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Colégio eleitoral lá e cá

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Colégio eleitoral lá e cá

Anna Luiza Salles Souto Ferreira

Socióloga e pesquisadora do CEDEC

O editor de LUA NOVA me pediu que escrevesse um artigo sobre Colégios Eleitorais "com uma certa pitada de humor". Para muitos de nós, no entanto, só é possível pensar em Colégio Eleitoral com humor de uma forma abrangente, isto é, se incluirmos aí o próprio mau humor e a vergonha que sentimos.

Esse mal-estar existe mesmo para os que aceitam participar do processo eleitoral via indireta. Prova disso são as justificativas que quase sempre acompanharam a decisão de se participar da disputa sucessória indireta, depois de uma campanha que colocou nas ruas milhões de brasileiros clamando por eleições diretas.

No mais das vezes, essas justificativas têm como pressuposto tanto a impossibilidade de mudanças imediatas nas regras do jogo, quanto a necessidade de transformações na sociedade brasileira, o que restringe a ação política aos parâmetros legais, mas não legítimos. E não poderia ser diferente. Afinal de contas, o Colégio Eleitoral não é fruto da soberania popular. Ao contrário, ele é a expressão pura do arbítrio, da imposição de uma minoria que sempre pretendeu se manter no poder. Basta uma ligeira pincelada sobre a composição do nosso Colégio Eleitoral, para verificarmos que ele em nada corresponde à vontade do eleitorado: senadores "biônicos" instituídos em 1977, senadores, deputados federais e representantes do partido majoritário de cada Assembléia Legislativa, todos eles eleitos pelo voto popular, porém em eleições realizadas sob o império da Lei Falcão e de outros casuísmos destinados a distorcer a representação parlamentar.

Mas não é só no Brasil que a eleição presidencial passa pelo Colégio Eleitoral. No entanto, o que distingue o Brasil desses outros países é justamente essa necessidade de justificar para a população a eleição indireta. Em poucas palavras, a diferença está no grau de legitimidade do nosso Colégio Eleitoral, constantemente reformulado de forma a impedir a real alternância no poder. Mas, como veremos, não é em todos os países que isso acontece.

Nos Estados Unidos, por exemplo, a criação do Colégio Eleitoral representa o pensamento dos Pais Fundadores da pátria norte-americana que, no século XVIII, queriam evitar que a eleição para o mais alto posto do país fosse uma decisão diretamente vinculada ao homem do povo, em cujo discernimento eles não confiavam muito. Mas a instituição de um Colégio Eleitoral também tinha o mérito de rechaçar a possibilidade de o presidente ser eleito pelo Congresso, o que violaria a doutrina da separação dos poderes.

Se no início tal instituição era investida de poderes para realmente eleger o presidente segundo sua vontade, hoje em dia o mesmo não acontece. No sistema eleitoral em vigor nos EUA, cada estado é autorizado a escolher os membros do Colégio Eleitoral que elegerá o presidente e o vice-presidente. Assim, cada partido compõe sua chapa de eleitores-membros do Colégio Eleitoral, comprometidos a votar no candidato oficialmente designado pelo partido. Cada estado tem um número de representantes igual ao de sua delegação no Congresso.

Segundo a constituição americana, não pode ser membro do Colégio Eleitoral "nenhum senador ou deputado, nem pessoa exercendo um cargo de confiança ou remunerado (...) no governo dos Estados Unidos (...)". Isto evita a concentração de poder e garante a separação dos poderes legislativo e executivo. O Colégio Eleitoral contou, nas eleições de 1984, com 538 eleitores.

No dia da eleição, a população do estado vota não apenas no presidente, mas também nos eleitores que posteriormente elegerão o presidente e o vice. Estritamente falando, o presidente não é eleito no dia das eleições. Nesse dia são eleitos os "eleitores presidenciais", ou seja, o Colégio Eleitoral. Ao votar em um candidato presidencial, a população do estado está, na verdade, votando na chapa de eleitores que representará o seu voto no Colégio Eleitoral. A chapa do partido que obtiver o maior número de votos populares em cada estado (mesmo que não vença por maioria) vai representar aquele estado no Colégio Eleitoral.

Confirmação da escolha popular

Passados 40 dias da eleição popular, os membros do Colégio Eleitoral se reúnem em seus estados para, na maioria das vezes, confirmar a escolha do voto popular (cada eleitor um voto). Digo "na maioria das vezes" porque o eleitor, em alguns estados, não é obrigado a votar necessariamente no indicado presidencial de seu partido, embora quase sempre o faça. Os votos do Colégio Eleitoral são, então, enviados a Washington e apurados um mês depois em sessão conjunta das duas Casas do Congresso. Na prática, isso significa que o Colégio Eleitoral americano nem chega a se reunir. Basta que seus membros ratifiquem por escrito o resultado da escolha popular. Para conquistar a presidência é necessário obter a maioria dos votos do Colégio Eleitoral, ou seja, 270 votos nessas últimas eleições.

