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A TEORIA VIVIDA (COMO PSICOSE): OBJETIVISMO, SUBJETIVISMO E ESQUIZOFRENIA1 1 Agradeço a dois pareceristas anônimos de Lua Nova por seus comentários críticos à primeira versão deste artigo, bem como ao editor Bruno Konder Comparato por reconhecer no texto um trabalho de teoria social em diálogo com a psicologia clínica, não o reverso.

THE EXPERIENCE OF THEORY (AS PSYCHOSIS): OBJECTIVISM, SUBJECTIVISM AND SCHIZOPHRENIA

Resumo

A relação entre os poderes de ação do indivíduo e os poderes condicionantes da sociedade não constitui apenas uma questão teórica das ciências sociais, mas um problema existencial que se impõe, na prática, a todo ser humano. Com base nessa premissa, o trabalho aplica à dicotomia subjetivismo/objetivismo na teoria social uma tese da psicopatologia fenomenológica, i.e., a ideia de que algumas formas de doença mental consistem em atitudes intelectuais existencialmente vividas. No “objetivismo” esquizofrênico, os indivíduos experimentam a si próprios como os “fantoches” das teorias hiperdeterministas. O “subjetivismo” psicótico envolve, por seu turno, uma inflação delirante do senso de controle do mundo que leva ao paroxismo as visões “heroicamente” voluntaristas da agência humana. Como parte de um programa de pesquisa em “heurística da insanidade”, o trabalho explora, assim, a relevância da teoria social para a fenomenologia da psicopatologia e vice-versa.

Palavras-chaves:
Teoria social; Esquizofrenia; Fenomenologia; Objetivismo; Subjetivismo

Abstract

The relation between the individual’s powers of agency and the conditioning powers of society constitutes not only a theoretical issue for the social sciences, but also an existential problem that imposes itself, in practice, upon every human being. Based on this premise, the article applies to the subjectivism/objectivism dichotomy in social theory a thesis from psychopathological phenomenology, i.e., the idea that some forms of mental illness consist in existentially lived intellectual attitudes. Within schizophrenic “objectivism”, individuals experience themselves as the “puppets” of hyper-deterministic theories. Psychotic “subjectivism” involves, on the other hand, a delusional inflation of one’s sense of control over the world that epitomizes the “heroically” voluntaristic views of human agency. As part of a research program in the “heuristics of insanity”, the article explores, therefore, the relevance of social theory to the phenomenology of psychopathology and vice-versa.

Keywords:
Social theory; Schizophrenia; Phenomenology; Objectivism; Subjectivism

Introdução

Este estudo integra um programa mais abrangente de investigações, o qual se volta não apenas à mobilização de ferramentas analíticas da teoria social no exame de psicopatologias, mas também às valiosas lições que a elucidação de psicopatologias abriga para problemas centrais na teoria social. A despeito da relativa aceitação de que interpretações da loucura podem se basear em concepções de agência e subjetividade oriundas de teorias influentes nas ciências sociais, a relevância de retratos da loucura para as caracterizações do agente humano na teoria social tem sido, por seu turno, muito menos sublinhada. A exploração analítica dessa relevância está no coração do programa de pesquisa que denomino “heurística da insanidade”, programa que empresta à investigação de experiências insanas na teoria social um papel epistemológico similar àquele já amplamente desempenhado pelos ensinamentos da antropologia cultural e da historiografia. Corporificado em ideias como as de “sensibilidade histórica” (Giddens, 1986GIDDENS, Anthony. 1986. Sociology: a brief but critical introduction. London: Macmillan. , pp. 13-14) e de “imaginação etnológica” (Kurasawa, 2004KURASAWA, Fuyuki. 2004. The ethnological imagination. Minneapolis: University of Minnesota Press.), o valor daqueles ensinamentos para a teoria social se atrela, sobretudo, ao cultivo de um agudo senso da variedade histórico-cultural dos modos de ação e vivência humana. Ao demonstrarem a pluralidade das formas de conduta e experiência exibidas pelo anthropos nas mais diversas esferas da vida social, da organização econômica aos tabus sexuais, o influxo das sensibilidades histórica e etnológica ajuda a manter sob controle a propensão da teoria social a universalizações infundadas, isto é, à falácia de tomar como traços gerais da condição humana o que são particularidades de tais ou quais contextos histórico-culturais.

Este artigo sustenta que, assim como a historiografia e a antropologia cultural, os estudos da loucura, sobretudo quando dirigidos primordialmente a apreendê-la como experiência vivida, também promovem o cultivo de sensibilidade socioteórica às múltiplas modalidades do estar-no-mundo humano. De par com as “sensibilidades” ou “imaginações” histórica e antropológica, a teoria social se beneficiaria em acalentar, assim, uma “sensibilidade psicopatológica”, informada pelo que investigações da insanidade descortinam acerca da diversidade de formas de conduta e vivência humana - sejam elas mais ou menos “(in)felizes”, mais ou menos “(a)normais” ou mais ou menos “(dis)funcionais”, segundo nossas concepções valorativas.2 2 Defender a relevância analítica de estudos da insanidade para a teoria social não significa abraçar, por força, uma visão idealizada ou romantizada da loucura, propensa a menosprezar as dificuldades e sofrimentos muitíssimo reais por ela provocados. De modo análogo, ao recorrer a categorias psiquiátricas como “esquizofrenia” e “psicose” na referência a certas condições psíquicas, a teoria social não precisa dar por resolvidas as agudas controvérsias quanto à validade analítica (p.ex., grau de rigor e cientificidade) e à justificação prática (p.ex., terapêutica ou ético-política) dessas categorias. No que se segue, utilizarei rótulos correntes na psiquiatria atual não porque não os considere problemáticos sob ambos os aspectos, mas, sim, porque minha preocupação fulcral aqui é desenhar um retrato tão fidedigno quanto possível das experiências vividas que aqueles termos procuram (bem ou mal) identificar.

Embora não derive de uma pesquisa empírica direta, a reflexão teórica aqui desenvolvida é informada por um amplo acervo de casos concretos de vivências esquizofrênicas retratadas na literatura psiquiátrica, sobretudo quando advindos de perspectivas voltadas à descrição minuciosa da esquizofrenia qua experiência vivida, tais como a fenomenologia e a psicanálise. As importantes diferenças entre essas abordagens não apagam suas semelhanças, em especial quando suas inclinações “interpretativistas” no trato com o sofrimento psíquico são contrastadas, em conjunto, com o déficit de tratamento da dimensão interpretativa e experiencial que prejudica boa parte da psiquiatria biomédica. Isto dito, por razões que se tornarão mais nítidas logo adiante,3 3 Por um lado, o recurso explanatório da psicanálise a processos inconscientes, como as formações de compromisso entre os impulsos do “isso” e as defesas do “eu” e do “supereu”, já indica seu rechaço de qualquer redução do exame do sofrimento psíquico a uma descrição detalhada da experiência consciente. Por outro lado, desde as narrativas “detetivescas” de Freud sobre diversos casos particulares (“Anna O”, o “homem dos ratos”, o “pequeno Hans”, entre tantos outros), a literatura psicanalítica está de tal modo repleta daquelas descrições pormenorizadas de vivências conscientes que permite inclusive que elas sejam interpretadas a partir de referenciais teóricos distintos. Por exemplo, o fato de que a interpretação teórica de Victor Tausk quanto ao famoso caso da “máquina influenciadora” possa ser questionada com base no relato oferecido por ele próprio, como faremos adiante neste artigo (Cf. Sass, 1992), dá testemunho do seu talento e rigor descritivos. a principal inspiração analítica para o exame dos quadros de esquizofrenia discutidos neste artigo advém das obras de clínicos praticantes orientados por abordagens fenomenológicas e fenomenológico-existenciais, como Eugène Minkowski (1958MINKOWSKI, Eugene. 1958. Findings in a case of schizophrenic depression. In: MAY, Rollo; ANGEL, Ernest; ELLENBERGER, Henri (org.). Existence: a new dimension in psychiatry and psychology. New York: Basic Books. pp. 127-138), Ludwig Binswanger (1977BINSWANGER, Ludwig. 1977. Três formas da existência malograda: extravagância, excentricidade e amaneiramento. Rio de Janeiro: Zahar.), Ronald Laing (1974LAING, Ronald. 1974. The divided self. Harmondsworth: Penguin Books., Thomas Fuchs (2005aFUCHS, Thomas. 2005a. Delusional mood and delusional perception: a phenomenological analysis. Psychopathology, v. 38, pp. 133-139., 2005bFUCHS, Thomas. 2005b. Corporealized and disembodied minds: a phenomenological view of the body in Melancholia and Schizophrenia. Philosophy, Psychology & Psychiatry, v. 12, n. 2, p. 95-107., 2010FUCHS, Thomas. 2010. Phenomenology and psychopathology. In: SCHIMICKING, Daniel.; GALLAGHER, Shaun. Handbook of phenomenology and cognitive science. Dordrecht: Springer. ; 2011FUCHS, Thomas. 2011. The psychopathology of hyperreflexivity. Journal of Speculative Philosophy, v. 24, n. 3, pp. 239-246.) e Louis Sass (1992SASS, Louis. 1992. Madness and modernism. New York: Basic Books .), inter alios.

