Open-access DINÂMICAS DE EXCLUSÃO: NACIONALISMO E A CRISE MIGRATÓRIA NO HORIZONTE DA DEGENERAÇÃO DEMOCRÁTICA1

EXCLUSIONARY DYNAMICS: NATIONALISM AND THE MIGRATION CRISIS AMIDST DEMOCRATIC DEGENERATION

Resumo

Este artigo aborda as complexidades da crise da democracia contemporânea com base em uma perspectiva analítica e normativa orientada pela escuta. Nosso objetivo não é discutir a existência de uma crise democrática, nem definir ou debater conceitos como populismo de direita e novas direitas. Em vez disso, contestamos, inicialmente, os diagnósticos que desconsideram o papel do nacionalismo e sua relação com as migrações denominadas indesejadas como fatores relevantes para a compreensão da crise democrática. Na sequência, apresentamos os limites normativos dessas abordagens, mais especificamente no que se refere à relação entre democracia e nacionalismo, que, argumentamos, deveria ser problematizada em vez de ser assumida e justificada nas análises sobre as dinâmicas de exclusão associadas à degeneração democrática.

Palavras-chave:
crise da democracia; migração indesejada; nacionalismo; ondas de exclusão

Abstract

This article explores the complexities of the contemporary crisis of democracy from an analytical and normative perspective guided by the sense of attentive listening. Our goal is not to debate the existence of a democratic crisis or to define and engage with concepts such as right-wing populism or new far-right movements. Instead, we initially challenge diagnoses that overlook nationalism and its relationship with so-called undesirable migrations as relevant factors in understanding the democratic crisis. Next, we outline the normative limits of such positions, specifically regarding the relationship between democracy and nationalism, which, we argue, should be critically examined rather than assumed or justified in analyses of exclusionary dynamics within the context of democratic degeneration.

Keywords:
democracy crisis; undesired migration; nationalism; dynamic of exclusion

Donald Trump, discursando para sua audiência em Wisconsin em abril de 2024, reiterou sua posição sobre um determinado grupo de imigrantes, aqueles que, segundo ele, seriam mais do que indesejados: “Os democratas dizem: ‘Por favor, não os chame de animais. Eles são humanos’. Eu digo: ‘Não, eles não são humanos, são animais’” (Layne, Slattery e Reid, 2024). Utilizando termos diferentes, mas em certo sentido alinhados às posições de Trump, Benjamin Ben Habib, eleito em 2019 para o Parlamento Europeu como membro do Partido do Brexit (MEP), defendeu o seguinte argumento sobre a imigração naquele contexto: um dos problemas persistentes naquela conjuntura seria o fato de que os políticos:

[…] não se preocupam com o tecido social dos estados nacionais […], permitem, por exemplo, que nossa língua seja sequestrada, que nossa história seja destruída, nossos heróis nacionais sejam apagados. Eles não se preocupam com o estado nacional, não se preocupam com a sociedade homogênea e harmoniosa que teríamos se compartilhássemos valores e nos uníssemos da maneira como um dia compartilhamos e nos unimos no Reino Unido […]2(Ben Habib, 2023, 0:32’’-0:58’’).

“Não há saída, você não fará da Austrália sua casa!”, dizia um dos grandes idealizadores dos centros de detenção offshore para migrantes na região (The Guardian, 2014). Já as emigrantes brasileiras foram alvo de Bolsonaro em 2019. Admirador contumaz de Trump e um nacionalista relutante, afirmou que “a grande maioria dos imigrantes [brasileiros] em potencial não tem boas intenções nem quer fazer bem ao povo americano” (Fellet, 2019, acréscimo nosso). Da Alemanha, de ontem e de hoje, as soluções do partido Alternativa para a Alemanha (AfD) para o problema da migração, enfatizamos a palavra problema, é a da deportação em massa. A direita austríaca, por sua vez, não ficou para trás ao defender a mesma posição: retorno de quem não é desejado; expulsão; deportação (Hille, 2024).

