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Por um conceito "antipredicativo" de reconhecimento

For an "anti-predicative" concept of recognition

Resumos

Trata-se de propor um encaminhamento ao problema do reconhecimento, capaz de não se orientar pelas temáticas da produção social das identidades. Tal proposta visa pensar como políticas de desinstitucionalização podem ser uma resposta adequada àqueles que procuram retirar o debate do reconhecimento do horizonte culturalista ao qual o reconhecimento se viu limitado, abrindo com isso uma dinâmica dos embates sociais para além das ditas "políticas da diferença". À sua maneira, tal perspectiva se vê tributária de uma recuperação do conceito hegeliano de sujeito e de aspectos do conceito marxista de "proletariado" enquanto operador de produção de sujeitos políticos.

Reconhecimento; Identidade; Indiferença; Proletariado; Sujeito; Redistribuição; Desinstitucionalização


This article aims to present an alternative concept of recognition able to criticize the importance given to themes as the social production of identities. This proposal aims to think how policies of the institutionalization may be an appropriate response to those who seek to dissociate the debate concerning recognition from culturalists perspectives, opening the dynamics of social struggles beyond the so-called "politics of difference". In his own way, this perspective sees itself attached to the recovery of Hegel's concept of subject and aspects of the Marxist concept of "proletariat" as an operator for producing political subjects.

Recognition; Identity; Indifference; Proletariat; Subject; Redistribution; Deinstitutionalization


Amigo, diz Polifemo, O ousado que por dolo, não por força, Matou-me, foi Ninguém HOMERO, ODISSEIA

Falta ainda a audácia revolucionária que arremessa ao adversário a frase provocadora: Nada sou e serei tudo. KARL MARX

Durante os últimos vinte anos do debate filosófico e social, vimos a hegemonia do conceito de reconhecimento como operador central para a compreensão da racionalidade das demandas políticas. Recuperado pela primeira vez nos anos de 1930, ele só foi explorado sistematicamente em sua dimensão propriamente política a partir do início dos anos de 1990, em especial pela terceira geração da Escola de Frankfurt, por Axel Honneth, e por filósofos que sofreram influência de Hegel, como Charles Taylor. No entanto, trata-se aqui de lembrar que não devemos refletir sobre os usos políticos contemporâneos do conceito de reconhecimento sem levar em conta a avaliação de seu contexto sócio-histórico de recuperação, no início dos anos de 1990. Contexto este extremamente sugestivo, pois indissociável da perda, nas últimas décadas, da centralidade do discurso das lutas de classes enquanto chave de leitura para os conflitos sociais.

A luta de classes parecia limitar os conflitos sociais a problemas gerais de redistribuição igualitária de riquezas (que não são meramente expressões de uma teoria da justiça redistributiva), ignorando com isso dimensões morais e culturais que não poderiam ser compreendidas como meros reflexos de estruturas de classe. Sendo assim, uma leitura possível consistiria em dizer que certo acúmulo de modificações teria fornecido as condições para a elevação do reconhecimento a problema político central. Dentre tais modificações, três seriam fundamentais.

Primeiramente, teríamos o esvaziamento do proletariado enquanto ator histórico de transformação social revolucionária: tema presente na Escola de Frankfurt ao menos desde os anos de 1930 em suas pesquisas sobre as regressões políticas da classe operária em direção à sustentação do nazismo (cf. p.ex. Fromm, 1980FROMM, E. 1980. Arbeiter und Angestellte am Vorabend des Dritten Reiches: eine sozialpsychologische Untersuchung. Stuttgart: Deutsche Verlags-Anstalt.). Certamente, muito contribui para a consolidação de tal esvaziamento a forte integração do operariado aos sistemas de seguridade e às políticas corretivas dos ditos Estados do bem-estar social a partir dos anos de 1950. Note-se como Habermas - olhando para a ausência de candidatos a ocuparem a vaga de atores globais de transformação revolucionária após essa integração da classe operária e o posterior enfraquecimento do próprio Estado do bem-estar social - insistirá em ler tal situação como expressão de esgotamento de "determinada utopia que, no passado, cristalizou-se em torno do potencial de uma sociedade do trabalho" (Habermas, 1987, p. 105HABERMAS, J. 1987. "A nova intransparência: a crise do Estado de bem-estar social e o esgotamento das energias utópicas". Novos Estudos Cebrap, n. 18.). Esgotamento que levará Axel Honneth (2003, p. 116)_____. 2003. "Redistribution as recognition". In: FRASER, N.; HONNETH, A. Redistribution or recognition. New York: Verso. a afirmar, recentemente, que a própria crença no papel privilegiado do proletariado no interior de uma política revolucionária não passava de um "dogma histórico-filosófico". Aceito que o pretenso papel privilegiado do proletariado não passava de um "dogma", o investimento no discurso da luta de classes como eixo central de organização e constituição das identidades no interior dos embates políticos perde necessariamente sua força para abrir espaço a outros candidatos.

Por outro lado, com a saída de cena do proletariado enquanto figura por excelência da subjetividade política, perde-se o mais importante dispositivo de determinação genérica das lutas sociais no século XX. Devemos falar aqui de "determinação genérica" porque, à sua maneira, o proletariado aparecia como uma espécie de "sujeito universal", capaz de unificar toda a multiplicidade de manifestações sociais com vistas à emancipação política. Isso talvez explique porque a primeira recuperação do conceito de "reconhecimento", no interior do debate intelectual francês, privilegiou espaços de posição da singularidade, como a clínica psicanalítica e a reflexão ética. Como o debate político de então ainda se ordenava a partir da determinação genérica do proletariado, falar de reconhecimento no campo político mostrava-se desnecessário. É apenas com o abandono gradativo de tal crença na universalidade concreta da classe proletária que vem à cena o problema das multiplicidades que precisam se fazer reconhecer como tais no interior dos embates sociais.

Para a consolidação da centralidade atual do conceito de reconhecimento, foi necessário, porém, que a perda na crença revolucionária do proletariado fosse acompanhada de um fenômeno suplementar relacionado à mutação do sistema de expectativas ligado a um dos eixos centrais do desenvolvimento das lutas políticas: o universo do trabalho. Tal mutação pode ser compreendida se tomarmos que, desde as revoltas de maio de 1968, um novo "ethos" do capitalismo começou a ser formado (cf. Boltanski e Chiapello, 1999BOLTANSKI, L.; CHIAPELLO,E 1999 . Le nouvel esprit du capitalisme. Paris: Gallimard.).

A crítica social que se desenvolve a partir de maio de 1968 visava, principalmente, ao trabalho e à sua incapacidade em dar conta de exigências de autenticidade. Visto como o espaço da rigidez do tempo controlado, dos horários impostos, da alienação taylorista e da estereotipia de empresas fortemente hierarquizadas, o trabalho fora fortemente desvalorizado pelos jovens de 1968. Vários estudos do início dos anos de 1970 demonstram consciência dos riscos de uma profunda desmotivação dos jovens em relação aos valores presentes no mundo do trabalho, preferindo atividades flexíveis, mesmo que menos renumeradas.

O resultado de tal crítica teria sido a reconfiguração do núcleo ideológico da sociedade capitalista e a consequente modificação do ethos do trabalho. Valores como segurança, estabilidade, respeito à hierarquia funcional e à especialização, que faziam do mundo do trabalho um setor fundamental de imposição de identidades fixas e rígidas, deram lugar a outro conjunto de valores vindos diretamente do universo da crítica ao trabalho. Capacidade de enfrentar riscos, flexibilização, maleabilidade, desterritorialização resultante de processos infinitos de reengenharia: todos esses valores compõem atualmente um novo núcleo ideológico. Com essa modificação, o universo do trabalho nas sociedades capitalistas estaria mais apto a aceitar demandas de reconhecimento da individualidade e a modificar a matriz da experiência de alienação, retirando tal matriz da temática da espoliação econômica, a fim de deslocá-la em direção à temática da imposição de uma vida inautêntica, ou seja, de uma vida desprovida do espaço de desenvolvimento de exigências individuais de autorrealização. Com esse deslocamento da espoliação à inautenticidade no interior da crítica ao trabalho, abria-se mais uma porta para secundarizar o conceito de luta de classes e elevar o problema do reconhecimento a dispositivo político central.

Por fim, devemos lembrar como essa mutação acaba por se encontrar com outra série de modificações ligadas, por sua vez, à compreensão, ocorrida a partir dos anos de 1970, das lutas de grupos historicamente vulneráveis e espoliados de direitos (como negros, gays, mulheres) enquanto lutas de afirmação cultural das diferenças. Isso significa afirmar que elas não foram apenas compreendidas como setores de uma luta mais ampla de ampliação de direitos universais a grupos até então excluídos, mas como processos de afirmação das diferenças diante de um quadro universalista pretensamente comprometido com a perpetuação de normas e formas de vida próprias a grupos culturalmente hegemônicos. Muito colaborou para isso o desenvolvimento das temáticas ligadas ao multiculturalismo.

