Open-access Desafios da democratização universitária

ESPECIAL - UNIVERSIDADE

Desafios da democratização universitária

Luiz Eduardo W. Wanderley

Reitor da PUC-SP

1. Introdução

Podem os microprocessos de uma instituição de ensino superior, particular e paga, contribuir para o debate da democracia? Guardadas as devidas proporções e consideradas as limitações óbvias, diria que eles podem ajudar a reflexão sobre o processo democratizador na universidade brasileira e podem subsidiar a análise dos macroprocessos sociais em pontos bem específicos. E a PUC de São Paulo, por ter se transformado numa alternativa cultural e educacional, espaço de resistência política, centro de idéias e práticas autônomas e democráticas, instituição particular conhecida pelos seus esforços e realizações na defesa de um ensino e pesquisa qualificados, surge como um experimento exemplar dos limites e potencialidades da democracia universitária.

A questão de fundo é eminentemente política, com ligações acadêmicas, administrativas e econômico-financeiras. Ela pode ser exposta nos seguintes termos: a democracia exige um grau mínimo de consenso sobre as regras do jogo democrático e assimila uma certa dose de conflito que possibilite revê-las e aperfeiçoá-las. No modelo de ensino superior particular e pago, os interesses dos professores, estudantes e funcionários são conflitantes e cada segmento reivindica o atendimento máximo de suas demandas específicas, pondo em risco a viabilidade do conjunto. A falta de recursos, ampliada com o agravamento da crise financeira, impede o atendimento mínimo dessas demandas e conduz os representantes dos segmentos a posições cada vez mais corporativistas. Por outro lado, é preciso salientar que uma universidade competente, com ensino e pesquisa de qualidade, custa caro. O ensino particular e pago, sustentado basicamente pelo pagamento dos alunos, entrou em colapso. A saída é o ensino público e gratuito: ou pela via da estatização, correndo-se os riscos da tutela do Estado e das suas oscilações políticas, típicas do sistema capitalista brasileiro de caráter antidemocrático, mesmo não desconhecendo que o Estado é perpassado por contradições; ou pela via da publicização com base na sociedade civil, tese que defendo na parte final deste trabalho.

Não obstante existam traços peculiares e específicos que caracterizam as instituições universitárias, a democratização da universidade está condicionada necessariamente pela democratização na sociedade brasileira. É sabido como as relações sociais dominantes na nossa formação social denotam elementos recorrentes de autoritarismo e verticalismo que impregnam toda a vida social. A universidade não poderia estar imune aos seus efeitos, que atravessam as relações entre professor e aluno, entre professores, alunos e os funcionários, entre as direções e as bases, e assim por diante. Exemplos modelares da nossa história foram as figuras do catedrático no passado pié-68 e do reitor, antes e depois de 68; que concentravam uma forte soma de poder.

Apesar de mais diluído hoje, o poder ainda se concentra fortemente na administração superior.

A democratização universitária envolve pelo menos três dimensões básicas, a meu ver: a) democratização do acesso — englobando a universalização do ensino básico, o aperfeiçoamento do 2? grau, a melhoria do vestibular e a formação adequada, nos cursos de educação, de professores para o ensino de 1º e 2º. graus; b) democratização interna — englobando a escolha de dirigentes, processos de representação e de participação, informação e comunicação, responsabilidades individual e coletiva; c) democratização externa — englobando a extensão, a prestação de serviços, a participação da universidade no desenvolvimento, o controle social da sociedade sobre a universidade.

A democratização está vinculada organicamente à autonomia universitária. Estas duas dimensões são instrumentais para que a universidade cumpra bem os seus objetivos. Elas não são dadas naturalmente, não são adquiridas por normas legais (ainda que estas possam a ajudar a sua consecução), mas são objeto de conquista permanente e cotidiana dos membros das comunidades universitárias. Concretizá-las exige dedicação, esforço, compreensão, avaliação constante, projeto claro do que se quer, luta contra pressões e resistências, práticas concretas e reflexões teóricas que as acompanhem.

Contexto da PUC-SP

A análise de qualquer instituição de ensino superior é determinada por fatores históricos, estruturais e conjunturais, em suas dimensões sociais, culturais, econômicas e políticas. Esses fatores são externos e internos em íntima interligação. Por conseqüência, examinar o movimento democratizador e as relações de poder na PUC de São Paulo exigem a sua contextualização.

Para se fixar numa data não tão longínqua, os estudos para a nossa reforma universitária tiveram início em 1967 e foram concluídos em .1970 (com aprovação pelo Conselho Federal de Educação em 1971). Nossa reforma surge aproveitando-se de alguns espaços da reforma outorgada pelo regime autoritário, que visavam minimizar pressões de alguns setores estudantis e de professores. Teve por orientação de fundo o Documento de Buga (em que a Igreja católica da América Latina traçou diretrizes para as universidades católicas, em 1967), em que a identidade católica deveria ser assegurada pelo diálogo institucionalizado entre as ciências, a técnica e as artes, e a filosofia e a teologia, e a concepção de universidade não devia se reduzir a formar profissionais, mas responder às interrogações e às angústias mais profundas do homem e da sociedade. Compreendia também uma recuperação de insuficiências escolares anteriores (ciclo básico), a preparação de pesquisadores qualificados e dos docentes de que necessitava (pós-graduação), a formação crítica dos futuros profissionais para uma atuação transformadora e responsável na realidade (graduação), pensando numa articulação entre estes níveis.