Com base nessas vozes que são exemplares, começaremos extrapolando os termos propostos por Iris Young em seu livro Justice and the Politics of Difference (1990). Para Young, a teoria política tem início ao ouvir os reclamos daquelas que são parte de um contexto e de uma relação social, reivindicando ser vítimas dessa relação e/ou desse contexto. Extrapolar, para os nossos propósitos é relevante, porque a autora estava ali disposta a ouvir as reivindicações vindas daquelas e daqueles que, na passagem da década de 1980 para a de 1990, foram chamados “novos movimentos sociais” e que se alinhavam ao espectro da esquerda, impondo demandas políticas pelo reconhecimento de suas diferença3. Ouvir as vozes que representariam as demandas desses diferentes sujeitos organizados, argumenta Young, significaria questionar o paradigma das teorias de justiça distributiva, dominantes no debate daquele momento, em nome de uma emergente reivindicação por reconhecimento da diferença. Aqui, extrapolamos. Ou seja, começamos escutando representantes e vozes que frequentemente se colocam como vítimas em contextos de injustiça, ainda que estejam, hoje, no extremo oposto dos movimentos aos quais Young se referia, para, em primeiro lugar, apontar uma lacuna no debate contemporâneo que produz diagnósticos sobre a democracia e, em seguida, questionar a validade da relação normativa entre nacionalismo e democracia.

Os exemplos de vozes que compõem o que se convencionou definir como movimentos políticos das novas direitas - ou direitas antidemocráticas, como também têm sido caracterizadas - são numerosos. Essas vozes parecem indicar, especialmente nos casos mencionados, uma articulação entre a construção política e pública da imigrante como a “outra” indesejada e um momento de crise democrática. No entanto, podemos avançar nessa análise. Os termos apresentados sugerem que as novas direitas compartilham o mesmo espaço semântico ocupado pelas ideologias nacionalistas, que fornecem o conteúdo para justificar a exclusão de pessoas indesejadas - não cidadãs, não nacionais.

Se estamos corretas ao destacar a relação entre crise democrática, migração e nacionalismo, isso nos leva a identificar a necessidade de revisitar dois aspectos fundamentais da maneira como a relação entre democracia e nacionalismo é abordada na teoria política contemporânea. Primeiro, buscamos contestar diagnósticos que desconsideram o nacionalismo e a migração indesejada como fenômenos centrais para a compreensão da crise democrática. Segundo, nosso objetivo é delinear os limites das abordagens que, ao confrontar as mesmas vozes que motivam este texto, defendem diagnósticos sobre o futuro da democracia baseados em pressupostos normativos sobre a relação entre democracia e nacionalismo que, conforme argumentamos, não devem ser assumidos, mas sim questionados.

Há uma nota metodológica importante a ser destacada. Neste trabalho, abordaremos duas dimensões distintas nos debates sobre nacionalismo, democracia, crise e as cenas de migração denominada indesejada. Em um nível, o nacionalismo será analisado como uma ideologia política que estrutura e atribui significado à ação no mundo com base em um conjunto de conceitos cujo significado está constantemente em disputa (Freeden, 1998). Nesse sentido, o nacionalismo orienta e confere sentido a ações nas quais os deveres e responsabilidades entre indivíduos derivam das relações entre nacionais - isto é, entre aqueles que compartilham um território, uma língua, um passado e uma comunidade imaginada nos termos de uma nação. Além disso, essa ideologia está associada à reivindicação de autodeterminação e à defesa de uma identidade nacional (Miscevic, 2023).