Desde 1957, o termo multiculturalismo aparecera a fim de descrever a realidade multilinguística da federação Suíça. No entanto, foi no Canadá que o multiculturalismo chegou a ser implementado, pela primeira vez, como política de Estado. Marcado tanto pelo conflito entre as comunidades anglófonas e francófonas, quanto por uma elevada taxa de imigração, o Canadá adotou, em 1971, sob o governo social-democrata de Pierre Elliot Trudeau, o Announcement of Implementation of Policy of Multiculturalism within Bilingual Framework1 1 A natureza de tal política estava clara no pronunciamento do então Primeiro-Ministro Pierre Elliot Trudeau na ocasião da apresentação da lei: "Uma política multiculturalista no interior de um quadro de defesa do bilinguismo aparece ao governo como a melhor maneira de assegurar a liberdade cultural dos canadenses. Tal política deve auxiliar a diminuir atitudes discriminatórias e ciúmes culturais. Se a unidade nacional significa algo no sentido pessoal profundo, este deve ser encontrado na confiança na identidade individual própria de cada um; a partir dessa relação, pode crescer o respeito pela identidade do outro e a disposição em partilhar ideias, atitudes e julgamentos. Isso pode formar a base de uma sociedade pautada na justiça para todos. O governo irá defender e encorajar as várias culturas e grupos étnicos que fornecem estrutura e vitalidade à nossa sociedade. Eles serão encorajados a partilhar suas expressões culturais e valores com outros canadenses e, assim, contribuir para uma vida mais rica a todos" (Trudeau, 1971). . Dessa forma, o país se autodefinia como uma sociedade multicultural, e reconhecia, inclusive, a necessidade de políticas específicas financiadas pelo Estado, visando à preservação de tal multiplicidade. Em 1988, as políticas anunciadas foram reforçadas com a implementação do Canadian Multiculturalism Act. Vários outros países, majoritariamente anglo-saxões (além dos Países Baixos), seguiram o quadro canadense de constituição de políticas multiculturais de Estado. Não é de estranhar ter sido um filósofo canadense, Charles Taylor (1992)TAYLOR, C. 1992. "Multiculturalism and the 'politics of recognition'". Princeton: Princeton University Press., um dos primeiros a recuperar o conceito de reconhecimento exatamente no interior de um debate sobre o multiculturalismo.

Essa tendência multicultural foi uma peça hegemônica na orientação política de esquerda a partir dos anos de 1980 devido, principalmente, ao seu potencial de defesa de minorias étnico-culturais e à possibilidade de ser acoplada a práticas de institucionalização da diversidade de orientações sexuais. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento de uma reflexão filosófica sensível à natureza disciplinar de estruturas de poder, que pretendiam impor normatividades no campo da sexualidade, do desejo, da normalidade psíquica, da estrutura da família, da constituição dos papéis sociais, forneceu o quadro conceitual para desdobrar o impacto de tais lutas (cf. p.ex. Deleuze, 1972DELEUZE, G. 1972. L'anti-OEdipe: capitalisme et squizophrénie. Paris: Seuil.; e Foucault, 1976FOUCAULT, M. 1976. Histoire de la sexualité - v I. Paris: Gallimard.).

Mesmo que autores como Michel Foucault, Gilles Deleuze e Jacques Derrida não tenham sido responsáveis pela recuperação da teoria do reconhecimento, o que não poderia ser diferente devido ao anti-hegelianismo explícito dos dois primeiros e mitigado no caso do terceiro, é inegável que sua forma de crítica à compreensão marxista tradicional dos embates políticos, assim como sua defesa ética do primado da diferença em muito colaboraram para a consolidação de um quadro filosófico mais propício à recuperação da centralidade do problema do reconhecimento da alteridade como o problema político central. Dessa forma, estavam dadas as condições gerais para que a compreensão filosófica das lutas políticas passasse necessariamente de uma abordagem centrada na redistribuição de riquezas a outra mais ampla, centrada em múltiplas formas de reconhecimento no campo da cultura, da vida sexual, das etnias e no desenvolvimento das potencialidades individuais da pessoa. Uma multiplicidade de campos que teriam sido levados ao centro da cena política após a aceitação tácita da impossibilidade de uma política revolucionária baseada na instrumentalização da luta de classes.

Sendo assim, ao menos no interior dessa leitura, teríamos de admitir que o conceito de reconhecimento estaria limitado geograficamente à descrição de lutas sociais em países do chamado Primeiro Mundo, que já teriam realizado a integração do proletariado à classe média, assim como aceito a necessidade do descentramento de suas matrizes culturais através da abertura à afirmação tolerante de formas de vida em contínua variação. Não por outra razão, um dos primeiros usos da segunda recuperação do conceito de reconhecimento esteve exatamente vinculado à reflexão sobre a dinâmica social das sociedades multiculturais (cf. Taylor, 1992TAYLOR, C. 1992. "Multiculturalism and the 'politics of recognition'". Princeton: Princeton University Press.).

Mas essa leitura não condiz com a realidade histórica do reaparecimento do conceito no interior da filosofia social. Foi em 1992, com a publicação de dois textos, de Axel Honneth e de Charles Taylor, que ele foi retomado. Ou seja, exatamente no momento em que se iniciava a lenta desintegração das conquistas econômicas dos ditos Estados de bem-estar social, com o desmantelamento dos direitos trabalhistas, a privatização (gradual ou total) da previdência e o sucateamento da educação, da saúde e de outros serviços públicos. Uma desintegração que ocorreu no momento em que vários teóricos afirmavam que entrávamos em uma era "pós-ideológica", marcada pelo fim da crença em transformações sociais revolucionárias com a consequente aceitação do horizonte normativo das democracias liberais como estágio final das lutas sociais.

Isso talvez explique porque críticos desta importância dada ao conceito de reconhecimento, principalmente aqueles de matriz marxista (mas não apenas eles), insistiram estarmos aqui diante de uma espécie de conceito meramente compensatório. Pois tudo se passaria como se, dada a impossibilidade de implementar políticas efetivas de redistribuição e luta radical contra a desigualdade, nos restasse apenas discutir políticas compensatórias de reconhecimento2 2 É nesse sentido que podemos ler uma afirmação como a de Zizek (2006, p. 35): "De fato, já que o horizonte da imaginação social não mais permite que alimentemos a ideia de que o capitalismo um dia desaparecerá - pois, como se poderia dizer, todos aceitam tacitamente que o capitalismo está aqui para ficar -, é como se a energia crítica tivesse encontrado uma saída substitutiva na luta pelas diferenças culturais que deixa intacta a homogeneidade básica do sistema mundial capitalista". Lembremos também de um liberal de esquerda como Richard Rorty (1995), que dirá: "Precisamos pois de uma explicação sobre por que o reconhecimento cultural é visto como tão importante. Penso que uma razão de ele ter se tornado tão importante no discurso da esquerda acadêmica norte-americana vincula-se a um conjunto específico de circunstâncias acadêmicas. A única coisa que nós, acadêmicos, podemos fazer com nossas capacidades profissionais específicas, a fim de eliminar o preconceito, é escrever a história das mulheres, celebrar a realização de artistas negros, entre outros. Isto é o melhor que acadêmicos trabalhando em programas de Estudos feministas, Estudos afro-americanos e Estudos gays podem fazer. Tais programas são os braços acadêmicos de novos movimentos sociais - movimentos que, como Judith Butler disse, mantiveram a esquerda viva nos EUA nestes últimos anos, anos durante os quais os ricos se saíram muito melhor no quesito luta de classes". . Da mesma forma, dado o fato de o capital aparecer, de maneira agora inquestionável, como única instância capaz de ocupar o espaço da universalidade no interior do liberalismo das sociedades multiculturais, nos restaria simplesmente reinventar demandas de reconhecimento de identidades comunitárias, em suas múltiplas formas, tentando dar à comunidade um sentido que não se reduzisse a mero espaço de restrição. Por fim, diante da impossibilidade de transformações sociais de larga escala, nos restaria discutir a natureza moral de nossas demandas sociais.

A economia da identidade individual

Mostrar que não estávamos diante de um simples dispositivo compensatório, mas provido de importante força de transformação das estruturas sociais foi uma tarefa que engajou vários defensores do uso político do conceito de reconhecimento nos últimos vinte anos. Essa tarefa passou por evidenciar como a força emancipatória do reconhecimento no interior de processos políticos concretos não se dava à margem da discussão sobre problemas de redistribuição igualitária das riquezas. Isso significou, nesse contexto, lembrar como as discussões sobre diferenças culturais e identidades sociais não mascaram necessariamente problemas estruturais ligados a lutas de redistribuição de riquezas entre classes. Tendo tal projeto em mente, autores como Axel Honneth (2003, p. 114)_____. 2003. "Redistribution as recognition". In: FRASER, N.; HONNETH, A. Redistribution or recognition. New York: Verso. foram levados a sustentar que "mesmo injustiças ligadas à distribuição devem ser entendidas como a expressão institucional de desrespeito social ou, melhor dizendo, de relações não justificadas de reconhecimento". O que leva Honneth (2003, p. 123)_____. 2003. "Redistribution as recognition". In: FRASER, N.; HONNETH, A. Redistribution or recognition. New York: Verso. a defender, entre outras coisas, proposições como a de que mesmo o movimento operário "procurava em uma dimensão essencial encontrar reconhecimento para suas tradições e formas de vida no interior de um horizonte capitalista de valor".

A estratégia de Honneth baseava-se em uma assimilação do problema da redistribuição de riquezas a um quadro mais amplo de discussões referentes ao reconhecimento. Para tanto, foi necessário compreender o sentimento social de injustiça econômica como expressão possível das "fontes motivacionais do descontentamento social e da resistência" (Honneth, 2003, p. 125_____. 2003. "Redistribution as recognition". In: FRASER, N.; HONNETH, A. Redistribution or recognition. New York: Verso.). Abria-se assim a possibilidade, ao menos para esse autor, de criar um quadro motivacional unitário, centrado na ideia de que "sujeitos esperam da sociedade, acima de tudo, reconhecimento de suas demandas de identidade" (p. 131). O que não poderia ser diferente para alguém que afirma: "sujeitos percebem procedimentos institucionais como injustiça social quando veem aspectos de sua personalidade, que acreditam ter direito ao reconhecimento, serem desrespeitados" (p. 132). Tal afirmação coloca no horizonte regulador dos processos de reconhecimento um conceito de "integridade pessoal", cujo pressuposto fundamental é a naturalização de facto das estruturas dos conceitos psicológicos de "indivíduo" e "personalidade". Segundo Honneth (2003, p. 176)_____. 2003. "Redistribution as recognition". In: FRASER, N.; HONNETH, A. Redistribution or recognition. New York: Verso., as lutas políticas, mesmo aquelas organizadas a partir de demandas de redistribuição econômica, visam, no limite, garantir as condições concretas para a "formação da identidade pessoal". Ou seja, a própria gênese da individualidade moderna aparece como um fundamento pré-político para o campo político. Algo que deve ser politicamente confirmado, e não politicamente desconstruído. Daí Honneth (2003, p. 177)_____. 2003. "Redistribution as recognition". In: FRASER, N.; HONNETH, A. Redistribution or recognition. New York: Verso. ser incisivo: "admito a premissa de que o propósito da igualdade social é permitir o desenvolvimento da formação da identidade pessoal de todos os membros da sociedade".