Subjetivismo e objetivismo como perspectivas teóricas e atitudes existenciais

Graças ao imenso impacto do “novo movimento teórico” (Alexander, 1987ALEXANDER, Jeffrey. 1987. O novo movimento teórico. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 2.) nas ciências sociais das últimas décadas, as noções de “objetivismo” e “subjetivismo”, como abordagens da conduta humana e do mundo societário, podem ser rapidamente passadas em revista. Um propósito central dos esquemas analíticos associados àquele movimento nos anos 1970 e 1980, tais como a praxiologia de Bourdieu (2009BOURDIEU, Pierre. 2009. O senso prático. Petrópolis: Vozes.) e o estruturacionismo de Giddens (2003GIDDENS, Anthony. 2003. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes.), foi a concessão dos pesos explicativos devidos tanto às competências subjetivas do agente quanto às influências condicionantes que ele sofre das estruturas sociais. Tal projeto envolvia, em suma, a superação de abordagens objetivistas e subjetivistas da relação indivíduo/sociedade.4 4 Uma das dificuldades inerentes a um trabalho situado na fronteira entre diferentes disciplinas e correntes de pensamento, como tenciona ser o corrente texto, é o fato de que uma explicitação detalhada daqueles distintos ingredientes analíticos só poderia ser feita às custas de um tremendo desvio do argumento principal - argumento que já é difícil, por si só, de encaixar no espaço de um artigo. Isto dito, embora eu não possa justificar minha preferência pelas críticas particulares da dicotomia objetivismo/subjetivismo tecidas por Giddens e Bourdieu (Peters, 2015), certamente não suponho que estas sejam as únicas disponíveis para o manejo analítico daqueles conceitos e, mais amplamente, das questões substantivas a que eles se referem, questões que aparecem frequentemente sob vocabulários distintos em autores tão variados quanto Durkheim, Weber, Sartre ou Foucault. Formas objetivistas de conhecimento do social sublinhavam a existência de circunstâncias estruturais da ação humana que escapam à consciência e à vontade dos indivíduos, assim como o fato de que o mundo societário penetra nos recantos mais íntimos de suas subjetividades. Em terminologia menos técnica, o objetivismo veiculava um retrato do indivíduo humano como, em larga medida, dominado por forças exteriores à sua intencionalidade consciente.5 5 A fórmula é um tanto palavrosa, mas serve para acentuar que a “exterioridade” em jogo não é apenas aquela de forças exteriores à subjetividade como tal (a exterioridade em sentido durkheimiano), mas também inclui processos internos à subjetividade, porém “exteriores” à autoidentidade e ao controle intencional do sujeito - a exterioridade em sentido freudiano, por assim dizer (Frankfurt, 1988; Graham e Stephens, 2000). Faltaria ao objetivismo, segundo seus críticos, um senso mais agudo da dependência histórica que as estruturas sociais têm das práticas de agentes motivados e hábeis. Correlativamente, entre abordagens objetivistas, o fato de que os indivíduos são fundamente penetrados pela influência social terminava por levar a uma concepção que os reduzia erroneamente a matérias passivas ou meras “marionetes” de forças coletivas. Contra essa redução, autores como Bourdieu e Giddens sublinharam que a subjetividade socializada, resultante da experiência de tais ou quais condições estruturais no mundo social, não é um autômato, mas um agente dinâmico impulsionado por vontades e capacitado por habilidades cognitivas e práticas para intervir nos seus ambientes societais.

O reconhecimento de que a conduta no mundo social não é mero efeito mecânico de forças externas, mas um desempenho prático inteligente, fundado em competências complexas, informa as visões subjetivistas do mundo social. No sentido mais frouxo de uma sensibilidade, o “subjetivismo” aparece em qualquer retrato do agente como imbuído de significativo poder na determinação de sua própria conduta socialmente situada. Segundo as perspectivas de síntese na teoria social, se as abordagens subjetivistas se mostram corretamente sensíveis às habilidades que capacitam os agentes a participar da (re)produção da realidade societária, elas pecariam, no entanto, por um defeito inverso ao objetivista: a negligência das influências socioestruturais que pesam sobre a conduta e a experiência dos agentes. Tais influências se apresentam seja como coações externas a eles, seja como características de personalidade que eles internalizam de seu milieu social a partir da socialização.6 6 Segundo as leituras críticas propostas por esses autores, abordagens mais próximas ao subjetivismo incluiriam a fenomenologia social de Schütz, a etnometodologia de Garfinkel, o interacionismo simbólico de Blumer e a microssociologia da ordem interacional de Goffman. Mais inclinadas ao objetivismo estariam, por seu turno, interpretações determinísticas do marxismo, variantes do estrutural-funcionalismo e da teoria sistêmica (de Durkheim a Parsons e Luhmann), e diversos “estruturalismos” (da linguística de Saussure à antropologia de Lévi-Strauss) e “pós-estruturalismos” (e.g., a “gramatologia” de Derrida). A tenacidade da dicotomia entre objetivismo e subjetivismo como problema analítico ou, pelo menos, esquema de leitura crítica na teoria social transparece no fato de que a teoria da estruturação de Giddens e a teoria da prática de Bourdieu, a despeito de suas semelhanças (Peters, 2015), são comumente criticadas como versões sofisticadas de neossubjetivismo (Thompson, 1989) e neo-objetivismo (Peters, 2013), respectivamente. Escapa aos propósitos deste artigo, naturalmente, uma avaliação crítica de quão bem-sucedidos foram Giddens e Bourdieu em seus projetos teóricos de transcendência da dicotomia objetivismo/subjetivismo.

Não são apenas teóricos sociais que formulam concepções da relação entre as capacidades do agente individual e as influências que o mundo lhe impõe. Os próprios atores imersos na vida social sustentam visões implícitas ou explícitas quanto àquela relação, as quais também podem se revestir de inclinações ao “objetivismo” ou ao “subjetivismo”. Nesse sentido, ainda que os termos em si tenham procedência técnica, aproximações ao “objetivismo” e ao “subjetivismo” existem nas mentes dos agentes leigos embebidos no mundo societário, ou seja, nos pressupostos que eles mantêm quanto aos seus poderes de agência e aos poderes dos ambientes sociais que os influenciam. Como sublinhou Archer (1988ARCHER, Margareth. 1988. Culture and agency. Cambridge: Cambridge University Press.), a relação entre agência e estrutura não se impõe apenas como um problema teórico nas ciências sociais, mas também como uma questão existencial vivida na prática pelos seres humanos:

[o] problema da relação entre estrutura e agência não se impõe apenas a acadêmicos, mas a todo ser humano. Pois é parte e parcela da experiência cotidiana nos sentirmos tanto livres quanto coagidos, capazes de moldarmos nosso próprio futuro e, ainda assim, confrontados por coerções poderosas e aparentemente impessoais. Aqueles cuja reflexão leva-os a rejeitar a grandiosa ilusão de serem mestres de fantoches, mas também a…conclusão inerte de que são meras marionetes, têm então a mesma tarefa de reconciliar essa bivalência experiencial […] ao tratar da relação entre estrutura e agência, os teóricos sociais não estão apenas lidando com questões técnicas no estudo da sociedade, mas também confrontando o problema social mais premente da condição humana. (p. X)

A citação indica que faz parte da experiência humana “normal” conjugar, em maior ou menor grau, dois aspectos do “ser sujeito”: ser um agente que produz suas marcas na realidade (“sujeito de”) e ser exposto às influências que a realidade nos impõe (“sujeito a”). Um “equilíbrio” dinâmico entre o “fazer” e o “padecer” na relação do agente humano com o mundo tende a ser, assim, tanto um desiderato na teoria social contemporânea quanto um pressuposto de senso comum acerca do que significa ser humano em condições normais. A aplicabilidade desse modelo de equilíbrio entre atividade e passividade se torna problemática, no entanto, à luz da literatura sobre a esquizofrenia. Essa literatura documenta, sobretudo nos casos de psicose, vivências da relação entre si próprio e o mundo que se afastam daquele equilíbrio experiencial em direção seja a um extremo (o senso inflacionado dos próprios poderes de agência no “subjetivismo” vivido), seja a outro (a experiência objetivista de si como um joguete completo de forças externas, mesmo no domínio dos pensamentos e sentimentos mais íntimos).

Os extremos de objetivismo e subjetivismo foram frequentemente criticados na teoria social pelo seu irrealismo, mas o que aconteceria caso tais extremos “irrealistas” adentrassem a autoconcepção de certas pessoas? Comecemos pelos modelos objetivistas. Como visto, o impulso epistêmico primeiro de abordagens objetivistas é a demonstração de que os seres humanos sabem muito menos do que pensam saber acerca das verdadeiras forças que movem sua conduta, sejam tais forças “leis da história” (segundo as versões mais determinísticas do marxismo), “desejos inconscientes” (segundo a tese psicanalítica de que o ego não é senhor “nem mesmo na sua própria casa”), “estruturas semióticas” (segundo as “críticas do sujeito” de inspiração estruturalista) ou tutti quanti. Em todas as variantes de objetivismo, a ênfase sobre determinações inconscientes do pensamento e da conduta humana se atrela a uma “filosofia da suspeita”, isto é, ao postulado de que a consciência do sujeito se ilude sobre - ou simplesmente ignora - as verdadeiras forças que a propelem. Os mecanismos de produção das ilusões da consciência sobre sua autodeterminação, como a mistificação ideológica ou a repressão intrapsíquica, são identificados a fenômenos distintos nas diferentes perspectivas objetivistas. Em todos os casos, no entanto, é ponto pacífico que o relato sobre as determinações inconscientes da subjetividade é algo que rompe com a concepção que o sujeito tem dos motores da sua conduta.