Em épocas passadas, já houve casos de um candidato ter conquistado mais votos populares que seu adversário e ter perdido a presidência na disputa dos votos no Colégio Eleitoral. Mas isso são exceções num sistema onde a população vota e o Colégio Eleitoral elege o presidente de acordo com a escolha popular.

A eleição presidencial indireta também vigora na terra em que ocorreu a primeira revolução socialista, uma experiência histórica marcada, pelo menos durante certo período, pela presença ativa das massas populares no cenário da política. Atualmente, na União Soviética, o órgão do poder do Estado é o Soviete Supremo da URSS. É o seu Parlamento. Ele é composto por duas câmaras, iguais em direitos e com igual número de deputados (750 cada uma), eleitos pelo voto popular.

Três postos-chaves para o poder

O Soviete Supremo elege, em sessão conjunta das câmaras, o Presidium do Soviete Supremo da URSS, a quem compete a supremacia do exercício do poder de Estado. O cargo de presidente do Presidium equivale ao do nosso presidente da República. Não há alusões específicas sobre a maneira pela qual ele deve ser eleito. Apenas podemos concluir que ele é designado pelos membros do próprio Presidium (devendo também ele pertencer a essa instituição), sendo tal decisão aprovada pelos deputados do Soviete Supremo. Se, teoricamente, o presidente do Presidium do Soviete Supremo da URSS é o chefe de Estado, não podemos afirmar que é ele quem detém de fato o poder na União Soviética. Para tanto é preciso dominar três postos-chave: líder do PC, chefe do Conselho de Defesa da URSS e presidente do Presidium do Soviete Supremo da URSS.

Decisão de um colegiado

Outrora esses cargos eram ocupados por diferentes líderes. Mas a partir de Brejnev eles vêm sendo acumulados por uma só pessoa. Segundo um alto dirigente soviético, a eleição de Tchernenko para a presidência do Presidium foi decidida na plenária do Comitê Central do PC, e é normal dentro da linha da atual direção soviética que o líder do PC acumule o cargo de presidente.

Se na terra do "Tio Sam" a eleição presidencial passa pela aprovação de um Colégio Eleitoral, "no país dos sovietes" a eleição é, de fato, decidida entre os membros de um colegiado, o que não significa, necessariamente, que a população coloque em questão a legitimidade do processo.

Há Colégios e Colégios Eleitorais e o nosso, vergonhosamente, ocupa um lugar de destaque, possivelmente conquistando medalhas na categoria "arbítrio" e "desrespeito aos anseios nacionais". No Brasil, o atual sistema eleitoral data da Constituição de 1967, muito embora o critério de composição do Colégio Eleitoral tenha sido alterado diversas vezes. Este é composto pelos membros do Congresso Nacional (deputados e senadores) e por representantes das Assembléias Legislativas.

Pacotes e outros casuísmos

A primeira modificação veio com o "pacote de abril" de 1977. Foi quando se criaram os senadores "biônicos" (22 senadores nomeados indiretamente) e modificou-se a representação federal de cada estado na Câmara, aumentando o número mínimo de deputados por bancada (de 4 para 6) e fixando um limite para o total de deputados por estado. Com isso foram beneficiados os estados menos populosos, geralmente de tendência governista. Além da alteração na composição do Congresso, foram também modificados os critérios para a fixação do número de delegados das Assembléias Legislativas no Colégio Eleitoral, tudo feito de forma a assegurar uma maioria para o partido do governo.

Mais recentemente, em junho de 82, diante da perspectiva de uma maciça vitória das oposições nas eleições daquele ano, novamente alterou-se a representação federal na Câmara: elevou-se de 6 para 8 o número mínimo de deputados por estado e de 2 para 4 os dos territórios e aumentou-se a representação dos estados mais populosos, o que veio a beneficiar somente São Paulo, que ganhou mais 5 deputados. Foi ainda estabelecido que o Colégio Eleitoral seria composto pelos senadores, deputados federais e seis delegados do partido majoritário de cada Assembléia Legislativa.

Assim, se antes o número de representantes das Assembléias era proporcional à população do estado, agora nivelam-se as representações de todas elas, numa total discriminação contra os estados mais populosos e contra os eleitores dos partidos minoritários das bancadas estaduais. Hoje, depois de sucessivas alterações, o Colégio Eleitoral conta com 686 delegados, que votarão em nome de mais de 58 milhões de eleitores (se considerarmos apenas os inscritos em 1982).

Agressão à vontade do eleitor

Intrigas, conchavos e corrupção são algumas das práticas que caracterizam o nosso Colégio Eleitoral, cujos membros sequer foram eleitos de forma explícita para exercer o direito inalienável da escolha do chefe máximo da nação.

A constituição do nosso Colégio Eleitoral agride a vontade do eleitor tanto no que diz respeito à sua composição interna quanto no que se refere ao desrespeito à mobilização nacional em favor das diretas-já.

Marginalização, vergonha e humilhação é o que sentem milhões de brasileiros frente a um processo cujo objetivo maior é impedir a democratização do exercício da política e a mais pura expressão da liberdade. Assim, como é possível manter o bom humor, ao se falar do Colégio Eleitoral?

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Mar 1985
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