Feita tal naturalização, Honneth pôde se servir, entre outros, dos estudos de historiadores como E. P. Thompson e Barrington Moore, a fim de concluir que a estrutura motivacional das lutas da classe operária baseou-se, principalmente: "na experiência da violação de exigências localmente transmitidas de honra" (Honneth, 2003, p. 131_____. 2003. "Redistribution as recognition". In: FRASER, N.; HONNETH, A. Redistribution or recognition. New York: Verso.)3 3 Por procurar desde há muito defender tal perspectiva, Honneth (1992, p. 233) diz que, em Marx: "a luta de classes não significa, primeiramente, um afrontamento estratégico, visando à aquisição de bens ou de instrumentos de poder. Ela constitui um conflito moral, cuja questão é a 'emancipação' do trabalho, condição essencial de que depende, ao mesmo tempo, a estima simétrica entre sujeitos e a consciência individual de si". , já que, mais importante do que demandas materiais, teria sido o sentimento de desrespeito em relação a formas de vida que clamam por reconhecimento. Ao insistir na centralidade da experiência moral do sentimento de "desrespeito" como motor das lutas políticas, elevando-o à condição de base motivacional para todo e qualquer conflito, Honneth inscreveu problemas de redistribuição no interior do quadro geral de demandas morais. Assim, sendo a vulnerabilidade social ligada à pauperização compreendida, principalmente, como expressão material da impossibilidade da realização de exigências morais de respeito, abrem-se as portas para ele afirmar que "a distinção entre empobrecimento econômico e degradação cultural é fenomenologicamente secundária" (Honneth, 2003, p. 171_____. 2003. "Redistribution as recognition". In: FRASER, N.; HONNETH, A. Redistribution or recognition. New York: Verso.), já que conflitos por redistribuição não poderiam ser compreendidos como independentes de toda e qualquer experiência de desrespeito social.

Dentre os vários problemas resultantes dessa perspectiva, vale a pena salientar ao menos três. Primeiro, uma teoria que secundariza distinções entre pauperização e degradação cultural, apelando para isso a uma espécie de "monismo moral", fica impotente para pensar a especificidade e o caráter insubstituível das políticas de redistribuição. Pois, se estamos diante de múltiplas formas da impossibilidade da realização de exigências morais de respeito, não fica claro por que problemas de desigualdade econômica não poderiam ser compensados e minorados pela instituição, por exemplo, de políticas de afirmação cultural. Pois sendo as lutas por redistribuição definidas como processo de afirmação das condições materiais para garantir as possibilidades de formação da identidade pessoal, então poderíamos acreditar que o desenvolvimento de outros processos responsáveis pela viabilização de tal formação irão impactar de maneira compensatória na força das demandas de igualdade econômica. Admitido uma matriz sócio-ontológica unitária para todas as formas de sofrimento social, não é mais possível pensar a irredutibilidade das políticas de redistribuição.

Por outro lado, admitida a natureza moral das demandas de redistribuição, não se podem impedi-las de que sejam "psicologizadas", ou seja, tratadas como problemas de limitação do desenvolvimento da individualidade psicológica. O que, no limite, transformará todo discurso político em um discurso de forte teor de queixa psicológica. Mas, principalmente, transformará toda resposta às demandas de redistribuição em uma ação "terapêutica" de políticas de Estado que compreendem sujeitos políticos como algo parecido a protossujeitos psicologicamente vulneráveis em suas identidades, que aparecem à cena pública suportados por discursos reivindicatórios próprios a quem, no fundo, espera cuidado e amparo4 4 Ver, a este respeito, os usos do conceito de cuidado (care) no interior do debate político e da definição da natureza das políticas públicas de assistência em Vasset e Viannay (2009) e em Fassin e Rechmann (2007) . À sua maneira, Alain Badiou (2003) havia indicado os riscos dessa psicologização do sofrimento social em Ethique: essai sur la conscience du mal. Sobre outros aspectos desse problema, ver ainda Kehl (2005) . . As demandas por transformação social se transmutam em demandas por cuidado social. Mas a demanda por cuidado é uma demanda que, para funcionar, deve reconhecer a legitimidade do lugar do outro que pode cuidar de mim. Esta não é uma demanda política de transformação, mas uma demanda terapêutica de acolhimento. Quem pede por cuidado reforça a posição de quem aparece como capaz de cuidar.

Há ainda um terceiro problema na perspectiva defendida por Honneth. Ao reduzir a integralidade das lutas sociais às demandas pela afirmação das condições para a formação da identidade pessoal, sua perspectiva anula por completo uma dimensão fundamental para a compreensão da luta de classe, ao menos para Marx, a saber, a força de desidentidade própria ao conceito marxista de proletariado. Ao compreender a força revolucionária do proletariado como um dogma histórico-filosófico, Honneth acaba por perder aquilo que poderíamos chamar de "função ontológica" do proletariado no interior do pensamento de Marx. Tal função faz do "proletariado" a manifestação social de um princípio de desidentidade e desdiferenciação. De certa forma, há em Marx uma espécie de "condição proletária" presente como horizonte regulador de seu igualitarismo radical. Essa condição mereceria ser recuperada na reflexão política contemporânea.

A indeterminação social do proletariado

Lembremos como, segundo Marx, a revolução só pode ser feita pela classe dos despossuídos de predicado e profundamente despossuídos de identidade. Classe formada por "indivíduos histórico-universais, empiricamente universais, em vez de indivíduos locais" (Marx, 2008, p. 58_____. 2008. A ideologia alemã. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.), o que se coaduna muito pouco com a visão de operários que lutam pelo reconhecimento de suas tradições e formas de vida. Para que apareçam indivíduos histórico-universais, faz-se necessário certa experiência de negatividade que, desde Hegel, é condição para a fundamentação da verdadeira universalidade. Tal experiência, o proletariado a sofre através da despossessão completa de si, descrita por Marx no Manifesto Comunista.

O proletário é desprovido de propriedade (eigentumslos); sua relação com a esposa e os filhos não tem mais nada a ver com as relações da família burguesa; o trabalho industrial moderno, a moderna subsunção ao capital, tanto na Inglaterra quanto na França, na América quanto na Alemanha, retiraram dele todo caráter nacional. A lei, a moral, a religião são para ele preconceitos burgueses que encobrem vários interesses burgueses (Marx, 2013).

Como vemos, o proletariado não é definido apenas a partir da pauperização extrema, mas da anulação completa de vínculos a formas tradicionais de vida. Tais vínculos não são recuperados em um processo político de reafirmação de si, não se trata de permitir que os proletários tenham uma nação, uma família burguesa, uma moral e uma religião. Tais normatividades são negadas em uma negação sem retorno. No entanto, tal negação não leva o proletariado a aparecer como "essa massa indefinida, desestruturada e jogada de um lado para outro, que os franceses denominam la bohème" (Marx, 2011, p. 91_____. 2011. O 18 brumário de Luis Bonaparte. São Paulo: Boitempo.) e que Marx define como "lumpemproletariado" (cf. Thoburn, 2002THOBURN, N. 2002. "Difference in Marx: the lumpenproletariat and the proletarian unamable". Economy and Society, v. 31, n. 3, pp. 434-60.). Pois essa desestruturação e indefinição anômica do lumpemproletariado é própria de quem ainda conserva a esperança de retorno da ordem, ou que não é capaz de conceber nada fora de uma ordem que ele mesmo sabe estar completamente comprometida. O que faz suas ações políticas serem apenas "paródias" de transformações, "comédias", ou ainda, "mascaradas": todos termos usados por Marx no 18 brumário para falar de revoluções que são, na verdade, tentativas de estabilização no caos.

O proletariado é marcado pela ausência de qualquer expectativa de retorno. Por isso, ao ser desprovido de propriedade, de nacionalidade, de laços a modos de vida tradicionais e de confiança em normatividades sociais estabelecidas, ele pode transformar seu desamparo em força política de transformação radical das formas de vida, o que Marx deixa claro quando afirma esperar:

[...] um intercâmbio universal dos homens [há de se insistir no peso de uma formulação desta natureza] em virtude do qual, por um lado, o fenômeno da massa "despossuída" se produz simultaneamente em todos os povos (concorrência universal), fazendo com que cada um deles dependa das transformações revolucionárias dos outros e, por último, institui indivíduos histórico-universais, empiricamente universais, em vez de indivíduos locais (Marx, 2008, p. 58).

Para tanto, devemos compreender que a afirmação da condição proletária não se confunde com qualquer demanda de reconhecimento de formas de vida desrespeitadas, claramente organizadas em suas particularidades. Ao contrário, a afirmação de tal condição gera a classe desses sujeitos sem predicados que, como diz A ideologia alemã, poderão se satisfazer ao pescar de dia, pastorear à tarde e fazer crítica à noite, sem (e este é o ponto principal) ser pescador, pastor ou crítico, ou seja, sem permitir que o sujeito se determine inteiramente em seus predicados (Marx, 2008, p. 56_____. 2008. A ideologia alemã. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.). Isso significa que a atividade de pescar, pastorear e criticar não pode ser, ao mesmo tempo, identificação do sujeito.