A PUC de São Paulo, em que pese o fato do espírito da reforma ser aberto, estruturou-a obedecendo à escala hierárquica com poderes concentrados na reitoria e no Conselho Universitário, mantendo a cadeia de níveis sobrepostos com acumulação de representantes participando de várias instâncias. No atual estatuto, o grão-chanceler — que será sempre o arcebispo metropolitano de São Paulo — é a suprema autoridade em matéria de doutrina e moral, escolhe e nomeia o reitor, escolhe e nomeia o vice-rei-tor comunitário, aprova e nomeia os vice-diretores comunitários e pode vetar qualquer indicação de professor para o magistério ou cargo de direção, bem como qualquer deliberação das unidades universitárias que firam os princípios da doutrina e moral cristãs. Ao reitor cabe o comando central de toda a universidade, como responsável pela direção executiva, contando com a colaboração dos vice-reitores acadêmico e administrativo (de sua escolha) e comunitário, e lhe compete escolher e nomear os diretores gerais dos centros universitários. O Conselho Universitário é o órgão deliberativo máximo, constituído de: reitoria, diretores gerais dos centros, um representante do corpo docente de cada centro, um representante dos órgãos administrativos, representante do corpo discente (até 1/5) e dois representantes da comunidade (um dos empresários e um dos empregados). Os centros e faculdades são dirigidos por um diretor, sob a mesma orientação e princípios da reitoria. O reitor nomeia o chefe de departamento, escolhido em lista tríplice. A mantenedora—Fundação São Paulo—, além de ter a propriedade do patrimônio, é quem pode decidir sobre qualquer reforma estatutária, aprovar as contas e ser ouvida na escolha do reitor, entre outras atribuições.

O movimento dos docentes foi que primeiramente reagiu contra este estado de coisas, secundado pelo dos estudantes e, em seguida, pelo dos funcionários.

Papel fundamental nesse processo foi a atuação de setores da Igreja católica de São Paulo, sob a direção de D. Paulo Evaristo Arns, grão-chanceler da PUC-SP, na defesa dos direitos humanos, da participação, mobilização e organização do povo, nas denúncias contra as torturas, prisões e injustiças do sistema. Seus apelos, no interior da universidade, para que ela se comprometesse com os reais interesses do povo, tiveram impacto no surgimento de alguns institutos, de projetos na área social. A influência de Dom Paulo teve um raio de ação mais abrangente, quando decidiu, sponte sua, solicitar uma ampla consulta à comunidade para a escolha do reitor (em 1980 e, de novo, em 1984). Esta decisão desencadeou um movimento pelas eleições diretas para os cargos de reitor e, na seqüência, para diretores de centro de faculdades, de chefias de departamento, sempre com a participação de membros dos três segmentos por voto ponderado. As eleições são também o mecanismo utilizado para a indicação dos representantes docentes, discentes e administrativos em todas as instâncias. Para todos os níveis, pelo menos até hoje, prevaleceu a escolha do mais votado.

Posteriormente, iniciou-se um processo de elaboração de novo estatuto por meio de uma Comissão Universitária que produziu três anteprojetos, sem alcançar o desejado consenso. O Conselho Universitário criou, então, uma Comissão Constituinte, constituída por professores, alunos e funcionários eleitos, que redigiu o novo estatuto, após quatro meses de trabalho.

Além do conteúdo amplamente democrático do funcionamento da Comissão, o novo estatuto trouxe como inovação para as relações de poder um conjunto de elementos que foram considerados de grande avanço no processo democratizador (por alguns professores, funcionários e todos os estudantes) e de grande risco e inquietação (por alguns professores e funcionários). Exponho alguns deles, como ilustração, a seguir:

— Com relação ao grão-chanceler, reduz várias de suas competências, acrescenta a de "defender a autonomia universitária", elimina disposição sobre prescrições canônicas aplicáveis (constantes do diploma anterior) e muda substancialmente a competência anterior de escolher e nomear o reitor e o vice-reitor comunitário, passando agora a serem eleitos pela comunidade em eleições diretas de todos os membros dos três segmentos.

— Com relação aos Conselhos Superiores, há uma alteração substantiva na composição, fundada na tese da paridade, com pequena alteração no Conselho de Ensino e Pesquisa para o número dos funcionários. Exemplificando: Conselho Universitário — Consun. Reitor e vice-reitores, dez representantes do corpo docente, dez representantes do corpo administrativo, dez representantes do corpo discente; Conselho de Ensino e Pesquisa— Cepe. Vice-reitor acadêmico, quatorze representantes do corpo docente, quatorze representantes do corpo discente, seis representantes do corpo administrativo; Conselho Comunitário — Cecom. Vice-reitor comunitário, dez representantes do corpo docente, dez representantes do corpo discente, dez representantes do corpo administrativo; Conselho de Administração e Finanças — CAF. Vice-reitor administrativo, dez representantes do corpo docente, dez representantes do corpo discente, dez representantes do corpo administrativo.

Todos os representantes dos segmentos nos órgãos de deliberação devem ser preenchidos e escolhidos mediante eleições diretas, vedando-se as acumulações. Os representantes são eleitos pelos membros dos próprios segmentos. Uma inovação também é a de que os representantes dos Conselhos Superiores sejam eleitos por chapa. Para outras unidades acadêmicas (centros, faculdades, departamentos e coordenadorias gerais de pós-graduação, graduação e unidades complementares — estas três últimas criadas pelo novo estatuto), a composição varia bastante, sem critérios explícitos do porquê desta variação. O importante era garantir efetiva participação em todos os níveis.

De volta ao Consun, o documento foi escrutinado por pareceres de três professores do próprio Conselho e por uma Comissão de Juristas (dois da própria PUC e um externoaela). Decorrido longo tempo (fim de 1982 a novembro de 1983), comamplos debates, o Consun aprovou na íntegra o texto da Constituinte, com pequenas alterações indicadas pela Comissão de Juristas e pela Comissão de Redação da Constituinte.

O texto foi contestado, em alguns pontos, pela mantenedora (Fundação São Paulo) e o Conselho Federal de Educação baixou diligência para acerto interno.

Dadas as discussões em curso na comunidade sobre as perspectivas para a instituição — sobre a natureza jurídica, forma organizacional, meios financeiros, etc. —, aguarda-se o momento oportuno para a revisão do texto.

As experiências democratizadoras na PUC-SP foram sendo incrementadas paulatinamente, respeitando etapas e ritmos, com acelerações e modificações feitas em função de necessidades reais. Um balanço do conjunto mostra que elas tiveram um papel importantíssimo na quebra de relações autoritárias e verticalistas de poder, ainda subsistentes em determinadas áreas, na busca de novas formas de convivência entre setores e unidades, no avanço da participação em geral, na utilização de procedimentos imaginativos e criativos em momentos de crise acentuada, na elevação do nível de conhecimento da situação global da universidade por parte de muitos professores, estudantes e funcionários. Não obstante, permanecem vigorando equívocos e interrogações sobre questões de fundo, algumas das quais destaco a seguir.

