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A tarefa prática da filosofia política em John Rawls

ÉTICA, POLÍTICA E GESTÃO ECONÔMICA

A tarefa prática da filosofia política em John Rawls

Álvaro de Vita

Professor de Ciência Política na Universidade de São Paulo e editor-assistente de Lua Nova

Haveria alguma base sólida para a suposição de que as principais questões políticas de hoje em geral têm respostas corretas? A obra de John Rawls, em particular sua Uma Teoria da Justiça1 1 RAWLS, John. A Theory of Justice. Cambridge-Mass., Harvard University Press, - 1971. (Há uma edição brasileira da UNB.) , pode ser considerada a mais importante tentativa, na teoria moral e na filosofia política de expressão em língua inglesa deste século, de responder a essa pergunta. Como procurarei mostrar a seguir, Rawls acredita que pelo menos algumas das questões políticas controversas do mundo contemporâneo, se não são passíveis de verdade, podem ter respostas razoáveis.

Na tradição política ocidental, existem três grandes reinos de considerações morais que permitem julgar o que é objetivamente válido em relação a ações, escolhas públicas, instituições e estados de coisas: (1) a crença em uma ordem de direitos vistos como fundamentais (no sentido de que sua realização é assegurada, ou deveria ser, pelas instituições de uma sociedade) e absolutos (no sentido de que considerações baseadas em direitos não podem, ou não deveriam, ser sobrepujadas, quaisquer que sejam as circunstâncias, por considerações de outro tipo); (2) a "maximização" do bem-estar - identificado à utilidade, à felicidade ou à realização de desejos - de todos ou do maior número (utilitarismo); e (3) a promoção de atividades intrinsecamente valiosas (a concepção do que é bom para o homem que se encontra por exemplo, no ideal grego de vida virtuosa e que se exprime na revivescência, na filosofia moral contemporânea, da ética da virtude).

Com algumas qualificações, é possível afirmar que a teria de Rawls é do primeiro tipo, isto é, baseada em direitos2 2 Rawls prefere dizer que sua teoria é "orientada por ideais". Ver nota 19 de "Justiça como equidade: concepção política, não metafísica" nesta edição. . Uma Teoria da Justiça é parte, e talvez a expressão máxima, de um vigoroso renascimento de doutrinas éticas baseadas em direitos na filosofia política anglo-saxônica, em reação à ética utilitarista dominante desde Bentham e Stuart Mill3 3 A despeito das diferenças que mantém entre si, outras expressões importantes dessa tendência são: DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge - Mass., Harvard University Press, 1978; NOZICK, Robert. Anarchy, State and Utopy. Nova Iorque, Basic Books, 1974; MACKIE, J.L. Ethics. Inventing Right and Wrong. Londres, Penguin Books, 1977. . Rawls critica o utilitarismo sobretudo por "adotar para a sociedade como um todo o princípio de escolha racional para um homem", o que significa dizer que "não leva em conta seriamente a distinção entre pessoas"4 4 RAWLS, J., op., p. 26-27. . Enquanto critério para orientar a escolha pública, o utilitarismo funde diferentes desejos, objetivos, valores e fins que possam ganhar a adesão dos indivíduos em um único sistema de desejos que, então, deve ser maximizado para o maior número.

Como argumentam Amartya Sen e Bernard Williams5 5 SEN, Amartya e WILLIAMS, Bernard. "Introduction: Unitilarianism and Beyond." In: & (org.). Utilitarianism and Beyond. Cambridge University Press, 1982. , o utilitarismo é permissivo o suficiente para considerar tudo -interesses, ideais, aspirações e desejos - como preferências, mas singularmente restritivo no que se refere a que preferências são relevantes. Assim é que o princípio correto para a escolha pública, de um ponto de vista utilitário, não deveria se basear nas preferências efetivas dos agentes (que podem ser confusas, equivocadas ou egoístas) e sim nas preferências que o agente teria se completamente informado, se raciocinasse corretamente, se estivesse no estado mental conducente à escolha mais racional e assim por diante. Somente preferências "perfeitamente prudentes" contam, tais como interpretadas por um legislador utilitário ideal (que Rawls chama de "espectador imparcial benevolente"). Isso contraria não só as éticas pluralistas, que descartam a existência de uma magnitude cuja maximização possa se constituir na única consideração relevante do ponto de vista moral, e que adotam uma concepção mais complexa de pessoa - utilitarismo só se interessa pelas pessoas enquanto portadoras de utilidades6 6 É essa concepção estreita de pessoa, que considera como informações eticamente relevantes somente as relativas ao bem-estar dos agentes - e bem-estar identificado à satisfação de desejos ou à utilidade — que Sen considera inaceitável na teoria econômica normativa ou descritiva. Ver, nesta edição, "Comportamento econômico e sentimentos morais". - mas também o próprio apelo intuitivo da ética utilitarista: o de permitir que as pessoas façam e obtenham o que elas desejam.

A concepção estreita de pessoa e a natureza agregativa do utilitarismo o tornam insensível às diferenças entre os indivíduos, o que oferece aos direitos uma base excessivamente frágil. É isso que, antes de mais nada, desagrada a Rawls. Sua teoria busca um fundamento mais sólido do que foi capaz de oferecer a tradição utilitarista (mesmo em suas expressões liberais, como o pensamento de Stuart Mill), em que assentar um âmbito de direitos e de liberdades para os indivíduos. Isso fica explícito logo nas páginas de abertura de Uma Teoria da Justiça:

"Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na Justiça que mesmo o bem-estar da sociedade como um todo não pode sobrepujar. Por isso, a justiça nega que a perda da liberdade por alguns possa ser justificada pelo bem maior compartilhado por outros. A justiça não permite que os sacrifícios impostos a alguns possam ser compensados pela soma maior de benefícios desfrutados por muitos. Em uma sociedade justa, por esse motivo, as liberdades da cidadania igual são vistas como estabelecidas; os direitos assegurados pela justiça não são sujeitos à negociação política ou ao cálculo de interesses sociais."7 7 A Theory of Justice, p. 3-4.