Como em Hegel, a posição do sujeito, sua exteriorização, mostra como há algo de radicalmente antipredicativo a animar o movimento da essência5 5 Como dirá Alain Badiou (2007, p. 108) : "Marx já sublinhava que a singularidade universal do proletariado é não portar nenhum predicado, nada ter, e especialmente não ter, em sentido forte, nenhuma 'pátria'". Essa concepção antipredicativa, negativa e universal do homem novo atravessa o século. Lembremos ainda que: "Em latim, proletarii significa "pessoa prolífica" - pessoa que gera crianças, que meramente vive e reproduz sem nome, sem ser contada como fazendo parte da ordem simbólica da cidade" (Rancière, 1995, p. 67). . O que não poderia ser diferente se pensarmos o proletariado como essa classe: "que expressa, de per si, a dissolução de todas as classes dentro da sociedade atual" (Marx, 2008, p. 98_____. 2008. A ideologia alemã. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.). A classe do que dissolve todas as classes por representar: "a perda total da humanidade" (Marx, 2005, p. 156MARX, K. 2005. "Introdução" . In: _____. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo.), o que não encontra mais figura na imagem atual do homem. Dessa forma, podemos dizer que, tal como na teoria hegeliana do sujeito (embora Marx desqualificasse tal assimilação por ver, em Hegel, uma elaboração meramente abstrata do problema), o proletariado só supera sua alienação ao se confrontar com o caráter profundamente indeterminado do fundamento e conservar algo desta indeterminação6 6 Sobre este ponto da filosofia hegeliana, tomo a liberdade de remeter ao meu Grande hotel abismo: para uma reconstrução da teoria do reconhecimento (Safatle, 2012). . Seu papel de redenção (Erlösung) só pode ser desempenhado à condição de assumir sua natureza de dissolução (Auflösung). Como dirá Balibar (2011, p. 260)BALIBAR, E. 2011. Citoyen-sujet et autres essais d'anthropologie philosophique. Paris: PUF., o advento do proletário como sujeito político é o aparecimento de um "sujeito como vazio", que não é, em absoluto, privado de determinações práticas. Essa manifestação de um vazio em relação às determinações identitárias atuais leva-nos a compreender que o reconhecimento de si só é possível à condição de uma crítica profunda de toda tentativa de reinstaurar identidades imediatas entre sujeito e seus predicados.

Se este for o caso, então poderemos dizer que a luta de classes em Marx não é simplesmente um conflito moral motivado pela defesa das condições materiais para a estima simétrica entre sujeitos dispostos a se fazerem reconhecer a partir da perspectiva da integralidade de suas personalidades. A abolição da propriedade privada deve acompanhar necessariamente a abolição de uma economia psíquica baseada na afirmação da personalidade como categoria identitária. Nesse sentido, a luta de classes em Marx não pode ser compreendida como mera expressão de formas de luta contra a injustiça econômica, já que ela é também modelo de crítica à tentativa de transformar a individualidade em horizonte final para todo e qualquer processo de reconhecimento social. O que não poderia ser diferente se lembrarmos que, ao menos no interior da tradição dialética, "pessoa" é uma categoria derivada historicamente do direito romano de propriedade (dominus), uma categoria que, por ainda guardar os traços de sua origem, era vista já por filósofos como Hegel (1992, p. 33)HEGEL, G W F . 1992. Fenomenologia do espírito - v. II. Petrópolis, RJ: Vozes. como "expressão de desprezo" devido à sua natureza meramente abstrata e formal, advinda da absolutização das relações de propriedade7. Encontramos claramente em Marx essa crítica já presente em Hegel. Por isso, Marx insistirá, por exemplo, que a noção de liberdade pressuposta pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1793, era calcada em larga medida na absolutização do indivíduo proprietário. Daí uma colocação como:

[...] o limite dentro do qual um [cidadão] pode mover-se de modo a não prejudicar o outro é determinado pela lei do mesmo modo que o limite entre dois terrenos é determinado pelo poste da cerca. Trata-se da liberdade do homem como mônada isolada recolhida dentro de si mesma [...] A aplicação prática do direito humano à liberdade equivale ao direito humano à propriedade privada (Marx, 2010, p. 49).

A liberdade, para Marx, supõe a liberação do sujeito de sua condição de indivíduo que se relaciona com outro indivíduo tal como dois terrenos separados pelo poste da cerca. Estaremos sendo fiéis ao espírito do texto de Marx se afirmarmos que é através da luta de classes que uma experiência social pós-identitária pode encontrar lugar. Podemos mesmo dizer que "proletariado" é a nomeação política da força social de desdiferenciação identitária, cujo reconhecimento pode desarticular por completo sociedades organizadas a partir da hipóstase das relações gerais de propriedade 8 8 E que o fato de essa força de desdiferenciação própria ao conceito de proletariado ter ganhado evidência graças a marxistas franceses, como Badiou, Balibar e Rancière, demonstra como algo do descentramento próprio ao conceito lacaniano de sujeito alcançou a política intermediado por ex-alunos de Louis Althusser. No entanto, tal descentramento tem sua matriz na noção de "negatividade", própria ao sujeito hegeliano. Assim, por ironia suprema da história, algo do conceito hegeliano de sujeito acaba por voltar à cena pela influência surda em operação nos textos de ex-alunos deste anti-hegeliano por excelência: Louis Althusser. . A felicidade do conceito forjado por Marx residia em sua capacidade de sobrepor lógica política e descrição sociológica, permitindo a criação de uma relação profunda entre trabalhadores realmente existentes (que constituíam uma importante maioria social) e proletários (cf. Laclau, 2011, p. 308LACLAU, E. 2011. La razón populista. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica.). No entanto, sustentar tal relação não é condição necessária para que o conceito marxista de "proletariado" continue a mostrar sua operatividade. Na situação histórica atual, de reconfiguração da sociedade do trabalho, podemos repensar tal relação a fim de encontrar espaços outros para a manifestação de exigências próprias a certa ontologia do sujeito pressuposta pela construção marxista9 9 Essa é uma maneira de aceitar proposições como: "A coisa toda seria muito simples se houvesse apenas a infelicidade da luta que opõe ricos e pobres. A solução do problema foi encontrada muito cedo. Basta suprimir a causa da dissensão, ou seja, a desigualdade de riquezas, dando a cada um uma parte igual de terra. O mal é mais profundo. Da mesma forma que o povo não é realmente o povo, mas os pobres, as pobres por sua vez não são realmente os pobres. Eles são apenas o reino da ausência de qualidade, a efetividade da disjunção primeira que porta o nome vazio de 'liberdade', a propriedade imprópria, o título do litígio. Eles são eles mesmos, a união distorcida do próprio que não é realmente próprio e do comum que não é realmente comum" (Rancière, 1995, p. 34). .

Para além do princípio de diferença cultural

Aceitos tal hipótese e tal horizonte pós-identitário, podemos abordar algumas alternativas recentes para pensar a possibilidade de uma teoria do reconhecimento que não se deixe pensar como política compensatória. Nancy Fraser, no debate com Axel Honneth, procurou resolver essa questão insistindo na necessidade de defender certo dualismo capaz de reconhecer que problemas de redistribuição e de reconhecimento, embora profundamente imbricados, devem ter respostas que considerem a impossibilidade de reduzir, em chave expressivista, as esferas da cultura e da economia. É levando isso em conta que devemos interpretar afirmações como:

[...] a justiça implica, ao mesmo tempo, a redistribuição e o reconhecimento. Isso impõe inicialmente conceitualizar o reconhecimento cultural e a igualdade social de forma tal que possam se reforçar ao invés de um entravar o outro [Até porque] a injustiça econômica e a injustiça cultural são habitualmente imbricadas de tal forma que se reforçam dialeticamente (Fraser, 2005, pp. 14, 19).

De fato, aquilo que Marx (2008, p. 63)_____. 2008. A ideologia alemã. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. chamou um dia de "derrocada prática das relações sociais reais" não poderia mesmo se reduzir apenas às modificações concretas das relações de exploração econômica. Até porque, não é seguro que o combate à injustiça econômica elimine, por si só, a injustiça cultural. A resiliência de processos de exclusão e preconceito relativos às diferenças culturais, mesmo em sociedades de forte tradição igualitária, pode nos servir de prova aqui. A igualdade econômica é uma condição necessária, mas talvez não seja suficiente, para o reconhecimento social de múltiplas formas de vida em sua plasticidade.

Nesse sentido, um importante desafio para as teorias do reconhecimento consistiria, ao menos da perspectiva de Fraser, em pensar o regime de imbricação entre injustiça econômica e injustiça cultural. Fraser distingue dois modelos de ação política. Pois se trata de afirmar que, de fato, existiriam políticas compensatórias ligadas a dinâmicas de reconhecimento e redistribuição, que estariam vinculadas, por exemplo, àquilo que Fraser chama de "multiculturalismo oficial" e à perpetuação do "Estado liberal do bem-estar".

Acrescente-se ainda a interpretação de que isso pode significar uma articulação entre liberalismo econômico e multiculturalismo, que usa a afirmação da diferença cultural como compensação para a paralisia política em relação aos efeitos sociais das políticas econômicas liberais. Pois, para compensar tal paralisia, cria-se a imagem da sociedade como uma rede atomizada de grupos fortemente identitários negociando infinitamente seu reconhecimento no interior de uma dinâmica frágil de tolerância.

Trata-se de "dinâmica frágil de tolerância" pelo fato de as identidades culturais serem, a menos nesse contexto, necessariamente defensivas, por operarem como construções que se definem por oposição e exclusão. Identidades culturais, ou seja, aquelas ligadas à afirmação da especificidade de forma de vida que se estruturam a partir de etnias, nacionalidades, religiões, modos de sexualidade, vínculos a sistemas de costumes sempre se definem sob tensão, isso se não se quiser adotar: "a ilusão tipicamente liberal de um pluralismo sem antagonismo" (Mouffe, 1995, p. 39MOUFFE, C. 1995. "Democratic politics and the question of identity" . In: RAJCHMAN, J. The identity in question. New York: Routledge.). Ilusão baseada no esquecimento de que identidades, sejam políticas ou psicológicas, sempre são construídas no interior de relações assimétricas de poder, e, por isso, são expressões de estratégias de defesa ou de dominação10 10 Para uma discussão sobre a natureza dessa assimetria de poder na formação das identidades subjetivas e sua agressividade intrínseca, ver Lacan (1996) . . A sensibilidade a tal antagonismo só poderia ser minorada pela consolidação de um espaço fortemente igualitário para além das diferenças culturais, e não por uma politização extrema do campo da cultura.

