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Campanha eleitoral em São Paulo: são tantos fatores que...

ESPECIAL

Campanha eleitoral em São Paulo: são tantos fatores que...

Tullo Vigevani

Editor de LUA NOVA e professor de Ciência Política da PUC/SP

Este artigo deveria ter sido escrito antes das eleições. Não o foi, não deu tempo, como sempre! Mas nem por isso vamos falar do pleito em São Paulo a partir dos resultados. Isto é outro papo, fica para outro dia. O que nos interessa é a campanha em si e as questões que colocou. Certamente, como todos bem sabemos, os resultados não eram tranqüilos nos sucessivos meses do processo eleitoral. Esta é uma primeira verdade inquestionável. Pelo que, será interessante enfocar quais as causas da mutabilidade da vontade popular. E é justamente aí que as coisas se complicam.

O resultado da eleição municipal de São Paulo, de novembro de 1985, havia alvoroçado a capacidade de análise de muitos políticos, intelectuais, jornalistas, etc.

Algumas coisas vieram à tona, ao menos para debate: a suposta irracionalidade na decisão de voto, a desconfiança em relação ao projeto centrista, moderado e reformista que a política do PMDB implantou no Brasil, particularmente em São Paulo. Partidos e candidatos, na campanha de 1986, procuraram, sem dúvida, aproveitar-se dos ensinamentos de 1985. Mas os fenômenos sócio-políticos não são lineares. De fato, no segundo semestre de 1985 os índices de desgaste da Nova República eram evidentes, já durante a campanha de 1986 nem mesmo Paulo Maluf, Delfim Neto e o PDS tiveram a audácia de investir frontalmente contra o governo Sarney na esperança de ganhar os segmentos chamados classes D e E.

Lembro-me de discussões dos fins dos anos 50 e início dos 60, nas quais, reconhecendo-se em outras regiões do país potencialidades maiores para radicalidade ou explosividade (plebléia, camponesa, nacionalista, pequeno-burguesa), atribuía-se a São Paulo a capacidade de oferecer uma solidez política significativa em razão de seu desenvolvimento sócio-econômico, que permitiria uma hegemonia maior da burguesia, por um lado, e da classe operária, pelo outro. O que a campanha eleitoral de 1986 demonstrou são — mais uma vez — as dificuldades desta hegemonia. A pobreza política e cultural colocada a nu nesta ocasião nos parece apontar seriamente num sentido: a debilidade das forças que propõem a montagem de um projeto para o Brasil, e isto vale tanto para os dominantes, quanto para os dominados.

Não há a menor dúvida de que nas eleições de 1986 (mas não teria sido sempre assim?) todas as campanhas, inclusive a do PT, dirigiram-se para os sentimentos aparentes e passageiros, mas não menos reais, à epiderme da vida social e das grandes questões, sendo neste sentido deseducativas. Isto é, poderá parecer óbvio, mas é necessário reiterá-lo, os candidatos e os partidos sob muitos aspectos buscaram o senso comum e — tal como uma campanha publicitária de um produto qualquer — tentaram apenas adaptar sua mensagem àquilo que acreditaram ser o que queria o eleitorado. Afora algumas generalidades, o programa não existiu, ou se existiu, como o famoso programa registrado em cartório do candidato a governador Paulo Maluf, não passou de plataforma demagógica totalmente desarticulada de uma análise séria das condições objetivas, inclusive da situação em que se encontravam as finanças públicas. Claro que esta tática publicitária sob determinadas condições pode ter êxito, sob outras não: não podemos aprioristicamente definir o resultado, daí a grande dificuldade dos estrategistas.

Se a imagem, e não a realidade do candidato e das forças que o apóiam, é o que se quer passar ao grande público, se explica por que surge uma candidatura que apesar de apoiada por um setor importante da grande burguesia, inclusive de seus setores modernizadores e dinâmicos, promove como slogan, quase que único, o fato de representar o Novo São Paulo, fazendo-se nisto acompanhar por Roberto Carlos. Isto é, a candidatura de Ermírio de Moraes, pelo PTB, que inicialmente, de forma bonapartista e colocando-se acima dos partidos, arrasta grande parte da classe média urbana, podendo assim — dependendo das condições — formar uma corrente de opinião efetivamente muito forte, acaba em pouco tempo perdendo espaço justamente pela dificuldade ou incapacidade, que mais uma vez se comprova, de dominação hegemônica de parte da grande burguesia.