Caracterizado o anti-utilitarismo da teoria de Rawls, volto à pergunta inicial - a de se haveria um padrão moral objetivamente válido, a partir do qual julgar o certo e o errado pelo menos no que se refere a algumas das questões mais centrais da vida coletiva. Primeiro é preciso notar por que a existência - ou a constituição - de um padrão desse tipo é importante: ele permite orientar as escolhas práticas, especialmente se elas precisam ser feitas em situações de forte pressão. Recorro a um exemplo - uma situação extrema, mas não de todo implausível - de G.A. Cohen8 8 Ver discussão em Kai Nielsen, "Arguing about Justice: Marxist Immoralism and Marxist Moralism:" ( Philosophy and Public Affairs, vol. 17, 3, 1983). . Suponha que em uma sociedade em que todos são nazistas, menos o último judeu, que é capturado. Pode ele corretamente dizer, e você e eu junto com ele, que seus direitos estão violados? É claro que é desejável que essa afirmação seja possível. Entretanto, não é tão claro com base em-que se poderia dizer que ela é correta.

Um padrão moral nos oferece essa base9 9 Minha discussão limita-se a dois dos padrões antes mencionados: as teorias baseadas em direitos e o utilitarismo. O terceiro, a promoção de atividades intrinsecamente valiosas, é criticado por Elster na forma em que se exprime por exemplo, no pensamento de Hannah Arendt. Ver "Auto-realização no trabalho e na política: a concepção marxista de boa vida" nesta mesma edição. A despeito da crítica a Arendt, a defesa de Elster, com algumas qualificações, da noção marxista de auto-realização tem evidentes afinidades com uma moralidade desse terceiro tipo. . Mas aqui nos defrontamos com o problema da objetividade de qualquer moralidade que se considere superior - inclusive a baseada em direitos. Pois como podemos determinar objetivamente o que é e o que não é um direito? E quando nossos direitos conflitam entre si - a que devemos apelar para resolver tais conflitos? Uma possível resposta a essas questões é provida pelo que Rawls chama de "intuicionismo racional"10 10 RAWLS, John. "Kantian Constructivism in Moral Theory". The Journal of Philosophy, vol. LXXVII, 9, 1980. pp. 554-560. . Nesse caso argumenta-se, na tradição do direito natural, no sentido da existência de uma ordem moral prévia e superior aos agentes e que lhes é acessível por meio de "reflexão moral adequada". Os princípios de justiça que devem governar a associação humana são os que derivam de certas crenças vistas como fatos morais. A defesa de Nozick do direito natural à propriedade privada legitimamente adquirida e transmitida - o que ele chama de "teoria da titularidade" - funda-se em uma forma de "intuicionismo racional". (É interessante observar que, por meio de "reflexão moral e adequada", podemos chegar a uma conclusão diametralmente oposta à de Nozick: a de que haveria um direito natural à propriedade comum dos recursos produtivos.11 11 Este é o ponto de vista defendido por G. A. Cohen em "Freedom, Justice and Capitalism" (New Left Review, 126, 1981). )

Marx, Weber, Mackie - e Rawls - concordariam entre si em pelo menos um ponto: não há fatos morais. Adotando-se uma linha marxista de argumentação, se diria que não há como saber até que ponto nossas idéias morais são algo mais do que meras crenças ideológicas - conseqiientemente, e em particular em situações de conflito agudo entre interesses e necessidades de diferentes grupos da sociedade, não há como apelar à "reflexão moral adequada" para determinar o certo e o errado;12 12 Essa forma de amoralismo marxista é energicamente defendida por Richard Miller em "Rights and Reality" ( The Philosophical Review, XC, 3, 1981). devido ao que chamava de "guerra inexplicável entre os deuses do Olimpo" (isto é, o conflito irredutível de valores), Max Weber viu a razão encarcerada na razão instrumental - e, portanto, capaz de determinar a escolha de meios eficazes mas não a correção de escolhas práticas; Mackie não vê motivo para que se considere as crenças morais como algo mais do que "demandas sociais".

A META-ÉTICA DE RAWLS: UMA TEORIA ORIENTADA POR IDEAIS

Estamos agora em condições de apreciar a especificidade do empreendimento ralwsiano. Do ponto de vista de seus princípios de segunda ordem, ou meta-éticos, a concepção de justiça como equidade procura um "ponto arquimediano", distinto do intuicionismo racional e, evidentemente, ainda mais distante do relativismo moral, a partir do qual seja possível derivar princípios primeiros de justiça que possam ser aceitos por todos os cidadãos de uma sociedade democrática. Rawls recusa o intuicionismo racional tanto porque considera que não há fatos morais quanto pela concepção de pessoa adotada por essa modalidade de reflexão moral: as pessoas são vistas não como agentes e sim como meras conhecedoras de uma ordem moral prévia. Em contraste com isso, Rawls nega que aquilo que deva contar como moralmente relevante possa ser suposto como existente; consequentemente, um padrão moral que assegure direitos inalienáveis aos indivíduos só poderá surgir de um procedimento de construção13 13 RAWLS, J. "Kantian Constructivism...", op. cit. .

Mas não deveria qualquer construção dessa natureza ser considerada igualmente arbitrária? Rawls vê o máximo de objetividade que uma concepção de justiça pode atingir da seguinte forma: (1) ela deverá resultar da escolha que seria feita por agentes situados de uma certa maneira (comentarei este ponto logo a seguir); e (2) deverá se fundamentar em ideais morais pelo menos implicitamente reconhecidos na tradição e na cultura política ocidentais. Rawls considera que há duas idéias morais que, no interior dessa tradição, são prioritárias em relação às demais: uma concepção de pessoa - uma concepção de nós mesmos como pessoas morais e como, em nossas relações com a sociedade, cidadãos livres e iguais; e uma concepção de "sociedade bem ordenada".

É a concepção de pessoa moral que, sustenta Rawls, encontra-se no fundo de idéias fortemente enraizadas na tradição política ocidental, tais como a recusa à escravidão (mesmo voluntária). Essa concepção de pessoa exprime uma das intuições morais mais poderosas do mundo ocidental: a atribuição universal da personalidade moral. Supõe-se que os indivíduos sejam capazes de se tornar agentes morais no sentido pleno, isto é, sejam capazes de ter uma concepção de seu próprio bem e de constituir suas próprias convicções morais, políticas e religiosas; e igualmente capazes, em contrapartida, de respeitar o bem nas convicções de outros - de reconhecer que o bem de cada um é merecedor de um respeito igual (como diz Rawls, a suposição é a de que, enquanto pessoas morais, são potencialmente capazes, pelo menos em um mínimo, de um "senso de justiça", isto é, de agir segundo princípios de justiça14 14 A Theory of Justice, § 86, p. 567-577. .) Essa é uma interpretação possível do imperativo kantiano de não tratar a outros seres humanos apenas como meios e sim sempre também como fins em si mesmos: os indivíduos são vistos como fontes geradoras de fins e os fins de cada um são merecedores de um respeito igual (Rawls: os indivíduos, e isso é um componente essencial da liberdade, são "fontes auto-suscitantes de pretensões válidas"); o escravo é tipicamente um ser cujos fins não são levados em conta e que sequer tem fins que possa considerar como seus — é um ser, em suma, privado de personalidade moral.