No entanto, é da politização do campo das diferenças culturais que as políticas multiculturalistas vivem. Daí a transformação da "tolerância" em afeto político maior. Gostaria de insistir que, em nosso momento histórico, a tolerância não pode ser elevada à condição de afeto político com força transformadora (cf. Badiou, 2003BADIOU, A. 2003. Ethique: essai sur la conscience du mal. Paris: Nous.; e Zizek, 2014ZIZEK, S. 2006. "Multiculturalismo: a lógica cultural do capitalismo". In: AIDAR, J L. . (org). Zizek crítico. São Paulo: Hacker.). Ao contrário, políticas da tolerância alimentam, atualmente, um ciclo infinitamente ruim de conflitos baseados em contínuas regressões sociais. Não por outra razão, países que até há pouco caracterizavam-se por políticas culturais baseadas na "tolerância", como os Países Baixos e a Dinamarca, são atualmente os mais marcados por fortes políticas de exclusão cultural. Como se a verdadeira função das sociedades multiculturais tivesse se transformado no bloqueio contínuo da política através da sensibilização extrema ao problema das diferenças culturais.

Uma política baseada na tolerância é uma política que constrói um campo de diferenças toleráveis, o que alimenta o fantasma perpétuo da "diferença intolerável". Ou seja, a equação das diferenças, tão presente nas dinâmicas multiculturais, parte da seguinte questão: até onde podemos suportar uma diferença? Esta é, no entanto, uma péssima questão. Parte-se do pressuposto de que vejo o outro primeiramente a partir da sua diferença à minha identidade. Como se minha identidade já estivesse definida e simplesmente se comparasse à identidade do outro. Por isso, a boa questão talvez seja: em que condições a diversidade pode aparecer como a modulação de uma mesma universalidade em processo tenso de efetivação? Isso implica não compreender o campo político como campo de identificação e reconhecimento das diferenças, mas campo de desconstrução das diferenças.

Podemos encontrar alguns pontos em comum com tal preocupação na crença, sustentada por Fraser, na existência de políticas transformadoras ligadas à articulação entre aquilo que ela entende por práticas socialistas de redistribuição e práticas de desconstrução das diferenças culturais. Tal desconstrução apareceria como necessária por duas razões. Primeiro, enquanto o reconhecimento estiver vinculado à dimensão da afirmação das diferenças culturais, ou seja, à mobilização dos laços entre reconhecimento e produção de identidades, não será possível impedir que ele, o reconhecimento, justifique práticas que não podem ser vistas como expressões de processos de emancipação11 11 Conforme salientou Mauro Basaure (s.d.) em "Es la teoria de las luchas por el reconocimiento uma teoria de la política?". . Como bem lembra Craig Calhoun (1995, p. 215)CALHOUN, C. 1995. Critical social theory. Oxford: Willey Blackwell., questões de reconhecimento e de identidade não têm todas as mesmas consequências, como se pode perceber ao lembrarmos o significado dos múltiplos fundamentalismos religiosos, a resistência dos afrikaners à dita "supremacia negra", entre tantos outros exemplos. Mobilizando tal ambivalência, Fraser (2005, p. 71)_____. 2005. Qu'est ce que la justice sociale? Reconnaissance et redistribution. Paris: La Découverte. também lembrará mais tarde que políticas de identidade e reconhecimento: "de Ruanda aos Bálcãs alimentaram tanto campanhas de limpeza étnica e de genocídio quanto movimentos que se mobilizaram para lhes resistir"12 12 Ver também, a esse respeito, Fraser (2003, p. 38) . .

Segundo, novas formas de solidariedade e igualdade são criadas quando somos capazes de ver sujeitos como suportes de práticas desconstrutivas, que modificam estruturalmente o sistema de representações sociais através da constituição de diferenças múltiplas e em eterno movimento. Judith Butler explorou esse ponto em sua reflexão sobre uma possível radicalização da ética do reconhecimento da alteridade. Isso a levou a afirmar que:

[...] devemos considerar certa leitura pós-hegeliana da cena do reconhecimento na qual, precisamente, minha própria opacidade para mim mesmo desenvolve minha capacidade em fornecer certo modo de reconhecimento ao outro. Ela deverá ser, talvez, uma ética baseada em nossa partilhada e invariável cegueira parcial a respeito de nós mesmos (Butler, 2005, p. 41).

Ou seja, o fato de não me estabelecer com identidade fortemente determinada, mas de reconhecer a necessidade de lidar com algo em mim não completamente estruturável em termos de identidade, levar-me-ia à maior solidariedade com aquilo que, no outro, sou incapaz de integrar. Caso tais novas formas de solidariedade funcionassem, elas poderiam eliminar o caráter meramente compensatório das políticas de reconhecimento cultural, pois não permitiriam que a paralisia política em relação à transformação econômica fosse escondida pela dinâmica regressiva dos embates identitários. Elas eliminariam a dinâmica regressiva de tais embates culturais por abrir espaço a uma partilha substantiva de desconfortos subjetivos em relação à identidades estáticas. Ou seja, ao invés de simplesmente retirar as discussões culturais dos embates relativos à política, há uma tendência que procura impedir que o debate sobre a cultura não entre em regressão por ser dominado por problemas relativos ao reconhecimento da produção de identidades.

Não é difícil, porém, encontrar posições não completamente idênticas a essa, mas bem fundamentadas, como as de Emmanuel Renault e Jean-Phillipe Deranty em um texto a respeito da força política do conceito de reconhecimento.

Não há distinção estrita a ser feita entre as esferas do reconhecimento e da identidade. A identidade pessoal é a síntese de diferentes níveis de identidade [...] Nesse sentido, o reconhecimento é político em dois sentidos: primeiro, por fornecer a gramática dos conflitos políticos; e segundo, por suportar o que é potencialmente político, integrando dimensões da identidade subjetiva (Deranty e Renault, 2007, p. 104).

Os autores afirmam que, para um indivíduo, a autonomia é incompatível com uma indiferença geral em relação a todas as suas identidades. Mas como não se trata de dar um grande salto para trás e conservar identidades estáticas, eles sugerem a recuperação do conceito hegeliano de identidade, compreendido por eles como "negatividade autorreferencial"13 13 Ver, a este respeito, a discussão hegeliana sobre as determinações de reflexão na Doutrina da essência (Hegel, 1996). . Daí uma afirmação como: "O que indivíduos procuram fazer reconhecer na luta por reconhecimento não é exatamente suas identidades positivas, mas suas identidades como negativas, sua liberdade de estabelecer suas próprias identidades" (Deranty e Renault, 2007, p. 107DERANTY, J.-P.; RENAULT, E. 2007. "Politicizing Honneth's ethics of recognition". Thesis Eleven, v. 88, n. 92.).

Para além dessas duas perspectivas, que poderiam inclusive convergir à medida que tentássemos aproximar tais práticas desconstrutivas com a leitura sugerida do conceito hegeliano de identidade, gostaria de avaliar a viabilidade de defender um encaminhamento relativamente distinto. Talvez o problema não consista apenas em dissociar cultura e identidade, mas de ir mais adiante e insistir na necessidade de uma teoria do reconhecimento capaz de simplesmente dissociar política e cultura, com suas questões normalmente ligadas à produção de identidades sociais. O debate sobre as relações entre redistribuição e reconhecimento normalmente reduz a reflexão sobre a natureza das relações sociais a dois campos: a cultura e a economia. No entanto, há de se acrescentar a política como campo autônomo, isso porque talvez nunca sejamos capazes de separar cultura e produção de identidades defensivas (como esperam, cada uma à sua maneira, Nancy Fraser e Judith Butler), mas é preciso avaliar a afirmação de que a política nasça da atualização de algo chamado "potência de despersonalização", que sobe à cena da vida em comum, levando os sujeitos a não falarem mais como se fossem portadores de identidades e interesses particulares.

Políticas da indiferença

Por mais que isso pareça em princípio contraintuitivo e contrário a qualquer reflexão sociológica elementar, pode-se dizer que o campo do político nasce de sua separação em relação ao campo da cultura e da economia14 14 Para Jacques Rancière (2007, p. 238) : "A política não é, de forma alguma, uma realidade que se deduziria das necessidades de organização dos homens em comunidade. Ela é uma exceção aos princípios segundo os quais tal organização opera". . Uma das possíveis consequências que se segue daí é a afirmação de que identidades podem e devem encontrar seu espaço de desenvolvimento, mas não que tal espaço deva necessariamente ser politizado. Trata-se aqui de defender a hipótese de que a política desidentifica os sujeitos de suas diferenças culturais; ela os deslocaliza de suas nacionalidades e identidades geográficas, da mesma forma que os desindividualiza de seus atributos psicológicos. Por isso, dessa perspectiva, a política é, acima de tudo, uma força de desdiferenciação, capaz de abrir aos sujeitos um campo produtivo de indeterminação. Sujeitos políticos não são portadores de demandas individuais representativas de certos grupos particulares, estamentos e classes. Nessas condições, as demandas que aparecem no campo do político são apenas a emulação de particularismos que procuram se afirmar no interior de um mero jogo de forças, não de uma confrontação realmente política com força concreta de transformação. Na verdade, a política desconhece indivíduos, e esta talvez seja uma das mais atuais lições de Marx. Há de se meditar com atenção acerca do fato de a revolução, para Marx, só poder ser feita pela classe dos despossuídos de predicado e profundamente despossuídos de identidade. Classe formada por "indivíduos histórico-universais, empiricamente universais, em vez de indivíduos locais". Talvez isso nos mostre como sujeitos só se transformam em sujeitos políticos quando suas demandas individuais se desindividualizam, podendo inclusive aparecer como condição maior para a ampliação genérica de direitos.