2.Concepções de democracia e sujeitos politicos

Um ponto de partida indispensável está em se precisar o que vou entender por democracia. Sirvo-me de uma colocação de Bobbio1 para afirmar"(...) que democracia (não importa direta ou indireta, se assembleística ou representativa) é uma 'prática' extremamente complexa que não aceita improvisações, fáceis generalizações ou inovações mais ou menos engenhosas, e é quase sempre um mecanismo muito delicado que se quebra com facilidade". Ou, com Wolfe,2 que "(...) a democracia não é, e nunca foi, um simples conjunto de definições: ela requer adjetivos, já que sua natureza mudou e continuará mudando enquanto as classes sociais lutem pelo poder (...). É necessário falar da democracia no contexto das conjunturas historicamente específicas, do desenvolvimento econômico e político que correspondem a seus limites e a suas possibilidades".

Tem havido um certo consenso entre aqueles que querem escapar do projeto liberal ou neoliberal no sentido de ir além da defesa da democracia formal. Isto é, apenas com medidas que assegurem as liberdades e garantias individuais, a igualdade e governo para as massas definidoras da cidadania em seu significado clássico, que impedem de avançar das formas de representação e participação garantidas pelas normas jurídicas a todos os indivíduos. Alguns cientistas sociais também têm criticado uma concepção instrumental da democracia, pela qual os operários se utilizariam dela para fortalecer sua organização e ações políticas até o momento da revolução social em que o proletariado a suprimiria. Sabemos que a crise dos sistemas políticos e do Estado nos países capitalistas e as análises do socialismo real indicam novas questões teóricas e práticas que condicionam a questão.

No caso brasileiro, estão em conflito duas vertentes: liberal e democrático-popular. A vertente liberal, apoiada pelos conservadores, surge com bastante força para conquistar a hegemonia na elaboração da nova Carta Constitucional. Setores importantes dos três segmentos da comunidade universitária puqueana posicionam-se favoravelmente a esta orientação, alguns agindo manifestamente por meio de assesso-rias aos partidos e ao governo, outros fazendo parte da maioria silenciosa identificada organicamente com a vertente liberal. Esses setores, em boa parcela, não participam dos movimentos organizados internamente, atuam basicamente no cotidiano das aulas e em algumas estruturas acadêmicas (departamentos e colegiados) e procuram pressionar agentes externos importantes (Cúria romana, grão-chanceler, governo, parlamentares) nas conjunturas mais acirradas.

Souza aponta que: "Para a vertente democrático-popular a questão da democracia define um campo de luta que engloba, como negação, as dimensões ideológica, econômica e política impostas pelo regime e, por outro lado, supõe a afirmação de um projeto alternativo como vocação hegemônica (...). Em condições ideais, a vertente democrático-popular deveria contrapor a democracia ao liberalismo no plano ideológico (negando como objetivo histórico último uma sociedade de classes), político (deslegitimando o Estado liberal e propondo o Estado democrático-popular) e econômico (contrapondo o socialismo ao capitalismo). Na prática, e considerando o seu grau de desenvolvimento, a vertente democrático-popular: a) apenas começa a exercitar a democracia a partir de seus movimentos de base, aglutinando de forma defensiva suas forças, sem condições ainda para negar as relações sociais capitalistas que a subjugam; b) começa a ampliar sua luta por dissociar-se da tutela do Estado e das limitações impostas pela institucionalidade repressiva que se estabelece ou se reforça a partir de 1964; c) não superou ainda o caráter heterogêneo e disperso de sua oposição ao regime, fato que se reflete na ausência de uma liderança que a represente na arena da luta política nacional.3

São favoráveis a esta vertente as esquerdas e setores progressistas independentes, responsáveis mais diretos pelas conquistas democratizadoras há vários anos. São pessoas e grupos minoritários, mas hegemônicos na direção das associações de docentes e de funcionários e diretórios estudantis, com papel de destaque na condução dos acontecimentos nos momentos críticos da instituição.

Neste contexto amplo, surgem questões interessantes para estudos futuros mais aprofundados. No período repressivo, essas forças hegemônicas conseguiram apoios expressivos na maioria silenciosa e nos agentes liberais, numa espécie de proteção ao esprit de corps que unia a todos contra o antagonismo externo. Mesmo para os que não vivem intensamente o cotidiano da PUC-SP (docentes que se dedicam mais às ati-vidades profissionais), pertencer a uma universidade ousada pegava bem, satisfazia o ego de muitos e, na impossibilidade de criticar o sistema fora, fazia-se alguma coisa dentro. Com os primeiros sinais de abertura relativa, principalmente entre professores e estudantes, a divisão entre os adeptos do PMDB e do PT afetou a unidade conseguida durante anos nas direções das associações e no próprio movimento democratiza-dor. Como resultado de engajamento nos partidos políticos e em órgãos governamentais, por um lado, e em trabalhos de base em periferia e assessoria sindicais, por outro lado, vários militantes com liderança reconhecida e pertencentes aos quadros desses dois partidos se afastaram dos movimentos internos. Ademais, a eleição de uma reitoria, tida por "progressista", de certo modo contribuiu para uma pausa na atuação desses militantes, alguns dos quais se voltaram para a elaboração de suas dissertações e teses das quais se encontravam afastados.

Outra questão se refere ao modelo de ensino da PUC-SP. A luta pela democratização do país se harmonizava com a luta interna, entendida como rompimento das relações verticalistas de poder por meio de eleições diretas e sufrágio universal de todos os segmentos sob mecanismos de ponderação de votos, pelas reivindicações por melhores condições de trabalho e salariais, e pela luta pela autonomia. E o objetivo era um efetivo compromisso social vinculado à busca da competência. Durante anos não chegou a haver uma discussão profunda no conjunto universitário (já que em pequenos grupos ela sempre existiu) sobre os limites das relações entre o estatal e o privado, das relações com a Igreja e o Estado, numa palavra, do modelo de ensino particular e pago.4 Retomo a questão mais adiante.