Como responde o subjetivismo à “crítica do sujeito” de cunho objetivista? O desacordo não incide sobre a concepção que os agentes humanos possuem de si mesmos, segundo a qual eles seriam essencialmente os motores intencionais de suas próprias condutas. A discordância fundamental está no fato de que, enquanto objetivistas sustentam que essa autoconcepção é ilusória, subjetivistas sustentam que ela é acurada, já que os agentes humanos realmente teriam autonomia para responder às condições que encontram nos seus ambientes sócio-históricos. O que ocorreria, no entanto, se um indivíduo tomasse a si próprio, na sua vida cotidiana e no seu trato efetivo com os outros, nos termos do objetivismo mais radical? A ideia de que seus processos subjetivos e suas condutas exteriores são completamente determinadas por forças alheias não seria, nesse caso, uma tese teórica oriunda da retirada dos véus típicos da autoconsciência leiga, mas uma experiência efetivamente vivida. E o que aconteceria, por outro lado, se o senso do indivíduo quanto aos próprios poderes de agência não desaparecesse, mas fosse, ao contrário, ampliado para além de qualquer limite razoável, como nos casos em que o agente sente que seus pensamentos são responsáveis pela existência do universo inteiro? Eis os cenários de objetivismo e subjetivismo vividos que analisaremos. A despeito das diferenças radicais entre tais experiências das próprias capacidades e limites de ação, elas apresentam semelhanças paradoxais: (a) um componente hiper-reflexivo, que tende a ser negligenciado por modelos clássicos da loucura como vitória de forças “dionisíacas” sobre as faculdades autoconscientes da psique; b) uma tendência ao encolhimento do escopo de iniciativas práticas disponível às pessoas afligidas por ambos os tipos de sintoma. Como parte de um programa de pesquisa em “heurística da insanidade”, o trabalho explora, assim, a relevância da teoria social para a fenomenologia da psicopatologia e vice-versa.

O objetivismo vivido

Como seria a experiência de alguém que, para parafrasear a famosa frase de Lévi-Strauss sobre os mitos (2004LÉVI-STRAUSS, Claude. 2004. Mitológicas I. São Paulo: Cosac Naify.), nunca sente que “pensa” seus próprios pensamentos, mas, sim, que seus pensamentos é que “pensam nele”? E quanto a pessoas que vivenciam na prática, com aguda e contínua consciência, a ideia “pós-estruturalista” de que não são elas que falam uma linguagem, mas a linguagem é que fala por meio delas? A tese de que as próprias condutas e/ou vivências são controladas por forças exteriores, completamente independentes do indivíduo, nem sempre é somente um diagnóstico teórico associado a perspectivas objetivistas. Ela constitui uma vivência efetiva entre alguns pacientes de esquizofrenia:

quando estendo a mão para pegar um pente, são minha mão e meu braço que se movem, mas eu não os controlo […]. Eu sento lá vendo-os se moverem, e eles são bastante independentes, o que fazem não tem nada a ver comigo. Sou apenas um fantoche manipulado por cordas cósmicas. Quando as cordas se movem, meu corpo se move sem que eu possa evitar. (Sass, 1992SASS, Louis. 1992. Madness and modernism. New York: Basic Books ., p. 214)

Em vez de eu desejar fazer as coisas, elas são feitas por algo que parece mecânico e assustador porque é capaz de fazer coisas e, no entanto, incapaz de querê-lo ou não querê-lo. (Sass, 1992SASS, Louis. 1992. Madness and modernism. New York: Basic Books ., p. 15)

A força moveu meus lábios. Eu comecei a falar. As palavras vieram prontas para mim. (Gallagher, 2003GALLAGHER, Shaun. 2003. Self-narrative in schizophrenia. In: KIRCHER, Tilo; DAVID, Anthony. In: The self in neuroscience and psychiatry. New York: Cambridge University Press. pp. 336-358., p. 344)

Como os depoimentos indicam, a disjunção intrassubjetiva pode incidir sobre a relação entre os processos mentais do indivíduo (“eu sento lá vendo-os”) e seus movimentos corpóreos (“são minha mão e meu braço que se movem”). Nesses casos, o sujeito é acometido pela perda do senso da própria agência intencional ou, pelo menos, de domínio intencional sobre a conduta de seu corpo (por exemplo, estender o braço para pegar um objeto). Casos mais radicais de objetivismo vivido na esquizofrenia afetam não apenas a experiência dos próprios movimentos corporais, mas o domínio dos pensamentos e sentimentos mais íntimos. Sendo o rótulo “esquizofrenia” um termo guarda-chuva que abarca uma diversidade de condições psíquicas (Bleuler, 1969BLEULER, Eugen. 1969. Dementia praecox or the group of schizophrenias. New York: International Universities Press.), não surpreende que os sintomas envolvendo a perda do senso da autoidentidade se revistam de roupagens variadas. Nas suas formas não psicóticas (as quais, por vezes, precedem a entrada na psicose), a antiga identificação vivida consigo próprio pode ser dissolvida, dando lugar a um estranhamento intenso, mas difuso, em relação a si mesmo: “Tudo o que era meu antigo eu se desfez e desabou, e assim emergiu uma criatura sobre a qual eu não sei nada. Ela é uma estranha para mim” (Sass, 1992SASS, Louis. 1992. Madness and modernism. New York: Basic Books ., p. 215); “Eu me sinto não existente como uma personalidade - um vácuo” (Radovic e Radovic, 2003RADOVIC, Filip; RADOVIC, Susanna. 2002. Feelings of unreality: a conceptual and phenomenological analysis of the language of depersonalization. Philosophy, Psychiatry, & Psychology, v. 9, n. 3, pp. 271-279., p. 271).

Em diversos casos de psicose, por outro lado, a perda vivida de domínio intencional sobre a própria psique não é atribuída a forças impessoais (“algo que parece mecânico”), mas a entidades específicas, como uma pessoa, uma divindade, uma máquina etc. Nos sintomas de “inserção de pensamento”, o sujeito sente que uma pessoa particular (por exemplo, uma celebridade) projeta abruptamente pensamentos em sua mente (Sass, 1999SASS, Louis. 1999. Analyzing and deconstructing psychopathology. Theory & Psychology, v. 9, n. 2, pp. 257-268.). Nos sintomas de “inserção de sentimentos”, indivíduos podem ter suas expressões corpóreo-afetivas arrebatadas por emoções que eles não tomam por correspondentes ao seu verdadeiro estado emocional, mas como projetadas neles por outras pessoas:

Eu choro, lágrimas descem pelas minhas bochechas, e eu pareço infeliz, mas dentro eu sinto uma fria raiva por eles estarem me usando desse modo, e não sou eu quem está infeliz, são eles que estão projetando infelicidade no meu cérebro. Eles projetam em mim o riso, por razão nenhuma, e você não tem ideia do quão terrível é rir, parecer feliz e saber que não é você, mas são as emoções deles. (Mellor, 1970MELLOR, Clive S. 1970. First rank symptoms of schizophrenia. British Journal of Psychiatry, v. 117, n. 536, pp. 15-23., p. 17)

Uma das experiências mais impressionantes de perda sentida de controle sobre a própria conduta foi descrita por Victor Tausk (1992TAUSK, V. 1992. On the origin of the ‘influencing machine’ in schizophrenia. Journal of Psychotherapy Practice and Research, v. 1, n. 2, pp. 185-206.), integrante do primeiro grupo de psicanalistas reunidos ao redor de Freud. “Natalija A”, uma mulher de 31 anos, ex-estudante de filosofia, acreditava estar completamente à mercê de um “aparelho de influenciar” ou “máquina influenciadora”. Segundo ela, tratava-se de um aparato elétrico mantido em Berlim, dotado de uma forma semelhante àquela de um corpo humano (embora sem cabeça) e preenchido com baterias correlativas aos órgãos internos de Natalija. Ao longo de seis anos, continuava a moça, qualquer coisa feita a esse aparelho longínquo era de pronto sentida por ela. Quando o homem supostamente encarregado da máquina a golpeava, Natalija sentia o dolorido golpe na parte correspondente do seu corpo. O manuseio da “genitália” do aparelho provocava nela afecções eróticas, enquanto odores desagradáveis invadiam seu nariz devido a uma substância engendrada pelo equipamento. A máquina influenciadora também lançava em sua mente ideias e imagens, prejudicando a concentração de Natalija em atividades cotidianas (Tausk, 1992TAUSK, V. 1992. On the origin of the ‘influencing machine’ in schizophrenia. Journal of Psychotherapy Practice and Research, v. 1, n. 2, pp. 185-206.). A experiência exemplifica um “objetivismo vivido” na sua forma mais radical. Para oferecer um contraste com outras experiências esquizofrênicas, o indivíduo que experimenta alucinações auditivas e se submete aos comandos de uma voz por temor em desagradá-la (Jenkins, 2004JENKINS, Janis H. 2004. Schizophrenia as a paradigm case for fundamental human processes. In: JENKINS, Janis H.; BARRET, Robert J. (orgs.). Schizophrenia, culture and subjectivity. New York: Cambridge University Press . pp. xxi-xxii.), por exemplo, ainda mantém pelo menos um módico de autonomia ao decidir, embora sob intensa pressão, obedecer às ordens da voz. Tal senso de si próprio como capaz de responder a uma influência exterior era precisamente o que havia desaparecido da experiência de Natalija. Suas vivências não envolviam uma pressão exterior imposta à sua vontade autônoma, mas já afloravam imediatamente, na sua consciência, como epifenômenos do que acontecia com a máquina longínqua.