Por isso, do ponto de vista do político, esta é uma importante hipótese de trabalho: o espaço das diferenças culturais deve ser um espaço de absoluta indiferença15 15 Trata-se de explorar aqui a ideia, presente inicialmente em Alain Badiou (2009, p. 116) , de que: "somente é possível transcender as diferenças se a benevolência em relação aos costumes e às opiniões apresentar-se como uma indiferença tolerante às diferenças, a qual tem como prova material apenas poder e saber autopraticar as diferenças". . Mas o que pode significar a proposição de que as diferenças culturais devam ser objetos de indiferença política? Primeiramente, é preciso lembrar o que isso não significa. Não se trata aqui de ignorar que políticas específicas de discriminação positiva tenham função estratégica fundamental, nem de ignorar que leis de defesa de grupos sociais historicamente mais vulneráveis (mulheres, negros, imigrantes, homossexuais, travestis etc.) necessitem estrategicamente afirmar diferenças culturais para fortalecer a sensibilidade social em relação à vulnerabilidade específica de tais grupos. Mas, nesses casos, trata-se da plasticidade que a ação política dispõe para impor condições reais capazes de garantir a afirmação do igualitarismo, e uma dessas condições reais é a construção da consciência da vulnerabilidade de grupos historicamente despossuídos. Tal consciência da vulnerabilidade é um estágio necessário para reposicionar a sociedade em uma situação na qual a indiferença às diferenças culturais não seja impossibilitada pelo peso da violência que se perpetua contra grupos específicos. Nesses casos, se pode falar de um uso "estrategicamente provisório" da noção de identidade que não é estranho a uma perspectiva como a defendida neste artigo.

Por outro lado, afirmar que as diferenças culturais devam ser objeto de indiferença política significa defender a autonomia do político em relação tanto à cultura quanto à economia. Tal autonomia parte da crença de que apenas o campo do político tem condições de se afirmar como campo de igualdade radical, já que os campos da cultura e da economia serão sempre marcados por desigualdades que podem ser minoradas, mas que talvez não possam ser completamente eliminadas. Se é fato que a dinâmica social da cultura é marcada pela afirmação da multiplicidade de diferenças em contínua reconfiguração, é certo também que há uma potência de fragmentação e diferenciação a assombrar o campo da economia. Desde Hegel (1986, p. 243)_____. 1986. Grundlinien der Philosophie des Rechts. Frankfurt am Main: Suhrkamp., em seus Grundlinien der Philosophie des Rechts [Princípios da filosofia do direito], aceitamos que a circulação de bens e propriedades na esfera da sociedade civil entre particulares nunca deixará de produzir desigualdades, mesmo que seja função do Estado minorá-las e controlá-las. Podemos encontrar vias alternativas para além do livre-mercado, com suas afirmações de individualidades com sistemas particulares de interesse e sua dinâmica de espoliação econômica dos mais vulneráveis. Podemos abrir espaços sociais mais efetivos para a circulação do bem comum e para a afirmação da propriedade comum. Mas a atividade econômica tem, no seu interior, um princípio de acumulação, devido à equação entre capital e desempenho, que provavelmente nunca será (nem deveria ser) completamente eliminada, a não ser se concluirmos a necessidade de um horizonte de estatização completa dos meios de produção. Se aceitarmos, ao contrário, que tal horizonte traz problemas insolúveis ligados ao bloqueio de exigências necessárias de desenvolvimento das individualidades e que, por isso, o momento histórico de sua defesa política passou por completo, então podemos afirmar que a defesa da autonomia do político pode funcionar como a garantia de um espaço de igualdade radical na vida social que, inclusive, pode ter forte força indutora para demandas de igualdade na esfera econômica.

Mas tentemos identificar melhor o que pode ser uma esfera do político autônoma em relação à cultura e à economia. Deveríamos ser obrigados, para tanto, a defender a existência de demandas estritamente políticas que não se expressariam como exigências de justiça econômica ou como exigências de reconhecimento de especificidades culturais? Se este fosse o caso, certamente o trabalho seria vão, pois dificilmente encontraríamos demandas dessa natureza. A política não tem um lugar que lhe seja próprio. No entanto, a defesa de uma autonomia do político é o que nos permite compreender porque há lutas sociais que não se esgotam no interior da lógica dos ganhos econômicos e das defesas das particularidades culturais. A experiência do político não se dá à margem da economia e da cultura, mas se serve de ambos a fim de impulsionar demandas econômicas e culturais em direção a um ponto de afirmação de um igualitarismo radical capaz de expor "a função universal das lutas particulares quando estão investidas de um significado que transcende sua própria particularidade" (Laclau, 2011, p. 305LACLAU, E. 2011. La razón populista. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica.) 16 16 De maneira bem sugestiva, Laclau (2011) propõe pensar tal relação entre particular e universal no interior das lutas políticas tomando a noção lacaniana de "objeto pequeno a" enquanto parcialidade que funciona como totalidade, expondo uma totalidade incomensurável e não representável a partir dos padrões aceitos de representação. . Por isso, só podemos concordar com Rancière e afirmar que há política quando o "povo" não é a raça ou a população, os "pobres" não são a parte desfavorecida da população, os "proletários" não são o grupo de trabalhadores da indústria, mas sujeitos que não se deixam inscrever como parte da sociedade, sendo o que não se deixa comensurar por uma lógica gestionária da vida social (cf. Rancière, 2007, p. 238_____. 2007. Au bord du politique. Paris: Gallimard.).

No entanto, se este for o caso, não fica claro porque deveríamos pressupor, como em alguns momentos deste artigo, que a autonomia do político é condição para defendermos a existência de algo que deveríamos chamar de "reconhecimento antipredicativo". Pois pode parecer que estejamos simplesmente diante da compreensão do político como campo de universalidade formadora de direito. Compreensão que nos levaria à ideia de que demandas sociais se tornam políticas quando interesses particulares aparecem como expressão de direitos universais ainda não aplicados a grupos desfavorecidos. Assim, longe de se afirmarem de maneira "antipredicativa", temos, ao contrário, uma predicação dos sujeitos através da determinação fornecida por direitos positivos juridicamente enunciados que, até então, lhes foram negados. Falar em "reconhecimento antipredicativo" só faria sentido se pudéssemos afirmar a necessidade de algo do sujeito não passar em seus predicados, mas continuar como potência indeterminada e força de indistinção. Como se aprofundar as dinâmicas de reconhecimento não passasse por aumentar o número de predicados aos quais um sujeito se reporta, mas que passasse, na verdade, por compreender que um sujeito se define por portar o que resiste ao próprio processo de predicação17 17 Uma perspectiva estritamente hegeliana, que compreendesse sua crítica à estrutura predicativa do conhecimento baseado na percepção (cf. Hegel, 1991), como momento a ser integrado no interior de uma teoria do reconhecimento, chegaria a conclusões semelhantes. . O que nos deixa com uma questão fundamental, a saber: como reconhecer politicamente essa potência que não se predica? Poderíamos pensar lutas políticas cujas encarnações em demandas particulares nos levasse, necessariamente, ao reconhecimento do que é radicalmente antipredicativo?

Colocar o problema nesses termos demonstra como não podemos ver aqui uma versão da necessidade em recuperar a distinção clássica entre "cidadão" e "burguês", tão explorada pelo Marx (2010)_____. 2010. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo. de Sobre a questão judaica, em que o campo do que entendemos por "cultura" seria uma versão contemporânea da esfera de interesses do indivíduo proprietário burguês, esse "individualismo possessivo" descrito por Macpherson e agora acrescido da dimensão da propriedade de atributos culturais diferenciais. A defesa da "cidadania" passa, normalmente, pela compreensão de que a política avança basicamente com a institucionalização de direitos universais adquiridos, que se tornam assim predicados de todo e qualquer sujeito. O máximo que poderíamos fazer aqui é, mesmo aceitando que a "cidadania" é um mero decalque das "contradições que lhe vêm de sua inserção 'orgânica' na 'sociedade burguesa', da qual ela formaliza os conflitos, relações e processos", não negligenciar que ela também não é desvinculada das "exigências de igualdade e de liberdade 'reais', 'radicais', das quais ela extrai precisamente sua legitimidade" (Balibar, 2011, p. 473BALIBAR, E. 2011. Citoyen-sujet et autres essais d'anthropologie philosophique. Paris: PUF.)18 18 Isso levou Marx (2010, p. 50) a afirmar: "Nenhum dos assim chamados direitos humanos transcende o homem egoísta, o homem como membro da sociedade burguesa, a saber, como indivíduo recolhido ao seu interesse privado e a seu capricho privado e separado da comunidade". . Mas talvez só seja possível salvar o vínculo com as exigências de igualdade e liberdade, presentes na luta pela cidadania, recusando por completo sua inserção orgânica na sociedade burguesa e sua tendência a ser a construção jurídico-institucional de uma figura do homem ligada à universalização e idealização da experiência material do indivíduo liberal. A proposta aqui apresentada não deixa de se inspirar (como várias mediações particulares) na ideia de Marx (2010, p. 54) _____. 2010. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo., para quem: "a emancipação humana só estará plenamente realizada quando o homem individual real tiver recuperado para si o cidadão abstrato e se tornado ente genérico na qualidade de homem individual na sua vida empírica".

O poder de desinstitucionalização

A fim de pensar quais são as condições possíveis de tal recuperação, devemos refletir sobre o que pode realmente significar a afirmação da necessidade de existência de uma dimensão necessariamente "antipredicativa" do reconhecimento. Como foi dito anteriormente, há uma perspectiva política que nos leva a acreditar que as lutas políticas caminham necessariamente para a institucionalização de direitos adquiridos. Assim, lutamos para ter direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico. Como resultado desse princípio, cada vez mais a vida social é institucionalizada e regulada por cláusulas que visam dar voz ao direito dos grupos, até então, profundamente vulneráveis. Esse princípio funcionou, por exemplo, para a ampliação de direitos em relação às minorias étnicas, religiosas e sexuais. Ou seja, nesses casos, eram demandas direcionadas ao Estado como ator capaz de garantir a universalização real das condições de liberdade exigidas por seus cidadãos. É inegável que tal processo foi e ainda é importante, mas ele tem como contrapartida o aprofundamento das estratégias de regulação do que poderíamos chamar de "economia libidinal da sociedade capitalista".