Hoje, as opções pela democracia liberal ou neoliberal via capitalismo e pela democracia popular na perspectiva do socialismo ganham novos contornos com a nossa crise institucional. Os conservadores e liberais apostam na continuidade do modelo particular e pago, fundado numa administração empresarial que elimine setores deficitários e exija pagamentos adequados às despesas por parte dos alunos, reivindicando subsídios do Estado em caráter complementar. Alguns deles, dada a gravidade da crise, aceitam até normas mistas desde que não afetem radicalmente o modelo. Os defensores da segunda via estão divididos entre duas direções e estratégias: os que lutam pela estatização (havendo discordâncias se pela federalização, pela estadualização — corrente predominante — ou pela municipalização) e os que lutam pela publicização sem necessária estatização (o que vai exigir uma mudança radical na atual mantenedora e uma compreensão nova do papel do Estado em seu compromisso com a educação, bem como alterações de idéias e práticas da comunidade interna e de setores da sociedade civil).5

3. Democracia e competência

A democracia é compatível com a competência? As conquistas democráticas da PUC-SP favoreceram a melhoria da competência? Alega-se que os modelos de ensino superior, dominantes em inúmeros países desenvolvidos do mundo capitalista e socialista, normalmente não se preocupam com a democratização universitária e, apesar disso, suas instituições têm assegurado um bom nível de competência. Ora, não se pode esquecer que, nesses países, existem ao menos as condições e os meios para o exercício da cidadania e outros mecanismos de representação e participação na sociedade que tornam a universidade um espaço privilegiado com suas regras próprias. Em países subdesenvolvidos como o nosso, as universidades têm se constituído historicamente em lugares especiais de luta política contra regimes e governos e mesmo contra políticas educacionais conservadoras e autoritárias. Além disso, não se pode olvidar que está havendo um intenso processo de discussão sobre a missão das universidades nos países desenvolvidos, sem esquecer também das irrupções havidas de movimentos libertários nas universidades, com enormes repercussões sociais em suas sociedades (para ilustrar, lembremo-nos dos movimentos universitários nos Estados Unidos, à época da guerra do Vietnã, e os da França em 1968, que levaram certos analistas a sustentar, a meu juízo equivocadamente, a tese de que as universidades passariam a ser uns dos poucos centros de resistência aos sistemas tecnocráticos e burocráticos do mundo moderno).6

Em documento que apresentamos ao Conselho Universitário da PUC-SP,7 afirmamos que: "A competência universitária tem contornos próprios. Ela é fruto, para o professor, da produção e divulgação de conhecimento em uma determinada área, ou em mais de uma, o que é conseguido pela contínua qualificação no ensino e na pesquisa, seja pela formação cultural, intelectual e profissional, seja pelas atividades propriamente acadêmicas com os estímulos à titulação e à progressão na carreira do magistério. Com a ênfase de que se deseja uma produção e difusão do saber não fechadas numa torre de marfim mas impregnadas pelo compromisso social.

Em relação aos alunos, a competência se realiza pela formação geral e profissional que os prepare a intervir de modo próprio na sociedade, com as dimensões da ética e da responsabilidade individual e coletiva, e cujo trabalho esteja voltado para as maiorias. Para isto, é preciso constante avaliação e revisão de currículos, de métodos pedagógicos e disciplina de trabalho.

No que diz respeito aos funcionários, a competência é bastante diversificada em função da estratificação desse segmento. Os funcionários se distribuem em diferentes atividades. De todos se requerem habilitações e competências específicas, obtidas com os estímulos da progressão horizontal e vertical na carreira.

Considerando a existência dessas competências na condução do ensino e da pesquisa, o professor tem um papel de destaque e de responsabilidade — dados pela natureza mesma da instituição universitária —, assegurada a conveniente participação dos membros dos demais segmentos.

A autonomia universitária compreende a autonomia acadêmica, administrativa, financeira e política. Ela não é algo dado, mas um processo de conquista diuturno. Possuí-la significa liberdade de escolha de nossas políticas educacionais, tais como prioridades de cursos e currículos, definição do porte da instituição mais adequado a os seus objetivos e condições materiais e físicas, estabelecimento de normas contratuais que atendam à realidade multivariada das distintas unidades. Significa, por conseqüência, não aceitar tutelas de instâncias externas pertencentes às esferas estatal e privada. A democracia interna compreende formas de gestão e governo, mecanismos e formas de representação e participação em todos os níveis".

Esses três componentes se distinguem mas devem ser interligados e os dois últimos constituem ferramentas que alimentam o primeiro.

Bobbio, em seu estimulante artigo sobre "Quais alternativas à democracia representativa? " ,8 depois de comentar o significado preponderante da democracia, aponta alguns paradoxos da democracia moderna. Um deles se refere ao fato de terem aumentado, nas sociedades industriais (capitalistas e socialistas), os problemas que exigem soluções técnicas e que devem ser confiados aos especialistas, com a conseqüente tentação de se desejar governar por meio de técnicos ou da tecnocracia.

"Não é necessária muita perspicácia para constatar que tecnocracia e democracia entram em choque. A tecnocracia é o governo dos especialistas, isto é, daqueles que sabem uma só coisa, mas sabem, ou deveriam saber bem; a democracia é o governo de todos, isto é, daqueles que deveriam decidir não com base na competência, mas com base na própria experiência. O protagonista da sociedade industrial é o sábio, o especialista, o expert, o protagonista da sociedade democrática é o cidadão comum, o homem da rua, o quisque epopulo. Não existe paralelo possível entre as dificuldades que teve que enfrentar o homem da sociedade arcaica e aquelas com os quais nos defrontamos hoje. Para só dar um exemplo: quantos são os indivíduos que dominam os problemas econômicos de um grande Estado e estão à altura de propor soluções corre-tas, uma vez colocados certos objetivos? Ou, pior ainda, de indicar os objetivos que devem ser alcançados a partir de certos recursos? E, no entanto, a democracia se sustenta sobre a idéia-limite de que todos possam decidir tudo. Pode-se exprimir o paradoxo ainda de um outro modo: segundo o ideal democrático, o único especialista em negócios políticos é o cidadão (e, neste sentido, o cidadão pode se dizer soberano). Mas, na medida em que as decisões se tornam sempre mais técnicas e menos políticas, não fica mais restringida a área de competência do cidadão e, consequentemente, sua soberania? Não é, portanto, contraditório pedir sempre mais democracia em uma sociedade sempre tecnicizada?9

Essa problemática pode ser transposta para os meios universitários. Na universidade, por sua natureza específica, em geral é reconhecida a proposição de que deve prevalecer a competência e, por suposto, a competência do professor. Quando se admite que os três segmentos possuem competencias específicas, segundo o já assinalado anteriormente, os professores têm um papel fundamental na condução do ensino e da pesquisa. Pergunta-se, então, se os professores efetivamente são possuidores desta competência. E, na PUC-SP, se a participação de estudantes e funcionários em colegiados, de forma paritária, tem ajudado ou não a explicitar e/ou aperfeiçoar a competência desejada.