A interpretação que Tausk (1992TAUSK, V. 1992. On the origin of the ‘influencing machine’ in schizophrenia. Journal of Psychotherapy Practice and Research, v. 1, n. 2, pp. 185-206.) oferece das experiências de Natalija alcançaria significativa influência nas concepções psicanalíticas da psicose. De acordo com o autor, a experiência de privação do domínio sobre a própria subjetividade derivaria de uma “perda de fronteiras do ego” (p. 194) conectada à regressão a um estágio anterior do desenvolvimento psíquico. Natalija estaria revivendo a experiência do bebê que não se concebe ainda como diferente de seu ambiente e tem pouco ou nenhum controle sobre os processos de seu próprio corpo, sendo tão vulnerável que sensações o assaltam como se fossem provocadas por algo que está para além de sua compreensão e seu controle. É interessante notar que essa pintura psicanalítica da esquizofrenia como experiência de dissolução da fronteira entre si e o mundo seria acolhida mesmo em visões críticas à psicanálise e à psiquiatria. O esboroar do principium individuationis, com base no qual o sujeito se experimentava como distinto do mundo, seria festejado por tais visões como uma subversão emancipadora em face dos dispositivos psíquicos de controle característicos da racionalidade ocidental. Antes comemorada por Nietzsche (1992aNIETZSCHE, Friedrich. 1992a. O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das Letras.) como própria à insanidade dionisíaca, a explosão do limite vivenciado entre o “interior” e o “exterior” foi vista como parte da esquizofrenia tanto por psicanalistas ortodoxos quanto por seus críticos libertários à laDeleuze e Guattari (2011DELEUZE, G.; GUATTARI, F. 2011. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. São Paulo: Editora 34.). A discordância entre tais abordagens psicanalíticas e antipsicanalíticas concerniria, assim, não tanto à interpretação da experiência esquizofrênica quanto aos juízos de valor conflitantes acerca dela.

Como demonstrou Sass (1992SASS, Louis. 1992. Madness and modernism. New York: Basic Books .), entretanto, ambas as visões não notam que experiências como a de Natalija, se efetivamente dissolvem o senso de autoidentificação da subjetividade, não levam ao esquecimento de si ou à plena identificação com o mundo. Ao contrário: a própria caracterização que ela ofereceu de sua condição psíquica indica que a estranheza por ela sentida em relação à sua vida subjetiva não neutralizava suas faculdades reflexivas; sua experiência exacerbava uma postura de constante auto-observação. A radicalização de uma atitude autorreflexiva torna problemática, nesse sentido, a interpretação da psicose como regressão a um estágio infantil do desenvolvimento psíquico, já que a falta de senso de diferenciação entre si próprio e o mundo coexiste, nos bebês, com a incapacidade de tomar as suas próprias experiências subjetivas como objeto da sua atenção.

Na sua pintura fenomenológico-existencial da subjetividade humana, Sartre (1997SARTRE, Jean-Paul. 1997. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes .) afirmou que a consciência, ao se dirigir para um objeto específico, já o apreende como não idêntico a ela própria. A consciência do perceptor quanto à sua não identidade com o objeto percebido corresponde ao que autor chama, em O ser e o nada, de “nadificação”. Com base no que foi dito anteriormente, poderíamos acrescentar à perspectiva sartreana a ressalva de que tais percepções “nadificantes” só são possíveis a partir de etapas do desenvolvimento cognitivo posteriores àquele estágio primeiro de experiência indiferenciada descrito por psicanalistas como Tausk. O que mais importa salientar aqui com a referência a Sartre, no entanto, é que o senso de não identificação com seus objetos intencionais, aspecto constitutivo da consciência segundo o autor existencialista, tem de aparecer também quando a consciência toma a si própria por objeto. Ao procurar apreender não tal ou qual objeto do mundo exterior, mas tal ou qual fenômeno transcorrido nela própria, a consciência é obrigada a produzir algum grau de autoestranheza ou, com o perdão da palavra, “autonadificação”. Se quero observar minha própria consciência, tenho de me fracionar interiormente entre uma “parte” minha que observa e uma “parte” minha que é observada. Essa divisão interna, intrínseca à faculdade da consciência humana de refletir sobre si própria, não é banida da mente nas experiências psicóticas de ruptura da autoidentidade. A bem da verdade, o ato mental em que o sujeito toma a si próprio como objeto é, nesses casos, tão intenso e radical que o senso de si como objeto sobrepuja o senso de si como sujeito. Longe de resultar da regressão psíquica a uma etapa infantil do desenvolvimento psíquico, na qual não haveria emergido ainda a consciência da distinção entre a própria subjetividade e o mundo, a experiência de Natalija consiste, portanto, na radicalização do elemento de autodivisão implicado nos atos mais “normais” e “adultos” de objetivação reflexiva de si.

Sem que seja preciso idealizar romanticamente a esquizofrenia, deixando de lado as dificuldades e sofrimentos por ela acarretados, é possível notar que quadros esquizofrênicos como os de Natalija possuem um componente filosófico “vivido”, como se fossem concretizações existenciais de alguns retratos do ser humano pintados pela filosofia. Já vimos que o sujeito com esquizofrenia que experimenta os pensamentos que brotam em sua mente não como “seus” pensamentos, mas como produto de forças anônimas que ele não compreende nem controla, vivencia uma espécie de radical “crítica do sujeito” aplicada a si próprio. O que vários filósofos julgaram descobrir com espanto, após a retirada de diversos véus ilusórios que os seres humanos interpõem entre o modo como se representam e o que efetivamente são, é vivido por certos indivíduos como experiência efetiva. Alguns dos depoimentos de pacientes psicóticos que encontramos anteriormente não diferem muito, para dar somente uma ilustração, da afirmação de Nietzsche segundo a qual “um pensamento vem quando ‘ele’ quer e não quando ‘eu’ quero […] Isso pensa” (Nietzsche, 1992bNIETZSCHE, Friedrich. 1992b. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras .; p. 23; grifo do autor).

É sabido que Aristóteles afirmou que a reflexão filosófica floresce do espanto (thambos) experimentado pelo ser humano diante do mundo que o circunda. Compreensivelmente, quando a subjetividade filosofante dirige seus questionamentos para sua própria existência, ela introduz, com frequência, uma dose de espanto e perplexidade no que eram habitualmente experiências seguras e autoevidentes de identificação consigo mesmo. Se o senso de si é um pressuposto tomado como óbvio na experiência cotidiana, ele é altamente problematizado por auto-observadores crônicos como Montaigne, Hume, James e Valéry. Cada um deles parece ter se dado conta, à sua maneira, de que a autoidentidade é, por assim dizer, como o horizonte: ela recua na medida em que caminhamos na sua direção. Uma vez mais dando testemunho do caráter de “filosofia vivida” que marca certos quadros esquizofrênicos, algumas psicoses progridem de modo similar ao que Valéry denominou “centrifugação de si” (Marx, 1998MARX, William. 1998. The dialogues and ‘Mon Faust’: the inner politics of thought. In: GIFORD, Paul; STIMPSON, Brian (org.). Reading Paul Valéry: universe in mind. Cambridge: Cambridge University Press . pp. 155-169., p. 158).

Anteriormente ao mergulho no delírio, o indivíduo se vê capturado em círculo de retroalimentação entre autoestranhamento e autorreflexão: primeiramente, algum aspecto de sua vivência de si, seja mental (como a imagem de uma criatura semi-humana que pipoca em sua mente), seja corpóreo (o abrir e fechar automático de suas pálpebras), aparece à sua consciência como estranho. Um impulso comum diante desse estranhamento é tomar o fenômeno psíquico estranhado como objeto de reflexão. Por vezes, a reflexão, longe de levar a uma retomada da familiaridade consigo mesmo, acaba reforçando a sensação de estranheza, que reforça o impulso à introspecção problematizadora, que, por sua vez, reforça a sensação de estranheza… e assim por diante. Tal como retratado na psicologia fenomenológico-existencial, este círculo de hiper-reflexão é menos uma entrada na caverna profunda dos conflitos inconscientes do que uma espécie de mirada para o abismo, um processo em que o sujeito busca insistentemente a si próprio somente para se dar conta, com crescente desespero, que um senso seguro da sua própria existência lhe escapa. Sass assimila esse processo psíquico à geometria fractal do que é conhecido como “efeito Droste”, isto é, a

infinita involução ou vertiginoso abismo autorreferencial que ocorre quando dois espelhos são colocados um em frente do outro ou quando uma fotografia mostra uma fotografia em que primeira fotografia aparece, exibindo assim outra fotografia exibindo a si própria, e assim por diante, infindamente. (Sass, 1992SASS, Louis. 1992. Madness and modernism. New York: Basic Books ., p. 225)

“A estátua com insônia”: objetivismo vivido e hiper-reflexividade

Abordagens objetivistas na filosofia e na teoria social tendem tratar as concepções dos próprios agentes imersos na vida societária pelo prisma de uma “hermenêutica da suspeita” (Ricoeur, 1988RICOEUR, Paul. 1988. O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Porto: Rés.): na medida em que o pensamento e a conduta dos seres humanos seriam determinados por forças que eles não compreendem nem controlam, eles estariam essencialmente enganados acerca das verdadeiras fontes causais de suas ações e experiências. O curioso a notar é que, caso os objetivistas tenham razão sobre o fato de que o agente humano “normal” se concebe como mais livre e autodeterminado do que realmente é, as formas esquizofrênicas de “determinismo vivido” que analisamos anteriormente, nas quais os indivíduos experienciam a própria vida subjetiva e prática como epifenômeno de forças anônimas e impessoais, seriam exemplos paradoxais de patologias provocadas por excesso de lucidez. Eis apenas um dos diversos paradoxos existenciais que povoam o objetivismo vivido. Nesta seção, gostaria de me debruçar sobre outra circunstância paradoxal: a impotência e a passividade extremas envolvidas em vivências objetivistas de si não estão relacionadas, no mais das vezes, a uma dissolução das faculdades reflexivas e autoconscientes da mente, mas, ao contrário, a uma espécie de hiper-reflexividade mórbida. A associação entre passividade e hiper-reflexividade no objetivismo vivido impõe um desafio, nesse sentido, tanto às concepções do agente humano na teoria social quanto aos retratos hegemônicos da loucura no pensamento filosófico e científico do Ocidente.