O outro ideal que Rawls vê como pelo menos latente em crenças compartilhadas presentes na tradição política ocidental é o de "sociedade bem ordenada". Aqui nos movemos em um terreno mais especulativo do que no primeiro caso (a concepção de pessoa), até porque esse segundo ideal envolve, acredito, um nítido passo além das democracias "reais" de hoje, algo que Rawls em momento algum deixa explícito. As democracias liberais se caracterizam - do ponto de vista dos problemas que estamos considerando - pela vigência de um modus vivendi que busca acomodar os diferentes interesses sociais e forças políticas; em uma "sociedade bem ordenada", a vida coletiva é dotada, mais do que de um modus vivendi, de um fundamento ético, o que significa dizer que: as instituições básicas da sociedade - políticas e econômicas - se organizam segundo princípios de justiça que poderiam ser escolhidos por pessoas morais livres e iguais; seus membros são capazes de agir segundo princípios de justiça; e a concepção de justiça que rege a vida coletiva é publicamente reconhecida e pode ser justificada para cada um dos membros da sociedade (é o que Rawls chama de "condição de publicidade"). A justificação política das instituições básicas da sociedade não é, nesse caso, meramente, digamos, hobbesiana; a idéia é a de que a estabilidade dessas instituições a longo prazo depende de elas serem vistas como um bem em si mesmo por seus participantes.

Apesar de a concepção de "sociedade bem ordenada" ser um ideal que claramente, em meu entender, ultrapassa as democracias liberais contemporâneas, ainda assim inspira-se no liberalismo político em dois sentidos:

(1) a "condição de publicidade" responde à exigência liberal (e iluminista) de que justificações inteligíveis para a vida social e política sejam acessíveis a cada um "porque a sociedade deve ser entendida pela mente individual e não pela tradição ou por um senso de comunidade"15 15 WALDRON, Jeremy. "Theoretical Foundations of Liberalism." The Philosophical Quarterly, vol. 37, 147, 1987. p. 135. . A legitimidade da sociedade e as bases da obrigação social devem ser compreensíveis para cada indivíduo. "A manutenção da ordem social", diz Rawls, "não depende de ilusões institucionalizadas ou historicamente acidentais ou de outras crenças equivocadas acerca de como suas instituições funcionam"16 16 "Kantian Constructivism..." op. cit. ;

(2) o escopo da concepção de justiça é limitado. O padrão moral publicamente reconhecido constitui-se em um tribunal último para solucionar apenas algumas questões práticas, a saber: de que forma as instituições de uma sociedade devem realizar o ideal de pessoas livres e iguais e como devem ser resolvidos os conflitos relativos à distribuição dos encargos e benefícios da cooperação social. Isso não significa a dotar nenhuma concepção abrangente do bem, como ocorre nos dois outros padrões morais mencionados no início deste artigo - o utilitarismo e a promoção de atividades intrinsecamente valiosas. Rawls rejeita, como vimos, o utilitarismo enquanto critério para orientar a escolha pública ou a mudança social, mas nada impede que mesmo membros de uma "sociedade bem ordenada" o adotem como critério para escolhas individuais - isto é, que concedam a boa vida para eles mesmos em termos da maximização do bem-estar entendido como satisfação de desejos ou utilidade (desde que a única forma de fazer isso não seja violando os princípios de justiça estabelecidos). Comentarei mais adiante, em maior detalhe, a concepção do bem adotada pela teoria de Rawls.

Vemos agora por que Rawls prefere considerar sua teoria como "orientada por ideais" mais do que "baseada em direitos". Os agentes de seus construtivismo não reconhecem uma ordem moral prévia (como os direitos humanos) mas também não exercem arbitrariamente suas vontades - a escolha dos princípios de justiça deverá se apoiar nos ideais morais implícitos em crenças fundamentais amplamente compartilhadas, pelo menos em uma determinada tradição política, tais como a recusa à escravidão e a tolerância religiosa. Falta agora localizar o "ponto arquimediano" a partir do qual seja possível a construção do padrão de justiça e a partir do qual seja possível julgar as instituições de uma sociedade. Se percorremos a teoria de Rawls até uma de suas extremidades encontramos o ideal de pessoas morais livres e iguais; se a percorremos até a outra de suas extremidades encontramos o ideal de sociedade bem ordenada. Entre as duas extremidades, há um ponto em que a escolha dos princípios de justiça que deverão reger as instituições de uma sociedade bem ordenada pode ocorrer de forma a dar expressão ao ideal de pessoa moral. A este ponto Rawls denomina "posição originária".

A PRIORIDADE DO DIREITO

O "ponto arquimediano" procurado por Rawls pode ser interpretado simplesmente como o conjunto de injunções (constraints) que se apresentam à argumentação pública quando o que está em questão é avaliar as instituições básicas da sociedade. Quando debatemos de que forma essas instituições devem se organizar para exprimir adequadamente o ideal de pessoas morais livres e iguais, ou então em que medida as instituições de uma dada sociedade se aproximam desse objetivo, o que pode ser levado em conta e o que não deve ter peso algum?

Neste ponto é preciso esclarecer o componente meta-ético - epistemológico - da teoria de Rawls que é correlato a seu componente fundamental, mencionado no início deste artigo, enquanto uma concepção moral de primeira ordem, isto é, enquanto um padrão moral que busca proteger direitos de cálculos utilitaristas17 17 Michael Sandel faz uma interessante discussão da epistemologia rawlsiana em Liberalism and the Limits of Justice (Cambridge, Cambridge University Press, 1982). . Justiça como equidade é uma teoria "deontológica" - ou, o que é a mesma coisa: kantiana. Em uma concepção deontológica, o que é correio fazer tem precedência sobre o que é bom ser. (O oposto a isso seria uma teoria "teleológica", isto é, que estabelece a primazia de uma certa concepção de boa vida humana; Rawls rejeita as teorias teleológicas porque elas oferecem um fundamento excessivamente frágil para direitos e liberdades - cuja violação pode ser justificada em nome do peso absoluto e atribuído a um fim último.)