A professora Marilena Chauí, analisando o que ela chama de "universidade administrativa" a partir das diretrizes da reforma universitária de 1968, faz severas críticas à decantada competência universitária: "Creio que a universidade tem hoje um papel que alguns não querem desempenhar, mas que é determinante para a existência da própria universidade: criar incompetentes sociais, realizar com a cultura o que a empresa realiza com o trabalho, isto é, parcelar, fragmentar, limitar o conhecimento e impedir o pensamento, de modo a bloquear toda tentativa concreta de decisão, controle e participação, tanto no plano da produção material quando no da produção intelectual".10

Alega a autora que a reforma baseou o sistema universitário brasileiro no modelo administrativo das grandes empresas, que a departamentalização facilitou o controle administrativo e ideológico de professores e alunos, que a fragmentação da graduação (principalmente pelo sistema de créditos — matrículas por disciplinas), ao dispersar docentes e discentes, visou impedir o fortalecimento da comunidade e da comunicação nas instituições. "O aumento quantitativo dos alunos, na linha da chamada massificação, sem o crescimento proporcional do corpo docente e das condições de infra-es-trutura trazem a idéia implícita (...) de que para a 'massa' qualquer saber é suficiente, não sendo necessário ampliar a universidade de modo a fazer com que o aumento da quantidade não implicasse diminuição da qualidade".11 Observo que o concomitante crescimento do sistema particular aumentou ainda mais a massificação e a queda do nível de ensino. Outro mal apontado por Chauí é o de que a educação passou a ser mais da esfera do Ministério do Planejamento do que do Ministério da Educação (basta ver as crises periódicas da falta de verbas nas federais e as declarações do MEC de que ele é um mero repassador dessas verbas).

"Retomando meu ponto de partida, eu ousaria dizer que não somos produtores de cultura somente porque somos economicamente 'dependentes', ou porque a tecnocracia devorou o humanismo, ou porque não dispomos de verbas suficientes para transmitir conhecimentos, mas sim porque a universidade está estruturada de tal forma que sua função seja: dar a conhecer para que não se possa pensar. Adquirir e reproduzir para não criar. Consumir, em lugar de realizar o trabalho da reflexão. Porque conhecemos para não pensar, tudo quanto atravessa as portas da universidade só tem direito à entrada e à permanência se for reduzido a um conhecimento, isto é, a uma representação controlada e manipulada intelectualmente. É preciso que o real se converta em coisa morta para adquirir cidadania universitária.

Dessa situação resultam algumas conseqüências que convém examinar.

Do lado do corpo docente, leva à adesão fascinada à modernização e aos critérios do rendimento, da produtividade e da eficiência. Para muitos de nós, que não aderimos à mística modernizadora, parece incompreensível a atitude daqueles colegas que se deixam empolgar pela contagem de horas-aula, dos créditos, dos prazos rígidos para conclusão de pesquisas, pela obrigatoriedade de subir todos os degraus da carreira (que são graus burocraticamente definidos), do dever da presença física nos campi (para demonstrar prestação de serviço), pela confiança nos critérios quantitativos para exprimir realidades qualitativas, pela corrida aos postos e aos cargos. Para muitos, a adesão ao 'moderno' aparece como abdicação do espírito de cultura. Não é bem verdade. Aqueles que aderiram ao mito da modernização simplesmente interiorizam as vigas-mestras da ideologia burguesa: do lado objetivo, a aceitação da cultura pelo viés da razão instrumental, como construção de modelos teóricos para aplicações práticas imediatas; do lado subjetivo, a crença na 'salvação pelas obras', isto é, a admissão de que o rendimento, a produtividade, o cumprimento dos prazos e créditos, o respeito ao livro de ponto, a vigilância sobre os 'relapsos', o crescimento do volume de publicações (ainda que sempre sobre o mesmo tema, nunca aprofundado porque apenas reescrito), são provas de honestidade moral e de seriedade intelectual. Para boa parte dos professores, além do benefício dos financiamentos e convênios, a modernização significa que, enfim, a universidade se tornou útil, e, portanto, justificável. Realiza a idéia contemporânea da racionalidade (administrativa) e alberga trabalhadores honestos. Em que pese a visão mesquinha da cultura aí implicada, a morte da arte de ensinar e do prazer de pensar, esses professores se sentem enaltecidos pela consciência do dever cumprido, ainda que estúpido. Evidentemente, não entram aqui os casos de pura e simples má fé — isto é, dos colegas que usam a universidade não tanto para ocultar sua incompetência, mas para vigiar e punir os que ousam pensar.

Do lado dos estudantes, a tendência é oposta. Recusando a razão instrumental, a maioria dos estudantes se rebela contra a estupidez modernizante, e essa rebelião costuma assumir duas formas: a valorização imediata do puro sentimento contra a falsa objetividade do conhecimento, ou a transformação da Tese 11 contra Feuerbach em palavra de ordem salvadora, pedra de toque contra a impotência universitária. Embora compreensíveis, essas atitudes não deixam de ser preocupantes."12

Do lado dos funcionários, acrescento eu, a questão é mais complexa pela razão mesma da estratificação existente nesse segmento. Os funcionários-professores e funcionários-estudantes tendem a repetir os padrões indicados para os professores e para os estudantes. Os funcionários simplesmente funcionáros, com poucas exceções, não possuem pleno conhecimento da natureza de uma universidade e são movidos pelas reivindicações corporativas do seu segmento, tendendo no limite a encará-la como outra empresa capitalista qualquer, no que, pelo que foi dito pela autora, eles acertam. No entanto, ao entendê-la desse modo, obscurecem a compreensão das finalidades dessa instituição de ensino e dificultam a convivência das regras democráticas na inter-relação com os demais segmentos.