Por um lado, em contraponto à associação entre objetivismo e filosofia da suspeita traçada anteriormente, o acento subjetivista sobre os poderes do agente tende a andar de braços dados, na teoria social, com uma ênfase correlata nas suas faculdades reflexivas, isto é, na sua capacidade de monitoramento e deliberação autoconsciente sobre seus cursos de conduta. Ao enfraquecerem o senso de agência, mas não a própria reflexividade, casos de objetivismo vivido embaralham essa associação: os indivíduos imersos no objetivismo esquizofrênico são, como na experiência de Natalija A, notavelmente reflexivos quanto a si próprios, embora vivenciem essa reflexividade como incapaz de influenciar sua vida subjetiva e prática. A dimensão hiper-reflexiva dos casos de esquizofrenia também escapa, por seu turno, às pinturas mais comuns da loucura no pensamento ocidental, as quais são propensas a conceber a insanidade, nos termos que Nietzsche tomou de empréstimo à tragédia grega (1992aNIETZSCHE, Friedrich. 1992a. O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das Letras.), como vitória das forças “dionisíacas” (irracionais, “selvagens”, “arcaicas” etc.) sobre as faculdades “apolíneas” (racionais, ordeiras, autorreflexivas) da subjetividade. A contraparte desse retrato da loucura como triunfo psíquico de Dionísio sobre Apolo ou, na linguagem cristianizada de Montaigne e Pascal, da “besta-fera” sobre o “anjo” em nossa psique, consiste em um acento sobre a autoconsciência e o autodomínio racional como atributos capitais da sanidade. Sem que seja preciso descambar para uma celebração irracionalista do dionisíaco entre os seres humanos, pode-se perceber, entretanto, uma lacuna imensamente significativa nesse modelo da sanidade e da loucura: a negligência de modos de sofrimento psíquico marcados não pela dissolução, mas pela exacerbação radical da autoconsciência. A partir da crítica a uma das clássicas interpretações psicanalíticas do caso de “Natalija A” e da “máquina influenciadora”, já provemos uma dentre muitas ilustrações disponíveis de tais “psicopatologias da hiper-reflexividade” (Fuchs, 2011FUCHS, Thomas. 2011. The psychopathology of hyperreflexivity. Journal of Speculative Philosophy, v. 24, n. 3, pp. 239-246.). Como a condição humana é pródiga na distribuição de sofrimentos, os círculos infernais da autorreflexão, diferentemente dos círculos do inferno visitados por Dante n’A divina comédia, somam bem mais do que nove. Conquanto nenhuma análise detalhada seja possível aqui, diversos outros exemplos de patologias da hiper-reflexividade poderiam ser mencionados: o caso do insone que, ao perder a confiança na capacidade de seu próprio corpo em mergulhá-lo no sono, monitora atentamente seu estado físico e mental para saber se está relaxando, mantendo assim uma atitude alerta que só prejudica seu relaxamento; o indivíduo com transtorno obsessivo-compulsivo que tem a mente invadida por pensamentos terríveis (como de sua família sendo torturada ou uma imagem blasfema de sexo com o demônio, no caso de uma pessoa intensamente devota) e luta para afastá-los da mente, apenas para observar seu retorno contínuo como “efeito rebote”; o ataque de pânico em que a sensação de morte iminente intensifica a ansiedade, a qual reforça a sensação de morte iminente, que incrementa, por seu turno, a ansiedade e assim por diante; outras formas de “objetivismo vivido” na esquizofrenia, como aquelas que envolvem a escuta alucinatória de vozes.7 7 No seu “Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos”, Freud (1974) inaugurou uma das visões psicanalíticas mais influentes das alucinações auditivas na esquizofrenia: as vozes alucinatórias corresponderiam a impulsos e memórias que se encontravam reprimidos no id, mas lograram dissolver ou driblar as barreiras da cidadela (super)egoica, penetrando na consciência do sujeito. O que é problemático nessa interpretação, contudo, é que a maior parte dos casos registrados de alucinação auditiva não cabe no modelo de fantasias primárias que desagradariam às demandas morais interiorizadas no superego. Em vez de impulsos e lembranças reprimidos que escaparam do id, o feitio das vozes alucinatórias lembra mais aquele superego hipertrofiado que o mesmo Freud (1974:) identificara em pacientes melancólicos: uma instância impiedosa de críticas contínuas ao que o ego faz ou deixa de fazer. Segundo autores diversos (Mellor, 1970; Sass, 1992), as alucinações auditivas mais frequentes na esquizofrenia tendem a se encaixar em três tipos: (1) uma voz provê comentários ao que o sujeito faz, seja simplesmente descrevendo seus comportamentos, seja condenando-os ou ridicularizando-os; (2) duas ou mais vozes se engajam em uma discussão a respeito da conduta do indivíduo; (3) o indivíduo escuta seus próprios pensamentos, quer simultaneamente, quer imediatamente depois de pensá-los. Nos três “estilos” de alucinação auditiva, a esquizofrenia não oblitera a reflexividade do indivíduo (sua capacidade de tomar a si mesmo como objeto de atenção), mas, ao contrário, consiste em uma modalidade exacerbada de auto-objetivação.

O subjetivismo vivido: autoconsciência “epistemológica”, grandiosidade solipsista e terror apocalíptico

Nas seções anteriores, tratamos de casos de “objetivismo vivido” nos quais os indivíduos perdem, inteiramente ou em grande medida, o senso de si próprios como agentes dotados de algum domínio intencional sobre a própria conduta e experiência. Nesses casos, a ideia objetivista de que os sujeitos humanos são governados por forças exteriores que eles não controlam, sejam elas anônimas e impessoais, sejam elas conscientemente identificadas pelo sujeito, deixa de ser uma crítica teórica às ilusões da autoconsciência para se tornar uma vivência autoconsciente. Quanto à contraparte de tais vivências, a saber, o “subjetivismo vivido”, dele também há registros na literatura que documenta essas experiências variadas do mundo e de si classificadas como “esquizofrênicas”. As formas mais mitigadas de “subjetivismo vivido” assumem um feitio, por assim dizer, “epistemológico”: a consciência se torna a máxima realidade em face da qual os objetos e pessoas percebidas adquirem o status de meras ilusões ou aparências. A solidez ontológica normalmente atribuída à realidade objetiva pode dar lugar a uma sensação de irrealidade, de presença fantasmática, no mesmo passo em que o indivíduo se torna agudamente ciente do papel da sua subjetividade nos modos pelos quais seu mundo é percebido. Rompendo com o realismo perceptual ingênuo característico do trato “dóxico” (Husserl/Bourdieu) com as entidades do mundo da vida, o indivíduo obedece a uma espécie de compulsão hiper-reflexiva que o leva o prestar detalhada atenção às condições internas de possibilidade de suas percepções - por exemplo, no caso de um paciente que não conseguia parar de se conscientizar do seu próprio olho quando olhava para objetos (Fuchs, 2010FUCHS, Thomas. 2010. Phenomenology and psychopathology. In: SCHIMICKING, Daniel.; GALLAGHER, Shaun. Handbook of phenomenology and cognitive science. Dordrecht: Springer. ). Uma das consequências dessa “fenomenologia” in actu é uma subjetivização crescente da experiência do universo circundante, subjetivização oriunda, nesse caso, não de uma epoché instaurada com esforço, mas de um senso agudo do papel da própria mente na constituição dos objetos que a ela aparecem, sobre os quais passa a pairar aquele senso de irrealidade ou artificialidade (Chung, 2007CHUNG, Man Cheung. 2007. Conceptions of schizophrenia. In: CHUNG, Man Cheung; FULFORD, Bill; GRAHAM, George. Reconceiving schizophrenia. New York: Oxford University Press.).