Em termos epistemológicos, a prioridade do que é direito sobre o que é bom significa que o padrão de justiça deve ser derivado independentemente de concepções específicas de bem. Um requisito complementar a este, também característico de uma concepção deontológica, é o de que a justificação dos princípios de justiça deve ser independente das contingências de vida humana em sociedade. Alguém ocupar uma certa posição social ou ser dotado de determinados talentos e capacidades não são razões suficientes, que possam ser invocadas em um debate público, para justificar uma dada forma de organizar as instituições básicas da sociedade em que precisamente essa posição e esses talentos são os mais beneficiados; em que aqueles assim situados (ou dotados) conseguem se apropriar de uma parcela maior dos resultados da cooperação social. A distribuição de posições iniciais na sociedade, e também de talentos e capacidade (pouco importando para a teoria de Rawls se hereditários ou socialmente adquiridos), é vista como arbitrária de um ponto de vista moral (porque fruto de contingências). A derivação do direito, em resumo, deve ser autônoma tanto de concepções específicas do bem quanto de contingências sociais ou naturais.

Essas exigências deontológicas, que caracterizam o tipo de construtivismo proposto por Rawls como "kantiano", são incorporadas à posição originária por meio de um artifício de representação. No momento em que nos colocamos na posição originária - isto é, sempre que se trate de avaliar as instituições de uma sociedade do ponto de vista da justiça - estamos obrigados a realizar nossos julgamentos e escolhas por trás de um "véu de ignorância". Se argumentamos a partir da posição originária, não podemos levar em conta as distintas concepções do bem que nos dividem, e sobre as quais jamais estaremos de acordo se há uma delas que possa ser considerada superior18 18 No artigo publicado nesta edição, Jon Elster, no entanto, argumenta no sentido da superioridade de uma forma de vida orientada para a auto-realização. Ver "Auto-realização no trabalho e na política: a concepção marxista de boa vida". , nem os diferentes talentos, capacidades e posições na sociedade com que a fortuna nos brindou. Dito de outra maneira, o véu de ignorância é um artifício que tem o objetivo de representar os agentes de construção, na posição originária, unicamente enquanto pessoas morais livres e iguais, excluindo informações relativas e atributos contingenciais. Esta é a forma fair de representá-los quando se trata da adoção de princípios primeiros de justiça e, diz Rawls, "conjeturamos que a equidade das circunstâncias sob as quais o acordo é alcançado transfere-se para os princípios de justiça acordados; uma vez que a posição originária situa pessoas morais livres e iguais de uma forma equitativa entre si, qualquer concepção de justiça que adotem será igualmente equitativa. Daí a denominação: 'justiça como equidade'."19 19 "Kantian Constructivism...", p. 522. A tradução de fairness por "equidade" não ocorre sem alguma variação de sentido, mas parece não haver um termo mais adequado em português.

CONCEPÇÃO FRACA DO BEM

O que foi dito antes caracteriza suficientemente, acredito, a natureza kantiana da concepção de justiça como equidade. O ponto arquimediano constituído por Rawls permite que o padrão de justiça resultante tenha certo distanciamento da sociedade que deve ser avaliada - das contingências que determinam as oportunidades de vida de seus membros e da pluralidade de valores, objetivos e fins aos quais eles devotem lealdade. Esse componente kantiano - a primazia da justiça - deve ser considerado predominante na teoria de Rawls.

Mas as exigências deontológicas de distanciamento na forma de representar as partes na posição original não podem ir até o ponto de os princípios de justiça produzidos nada terem a ver com as circuntâncias reais de uma sociedade humana. A ambição da teoria de Rawls é a de elaborar um padrão moral de tipo deontológico que seja realizável não por seres transcendentes de um mundo transcendente e sim pelos habitantes de um mundo distintivamente humano. Se as exigências deontológicas representadas pelas injunções do véu de ignorância levam a que certas informações não tenham peso moral, há outras informações que terão que ser levadas em conta, se o que se quer é chegar a uma concepção de justiça que seres humanos de uma sociedade real possam adotar. As informações desse segundo tipo dizem respeito ao que Rawls, inspirado, neste ponto, na filosofia de Hume, chama de "circunstâncias da justiça".20 20 A Theory of Justice, § 22, p. 126-130.

Entre as circunstâncias "objetivas" da justiça, "que tornam a cooperação humana tanto possível quanto necessária", está a condição de "escassez moderada": os recursos existentes e os benefícios que resultam da cooperação social em uma sociedade não são abundantes ao ponto de não emergirem reivindicações conflitantes sobre a parcela que cabe a cada um de seus membros, e nem tão exíguos ao ponto de qualquer forma de cooperação ser impossível. As circunstâncias "subjetivas" da justiça podem ser resumidas no que Rawls chama de o "fato do pluralismo" (ou, como quer Nozick, o "fato de nossas existências separadas"): as sociedades ocidentais contemporâneas são caracterizadas por uma inescapável pluralidade de concepções do bem - tanto de concepções da boa vida para si próprio quanto de concepções acerca de boa vida humana em sociedade.

Levar o "fato de pluralismo" em conta significa dizer que a adoção de uma concepção pública de justiça não poderá se apoiar em premissas muito fortes acerca da motivação dos agentes - supor, por exemplo, que eles sejam movidos pelo altruísmo ou pela benevolência. Este é, justamente, um dos problemas do utilitarismo: a adoção de uma ética militarista como padrão moral de uma sociedade pressupõe que seus membros sejam motivados por um senso de benevolência universal - propor a maximização da soma total de utilidade como a única consideração ética relevante pressupõe que cada membro da sociedade se interesse pela utilidade dos demais tanto ou mais do que pela sua própria; a concepção utilitarista de justiça, nesse sentido, pode ser considerada simplesmente utópica. Rawls evita fazer suposições motivacionais muito fortes dizendo que as partes, na posição original, são "mutuamente desinteressadas":

"pode-se dizer, em suma, que as circunstâncias da justiça se verificam sempre que pessoas mutuamente desinteressadas fazem reivindicações conflitantes acerca de divisão dos benefícios sociais em condições de escassez moderada. Se essas condições não existissem não haveria oportunidade para a virtude da justiça, assim como na ausência de ameaças à vida ou à própria integridade não haveria oportunidade para a coragem física."21 21 Idem, ibidem, p. 128.

