas para a institucionalização da participação popular. Pode-se dizer inclusive que nenhum deles chegou a elaborar uma política clara. O próprio PT abriga posições muito diferentes e até mesmo contraditórias sobre o significado dos canais de participação junto ao poder público. As implicações são graves. Reproduz-se o discurso sobre a participação orientado para a resistência, porque falta aos que deveriam ser representados uma "positividade alternativa" destinada à construção de uma nova ordem social.

Até mesmo movimentos extremamente sofisticados, do ponto de vista da discussão acumulada e de seus objetivos, como é o caso dos recentes movimentos pela liberalização das ondas de rádio do controle do Estado, o movimento das "rádios livres", chegam a menosprezar a importância da construção de uma institucionalidade capaz de garantir a liberdade. Este diálogo entre dois militantes desse movimento, publicado na revista Lua Nova, ilustra bem o estado do problema, que permanece num impasse entre a institucionalidade negada e a perpétua transgressão:

"1.º militante — Vencida a luta pela liberalização das ondas hertzianas, o segundo passo é liberar os horários. São duas lutas de liberdade... Mas, uma vez que a rádio se institucionaliza, a tendência é ela virar hobby.

2.º militante — Eu tenho muito medo do momento da institucionalização. Eu tenho medo que depois de ter rompido com a estrutura de poder dos meios de comunicação, a gente acabe reconstruindo esse mesmo modelo, apenas de uma forma mais agradável.

1.º militante — É um risco. Mas é inevitável alguma forma de institucionalização (...). Mas se a gente está querendo levar adiante um movimento de rádio livre, a gente não pode ser eternamente pirata. Por isso é importante criar ferramentas para institucionalizar a liberdade".

Inconclusões

Vivemos em um momento político em que estas questões estão em suspenso. O Congresso Constituinte adiou a resolução de medidas urgentes sobre a institucionalização e a normatização da questão social no país até a conclusão de seus trabalhos. Daí que convivemos com leis que conhecem o mais veemente repúdio por trazerem o estigma do autoritarismo. Um dos casos de maior gravidade é, sem dúvida, o da legislação sindical que, a despeito do surgimento do "Novo Sindicalismo", permanece inalterada. São leis que proíbem, por exemplo, as centrais sindicais, com quem o governo negocia. Não abolimos leis autoritárias e nem tivemos a tão prometida reforma tributária. A margem do arbítrio é imensa e, sob sua égide e numa conjuntura de crise econômica, se escreve a Constituição futura. A promessa de democracia, no que diz respeito às classes subalternas, ainda está por ser cumprida.

É possível que, no fim do túnel, constatemos mais uma vez que, como demonstrou José Honório Rodrigues para tantos outros momentos de transição em nossa história, a conciliação entre as elites significará "pequenas e mínimas concessões à grande maioria dos brasileiros", mantendo uma estabilidade institucional excludente e opressora, e inconciliação com os subalternos. Ou, ainda, com Raymundo Faoro, a transformação do Estado no Brasil é uma' "viagem redonda", capitaneada pelos "donos do poder", essa minoria impenetrável que, em beneficio próprio, mantém perpétua a separação entre a nação e o poder. Se tiver de ser assim, devemos esperar a reposição das penosas condições de dominação e exclusão. Mas, como em toda a contradição que não se resolve, também o recrudescimento do protesto. Desta vez, porém, este se dará entre movimentos convictos de seus direitos, constituídos em sujeitos capazes de lutar e se modificar na luta, e desejamos, já em condições de buscar uma "alternativa positiva".

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Mar 2011
  • Data do Fascículo
    Set 1987
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