Tal como as abordagens objetivistas, o subjetivismo é frequentemente criticado na teoria social como irrealista, ainda que por um motivo reverso: em vez de menosprezarem as capacidades de ação dos seres humanos em face de seus contextos, as perspectivas subjetivistas subestimariam o peso de tais contextos na conduta do anthropos. Como sucede com o objetivismo, a “falácia” subjetivista pode assumir uma forma existencialmente vivida: se a “normalidade” psicológica envolve uma concepção relativamente equilibrada dos próprios poderes e limites de ação, certas formas de subjetivismo vivido na psicose acarretam uma inflação delirante do senso da própria agência. Enquanto o objetivismo psicótico corrói a noção de si como alguém capaz de produzir intencionalmente consequências no mundo, a psicose subjetivista amplia espetacularmente a avaliação dos próprios poderes:

Um paciente acreditava que o seu olhar era uma espécie de feixe de radar que movia as pessoas ou as tornava pálidas e assustadas; um segundo sentia que podia controlar o clima através de mudanças no seu humor interno; uma terceira sentia que, por meio de um fluido eletromagnético, ela estava causando todas as mortes, doenças e catástrofes do mundo. (Sass, 1992SASS, Louis. 1992. Madness and modernism. New York: Basic Books ., p 271)

No mais das vezes, tal senso delirantemente inflacionado dos próprios poderes não leva o sujeito à serenidade impassível de uma divindade autossatisfeita. Longe disso: a convicção de que a própria subjetividade governa gigantescas porções da realidade assoberba o indivíduo psicótico com uma sensação agoniada de responsabilidade ontológica, como nos casos de pacientes que acreditavam que suas mortes acarretariam o desaparecimento de todas as outras consciências no universo (Sass, 1992SASS, Louis. 1992. Madness and modernism. New York: Basic Books .) ou até mesmo do universo inteiro. A grandiosidade solipsista é propensa a conduzir, nesse sentido, a uma espécie de pânico apocalíptico, uma sensação aterrorizada de que tudo pode desaparecer caso o sujeito não exerça controle apropriado sobre seus pensamentos e ações. De modo paradoxal, o sentimento de expansão dos poderes da própria subjetividade em relação ao destino da realidade in toto empurra o psicótico, assim, para uma redução autoinflingida da sua liberdade de pensamento e ação. Uma consciência dotada de poder sobre o destino do mundo termina instada a controlar rigidamente a si própria, de modo a exercer apropriadamente aquele poder. Em alguns casos, por exemplo, o sujeito acredita que a continuidade da realidade depende de que ela seja continuamente representada na sua consciência: “eles precisam de alguém para manter o mundo; o mundo tem de ser representado ou o mundo desaparecerá” (Sass, 1992SASS, Louis. 1992. Madness and modernism. New York: Basic Books ., p. 303). Em outros, o senso delirante de domínio sobre a (in)existência do mundo engendra algum tipo de ritual supersticioso, como na vivência de um paciente catatônico que se via forçado a fazer girar “a roda do mundo” realizando, ele próprio, contínuos movimentos circulares ou, ainda, no caso de um sujeito que permanecia horas a fio em uma única posição (com um braço erguido e sustentando-se na ponta dos pés) para impedir a destruição do mundo: “Se eu conseguir ficar em um perfeito estado de suspensão, suspenderei o movimento da Terra e interromperei a marcha do mundo para a destruição” (Sass, 1992SASS, Louis. 1992. Madness and modernism. New York: Basic Books ., p. 303). Nas palavras de outro paciente:

Você não pode imaginar quão aterrorizante é se dar conta de que você está num mundo… onde tudo o que você precisa fazer é conceber alguma coisa para que ela se torne realidade. […] O que realmente me aterrorizava era quando eu podia conceber arrancar o mundo do seu eixo. Você sabe como se sentiria se tivesse esse tipo de poder? (Sass, 1992SASS, Louis. 1992. Madness and modernism. New York: Basic Books ., p. )

Teorias vividas

De um lado, o objetivismo vivido: a consciência como tal não desaparece, mas o sujeito não mais reconhece as ideias e sentimentos que pipocam nessa consciência como “suas” ideias e “seus” sentimentos. A vivência aguda de “alienação introspectiva” (Graham e Stephens, 1994GRAHAM, George; STEPHENS, G. Lynn (org.). 1994. Philosophical psychopathology. Cambridge, MA: MIT Press., p. 92) pode ser atribuída à perda de controle de si para algum mecanismo anônimo (por exemplo: “sou apenas um fantoche manipulado por cordas cósmicas”) ou para alguma entidade definida (como um apresentador de TV). De outro lado, o subjetivismo vivido: em vez de uma invasão da própria subjetividade por forças estranhas, o que ocorre é uma espécie de subjetivização do real. Em alguns casos, o senso da realidade exterior como indubitavelmente existente dá lugar a uma consciência continuamente alerta quanto ao seu próprio papel na constituição dos fenômenos que a ela aparecem. Essa espécie de subjetivismo “epistemológico” ou “kantianismo vivido” pode desembocar também em vivências mais radicais de subjetivismo “ontológico”, nas quais brota a crença delirante de que a própria subjetividade é capaz de produzir, por si só, efeitos na realidade: “este evento acontece porque eu o penso”; “para manter o mundo funcionando, eu não posso parar de pensar” (Sass, 1992SASS, Louis. 1992. Madness and modernism. New York: Basic Books ., p. 325). No entanto, em contraste com quaisquer celebrações “empoderadoras” do agente individual em perspectivas subjetivistas na teoria social, os casos esquizofrênicos de subjetivismo vivido se mostram tão restritivos ou mesmo incapacitantes quanto suas contrapartes objetivistas. Delírios psicóticos de grandeza, nos quais o indivíduo toma sua psique como coextensiva ao mundo inteiro ou causalmente responsável pela manutenção do universo, não costumam levar a um solipsismo sereno, mas, ao contrário, a um terror apocalíptico diante dos próprios poderes destrutivos. No fim das contas, as formas psicóticas de objetivismo e subjetivismo terminam por redundar ambas na restrição da iniciativa dos agentes afetados: no primeiro caso, devido à experiência da ausência de controle sobre si; no segundo, pela crença de que os próprios poderes são tão gigantescos que precisam ser cuidadosamente mantidos sob controle.

Ao sustentar que a relação entre “agência” e “estrutura” não é um problema exclusivo à teoria social, mas uma questão existencial implicada na própria condição humana, Archer (1988ARCHER, Margareth. 1988. Culture and agency. Cambridge: Cambridge University Press.) destacou que “é parte e parcela da experiência cotidiana nos sentirmos tanto livres quanto coagidos, capazes de moldarmos nosso próprio futuro e, ainda assim, confrontados por coerções poderosas e aparentemente impessoais” (p. X). Quando a autora se refere, porém, às tentativas de dar inteligibilidade a essa “bivalência experiencial” por meio dos caminhos igualmente insatisfatórios do objetivismo (“a grandiosa ilusão” dos que se consideram “mestres de fantoches”) e do subjetivismo (“a conclusão inerte” dos que se acham “meras marionetes”), Archer alude, sobretudo, à dicotomia que marcou a teoria social após a derrocada da hegemonia de Parsons, às vésperas do “novo movimento teórico” do qual a própria autora viria a fazer parte nos anos de 1980. Tal qual ocorre com o filósofo que acredita ser impossível provar a existência do mundo exterior à sua mente, mas não hesita em adentrar os aposentos pela porta em vez de tentar atravessar paredes, os excessos objetivistas e subjetivistas da teoria social tendem a ser vistos como posições estritamente intelectuais, situadas a uma distância segura das rotinas experienciais da vida cotidiana. Como mostrou Laing (1974LAING, Ronald. 1974. The divided self. Harmondsworth: Penguin Books.), é essa distância que se vê severamente diminuída ou mesmo aniquilada em certos casos de esquizofrenia. O autor escocês notou que as dificuldades práticas de diversos de seus pacientes derivavam do fato de que eles levavam visceralmente a sério, nos cenários de sua vida ordinária, precisamente aquelas dúvidas que os filósofos se acostumaram a acalentar tranquilamente em seus gabinetes, abandonando-as na hora do almoço: “Que garantia tenho de que o mundo realmente é tal como aparece à minha percepção?”; “Como posso ter certeza de que as pessoas com quem interajo são realmente dotadas de vida subjetiva, em vez de simples autômatos?”; “Sou eu mesmo a pensar ou há ‘algo’ que pensa ‘dentro’ de mim?”, e assim por diante. De modo análogo ao “ceticismo vivido” surpreendido por Laing entre seus pacientes, algumas experiências da relação entre os próprios poderes de ação, de um lado, e as influências condicionantes impostas pelo mundo, de outro, são concretizações existenciais, efetivamente vividas, das “ilusões” objetivistas e subjetivistas.

A loucura como experiência e representação: questões remanescentes para uma heurística sociológica da insanidade

O modo pelo qual este artigo discutiu um conjunto de experiências peculiares do mundo e de si, comumente designadas pela psiquiatria por meio da categoria “esquizofrenia”, difere daquele é mais habitual em discussões da loucura desde o ponto de vista das ciências sociais. Como lembrou um parecerista anônimo deste artigo, “a não incorporação da psicopatologia como campo de reflexão matizador da teoria social (em contraponto com a história e antropologia, citadas na introdução) se relaciona com a profunda assimetria de poder entre as ciências ‘humanas’ e ‘biomédicas’, bem como a história de violência constitutiva destas últimas”. O lembrete é muito bem-vindo, ajudando a dar sentido ao fato de que tanto da energia crítica das ciências sociais foi dedicado a desancar as autocomplacências da psiquiatria como discurso e instituição, mediante a recuperação dos seus condicionantes sócio-históricos (como preconceitos socioculturais de cunho sexista e homofóbico se traduziram em diagnósticos pretensamente científicos), assim como de seus efeitos performativos - por exemplo, a demonstração detalhada de que os comportamentos de um indivíduo no manicômio, os quais são tomados pelos psiquiatras como sintomas psicopatológicos, são respostas perfeitamente inteligíveis para qualquer agente que se visse internado, contra sua vontade, em uma “instituição total” (Goffman, 1996GOFFMAN, E. 1996. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva .).