Como já foi dito antes (quando comentei o escopo de justiça como equidade), a teoria de Rawls se propõe oferecer respostas razoáveis somente às questões práticas que emergem das circunstâncias objetivas da justiça. Mas os problemas mais intratáveis surgem das circunstâncias subjetivas, do "fato do pluralismo". Afinal, o que levaria agentes "mutuamente desinteressados" a adotarem princípios comuns de justiça?

A resposta já está pelo menos implícita no que já foi visto até aqui. Trata-se de uma das suposições mais centrais, e também mais controversas, da teoria de Rawls - e um dos fundamentos do liberalismo político em geral. A idéia é que os cidadãos de uma sociedade democrática podem ter interesse em compartilhar de uma concepção fraca (ou mínima) de bem, e encarar isso como algo não contraditório com as lealdades que devotem a determinadas concepções plenas do bem. A estratégia argumentativa de Rawls é a de focalizar a justificação das instituições básicas da sociedade em crenças fundamentais e interesses compartilhados, de tal forma que essas instituições possam ser vistas por todos como um bem em si mesmo - como uma pré-condição para que quaisquer valores, objetivos e fins possam ser realizados. A boa vida humana em sociedade é aquela em que a estrutura comum que determina as oportunidades de vida de cada um pode ser publicamente justificadas (daí a necessidade de oferecer respostas razoavelmente correias aos conflitos que emergem das circunstâncias objetivas da justiça); e é aquela em que, de outra parte, cada um pode cultuar a divindade com que esteja comprometido, desde que tolere o mesmo nos demais. Como diz Jeremy Waldron:

"A intuição é a de que, apesar de não compartilharem dos ideais uma das outras, as pessoas podem abstrair de sua experiência um sentido de como é estar comprometido com um ideal de boa vida; elas podem reconhecer isso em outro e focalizar esse sentido como algo a que a justificação política pode se dirigir."22 22 WALDRON, J., op. cit., p. 145.

Essa concepção fraca do bem é incorporada por Rawls à justificação da posição originária e da escolha dos princípios de justiça. As partes na posição originária, apesar de "mutuamente desinteressadas", têm um interesse comum, supõe Rawls, em um conjunto de "bens primários" - isto é, os bens que qualquer um desejaria para poder realizar sua própria concepção de boa vida (isso inclui coisas tais como direitos - e liberdades básicas, oportunidades para ocupar posições de responsabilidade em instituições políticas e econômicas, renda, riqueza e as "bases sociais do auto-respeito"23 23 Sobre as "bases sociais do auto-respeito", ver S 65, 66 e 67 de A Theory of Justice. ). O bem humano assim entendido é visto por Rawls como neutro, isto é, como não favorecendo a nenhuma concepção plena da boa vida em particular. É por isso que Rawls pode supor que tal concepção fraca do bem seja prévia à própria adoção dos princípios de justiça, sem que isso comprometa a exigência deontológica de primazia do que é correto sobre o que é bom.

Essa neutralidade, entretanto, pode ser colocada em dúvida. Há pessoas que vêem seus vínculos com uma determinada comunidade, classe, grupo político, étnico ou religioso como algo tão determinante de sua própria identidade pessoal que simplesmente não conseguiriam se conceber como tendo algo em comum com pessoas comprometidas com outras associações, grupos ou objetivos. Há ainda aqueles que somente concebem a busca da realização de sua própria concepção de boa vida tentando impô-la aos demais. Uns e outros muito provavelmente recusariam a neutralidade da concepção fraca do bem proposta por Rawls.

É um problema espinhoso para justiça como equidade (e para o liberalismo político de modo geral). Aqui a resposta é a de que a justificação política, tal como concebida pela teoria de Rawls, só pode encontrar ressonância entre aqueles que concebem seus próprios vínculos e lealdades (com associações, comunidades e concepções do bem diversas) em um certo espírito "liberal"24 24 WALDRON, J., op. cit., p. 14.5. . Isto é: aqueles que se concebem como pessoas que, enquanto cidadãs, mantêm uma certa independência de qualquer sistema particular de fins. Alguém mudar sua concepção da boa vida, ou abandonar lealdades que antes via como constituindo sua própria identidade pessoal, em nada altera sua identidade pública de pessoa moral livre e igual. A apostasia, em uma sociedade democrática, não é crime e nem tem implicações para a concepção que as pessoas têm de si mesmas enquanto cidadãs.25 25 Esta é a linha de argumentação desenvolvida por Rawls em seu artigo publicado nesta edição. Ver "Justiça como equidade: uma concepção política, não metafísica". A estratégia argumentativa, como não é difícil de perceber, apoia sua plausibilidade em crenças fundamentais, supostas como amplamente compartilhadas (na tradição política ocidental pelo menos), presentes na aceitação da tolerância religiosa. Explicitar as intuições morais que se encontram no fundo dessas crenças, de forma que possam servir de matéria-prima a um constaitivismo de tipo kantiano, eis o que John Rawls acredita ser a tarefa prática da filosofia política.

Até aqui concentrei-me nos problemas da meta-ética rawlsiana. Passo agora a uma discussão dos princípios primeiros de justiça.

O PRINCÍPIO DE DIFERENÇA

Se somente levássemos em conta nossa natureza de pessoas morais livre e iguais, e as circunstâncias da justiça, então, supõe Rawls, escolheríamos para reger a estrutura comum de nossas vidas dois (ou talvez três) princípios de justiça: um primeiro (e prioritário) que estabelece um sistema igual de liberdade para todos; e um segundo (que, como veremos logo a seguir, divide-se em duas partes bastante distintas) que estabelece sob quais condições desigualdades sociais e econômicas seriam justificáveis. Discutirei um pouco mais detalhadamenté o segundo princípio, que, acredito, gera controvérsias maiores (há quem coloque em dúvida também o caráter absoluto atribuído ao primeiro princípio).