A PUC-SP não escapa dos males apontados por Marilena Chauí. Em termos de competência, contudo, ela foi capaz de avançar em muitos aspectos, sendo reconhecida pela sociedade como de bom nível, no que foi acompanhada por outras poucas instituições universitárias particulares, diferentemente do subconjunto das privadas com fins lucrativos, que apresentam um baixo nível de ensino e pouca ou nenhuma pesquisa.

Além disso, por um bom período de tempo, ela inovou no campo da extensão, desenvolvendo seu compromisso social com os setores populares por meio de uma série de serviços. Ela conta em seus quadros com professores de reconhecida competência, situados em cursos de graduação e em programas de pós-graduação. Há uma constante progressão na carreira de magistério. A titulação é estimulada, apesar de estarmos aquém do desejado por falta de recursos.

A pesquisa individual e coletiva é apoiada na graduação e com expansão progressiva na pós-graduação. Várias faculdades fizeram reformas curriculares, objetivando melhor a qualificação e adequação à realidade social. A política de prestação de serviços passa por uma reorientação que a integre organicamente com o ensino e a pesquisa.

Para um grande número de professores e alunos, a tendência é a de se adaptarem ao establisment, havendo setores expressivos com forte compromisso social. A competência foi reforçada com a luta pela autonomia universitária que nos permitiu inovar na estruturação acadêmica, na composição de órgãos deliberativos, que permitiu acolher professores cassados das universidades estatais e assegurou ampla liberdade de opinião em todas as atividades, sem nenhuma interferência externa ou das direções sobre orientações doutrinárias e filosóficas de professores e cursos, garantindo o pluralismo de pensamento.

A participação nas discussões e nas decisões ajudou na qualificação dos projetos educacionais? Em termos de grupos pequenos, mais no âmbito de cursos e departamentos e até mesmo em conselhos de faculdades, a presença de alunos ao lado dos professores foi bastante positiva. Já nos colegiados superiores paritários, apenas alguns poucos estudantes e funcionários adquiriram uma visão mais ampla da instituição e têm contribuído nas questões de ensino e pesquisa. Esses poucos têm se mostrado, às vezes, mais atuantes que certos professores. Em questões políticas e em questões específicas dos segmentos, a participação é mais intensa e as suas contribuições têm tido maior alcance. Como já foi salientado, entre outras dificuldades percebidas, a questão da falta de quorum nas reuniões ordinárias tem preocupado a todos, bem como a forma de escolha da representação dos estudantes e funcionários — por chapa — está requerendo uma revisão. O tempo limitado da implantação da paridade, condicionada pelos efeitos perversos da crise financeira, não permite ainda uma avaliação rigorosa, mas os colegiados já iniciaram um esforço nesse sentido.

4. Democracia e o público mão-estatal

Queremos uma PUC-SP autônoma e democrática, com qualidade na produção e difusão de conhecimentos, capaz de intervir de modo próprio no meio social. Até agora, vimos algumas das dificuldades maiores para assegurar a competência e os avanços democráticos.

Essa análise teria que ser necessariamente completada com outros pontos fundamentais . Na impossibilidade de desenvolvê-los agora, tentarei explicitar aquele que está sendo mais questionado pela comunidade na presente conjuntura: se é compatível a defesa da competência nos marcos do processo democratizador, como foi até hoje desenvolvido, dentro dos limites dados pelo modelo de ensino particular e pago.

Penso que não e defendo a tese de que devemos encontrar caminhos de publicização, tirando inclusive o ensino da tutela do Estado. Exponho a seguir algumas idéias lançadas para debate no interior da PUC-SP. 4.1. Requisitos para que uma instituição universitária cumpra sua função pública.

A garantia maior desses requisitos será dada pelo reordenamento constitucional. No sistema público de ensino atual, é possível eliminar a tutela do Estado? Existem condições para que um número limitado de particulares realizem as mudanças estruturais que as direcionem a uma efetiva publicização? Na seqüência, exponho os requisitos básicos.

4.1.1. A democratização do acesso, que implica reverter o quadro de desigualdade social nas oportunidades de educação a todos os jovens. Os pobres ou não estudam ou estudam em escolas públicas de 1º e graus, em inferioridade para competir com os alunos que vêm das escolas privadas. Os ricos freqüentam escolas primárias e secundárias de melhor qualidade e entram nos cursos superiores gratuitos oferecidos pelo Estado. Os filhos de trabalhadores e inúmeros assalariados em geral somente com esforços heróicos conseguem obter os recursos para pagar mensalidades em instituições particulares de ensino superior que oferecem, na maioria dos casos, educação de baixíssima qualidade e a preços elevados.

Neste âmbito, a prioridade máxima está na destinação de recursos para o ensino básico, hoje abandonado, expandindo-o e qualificando-o. Uma medida no âmbito universitário viria de alterações no vestibular, segundo estudos em andamento, para que os alunos pobres tivessem oportunidade de chegar ao ensino superior e manter-se nele, com sistemas de aferição de mérito adequados.

4.1.2. A competência adquirida na produção e difusão do conhecimento. Competência com compromisso social. Concordando com o documento da SBPC, apresentado à subcomissão própria da Constituinte: "O desenvolvimento científico e tecnológico deve ser norteado pelos seguintes princípios: Proporcionar condições necessárias para que o desenvolvimento econômico e social se faça de forma autónoma, de tal modo que se possa superar a dependência tecnológica do país e alcançar a melhoria das condições de vida da população. Propiciar garantias efetivas à autonomia da pesquisa científica. Reconhecer a importância da pesquisa básica, que não pode sofrer interferências estranhas no seu meio e só se orientar pela busca de conhecimentos desinteressados. Reconhecer também que a pesquisa aplicada deve refletir o compromisso de buscar soluções para os problemas nacionais, regionais e locais". Para concretizar estes princípios, faz-se indispensável realizar uma avaliação institucional com a finalidade explícita da melhoria da qualidade do ensino, da pesquisa, da extensão. O que requer a valorização dos recursos humanos e condições materiais apropriados.