Em um segundo nível, abordamos o nacionalismo como um ideal normativo vinculado ao debate sobre as condições necessárias para assegurar a estabilidade da democracia e da justiça social ao longo do tempo e em diferentes contextos. Argumentamos que é fundamental transitar entre essas dimensões para compreender as interações complexas entre democracia, crise e nacionalismo. Tal abordagem é particularmente relevante, pois evidencia como nossas lentes normativas moldam os diagnósticos que formulamos sobre esses fenômenos políticos. Em outras palavras, quando a relação entre esses termos aparece como central nos diagnósticos contemporâneos, isso ocorre porque as teorias frequentemente pressupõem uma vinculação normativa específica entre eles. No entanto, a conclusão sugerida por essas interpretações tende a ser a resignação: o nacionalismo e a identidade nacional são considerados condições necessárias para a democracia, mas também constituem parte de sua degeneração. Defendemos que essa postura de resignação deve ser rejeitada, uma vez que implica a negação da capacidade de reflexão crítica e da possibilidade de ação transformadora em momentos de desestabilização ou crise.

Para atingir esse objetivo, dividimos o texto em quatro seções. Na primeira, discutimos os diagnósticos correntes sobre as crises das democracias, destacando a diversidade de posições e conceitos que moldam essa fronteira de pesquisa em teoria política. Nosso objetivo é identificar uma lacuna que silencia as formas pelas quais migração e nacionalismo se constituem como elementos centrais do que, por diferentes perspectivas, é chamado de crise democrática. Embora esse silêncio prevaleça, reconhecemos algumas aberturas nos diagnósticos predominantes. Na segunda seção, avançamos nessa direção para analisar como essa relação é abordada nos diagnósticos contemporâneos. Inspiradas por Charles Taylor, exploramos como as dinâmicas de exclusão e identidade nacional interagem com os princípios democráticos, gerando as chamadas “ondas de exclusão” contemporâneas. Na terceira seção, examinamos criticamente a relação normativa entre democracia e nacionalismo, questionando as suposições teóricas que sustentam os diagnósticos das “ondas de exclusão” e propondo alternativas para compreender essa complexa interdependência. Por fim, na conclusão, argumentamos que a defesa de identidades e valores nacionais como fundamento da democracia é problemática tanto teoricamente quanto empiricamente, especialmente em contextos pluralistas. Sugerimos que a integração social e a estabilidade democrática não devem depender de categorias que, na prática, excluem e marginalizam. O desafio teórico que se impõe é superar essas limitações e desenvolver uma compreensão da democracia que não tenha o nacionalismo como condição, mas que, ao contrário, reconheça as ameaças que representa para a estabilidade e para a solidariedade democrática.

Sobre as crises das democracias e seus diagnósticos

Durante o século XX, a democracia acumulou sucessivas vitórias tanto nos campos de batalha quanto nas urnas. Embora a teoria democrática tenha convivido, ao longo de sua história, com diagnósticos alarmistas e ameaças constantes de crise, o fim da Segunda Guerra Mundial e, posteriormente, o término da Guerra Fria trouxeram a esperança de que o mundo democrático adentraria sua era mais próspera. Essa perspectiva excessivamente otimista é frequentemente associada ao texto de Fukuyama (1992), no qual o autor proclamou “o fim da história”. Embora controverso, mesmo em sua época, o diagnóstico implicava que o triunfo da democracia liberal sobre os autoritarismos de direita e de esquerda era definitivo.

Naquele momento, não se vislumbrava qualquer adversário capaz de ameaçar essa hegemonia, que se esperava consolidar ainda mais nos anos subsequentes. Impressionados com a estabilidade das democracias modernas, sobretudo em sociedades economicamente afluentes, Przeworski, Alvarez, Cheibub e Limongi (1997) afirmaram que, quando associada a um certo nível de desenvolvimento econômico, uma democracia se torna inexpugnável e tende a perdurar indefinidamente (Przeworski et al., 1997).

Nos últimos dez anos, porém, esse tom otimista foi substituído por uma crescente preocupação quanto ao desempenho e ao futuro das democracias em todo o mundo. Essa inquietação reflete-se não apenas na proliferação de publicações acadêmicas, mas também em diversas esferas públicas. Estaríamos, então, enfrentando uma crise da democracia? Adam Przeworski (2020, p. 25) inicia seu diagnóstico com a afirmação: “Alguma coisa está acontecendo”. Essa observação, aparentemente simples, pode representar o único ponto de concordância entre os teóricos que analisam o cenário político atual. No entanto, essa convergência rapidamente se desfaz quando buscamos respostas para a questão: o que, de fato, está acontecendo com as democracias?