Antes disso, porém, chamo a atenção para a natureza hipotética da sentença que abre esta seção. O contrutivismo de Rawls, como talvez já tenha ficado evidente, é inteiramente hipotético, isto é, não supõe nenhuma forma de consentimento efetivo — de exercício da vontade por parte de agentes reais:

"Nenhuma sociedade pode ser, é claro, um esquema de cooperação no qual os homens entrem voluntariamente em um sentido literal; cada pessoa, ao nascer, encontra-se situada em uma determinada posição em uma determinada sociedade, e a natureza dessa posição afeta materialmente suas perspectivas de vida. Contudo, uma sociedade que satisfaça os princípios de justiça como equidade aproxima-se tanto quanto possível de ser um esquema voluntário, porque satisfaz os princípios com os quais pessoas livres e iguais consentiriam em circunstâncias equitativas. Nesse sentido, seus membros são autônomos e as obrigações que reconhecem são auto-assumidas."26 26 A Theory of Justice, p. 13.

A pergunta relevante para a teoria de Rawls não é de que forma o mundo político deve se organizar para que agentes reais possam participar da tomada de decisões coletivas, e sim quais são as restrições a serem obedecidas uma vez que essa participação já esteja assegurada - já estabelecida a democracia política, portanto. (Injunções desse tipo negam que uma decisão coletiva possa violar a concepção de pessoa moral livre e igual, como ocorreria no caso, por exemplo, de a pena de morte ser instituída simplesmente porque isso exprime a vontade da maioria. O consentimento hipotético requer que o ato de consentir seja algo mais do que a mera expressão de uma ou mais vontades - é preciso indagar por suas razões.) Não há uma teoria da democracia, estritamente falando, em Uma teoria da justiça.27 27 Alguns críticos de Rawls confundem o consentimento hipotético a um padrão de justiça com uma teoria específica da deliberação política. É o caso, acredito, de Bernard Manin em "Volonté générale ou délibération?" ( Le Débat, 33, 1985, pp. 72-93). O que há, talvez, é um amplo critério para orientar a ação política e a escolha pública em sociedades de democracia política consolidada.

Volto aos princípios de justiça. O segundo princípio estabelece que as desigualdades sociais e econômicas são moralmente aceitáveis se, e somente se, (a) estiverem vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidade, e se (b) beneficiarem os membros pior situados da sociedade (é o que Rawls chama de "princípio de diferença").

O componente fundamental da concepção substantiva de justiça de Rawls consiste na neutralização de desigualdades sociais e naturais, que, fruto da fortuna social ou genética, são moralmente arbitrárias. Não há justiça ou injustiça em indivíduos nascerem em determinadas posições sociais (mais privilegiadas ou menos) ou então dotados de certos talentos e capacidades (que, adequadamente treinados e utilizados, permitirão a seus portadores se apropriar de uma parcela maior ou menor dos benefícios sociais); estes são apenas, como diz Rawls, fatos naturais. O que pode ser considerado justo ou injusto é a forma como as instituições da sociedade lidam com esses "fatos naturais". O princípio de diferença não supõe a abolição de diferenças decorrentes de contingências, porque isso seria impossível, e sim tanto quanto possível neutralizar seus efeitos:

"O princípio de diferença representa, com efeito, um acordo no sentido de encarar a distribuição de talentos naturais como um recurso comum e de compartilhar os benefícios dessa distribuição, seja ela qual for. Aqueles que foram favorecidos pela natureza, quem quer que seja, podem tirar proveito de sua boa fortuna somente de forma a melhorar a situação dos menos favorecidos. Os que são naturalmente privilegiados não devem ser beneficiados apenas porque são mais talentosos, mas somente na medida necessária para cobrir os custos de treinamento e de educação dos naturalmente desafortunados e para exercitarem seus talentos de formas que também beneficiem estes últimos. Ninguém merece sua capacidade natural maior e nem é merecedor de um ponto de partida mais favorável na sociedade."28 28 A Theory of Justice, pp. 101-102.

Esta é uma das passagens mais célebres, e também mais controversas, de Uma Teoria de Justiça, devido à surpreendente idéia de que a distribuição de talentos deve ser vista como um "recurso público". Mas não é tão surpreendente se lembrarmos quão impenetrável é o "véu de ignorância" adotado pela teoria da justiça de Rawls. As exigências deontológicas da posição original, como vimos, excluem que quaisquer contingências sociais ou naturais - entre as quais a distribuição de talentos e de capacidades e até mesmo variações de preferências individuais - possam contar como informações moralmente relevantes. Se nos colocássemos na posição original, refletindo sob as injunções do véu de ignorância, escolheríamos, acredita Rawls, algo semelhante ao princípio de diferença para determinar as formas de desigualdades aceitáveis, até porque a fortuna poderia ter nos colocado entre os membros em pior situação da sociedade. Se nos encontrássemos entre estes últimos, pelo menos gostaríamos que as diferenças contingenciais trabalhassem também a nosso favor.29 29 O princípio de diferença, acredita Rawls, oferece uma interpretação política para a idéia de fraternidade. A Theory of Justice, pp. 105-6.

Note-se que o princípio de diferença enfrenta o problema das. desigualdades moralmente arbitrárias de uma forma inteiramente distinta da parte (a) do segundo princípio - a igualdade equitativa de oportunidade. Uma concepção de justiça fundada nesta última seria meritocrática. Digamos que o véu de ignorância seria bem mais fino: quando a estrutura comum de suas vidas estivesse em questão, os indivíduos poderiam levar em conta seus próprios talentos, capacidades e preferências e somente as informações relativas a status e posições na sociedade seriam excluídas como moralmente irrelevantes. A concepção de justiça adotada autorizaria a implementação de políticas redistributivas - oportunidades educacionais iguais, por exemplo - para compensar certas desvantagens sociais. A noção de igualdade envolvida nesse caso é a da igualização dos pontos de partida para os que têm talentos similares.

O princípio de diferença, em contraste, não altera apenas as condições sob as quais os talentos são exercidos; ele procura enfrentar a própria distribuição natural de talentos. O espesso véu de ignorância adotado pela teoria de Rawls é, no fundo, uma forma de exprimir a idéia de que o bem-estar dos cidadãos de uma sociedade democrática não deveria depender das contingências dessa distribuição. O princípio de diferença estabelece uma base moral a partir da qual certas restrições à propriedade privada dos próprios talentos e capacidades tornam-se legítimas. Os cidadãos de uma "sociedade bem ordenada" teriam plena liberdade (assegurada pelo primeiro princípio de justiça) para desenvolver, tanto quanto possível, seus talentos, mas não teriam direito a todos os benefícios sociais resultantes de seu exercício (parte desses benefícios seria destinada, por meio de políticas redistributivas, a compensar aqueles em pior situação pela desfortuna social ou genética).