4.1.3. A democratização das relações de poder na instituição. A democracia interna compreende mecanismos de gestão e governo, formas de representação e participação, funções decisórias de instâncias colegiadas e sua integração. É um meio para estimular a competência desejada. As eleições para chefias, com destaque para o cargo de reitor, estão se processando em todo o país. Constituíram-se em passo efetivo para romper o autoritarismo reinante e o verticalismo das decisões. No entanto, são uma etapa de algo que deve ser muito mais amadurecido. Por um lado, não se pode cair no democratismo (assembleísmo, basismo, voluntarismo, entre outros ismos), que contraria os próprios objetivos que se pretende alcançar. Têm havido superposições entre o movimento sindical e a estrutura acadêmica que não têm favorecido, em muitos casos, a democratização desejada. Por outro lado, as eleições sozinhas não garantem a democratização. São requeridas medidas complementares, tais como: sistemas de comunicação e informação que facilitem a integração de setores e coordenação de instâncias, bem como a transparência das atividades; participação ativa em todos os momentos da vida universitária: nas salas de aula, nas associações, etc; representação legítima e prestação de contas aos representado; modalidades de participação de cada segmento, prevalecendo a tese de que, se as competências são diferenciadas a participação deva ser diferenciada, e os docentes, pela natureza mesma da instituição, têm um papel de destaque e de responsabilidade na condução do ensino e da pesquisa.

4.1.4. O controle dos recursos. Se os recursos vêm da sociedade, ela deve saber qual a sua destinação, como são aplicados e quais os resultados. As políticas de financiamento do governo federal, com a intenção de assegurar dinheiro complementar às verbas governamentais, com o programa de crédito educativo, com o arrocho de recursos para outros custeios, com o fortalecimento das agências de fomento para investigações implementadas fora da universidade, foram medidas que tiveram por resultado ora criar facilidades para algumas instituições privadas, ora constranger instituições estatais. Veloso aponta que "os processos e as decisões quanto à destinação de recursos dentro da instituição, apesar de sua importância para a democratização da vida universitária, raramente foram objeto de reflexão e ação das Associações de Docentes. Neste ponto, há que se avançar muito, inovando e aprofundando os meios e mecanismos adequados para que a sociedade em geral e as comunidades internas em particular possam controlar e fiscalizar os recursos.

4.1.5. Finalidade da instituição. Uma tese distingue a natureza de uma instituição pública e privada pelos fins lucrativos ou não. Ela precisa ser bem entendida para evitar ambigüidades e deve ser completada com os requisitos antes citados.

"Na determinação da distinção entre instituição pública e privada, o fundamental, (...) não é a questão da propriedade jurídica, mas o fato das unidades de ensino determinarem-se ou não como empresas capitalistas, ou seja, regerem-se ou não pela lógica da acumulação de capital. Desta forma, todas as instituições de ensino de propriedade estatal e algumas de direito privado que não estão voltadas à obtenção do lucro pertencem ao setor público. Deve-se registrar que a rentabilidade destas instituições, quando existentes, deve-se à necessidade de reprodução ampliada das mesmas como empreendimento não-capitalista. O setor privado, por outro lado, abrange as instituições que organizam suas unidades de ensino, pesquisa e extensão cultural com a finalidade de obtenção de lucro e de acumulação de capital" (Carlos Benedito Martins).

4.2. Caminhos da publicização

O primeiro caminho está em assegurar na Constituição o princípio do ensino público e gratuito. E o compromisso do Estado para com a educação, por meio de fixação de nunca menos de 13 % para a União e de 25 % para os estados, municípios e Distrito Federal, de sua receita tributária, na manutenção e desenvolvimento do ensino público.

O segundo é o da destutelação progressiva das escolas públicas, criadas e mantidas pelos governos, do Estado. O que significa garantir a autonomia universitária — científica, pedagógica, administrativa, financeira e política — com controles adequados da sociedade. É preciso rever as estruturas do Ministério da Educação e dos Conselhos de Educação (Federal, Estaduais e Municipais) no sentido de sua democratização e de não-interferência na vida das instituições.

O terceiro passa por uma avaliação institucional (auto-avaliação e avaliação externa) das instituições de ensino superior públicas e gratuitas, que corrija distorções, potencialize seu desenvolvimento e assegure o cumprimento de sua função pública.

O quarto seria o da criação de um sistema de ensino educacional que não fosse destinado exclusivamente ao ensino superior como hoje está montado, permitindo aos alunos uma formação ampla para se integrar na sociedade e no sistema produtivo de forma a executar tarefas gratificantes e com remuneração adequada (análogo ao que existe em outros países do mundo ocidental).

O quinto é o da transformação de umas poucas instituições de ensino particulares em instituições públicas não-estatais, o que implica mudanças institucionais em suas formas atuais de organização e de estatuto jurídico. E implica também a discussão — um dos pontos mais delicados dessa possibilidade — de tirar o caráter exclusivo das verbas públicas para escolas públicas (estatais), como vem sendo defendido por muitos. Existem mecanismos legais e outros que impeçam o uso de subterfúgios para desviar recursos públicos e evitem ambigüidades na definição dessas entidades?

Os publicistas (pela via estatal) apresentam receios fundados de que essa proposta abra precedentes perigosos, que afetarão o já combalido sistema público atual e permitirão que instituições particulares a defendam para conseguir "bons negócios" (pela desapropriação de patrimônio), para carrear recursos para mantenedoras (confessionais e outras), para salvar da crise financeira entidades sem qualificações mínimas de ensino. Argumentam que vivemos num Estado cartorial e clientelístico no qual certas pressões políticas tornam-se irresistíveis. Por conseguinte, as instituições particulares pretendentes a adquirirem o estatuto de públicas não-estatais sempre arranjarão um estratagema para se habilitarem, para burlar a lei, mesmo porque inexiste fiscalização dos poderes públicos que seja eficiente e convincente.

São receios e argumentos válidos, mas que não impedem de pensar alternativas e buscar criar mecanismos adequados e seguros que evitem distorções e arranjos. Vou apontar alguns deles.