Cada vez que a estrutura jurídica fortalece sua presença, mesmo que em nome da defesa de setores mais vulneráveis da população, avança a regulação disciplinar da vida. A estrutura do direito determina as formas possíveis que a vida pode tomar, os arranjos que as singularidades podem criar. Elas fazem das formas de vida aquilo que previamente tem o molde da previsão legal. Tal processo não se restringe à mutação do ordenamento jurídico, mas fortalece institucionalmente o enquadramento da produção da diferença no interior de um campo cultural no qual a exploração capitalista pode se colocar como gestão da "economia libidinal". Pois a sensibilização jurídica à diferença é sempre acompanhada de um processo de nomeação das formas sociais do desejo, e tal nomeação, se, por um lado, dá visibilidade a grupos vulneráveis à violência social, por outro, parte da gramática das identidades já em circulação. Gramática que pode aceitar toda e qualquer identidade, desde que ela encontre um lugar dentro de um campo geral de regulação social das diferenças. Nesse sentido, há uma estratégia política importante que passa pela desativação dos nomes. Maneira de afirmar que o poder nada pode dizer sobre a diferença, que ele não pode explorar libidinalmente sua economia e, por isso, deve liberá-la de sua nomeação institucionalizada19 19 Desenvolvi este ponto em Cinismo e falência da crítica (Safatle, 2008, cap. 4). . É o caso de lembrarmos aqui a proposição de Jacques Lacan a respeito da inadequação radical do sujeito (pensado a partir da centralidade do desejo) em relação às estruturas de nomeação e pensar as consequências políticas de tal inadequação. Ela nos leva à procura de uma diferença impredicável que pode aparecer como portadora de forte função política.

Diante desses casos, devemos procurar desenvolver estratégias de reconhecimento que passem ao largo dos mecanismos de institucionalização. Estratégias que passem, ao contrário, por uma profunda desinstitucionalização, através da qual não se trata de ampliar o direito mas, de certa forma, de atrofiá-lo. Há uma forma de reconhecimento antipredicativo através da desinstitucionalização que retrai e desativa o ordenamento jurídico, abrindo: "a possibilidade de uma existência humana fora do direito" (Agamben, 2011, p. 151AGAMBEN, G. 2011. De la très haute pauvreté: règles et formes de vie. Paris: Rivages.). Esse topos de uma vida para além do direito, tão presente em reflexões como as de Giorgio Agamben acerca da forma possível de um "poder destituinte", pode ser apropriado por uma teoria do reconhecimento que esteja disposta a dar um espaço fundamental à irredutibilidade de experiências de indeterminação subjetiva, assim como pensar as consequências políticas de tais experiências20 20 Nesse sentido, só poderíamos estar de acordo como uma afirmação, como esta de Giorgio Agamben (2013, p. 61) : "se os homens, em vez de procurarem ainda uma identidade própria na forma imprópria e insensata da individualidade, conseguissem aderir a essa impropriedade como tal, fazer do próprio ser-assim não uma identidade e uma propriedade individual, mas uma singularidade sem identidade, uma singularidade comum e absolutamente exposta - isto é, se os homens pudessem não ser-assim, nesta ou naquela identidade biográfica particular, mas ser o assim, a sua exterioridade singular e o seu rosto, então a humanidade teria acesso pela primeira vez a uma comunidade sem pressupostos e sem sujeitos, a uma comunicação que não conheceria mais o incomunicável". . Ele nos coloca diante de uma anomia que não pode ser pensada simplesmente como processo de enfraquecimento da capacidade de coesão e organização das normas sociais, como vemos em modelos que nos remetem às discussões de Durkheim (2005)DURKHEIM, E. 2005. Le suicide. Paris: PUF. em Le suicide. Processo de enfraquecimento que produziria uma desregulação das normas sociais paga com patologias ligadas ao sentimento de esvaziamento e à incapacidade de ação21 21 Ver, por exemplo, Honneth (2012, pp. 207-08) . . O que temos aqui é uma anomia que fortalece o campo político por sua abertura para além do direito.

Quando alguém levanta tal ideia, alguns acabam por ver nela uma forma insidiosa de liberalismo. Ou seja, tudo se passa como se estivéssemos diante de uma aplicação do velho mantra: "quanto menos Estado, melhor". Nesse sentido, desinstitucionalizar significaria deixar a sociedade livre para criar formas de vida, mas fechando os olhos para experiências de opressão e de vulnerabilidade econômica. No entanto, poder-se-ia pensar em uma versão de políticas de desinstitucionalização distinta de sua versão liberal. Dessa forma, "desinstitucionalizar" significa criar algo como "zonas de indiferença cultural", ou seja, zonas no interior das quais a sociedade exercite sua indiferença em relação às diferenças culturais e suas determinações antropológicas. Isso pode passar, por exemplo, pelo retraimento das legislações sobre costumes, família e autodeterminação, ao mesmo tempo que procuramos fortalecer a sensibilidade jurídica contra processos de espoliação econômica. Pois o reconhecimento dos problemas de redistribuição como problemas que exigem ser abordados em sua especificidade serve aqui para não defender modos que os submetam à mesma lógica que as questões próprias à diferença cultural. O que nos leva ao sintagma: forte regulação das relações econômicas e fraca regulação das relações sociais. Pode-se mesmo dizer que os problemas de redistribuição devem ser profundamente regulados no interior do ordenamento jurídico, isto para que os processos de reconhecimento possam se desenvolver em uma zona de indiferença na qual o direito se torna inoperante.

Essa ideia de um processo de desinstitucionalização capaz de criar zonas de indiferença nasce de uma apropriação, reconhecidamente heterodoxa, da noção de que a luta de classes e o proletariado, em sua versão presente nos textos de Marx, não são apenas conceitos capazes de operacionalizar o embate social por justiça econômica. São conceitos que propiciam também pensar a respeito da entrada em cena de uma força de desdiferenciação no campo político. Tal força é ainda fundamental para a produção de sujeitos políticos e só pode ser reconhecida em sua potência produtiva com o retraimento do espaço do direito. Um retraimento capaz de permitir a produção indiferente de formas singulares de vida.

Tomemos um exemplo paradigmático: a desinstitucionalização do casamento. Nossas sociedades contemporâneas são atravessadas por questões justas ligadas à ampliação do direito ao casamento para casais homossexuais, criando com isso a exigência de ordenamentos jurídicos igualitários no que diz respeito ao direito de casamento. No entanto, uma perspectiva realmente mais consequente deveria radicalizar tal demanda, afirmando que cabe ao Estado simplesmente deixar de legislar sobre a forma do matrimônio, guardando-se para legislar única e exclusivamente sobre as relações econômicas entre casais ou outras formas de "agrupamentos afetivos". Essa seria uma maneira de radicalizar o princípio de abertura do casamento a modelos não ligados à estrutura disciplinar da família heterossexual burguesa, com seu modo de gestão biopolítica da vida. Em vez de ampliar a lei para casos que ela não contemplava (como os homossexuais), dever-se-ia simplesmente eliminar a lei, criando uma zona de indiferença desinstitucionalizada.

O contra-argumento clássico consiste em dizer que, ao deixar de legislar sobre a forma do casamento, o Estado desguarnece aqueles que são mais vulneráveis (no caso, as mulheres). Há, no entanto, um problema maior. A despeito de legislar sobre questões de sua alçada (como as relações econômicas no interior da família, o problema da posse dos bens em caso de separação, direito de pensão etc.), o Estado legisla sobre aquilo que não lhe compete (a forma das escolhas afetivas dos sujeitos, ou seja, a plasticidade singular das formas de vida em mutação e produção). O Estado, com seu ordenamento jurídico, deve legislar sobre questões de ordem econômica, não sobre questões de ordem afetiva. Mas o casamento não é simplesmente um contrato econômico. Ele é, ou ao menos deveria ser, o reconhecimento de um vínculo afetivo produzido como expressão singular do circuito dos afetos de sujeitos emancipados. Nesse sentido, nada impede que o Estado legisle sobre as questões estritamente econômicas no casamento e nas uniões estáveis, calando-se sobre a forma dessas uniões (se entre um homem e uma mulher, duas mulheres, duas mulheres e um homem etc.). Ou seja, no que diz respeito a formas afetivas, não cabe ao ordenamento jurídico predicar previamente os possíveis, mas acolher as efetivações múltiplas dos possíveis. Do ponto de vista do direito, tal multiplicidade deve ser indiscernível.

Esses processos de desinstitucionalização permitem às sociedades caminharem paulatinamente para um Estado de indiferença em relação a questões culturais e de costumes. Pois questões culturais sempre serão espaços de afirmação da ordenação múltipla de identidades. Mas a política deve, no horizonte, se descolar dessa afirmação. Por mais que isso possa parecer contraintuitivo, a verdadeira política está sempre para além da afirmação das identidades. Ela inscreve em estruturas sociais amplas modalidades antipredicativas de reconhecimento que encontram sua manifestação em dimensões sociais da linguagem e do desejo marcadas pela produção singular de circulação do que não se deixa experimentar sob a forma do próprio.