Para comparar, pensemos em uma concepção de justiça ainda mais distante da de Rawls do que a igualdade meritocrática. É o caso de uma teoria que adote um véu de ignorância finíssimo. Os indivíduos levam em conta sua posição social, seus talentos e preferências, e apenas desconhecem como estarão em algum ponto futuro do tempo. Para lidar com a incerteza em relação ao futuro, eles podem querer contribuir para um fundo comum, que depois distribuirá benefícios na medida da capacidade de contribuição de cada um. Os que não têm capacidade de contribuição não estão entitulados a benefício algum. Essa é uma concepção de justiça fundada exclusivamente no que Charles Taylor denominou "princípio de contribuição" (isto é, em uma concepção de justiça comutativa, em contraste com uma concepção de justiça distributiva).30 30 TAYLOR, Charles. Philosophy and the Human Sciences. Philosophical Papers (v. 2). Cambridge, Cambridge University Press, 1985. pp. 285-317. A idéia subjacente é a da auto-suficiência individual. Se adotamos, para argumentar, a idéia de um contrato inaugural, é como se os indivíduos viessem do estado de natureza já entitulados (e uma titularidade cujo reconhecimento é acessível a todos por meio de "intuicionismo racional") não só a seus direitos e propriedades mas também a seus talentos e capacidades próprios; como estes últimos têm um valor desigual para a associação humana, então seus portadores fazem jus a parcelas desiguais dos produtos e serviços da sociedade. Se na teoria de Rawls a sociedade bem ordenada é concebida como um "sistema equitativo de cooperação social", uma sociedade cujas instituições se organizem com base em uma concepção de justiça comutativa seria (idealmente) um arranjo para benefício exclusivo dos que têm capacidade de contribuição.

Se recorremos à esclarecedora distinção que faz Charles Taylor31 31 Idem, ibidem, pp. 187-210. entre teorias atomistas e teorias sociais do homem e da sociedade, então a concepção substantiva de justiça de Rawls deve ser localizada entre estas últimas. A idéia fundamental não é a da auto-suficiência individual (premissa, quase sempre não-examinada, de teorias atomistas como a de Nozick, por exemplo); e sim a de que o indivíduo - o indivíduo autônomo, capaz de escolher seus próprios fins, das sociedades ocidentais - só pode desenvolver suas capacidades especificamente humanas em cooperação com outros e em certo tipo de sociedade, de cultura e instituições políticas. A primazia já não cabe ao indivíduo e seus direitos prévios e sim a uma dada forma de organizar as instituições básicas da sociedade que investe o indivíduo de direitos, que lhe permite buscar a realização da sua própria concepção do bem, que lhe assegura, enfim, um âmbito de liberdade negativa.

EPISTEMOLOGIA "INDIVIDUALISTA" E JUSTIÇA SUBSTANTIVA "COMUNITÁRIA"?

Vimos qual é a resposta de Rawls à pergunta colocada no início deste artigo. A meta-ética de sua teoria, em essência, esforça-se para encontrar um "ponto arquimediano" em que seja possível a adoção de um padrão moral com o máximo de objetividade atingível e que ofereça soluções razoáveis a pelo menos algumas das questões práticas mais importantes do mundo contemporâneo. Vimos também de que forma os princípios morais de segunda ordem - as injunções deontológicas que estabelecem a primazia da justiça sobre o bem, representadas no ponto arquimediano pelo dispositivo do véu de ignorância - relacionam-se com os princípios primeiros de justiça (a concepção substantiva de justiça de Rawls).

Uma última, e excessivamente breve, observação é a seguinte. Como o próprio Rawls admite, é possível aceitar uma parte da sua teoria mas não a outra; aceitar os princípios primeiros e não os procedimentos meta-éticos de justificação -ou vice-versa. A teoria de Nozick adota a primazia da justiça sobre o bem (sob um véu de ignorância quase transparente), mas sustenta que se essa primazia for levada a sério nenhuma forma de justiça distributiva será justificável. Similarmente, mas em uma direção oposta à de Nozick, Michael Sandel32 32 SANDEL, Michael,op. cit., pp. 50-65. não acredita que o princípio de diferença, com os valores comunitários que nele se exprimem, possa ser derivado da epistemologia "individualista" de Rawls. Sandel argumenta que a meta-ética rawlsiana, evitando partir de um sujeito "radicalmente situado" (ocupando uma determinada posição na sociedade, comprometido com Urna concepção específica do bem, com certos grupos ou associações e assim por diante) acaba por adotar uma concepção do sujeito moral como "radicalmente desencarnado", isto é, como prévio às formas de cooperação com outros que possam ser constitutivas de identidade pessoal.

No artigo publicado nesta edição, Rawls argumenta que justiça como equidade envolve uma concepção de pessoa moral, que ele procura precisar, mas não supõe nenhuma teoria específica (individualista ou outra) da identidade pessoal ou da natureza humana. Nada melhor, portanto, do que passar a palavra ao próprio John Rawls.