Se há uma lição a extrair de abordagens históricas e sociológicas da loucura que vão de Howard Becker (1963BECKER, Howard. 1963. Outsiders: studies in the sociology of deviance. New York: Free Press.) a Michel Foucault (1978FOUCAULT, Michel. 1978. História da loucura. São Paulo: Perspectiva.), passando por Erving Goffman (1996GOFFMAN, E. 1996. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva .) e Ronald Laing (1967LAING, Ronald. 1967. The politics of experience and the bird of paradise. London: Penguin Books.), trata-se dessa dimensão performativa - diríamos hoje - dos rótulos psiquiátricos, capazes de afetar profundamente as próprias subjetividades que pretendem descrever. Reconhecer essa performatividade dos rótulos psiquiátricos não significa, por outro lado, que tenhamos de reduzir toda a realidade das condições psíquicas referidas por termos como “esquizofrenia” a nada além de efeitos performativos de tais rótulos. O princípio se estende aos sofrimentos inerentes à loucura. Por um lado, não resta dúvida de que muitos desses sofrimentos, por vezes os mais terríveis deles, derivam dos próprios modos pelos quais regimes sociais de saber-poder respondem aos indivíduos que classificam como loucos, classificações que frequentemente travestem preconceitos morais sob uma roupagem pretensamente científica. Por outro lado, reconhecer esse fato não leva necessariamente à suposição de que as dificuldades existenciais dos “loucos” simplesmente desapareceriam caso parássemos de utilizar rótulos psiquiátricos para descrevê-las. De modo similar, o registro e a explicação históricos das violências perpetradas em nome da instituição psiquiátrica permanecem tarefas centrais às ciências sociais, desde que não deem ensejo, a meu ver, à suposição errônea de que a psiquiatria seja simplesmente uma oferta sem demanda - a qual decerto existe na forma das extraordinárias dificuldades enfrentadas por indivíduos que, afligidos por sofrimento psíquico grave, procuram cuidado e atenção psicossocial. Como perceberam idealizadores da reforma psiquiátrica em países como Brasil e Itália, a luta por uma sociedade sem manicômios e, mais amplamente, pela superação da lógica manicomial não implica, por força, o abandono de pessoas com sofrimento mental grave à sua própria sorte, mas o desenvolvimento de formas transformadas de cuidado e atenção psicossocial (e.g., com a intensificação da participação ativa e democrática dos “loucos” no seu próprio cuidado e na comunidade mais ampla).

Isso nos traz a outros dois conjuntos de complexas questões trabalhadas anteriormente: a relação entre teoria social, fenomenologia e psicanálise na elucidação das formas vividas de objetivismo e subjetivismo; o projeto de uma investigação dessas experiências que escape tanto à sua redução simplista a mero déficit quanto a uma romantização que negue o que há de intenso - por vezes, extremo - sofrimento naquelas experiências. Vejamos.

Ao contrapor um olhar informado pela teoria social e pela psiquiatria fenomenológico-existencial, de um lado, às interpretações psicanalíticas desenvolvidas por autores como Freud e Tausk, de outro, meu propósito fulcral foi o de sublinhar contrastes importantes (e.g., entre as modalidades apolínea e dionisíaca de loucura), não o de propor qualquer espécie de confrontação global entre teoria social e psicanálise. Para além do fato de que a crítica à interpretação dionisíaca da loucura é também aplicável, mutatis mutandis, a escritos com significativo veio antipsicanalítico como os de Deleuze e Foucault (Peters, 2022PETERS, Gabriel. 2022. A violência da (in)compreensão: notas sobre Foucault, psicanálise e a interpretação da loucura. Tempo Social, v. 34, n. 1, pp. 5-30.), quaisquer alusões genéricas à “visão psicanalítica” atropelarão, por óbvio, a extraordinária variedade interna de retratos da esquizofrenia em diferentes correntes da psicanálise. Minha posição, no fim das contas, se equilibra entre duas afirmações: (1) por um lado, interpretações como as de Freud e Tausk não ficaram abandonadas no passado, mas continuam a ter ressonâncias contemporâneas em representações influentes da esquizofrenia na - e para além da - psicanálise; e (2) por outro lado, a despeito do impacto continuado dessas interpretações, elas obviamente não recobrem, de modo algum, todo o escopo e a diversidade de caracterizações psicanalíticas da condição esquizofrênica.

Como uma “psiquiatria alternativa”, situada a meio caminho entre o mainstream biomédico e as alternativas antipsiquiátricas, a perspectiva fenomenológico-existencial me parece bem equipada para escapar tanto, de um lado, a visões psiquiátricas que negligenciam a complexidade interna da esquizofrenia como experiência vivida quanto, de outro, a teorias antipsiquiátricas que ressaltam aquela complexidade experiencial, inclusive nos seus componentes de criatividade e lucidez, mas o fazem às custas de um reconhecimento dos graus intensos (por vezes atrozes) de sofrimento implicados em vivências esquizofrênicas. A contraposição é ideal-típica - isto é, simplificada e exagerada para fins heurísticos -, porém relevante, por isso mesmo, para uma leitura de autores mais próximos a um ou outro dos polos típico-ideais elencados. A utilidade heurística dessa oposição como ferramenta de aproximações e contrastes entre autores tão diversos quanto Emil Kraepelin e Karl Jaspers, de um lado, e Ronald Laing e Michel Foucault, de outro, pode coexistir com a consciência crítica da complexidade interna das obras de cada um deles - complexidade em função da qual, por exemplo, seria grotescamente simplificador classificar as críticas de Laing e Foucault à psiquiatria ocidental moderna como “elogios românticos” da loucura. A “psiquiatria alternativa” de orientação fenomenológico-existencial que Laing abraçou em O eu dividido (1974) é, como mencionei anteriormente, uma inspiração decisiva para este artigo. No meu entender, o equilíbrio ambivalente alcançado em seu primeiro livro, como um retrato fidedigno de ambivalências intrínsecas à própria esquizofrenia qua experiência vivida, tendeu a dar lugar, em obras tardias de Laing, como The politics of experience and the bird of paradise (1967), a uma visão celebratória da experiência esquizofrênica, reclamada pelo autor escocês como instrumento de crítica (contra)cultural. Se tal caracterização da trajetória de Laing já tem seu quê de simplificação, o caso de Foucault é ainda mais complexo, envolvendo questões como sua estratégia retórica de aparente elogio a modos pré-modernos de trato com os loucos - um recurso de desmistificação das intenções humanitárias de psiquiatras modernos como Pinel e Tuke (Foucault, 1978FOUCAULT, Michel. 1978. História da loucura. São Paulo: Perspectiva.) -, bem como a tensão entre duas facetas do seu trabalho: de um lado, a crítica àquele humanitarismo psiquiátrico em estudos histórico-filosóficos como História da loucura (1978); e, de outro, seu apoio prático a iniciativas antimanicomiais de cuidado como aquelas levadas a cabo por figuras como Franco Basaglia, David Cooper e o próprio Laing, iniciativas que destoavam da sua insistência sobre a “alteridade fundamental” do louco (Eribon, 2011ERIBON, Didier. Michel Foucault. Paris: Flammarion, 2011.; Oliveira, 2016OLIVEIRA, Luciano. 2016. O peixinho dourado e o samurai: sujeito empírico e sujeito epistemológico em Michel Foucault. Lua Nova, n. 99, pp. 15-46.). Devotei um artigo inteiro a uma análise circunstanciada dessas questões analíticas e ético-políticas legadas pela análise foucaultiana da loucura (Peters, 2022PETERS, Gabriel. 2022. A violência da (in)compreensão: notas sobre Foucault, psicanálise e a interpretação da loucura. Tempo Social, v. 34, n. 1, pp. 5-30.).

Conclusão

Foi desde o ponto de vista da crença “ingênua” na realidade experimentada pelo senso comum que se pôde afirmar, de Cícero a Hobbes, passando por Montaigne e Descartes, que não há qualquer absurdo que já não tenha sido dito por algum filósofo. Na maior parte dos casos, contudo, os filósofos podem acalentar a crença em tais “absurdos” como necessitada pela lógica de sua argumentação sem abandonar, na prática, seus vínculos estreitos com as “proposições vividas” que possibilitam a conduta ordinária no mundo de senso comum. Os exemplos são diversos: o cético radical que não duvida da existência do chão em que pisa; a filósofa pós-estruturalista que, ao conversar, toma os significantes como veículos transparentes e imediatos dos seus significados; o crítico do sujeito que se experimenta como fonte intencional do seu ato de buscar um copo d’água na cozinha; a pensadora berkeleyana que não questiona, na prática, o fato de que as coisas continuam a existir mesmo quando não percebidas por ninguém. Por outro lado, pode-se conjeturar como seriam indivíduos que fossem “coerentes”, nas suas condutas cotidianas, com tais posturas filosóficas: um indivíduo cronicamente incerto quanto à continuidade do mundo externo (“ceticismo vivido”); outro contínua e intensamente consciente da arbitrariedade dos vínculos entre significante e significado (“estruturalismo vivido”); outro ainda que experimenta seu próprio comportamento como efeito de forças impessoais e anônimas (“objetivismo vivido”); outro, finalmente, destituído da crença visceral de que há um mundo exterior que opera independentemente da sua subjetividade (“subjetivismo vivido”).