Só poderiam ser habilitadas instituições que demonstrassem possuir os requisitos de mérito, já enunciados, e outros legais. Para isto, como já foi indicado, há necessidade de mudanças nos estatutos das mantenedoras e das instituições de ensino. Deveria constar explicitamente nas exigências o impedimento de que as verbas públicas recebidas pudessem ser destinadas para patrimônio, para pagamentos de diretores, para formas disfarçadas de lucros ou vantagens. Outras condições adicionais direcionadas a assegurar a qualidade: a) existência de carreira de magistério; b) existência de pós-graduação com conceituação comprovada (utilizar a classificação da Capes, por exemplo); c) existência de um número mínimo de titulados nos quadros docentes; d) existência de uma porcentagem definida para bolsas de estudo; f) existência de recursos para qualificação docente e dos cursos.

Um elemento-chave está no controle e fiscalização por parte da sociedade civil e do Estado. Existem mecanismos diversificados. Dentro da comunidade universitária, criação de setores e colegiados que analisem e tracem as diretrizes econômico-financeiras, com participação de representantes dos três segmentos. Deles poderiam participar, sob formas convenientes, o próprio Curador de Fundações e representantes das atuais universidades públicas, bem como membros do setor científico (SBPC, agências de financiamento à pesquisa) e de setores sociais variados. O Tribunal de Contas deveria analisar a prestação de contas das verbas públicas recebidas.

Outro ponto importante diz respeito às formas organizacionais e jurídicas que as instituições particulares, pretendentes à publicização, deverão assumir. Quanto à natureza, há uma larga discussão sobre entidades de direito público e privado que necessita avançar; as propostas de um ente jurídico com atributos especiais para as universidades merece reflexão; a fórmula da fundação mista (composta de representantes da comunidade interna, da sociedade civil e do Estado) também é viável. Uma idéia válida seria a de que o controle da instituição estaria nas mãos dos pares — o chamado poder acadêmico —, com representação da comunidade universitária e científica interna e externa.

Quanto ao governo, quer se garantir a gestão democrática nos termos já enunciados.

Com relação à orientação, no caso de instituições de ensino superior, é da sua natureza o pluralismo do pensamento e a autonomia universitária contra ingerências externas de qualquer ordem. Nas instituições confessionais, tem-se defendido a necessidade de um diálogo institucionalizado das ciências, das técnicas e das artes com a filosofia e a teologia.

No caso específico da PUC-SP, vive-se um momento de inflexão. Os movimentos da comunidade optaram pela realização de um plebiscito para votar sobre as propostas para a solução da crise estrutural: a) estadualização; b) publicização: fundação mista. Grupos expressivos que defendem a continuidade da privatização não se manifestaram. O Conselho Universitário também deliberará a respeito ainda em junho. Conseguirá a comunidade, após esse processo, assegurar o grau mínimo de consenso que revitalize a sua democracia?

Referências bibliográficas

  • 1 Norberto Bobbio, Qual Socialismo? Discussão de Uma Alternativa. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1983, p. 59.
  • 2. Alan Wolfe, "O mal-estar do capitalismo: democracia e as contradições do capitalismo avançado", in Vários Autores, A Quostão da Democracia. Rio de Janeiro, Paz eTerra-CEDEC, 1980, pp. 16-7.
  • 3. Herbert de Souza, "Notas sobre a questão atual da democracia no Brasil", in A. Wolfe et alii, op. cit., p. 115.
  • 44 Essa discussão começou a se desenvolver mais a fundo no interior da ANDES. A propósito, ver a publicação da ANDES, O Público e o Privado. O Poder e o Saber Universidade em Debate. Rio de Janeiro, Marco Zero, 1984.
  • 5. Ver, de L. E. W. Wanderley, "Caminhos da publicização o caso da PUC-SP", texto mimeografado, distribuído internamente na PUC, maio de 1987.
  • 6. A . Touraine. Le Mouvement de Mai ou le Communisme Utopique. Paris, Ed. du Seuil, 1968;
  • La Sociàté Postlndustrielle. Paris, De Noel, 1969, Colection Mediation n? 61.
  • 10. M. Chauí, "Ventos do progresso: a universidade administrada", in Prado Jr., Tragtenberg, Chauí, Romano, Descaminhos da Educação Pós-68. São Paulo, Brasiliense, 1980, p. 34.
  • 1
    . Norberto Bobbio,
    Qual Socialismo? Discussão de Uma Alternativa. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1983, p. 59.
  • 2
    . Alan Wolfe, "O mal-estar do capitalismo: democracia e as contradições do capitalismo avançado", in Vários Autores,
    A Quostão da Democracia. Rio de Janeiro, Paz eTerra-CEDEC, 1980, pp. 16-7.
  • 3
    . Herbert de Souza, "Notas sobre a questão atual da democracia no Brasil", in A. Wolfe et alii, op. cit., p. 115. Apesar de escrito antes da "Nova República", os argumentos do autor permanecem válidos, ainda que se devam registrar alterações significativas no movimento popular de hoje.
  • 4
    . Essa discussão começou a se desenvolver mais a fundo no interior da ANDES. A propósito, ver a publicação da ANDES, O
    Público e o Privado. O Poder e o Saber — Universidade em Debate. Rio de Janeiro, Marco Zero, 1984.
  • 5
    . Ver, de L. E. W. Wanderley, "Caminhos da publicização — o caso da PUC-SP", texto mimeografado, distribuído internamente na PUC, maio de 1987.
  • 6
    . A . Touraine.
    Le Mouvement de Mai ou le Communisme Utopique
    . Paris, Ed. du Seuil, 1968;
    La Sociàté Postlndustrielle
    . Paris, De Noel, 1969, Colection Mediation n? 61.
  • 7
    . Reitoria, "Perspectivas para a PUC-SP — II", abril de 1987 (mimeo.).
  • 8
    . N. Bobbio, op.cit.
  • 9
    . Idem, p. 61
  • 10
    . M. Chauí, "Ventos do progresso: a universidade administrada", in Prado Jr., Tragtenberg, Chauí, Romano,
    Descaminhos da Educação Pós-68. São Paulo, Brasiliense, 1980, p.
    34.
  • 11
    . M . Chauí, op. cit, p. 38.
  • 12
    . M . Chauí, op.
    cit, pp. 47-8.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Mar 2011
    • Data do Fascículo
      Set 1987
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