Experiências do século passado, especialmente nas democracias do Sul global, sugerem que a queda dos regimes democráticos ocorria predominantemente por meio de golpes militares, frequentemente liderados por soldados e generais. Esse padrão repetiu-se em países com histórias e tradições variadas, como Brasil, Argentina, Chile, Gana, Guatemala, Nigéria, Paquistão, Peru, República Dominicana, Turquia e Uruguai (Levitsky e Ziblatt, 2018, pp. 14-15). Entretanto, também presenciamos transições democráticas em que países como Brasil, Argentina, Chile e Uruguai superaram as incertezas prenunciadas, por exemplo, nos termos de Francisco Weffort: “a preocupação com a sorte da democracia no Cone Sul diz respeito à própria possibilidade de consolidação dos processos de transição democrática em curso” (Weffort, 1989, p. 6). Já na década de 1990, o “fato democrático” havia se tornado uma realidade para muitos países latino-americanos.

A vitória eleitoral de Donald Trump em 2016, nos Estados Unidos, representa, como observou Luciana Ballestrin (2022, p. 96), uma inflexão disruptiva nessa narrativa hegemônica que trata a democracia como um fato irresistível no mundo ocidental desde o final da Guerra Fria. Pode-se argumentar que estamos presenciando um processo de erosão das democracias que não se dá pela derrubada abrupta das instituições pelo uso da força, nem de maneira furtiva, mas por meio de uma corrosão interna, legal e incremental, muitas vezes sustentada pelas próprias eleitoras (Przeworski, 2020; Levitsky e Ziblatt, 2018; Ballestrin, 2022). Quanto às especificidades do momento atual, é relevante notar, ainda com Ballestrin (2022, p. 95), o expressivo apoio popular a propostas e discursos antidemocráticos no contexto de radicalização e crescimento da extrema-direita. Estaria Carl Schmitt, afinal, correto ao prever que o “ovo da serpente” se formaria dentro da própria democracia, gestando os termos de sua própria extinção?

De acordo com Yascha Mounk (2018, p. 133), as gerações nascidas após o fim da Guerra Fria tendem a confiar menos nas democracias e em suas instituições fundamentais, o que pode, no futuro, representar um problema de legitimidade democrática e configurar o que o autor denomina como “desconsolidação das democracias”. O exemplo dos Estados Unidos, embora limitado, ilustra essa preocupação: entre os idosos nascidos nas décadas de 1930 e 1940, mais de dois terços acreditam que é extremamente importante viver em uma democracia. Já entre as gerações nascidas no final do século XX, os chamados millennials, menos de um terço compartilha esse sentimento.

A crescente desconfiança em relação à democracia vem acompanhada de um dado possivelmente ainda mais alarmante: na democracia que se autoproclama como a mais antiga do mundo, há um aumento significativo do apoio, ou ao menos da aceitação, à possibilidade de um regime autoritário. Em 1995, apenas uma em cada dezesseis pessoas considerava que um governo militar seria um bom sistema de governo; atualmente, essa proporção caiu para uma em cada seis (Mounk, 2018, p. 136). Com pequenas variações nos números, essa tendência se repete também em algumas democracias europeias, como as da Holanda, Alemanha e França.