Tais formas de experiência não existem somente no plano de conjeturas; cada um desses casos corresponde, em algum grau, a experiências descritas na casuística da esquizofrenia. É possível defender que tais vivências psicopatológicas têm um componente “filosófico”, o qual frequentemente escapa a uma psiquiatria simplista, sem deslizar para o erro antípoda de uma romantização da insanidade que se mantenha alheia aos inegáveis (e, com frequência, atrozes) sofrimentos e dificuldades por ela acarretados. A desconcertante complexidade de tais condições psíquicas, nas quais as tensões inerentes à condição humana aparecem seja sob uma “lente de aumento”, seja como movimentos existenciais na direção de um dos polos daquelas tensões (por exemplo, entre atividade e passividade ou entre solidão e sociedade), não deveria deixar indiferente nenhum estudioso das formas de vida do anthropos. Na situação-limite da psicose, os parâmetros experienciais que aparecem levados ao paroxismo são, no fim das contas, aqueles da condição humana como tal.

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  • 1
    Agradeço a dois pareceristas anônimos de Lua Nova por seus comentários críticos à primeira versão deste artigo, bem como ao editor Bruno Konder Comparato por reconhecer no texto um trabalho de teoria social em diálogo com a psicologia clínica, não o reverso.
  • 2
    Defender a relevância analítica de estudos da insanidade para a teoria social não significa abraçar, por força, uma visão idealizada ou romantizada da loucura, propensa a menosprezar as dificuldades e sofrimentos muitíssimo reais por ela provocados. De modo análogo, ao recorrer a categorias psiquiátricas como “esquizofrenia” e “psicose” na referência a certas condições psíquicas, a teoria social não precisa dar por resolvidas as agudas controvérsias quanto à validade analítica (p.ex., grau de rigor e cientificidade) e à justificação prática (p.ex., terapêutica ou ético-política) dessas categorias. No que se segue, utilizarei rótulos correntes na psiquiatria atual não porque não os considere problemáticos sob ambos os aspectos, mas, sim, porque minha preocupação fulcral aqui é desenhar um retrato tão fidedigno quanto possível das experiências vividas que aqueles termos procuram (bem ou mal) identificar.
  • 3
    Por um lado, o recurso explanatório da psicanálise a processos inconscientes, como as formações de compromisso entre os impulsos do “isso” e as defesas do “eu” e do “supereu”, já indica seu rechaço de qualquer redução do exame do sofrimento psíquico a uma descrição detalhada da experiência consciente. Por outro lado, desde as narrativas “detetivescas” de Freud sobre diversos casos particulares (“Anna O”, o “homem dos ratos”, o “pequeno Hans”, entre tantos outros), a literatura psicanalítica está de tal modo repleta daquelas descrições pormenorizadas de vivências conscientes que permite inclusive que elas sejam interpretadas a partir de referenciais teóricos distintos. Por exemplo, o fato de que a interpretação teórica de Victor Tausk quanto ao famoso caso da “máquina influenciadora” possa ser questionada com base no relato oferecido por ele próprio, como faremos adiante neste artigo (Cf. Sass, 1992SASS, Louis. 1992. Madness and modernism. New York: Basic Books .), dá testemunho do seu talento e rigor descritivos.
  • 4
    Uma das dificuldades inerentes a um trabalho situado na fronteira entre diferentes disciplinas e correntes de pensamento, como tenciona ser o corrente texto, é o fato de que uma explicitação detalhada daqueles distintos ingredientes analíticos só poderia ser feita às custas de um tremendo desvio do argumento principal - argumento que já é difícil, por si só, de encaixar no espaço de um artigo. Isto dito, embora eu não possa justificar minha preferência pelas críticas particulares da dicotomia objetivismo/subjetivismo tecidas por Giddens e Bourdieu (Peters, 2015PETERS, Gabriel. 2015. Percursos na teoria das práticas sociais: Anthony Giddens e Pierre Bourdieu. São Paulo: Annablume.), certamente não suponho que estas sejam as únicas disponíveis para o manejo analítico daqueles conceitos e, mais amplamente, das questões substantivas a que eles se referem, questões que aparecem frequentemente sob vocabulários distintos em autores tão variados quanto Durkheim, Weber, Sartre ou Foucault.
  • 5
    A fórmula é um tanto palavrosa, mas serve para acentuar que a “exterioridade” em jogo não é apenas aquela de forças exteriores à subjetividade como tal (a exterioridade em sentido durkheimiano), mas também inclui processos internos à subjetividade, porém “exteriores” à autoidentidade e ao controle intencional do sujeito - a exterioridade em sentido freudiano, por assim dizer (Frankfurt, 1988FRANKFURT, Harry. 1988. The importance of what we care about. Cambridge: Cambridge University Press .; Graham e Stephens, 2000GRAHAM, George; STEPHENS, G. Lynn. 2000. When self-consciousness breaks. Cambridge, MA: MIT Press .).
  • 6
    Segundo as leituras críticas propostas por esses autores, abordagens mais próximas ao subjetivismo incluiriam a fenomenologia social de Schütz, a etnometodologia de Garfinkel, o interacionismo simbólico de Blumer e a microssociologia da ordem interacional de Goffman. Mais inclinadas ao objetivismo estariam, por seu turno, interpretações determinísticas do marxismo, variantes do estrutural-funcionalismo e da teoria sistêmica (de Durkheim a Parsons e Luhmann), e diversos “estruturalismos” (da linguística de Saussure à antropologia de Lévi-Strauss) e “pós-estruturalismos” (e.g., a “gramatologia” de Derrida). A tenacidade da dicotomia entre objetivismo e subjetivismo como problema analítico ou, pelo menos, esquema de leitura crítica na teoria social transparece no fato de que a teoria da estruturação de Giddens e a teoria da prática de Bourdieu, a despeito de suas semelhanças (Peters, 2015PETERS, Gabriel. 2015. Percursos na teoria das práticas sociais: Anthony Giddens e Pierre Bourdieu. São Paulo: Annablume.), são comumente criticadas como versões sofisticadas de neossubjetivismo (Thompson, 1989THOMPSON, John. 1989. The theory of structuration. In: HELD, David; THOMPSON, John (org.). Social theory of modern societies: Anthony Giddens and his critics. Cambridge: Cambridge University Press . pp. 55-76.) e neo-objetivismo (Peters, 2013PETERS, Gabriel. 2013. Habitus, reflexividade e neo-objetivismo na teoria da prática de Pierre Bourdieu. Revista Brasileira de Ciências Sociais , v. 28, n. 83, pp. 47-81.), respectivamente. Escapa aos propósitos deste artigo, naturalmente, uma avaliação crítica de quão bem-sucedidos foram Giddens e Bourdieu em seus projetos teóricos de transcendência da dicotomia objetivismo/subjetivismo.
  • 7
    No seu “Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos”, Freud (1974FREUD, Sigmund. 1974. A história do movimento psicanalítico, artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago.) inaugurou uma das visões psicanalíticas mais influentes das alucinações auditivas na esquizofrenia: as vozes alucinatórias corresponderiam a impulsos e memórias que se encontravam reprimidos no id, mas lograram dissolver ou driblar as barreiras da cidadela (super)egoica, penetrando na consciência do sujeito. O que é problemático nessa interpretação, contudo, é que a maior parte dos casos registrados de alucinação auditiva não cabe no modelo de fantasias primárias que desagradariam às demandas morais interiorizadas no superego. Em vez de impulsos e lembranças reprimidos que escaparam do id, o feitio das vozes alucinatórias lembra mais aquele superego hipertrofiado que o mesmo Freud (1974FREUD, Sigmund. 1974. A história do movimento psicanalítico, artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago.:) identificara em pacientes melancólicos: uma instância impiedosa de críticas contínuas ao que o ego faz ou deixa de fazer. Segundo autores diversos (Mellor, 1970MELLOR, Clive S. 1970. First rank symptoms of schizophrenia. British Journal of Psychiatry, v. 117, n. 536, pp. 15-23.; Sass, 1992SASS, Louis. 1992. Madness and modernism. New York: Basic Books .), as alucinações auditivas mais frequentes na esquizofrenia tendem a se encaixar em três tipos: (1) uma voz provê comentários ao que o sujeito faz, seja simplesmente descrevendo seus comportamentos, seja condenando-os ou ridicularizando-os; (2) duas ou mais vozes se engajam em uma discussão a respeito da conduta do indivíduo; (3) o indivíduo escuta seus próprios pensamentos, quer simultaneamente, quer imediatamente depois de pensá-los. Nos três “estilos” de alucinação auditiva, a esquizofrenia não oblitera a reflexividade do indivíduo (sua capacidade de tomar a si mesmo como objeto de atenção), mas, ao contrário, consiste em uma modalidade exacerbada de auto-objetivação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    29 Out 2021
  • Aceito
    28 Jun 2022
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