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  • 1
    A natureza de tal política estava clara no pronunciamento do então Primeiro-Ministro Pierre Elliot Trudeau na ocasião da apresentação da lei: "Uma política multiculturalista no interior de um quadro de defesa do bilinguismo aparece ao governo como a melhor maneira de assegurar a liberdade cultural dos canadenses. Tal política deve auxiliar a diminuir atitudes discriminatórias e ciúmes culturais. Se a unidade nacional significa algo no sentido pessoal profundo, este deve ser encontrado na confiança na identidade individual própria de cada um; a partir dessa relação, pode crescer o respeito pela identidade do outro e a disposição em partilhar ideias, atitudes e julgamentos. Isso pode formar a base de uma sociedade pautada na justiça para todos. O governo irá defender e encorajar as várias culturas e grupos étnicos que fornecem estrutura e vitalidade à nossa sociedade. Eles serão encorajados a partilhar suas expressões culturais e valores com outros canadenses e, assim, contribuir para uma vida mais rica a todos" (Trudeau, 1971TRUDEAU, P. E. 1971. "Multiculturalism". Disponível em: <http://www.canadahistory.com/sections/documents/Primeministers/trudeau/docs.onmulticulturalism.htm>. Acesso em: 20 jul. 2013.
    http://www.canadahistory.com/sections/do...
    ).
  • 2
    É nesse sentido que podemos ler uma afirmação como a de Zizek (2006, p. 35ZIZEK, S. 2006. "Multiculturalismo: a lógica cultural do capitalismo". In: AIDAR, J L. . (org). Zizek crítico. São Paulo: Hacker.): "De fato, já que o horizonte da imaginação social não mais permite que alimentemos a ideia de que o capitalismo um dia desaparecerá - pois, como se poderia dizer, todos aceitam tacitamente que o capitalismo está aqui para ficar -, é como se a energia crítica tivesse encontrado uma saída substitutiva na luta pelas diferenças culturais que deixa intacta a homogeneidade básica do sistema mundial capitalista". Lembremos também de um liberal de esquerda como Richard Rorty (1995), que dirá: "Precisamos pois de uma explicação sobre por que o reconhecimento cultural é visto como tão importante. Penso que uma razão de ele ter se tornado tão importante no discurso da esquerda acadêmica norte-americana vincula-se a um conjunto específico de circunstâncias acadêmicas. A única coisa que nós, acadêmicos, podemos fazer com nossas capacidades profissionais específicas, a fim de eliminar o preconceito, é escrever a história das mulheres, celebrar a realização de artistas negros, entre outros. Isto é o melhor que acadêmicos trabalhando em programas de Estudos feministas, Estudos afro-americanos e Estudos gays podem fazer. Tais programas são os braços acadêmicos de novos movimentos sociais - movimentos que, como Judith Butler disse, mantiveram a esquerda viva nos EUA nestes últimos anos, anos durante os quais os ricos se saíram muito melhor no quesito luta de classes".
  • 3
    Por procurar desde há muito defender tal perspectiva, Honneth (1992, p. 233) _____. 2012. Das ich im wir. Frankfurt am Main: Suhrkamp. diz que, em Marx: "a luta de classes não significa, primeiramente, um afrontamento estratégico, visando à aquisição de bens ou de instrumentos de poder. Ela constitui um conflito moral, cuja questão é a 'emancipação' do trabalho, condição essencial de que depende, ao mesmo tempo, a estima simétrica entre sujeitos e a consciência individual de si".
  • 4
    Ver, a este respeito, os usos do conceito de cuidado (care) no interior do debate político e da definição da natureza das políticas públicas de assistência em Vasset e Viannay (2009) VASSET, P..; VIANNAY, C.2009. "Politiques du care". Multitudes, Paris, n. 37, 38. e em Fassin e Rechmann (2007) FASSIN, D.; RECHMANN,R 2007. L'empire du traumatisme: enquête sur la condition de victime. Paris: Flammarion.. À sua maneira, Alain Badiou (2003) BADIOU, A. 2003. Ethique: essai sur la conscience du mal. Paris: Nous. havia indicado os riscos dessa psicologização do sofrimento social em Ethique: essai sur la conscience du mal. Sobre outros aspectos desse problema, ver ainda Kehl (2005) KEHL, M R . 2005 .Ressentimento. São Paulo: Casa do Psicólogo..
  • 5
    Como dirá Alain Badiou (2007, p. 108) _____. 2007. O século. Aparecida, SP: Ideias e Letras.: "Marx já sublinhava que a singularidade universal do proletariado é não portar nenhum predicado, nada ter, e especialmente não ter, em sentido forte, nenhuma 'pátria'". Essa concepção antipredicativa, negativa e universal do homem novo atravessa o século. Lembremos ainda que: "Em latim, proletarii significa "pessoa prolífica" - pessoa que gera crianças, que meramente vive e reproduz sem nome, sem ser contada como fazendo parte da ordem simbólica da cidade" (Rancière, 1995, p. 67RANCIÈRE, J. 1995. La mésentente: politique et philosophie. Paris: Galilée.).
  • 6
    Sobre este ponto da filosofia hegeliana, tomo a liberdade de remeter ao meu Grande hotel abismo: para uma reconstrução da teoria do reconhecimento (Safatle, 2012_____. 2014. Violência. São Paulo: Boitempo.).
  • 7
    Lembremos a esse respeito da canônica definição de Locke (2005, p. 287) LOCKE, J. 2005. Two treatises of government. Cambridge: Cambridge University Press.: "Ainda que a Terra e todas criaturas inferiores sejam comuns a todos Homens, cada Homem tem a Propriedade de sua própria Pessoa. Ninguém tem direito algum a isto, a não ser ele próprio". Tal articulação entre "pessoa" e "propriedade" servirá de fundamento para uma larga tradição de reflexão que chegará até as discussões recentes sobre a "self-ownership" como atributo fundamental da pessoa (a esse respeito, ver, entre outros, Cohen, 1995COHEN, G A . 1995. Self-ownership, freedom and equality. Cambridge: Cambridge University Press.). Embora este seja um debate de várias matizes, é certo que a tradição dialética de Hegel e Marx tende a lê-lo da maneira esboçada neste artigo.
  • 8
    E que o fato de essa força de desdiferenciação própria ao conceito de proletariado ter ganhado evidência graças a marxistas franceses, como Badiou, Balibar e Rancière, demonstra como algo do descentramento próprio ao conceito lacaniano de sujeito alcançou a política intermediado por ex-alunos de Louis Althusser. No entanto, tal descentramento tem sua matriz na noção de "negatividade", própria ao sujeito hegeliano. Assim, por ironia suprema da história, algo do conceito hegeliano de sujeito acaba por voltar à cena pela influência surda em operação nos textos de ex-alunos deste anti-hegeliano por excelência: Louis Althusser.
  • 9
    Essa é uma maneira de aceitar proposições como: "A coisa toda seria muito simples se houvesse apenas a infelicidade da luta que opõe ricos e pobres. A solução do problema foi encontrada muito cedo. Basta suprimir a causa da dissensão, ou seja, a desigualdade de riquezas, dando a cada um uma parte igual de terra. O mal é mais profundo. Da mesma forma que o povo não é realmente o povo, mas os pobres, as pobres por sua vez não são realmente os pobres. Eles são apenas o reino da ausência de qualidade, a efetividade da disjunção primeira que porta o nome vazio de 'liberdade', a propriedade imprópria, o título do litígio. Eles são eles mesmos, a união distorcida do próprio que não é realmente próprio e do comum que não é realmente comum" (Rancière, 1995, p. 34RANCIÈRE, J. 1995. La mésentente: politique et philosophie. Paris: Galilée.).
  • 10
    Para uma discussão sobre a natureza dessa assimetria de poder na formação das identidades subjetivas e sua agressividade intrínseca, ver Lacan (1996) LACAN, J. 1996. "A agressividade em psicanálise" . In: _____. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar..
  • 11
    Conforme salientou Mauro Basaure (s.d.) BASAURE, M. s.d. "Es la teoría de las luchas por el reconocimiento una teoría de la política?" [não publicado]. em "Es la teoria de las luchas por el reconocimiento uma teoria de la política?".
  • 12
    Ver também, a esse respeito, Fraser (2003, p. 38) FRASER, N.; HONNETH, A 2003 .Redistribution or recognition. New York: Verso..
  • 13
    Ver, a este respeito, a discussão hegeliana sobre as determinações de reflexão na Doutrina da essência (Hegel, 1996_____. 1996. Wissenschaft der Logik II. Frankfurt am Main: Suhrkamp.).
  • 14
    Para Jacques Rancière (2007, p. 238) _____. 2007. Au bord du politique. Paris: Gallimard.: "A política não é, de forma alguma, uma realidade que se deduziria das necessidades de organização dos homens em comunidade. Ela é uma exceção aos princípios segundo os quais tal organização opera".
  • 15
    Trata-se de explorar aqui a ideia, presente inicialmente em Alain Badiou (2009, p. 116) _____. 2009. São Paulo: a fundação do universalismo. São Paulo: Boitempo., de que: "somente é possível transcender as diferenças se a benevolência em relação aos costumes e às opiniões apresentar-se como uma indiferença tolerante às diferenças, a qual tem como prova material apenas poder e saber autopraticar as diferenças".
  • 16
    De maneira bem sugestiva, Laclau (2011) LACLAU, E. 2011. La razón populista. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica. propõe pensar tal relação entre particular e universal no interior das lutas políticas tomando a noção lacaniana de "objeto pequeno a" enquanto parcialidade que funciona como totalidade, expondo uma totalidade incomensurável e não representável a partir dos padrões aceitos de representação.
  • 17
    Uma perspectiva estritamente hegeliana, que compreendesse sua crítica à estrutura predicativa do conhecimento baseado na percepção (cf. Hegel, 1991), como momento a ser integrado no interior de uma teoria do reconhecimento, chegaria a conclusões semelhantes.
  • 18
    Isso levou Marx (2010, p. 50) _____. 2010. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo. a afirmar: "Nenhum dos assim chamados direitos humanos transcende o homem egoísta, o homem como membro da sociedade burguesa, a saber, como indivíduo recolhido ao seu interesse privado e a seu capricho privado e separado da comunidade".
  • 19
    Desenvolvi este ponto em Cinismo e falência da crítica (Safatle, 2008, cap. 4safatle, V. 2008. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo.).
  • 20
    Nesse sentido, só poderíamos estar de acordo como uma afirmação, como esta de Giorgio Agamben (2013, p. 61) AGAMBEN, G. 2011. De la très haute pauvreté: règles et formes de vie. Paris: Rivages.: "se os homens, em vez de procurarem ainda uma identidade própria na forma imprópria e insensata da individualidade, conseguissem aderir a essa impropriedade como tal, fazer do próprio ser-assim não uma identidade e uma propriedade individual, mas uma singularidade sem identidade, uma singularidade comum e absolutamente exposta - isto é, se os homens pudessem não ser-assim, nesta ou naquela identidade biográfica particular, mas ser o assim, a sua exterioridade singular e o seu rosto, então a humanidade teria acesso pela primeira vez a uma comunidade sem pressupostos e sem sujeitos, a uma comunicação que não conheceria mais o incomunicável".
  • 21
    Ver, por exemplo, Honneth (2012, pp. 207-08) _____. 2012. Das ich im wir. Frankfurt am Main: Suhrkamp..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2015

Histórico

  • Recebido
    10 Nov 2014
  • Aceito
    20 Fev 2015
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