É nesse contexto que cabe assinalar a capacidade de reação da candidatura Orestes Quércia, do PMDB, que as pesquisas no último mês de campanha apontavam como estando à frente. O que nos interessa aqui, mais uma vez, não é o resultado, mas o processo de montagem de um resultado eleitoral. Não há dúvida de que a candidatura foi indigesta para muitos dirigentes e caciques do partido. Também não há dúvida que a passagem de parte deles à candidatura do PTB foi encarada carinhosamente, na esperança de torpedear Quércia e seu grupo. O renascimento — certamente não inevitável — da candidatura majoritária do PMDB mostra mais uma vez a complexidade dos fatos políticos. Não há a menor dúvida que a conjuntura nacional favorável à Nova República nos meses de campanha ajudou. Mas nos parece que o que vale a pena assinalar é a capacidade do grupo dominante do PMDB de São Paulo, com Quércia e Almiro Affonso à testa, de recosturar o partido a partir do aparelho público e do medo frente ao perigo de naufrágio coletivo que a todos atingiria. A máquina do governo do Estado foi colocada em funcionamento nos moldes tradicionais, mas as lideranças tentadas à deserção foram obrigadas à fidelidade, sob o risco de todos perderem. Claro que estas condições não explicam tudo, nem de per si determinam os resultados, mas são fatores que pesam. Ao que se pode somar a capacidade de passar a imagem do homem simples, comum, bonachão; caipira mas determinado a obter do poder público o atendimento das reivindicações do povo, como a da carne, por exemplo. Se o que se disse retrata um pouco o desenrolar dos acontecimentos e alguns mecanismos que estiveram presentes na campanha, há um ponto que nos parece da maior importância questionar. Refere-se à questão da representação e de sua legitimidade neste particular processo eleitoral.

Bem sabemos que a crítica socialista e marxista já malhou a fundo o significado do processo eleitoral. Cabe, porém, assinalar que o momento eleitoral expressa, indubitavelmente, um determinado corte da vontade política dos cidadãos. Por absurdo, não se pode deixar de reconhecer que mesmo em regimes autoritários alguma capacidade de aferição de vontades possui o processo eleitoral: basta que nos recordemos dos resultados dos pleitos brasileiros no período da ditadura militar (vitórias da Arena, do PMDB, votos nulos, etc.). Claro que excluímos os casos de fraude declarada, generalizada e ostensiva. Dito isso, tenha-se em conta que numa sociedade de classes, de disputa violenta do poder de parte das diferentes frações da burguesia, pois ter acesso ao aparelho de Estado implica direcionar a dominação em favor do próprio grupo, nesta sociedade a perfeita isonomia e igualdade de possibilidades de disputa do voto não apenas não existe, mas certamente não passa de uma utopia, de uma balela. A história tem, porém, nos ensinado que as classes dominadas, em particular os trabalhadores, têm eventualmente sabido criar instrumentos que poderiam contrapor-se àqueles que fazem parte do arsenal dos dominantes. Na medida em que esta situação não se dá, ou se dá limitadamente, o processo eleitoral, reiteramos, ainda que sendo uma forma de aferição, altera a vontade soberana do povo. Ou melhor, a afere, mas fracionada, localista ou corporativamente. Claro que o voto não deixa de espelhar a vontade concreta do eleitor, mas esta vontade está sobre determinada — e isto foi patente em 1986 em São Paulo — por uma série de impulsos que podemos caracterizar como extremamente longínquos daquilo que se costuma chamar projeto de vida em sociedade.

Uma vista de olhos nas campanhas dos candidatos proporcionais, deputados federais e estaduais, permite ver quanto pesou o particularismo, o municipalismo, o bairrismo e o corporativismo: a propaganda buscou a todo momento — claro que há inúmeras exceções, particularmente no PT e nos ideológicos do PMDB, mas nem sempre — produzir uma identificação com o eleitor em questões específicas, ampliando-se assim mais e mais os mecanismos de despolitização.

A campanha eleitoral, não perdendo-se de vista o Brasil como um todo, demonstrou claramente que o eleitorado possui alguns referenciais gerais extremamente importantes: os representantes diretos, ou seus diletos filhos, do regime autoritário de 1964 perderam verticalmente espaço. Mesmo assim, os que possuem enraizamento na sociedade civil, por exemplo, Afif Domingos e Delfim Neto, permanecem à tona e frente a futuras situações de desequilíbrio social poderão voltar a ser eixos de reaglutinação. Neste sentido, não se pode subestimar de maneira alguma o significado da campanha. A sociedade produziu delegados de certa forma aderentes ao seu nível de agregação. Isto é, a campanha eleitoral e o corpo de representantes que dela surge traz à luz uma forma de agregação particularmente interessante e que deve ser compreendido, inclusive porque estas eleições foram as mais livres desde aquelas de outubro de 1962. O corpo social quer ver-se representado por candidatos aos quais está de alguma forma vinculado não por laços políticos, mas sobretudo por laços que dêem a aparente garantia de fidelidade ou de possibilidade de cobrança. Eis a ilusão! Sem pensar que haja um renascimento do caudilhismo latino-americano ou do coronelismo brasileiro — nem se trata disso no fim do século XX —, pode-se efetivamente refletir como estarão representados os interesses de classe e os interesses que cada classe propõe à sociedade como um todo e à própria nação. É aqui que cabe a reflexão sobre a legitimidade da representação e as dúvidas que disto derivam. O corpo de representantes aparentemente fica atomizado, mas a experiência indica que nestes casos os grupos sociais efetivamente articulados, e no nosso caso os conservadores o são mais, poderão pesar mais. Em São Paulo, a confirmação de espaços de parte da esquerda, sobretudo do PT, mostram contudo a possibilidade de afirmação de uma corrente que expressa a vontade do pólo dominado da sociedade. Mas limites assinalados para o contexto geral se reproduzem também neste caso.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Mar 2011
  • Data do Fascículo
    Mar 1987
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