  • 1 RAWLS, John. A Theory of Justice Cambridge-Mass., Harvard University Press, - 1971.
  • 3 A despeito das diferenças que mantém entre si, outras expressőes importantes dessa tendęncia săo: DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge - Mass., Harvard University Press, 1978;
  • NOZICK, Robert. Anarchy, State and Utopy Nova Iorque, Basic Books, 1974;
  • MACKIE, J.L. Ethics Inventing Right and Wrong. Londres, Penguin Books, 1977.
  • 5 SEN, Amartya e WILLIAMS, Bernard. "Introduction: Unitilarianism and Beyond." In: & (org.). Utilitarianism and Beyond. Cambridge University Press, 1982.
  • 7A Theory of Justice, p. 3-4.
  • 8 Ver discussăo em Kai Nielsen, "Arguing about Justice: Marxist Immoralism and Marxist Moralism:" (Philosophy and Public Affairs, vol. 17, 3, 1983).
  • 10 RAWLS, John. "Kantian Constructivism in Moral Theory". The Journal of Philosophy, vol. LXXVII, 9, 1980. pp. 554-560.
  • 11 Este é o ponto de vista defendido por G. A. Cohen em "Freedom, Justice and Capitalism" (New Left Review, 126, 1981).
  • 12 Essa forma de amoralismo marxista é energicamente defendida por Richard Miller em "Rights and Reality" (The Philosophical Review, XC, 3, 1981).
  • 14A Theory of Justice, § 86, p. 567-577.
  • 15 WALDRON, Jeremy. "Theoretical Foundations of Liberalism." The Philosophical Quarterly, vol. 37, 147, 1987. p. 135.
  • 17 Michael Sandel faz uma interessante discussăo da epistemologia rawlsiana em Liberalism and the Limits of Justice (Cambridge, Cambridge University Press, 1982).
  • 20A Theory of Justice, § 22, p. 126-130.
  • 26A Theory of Justice, p. 13.
  • 27 Alguns críticos de Rawls confundem o consentimento hipotético a um padrăo de justiça com uma teoria específica da deliberaçăo política. É o caso, acredito, de Bernard Manin em "Volonté générale ou délibération?" (Le Débat, 33, 1985, pp. 72-93).
  • 28A Theory of Justice, pp. 101-102.
  • 29 O princípio de diferença, acredita Rawls, oferece uma interpretação política para a idéia de fraternidade. A Theory of Justice, pp. 105-6.
  • 30 TAYLOR, Charles. Philosophy and the Human Sciences. Philosophical Papers (v. 2). Cambridge, Cambridge University Press, 1985. pp. 285-317.
  • 1
    RAWLS, John.
    A Theory of Justice. Cambridge-Mass., Harvard University Press, - 1971. (Há uma edição brasileira da UNB.)
  • 2
    Rawls prefere dizer que sua teoria é "orientada por ideais". Ver nota 19 de "Justiça como equidade: concepção política, não metafísica" nesta edição.
  • 3
    A despeito das diferenças que mantém entre si, outras expressões importantes dessa tendência são: DWORKIN, Ronald.
    Taking Rights Seriously. Cambridge - Mass., Harvard University Press, 1978; NOZICK, Robert.
    Anarchy, State and Utopy. Nova Iorque, Basic Books, 1974; MACKIE, J.L.
    Ethics. Inventing Right and Wrong. Londres, Penguin Books, 1977.
  • 4
    RAWLS, J., op., p. 26-27.
  • 5
    SEN, Amartya e WILLIAMS, Bernard. "Introduction: Unitilarianism and Beyond." In: & (org.).
    Utilitarianism and Beyond. Cambridge University Press, 1982.
  • 6
    É essa concepção estreita de pessoa, que considera como informações eticamente relevantes somente as relativas ao bem-estar dos agentes - e bem-estar identificado à satisfação de desejos ou à utilidade — que Sen considera inaceitável na teoria econômica normativa ou descritiva. Ver, nesta edição, "Comportamento econômico e sentimentos morais".
  • 7
    A Theory of Justice, p. 3-4.
  • 8
    Ver discussão em Kai Nielsen, "Arguing about Justice: Marxist Immoralism and Marxist Moralism:" (
    Philosophy and Public Affairs, vol. 17, 3, 1983).
  • 9
    Minha discussão limita-se a dois dos padrões antes mencionados: as teorias baseadas em direitos e o utilitarismo. O terceiro, a promoção de atividades intrinsecamente valiosas, é criticado por Elster na forma em que se exprime por exemplo, no pensamento de Hannah Arendt. Ver "Auto-realização no trabalho e na política: a concepção marxista de boa vida" nesta mesma edição. A despeito da crítica a Arendt, a defesa de Elster, com algumas qualificações, da noção marxista de auto-realização tem evidentes afinidades com uma moralidade desse terceiro tipo.
  • 10
    RAWLS, John. "Kantian Constructivism in Moral Theory".
    The Journal of Philosophy, vol. LXXVII, 9, 1980. pp. 554-560.
  • 11
    Este é o ponto de vista defendido por G. A. Cohen em "Freedom, Justice and Capitalism" (New Left Review, 126, 1981).
  • 12
    Essa forma de amoralismo marxista é energicamente defendida por Richard Miller em "Rights and Reality" (
    The Philosophical Review, XC, 3, 1981).
  • 13
    RAWLS, J. "Kantian Constructivism...", op. cit.
  • 14
    A Theory of Justice, § 86, p. 567-577.
  • 15
    WALDRON, Jeremy. "Theoretical Foundations of Liberalism."
    The Philosophical Quarterly, vol. 37, 147, 1987. p. 135.
  • 16
    "Kantian Constructivism..." op. cit.
  • 17
    Michael Sandel faz uma interessante discussão da epistemologia rawlsiana em
    Liberalism and the Limits of Justice (Cambridge, Cambridge University Press, 1982).
  • 18
    No artigo publicado nesta edição, Jon Elster, no entanto, argumenta no sentido da superioridade de uma forma de vida orientada para a auto-realização. Ver "Auto-realização no trabalho e na política: a concepção marxista de boa vida".
  • 19
    "Kantian Constructivism...", p. 522. A tradução de
    fairness por "equidade" não ocorre sem alguma variação de sentido, mas parece não haver um termo mais adequado em português.
  • 20
    A Theory of Justice, § 22, p. 126-130.
  • 21
    Idem, ibidem, p. 128.
  • 22
    WALDRON, J., op. cit., p. 145.
  • 23
    Sobre as "bases sociais do auto-respeito", ver S 65, 66 e 67 de
    A Theory of Justice.
  • 24
    WALDRON, J., op. cit., p. 14.5.
  • 25
    Esta é a linha de argumentação desenvolvida por Rawls em seu artigo publicado nesta edição. Ver "Justiça como equidade: uma concepção política, não metafísica".
  • 26
    A Theory of Justice, p. 13.
  • 27
    Alguns críticos de Rawls confundem o consentimento hipotético a um padrão de justiça com uma teoria específica da deliberação política. É o caso, acredito, de Bernard Manin em "Volonté générale ou délibération?" (
    Le Débat, 33, 1985, pp. 72-93).
  • 28
    A Theory of Justice, pp. 101-102.
  • 29
    O princípio de diferença, acredita Rawls, oferece uma interpretação política para a idéia de fraternidade.
    A Theory of Justice, pp. 105-6.
  • 30
    TAYLOR, Charles.
    Philosophy and the Human Sciences. Philosophical Papers (v. 2). Cambridge, Cambridge University Press, 1985. pp. 285-317.
  • 31
    Idem, ibidem, pp. 187-210.
  • 32
    SANDEL, Michael,op. cit., pp. 50-65.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Abr 1992
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