A polarização política também é, com frequência, apontada como parte dos diagnósticos da crise democrática. Conforme revela Arlie Russell Hochschild (2016), nos Estados Unidos da década de 1960 aproximadamente 5% dos adultos declararam incômodo com a possibilidade de seus filhos se casarem com um eleitor do partido adversário. Na ocasião, não houve diferença saliente entre os partidários dos democratas ou republicanos. Em 2010, contudo, o cenário pareceu bastante diferente: 33% dos democratas e 40% dos republicanos declararam que ficariam incomodados caso os seus filhos e suas filhas se casassem com uma eleitora ou eleitor do outro partido político. O dado vem acompanhado de um alerta. Segundo Hochschild (2016, p. 7, tradução nossa): “Quanto mais as pessoas se limitam a companhias com ideias parecidas, mais extremas se tornam suas opiniões”. Mais uma vez, embora estejamos descrevendo um caso determinado, o exemplo estadunidense parece se replicar em mais de um cenário no qual o “partidarismo” tem se tornado uma fonte de posições divisivas entre as cidadãs de uma democracia.

A América Latina também parece seguir uma tendência semelhante às democracias do Norte global. Segundo os dados do Latinobarómetro (2023, pp. 18-19), o apoio à democracia como melhor forma de governo é decrescente na região e em 2023 registrou o menor percentual na série histórica, iniciada em 1995. Na ocasião, apenas 48% dos latino-americanos responderam que “a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo”. O dado é particularmente alarmante quando comparado aos 63% de apoio manifestado em 2010. A queda tem sido consistente e sistemática por mais de uma década. A tendência de diminuição ao apoio às democracias na América Latina é puxada por Venezuela, que registrou queda de 12%; e Costa Rica, com diminuição de 11%, embora Guatemala e Honduras sejam aqueles em que a democracia encontra menor apoio, respectivamente 29% e 32% em 2023. O caso brasileiro difere dos vizinhos latino-americanos. Embora o apoio à democracia como melhor forma de governo seja relativamente baixo em 2023 (46%), especialmente quando comparado aos vizinhos Uruguai (70%), Argentina (62%) e Chile (58%), a tendência brasileira foi de crescimento, aumentando 6% entre os anos de 2020 e 20234.

O apoio popular obtido por lideranças e forças reacionárias, que tem levado muitas delas à vitória nas urnas, é uma questão que também preocupa Przeworski (2020). Segundo o autor, por muito tempo acreditamos que a força da democracia residia na possibilidade de que os cidadãos e as cidadãs identificassem e resistissem firmemente contra governantes que ameaçassem a ordem democrática e seus principais valores. Ou seja, acreditávamos que “se um governo cometer atos que ameaçam a liberdade, violem as normas constitucionais ou enfraqueçam a democracia, o povo se unirá contra ele” (Przeworski, 2020, p. 20).

O que os achados de Mounk (2018) e os dados do Latinobarómetro nos mostraram é que a crença sobre a qual fala Przeworski parece não mais encontrar ancoragem no modo como as pessoas avaliam a democracia. Porém, se, por um lado, os dados apresentados por Mounk são cientificamente relevantes e politicamente alarmantes; por outro lado, as suas conclusões sobre o que eles significam estão longe de produzir consensos. Um dos limites sobre o tipo de análise que o autor apresenta vem daquelas posições que argumentam na seguinte direção: ao centrar-se na mudança das preferências dos cidadãos e das cidadãs como uma ameaça importante ao futuro da democracia, o autor parece subteorizar o papel das instituições estatais, geralmente creditadas como órgãos relativamente blindados ao humor do dia e que constituem um pilar importante de sustentação e resistência dos regimes democráticos. Przeworski (2020, p. 130), por sua vez, considera o declínio no apoio à democracia em pesquisas de opinião um dado preocupante, mas insuficiente, seja para predizer o futuro das democracias ou para qualquer tipo de diagnóstico do presente5.

Sem ignorar a importância das instituições formais, Levitsky e Ziblatt (2018, pp. 19-20) destacam o papel crucial de normas democráticas informais para a estabilidade das democracias, especialmente a “tolerância mútua” e a “reserva institucional”. A “tolerância mútua” refere-se ao reconhecimento de que os adversários políticos, desde que atuem dentro das regras institucionais, têm o mesmo direito de existir, competir pelo poder e governar. Já a “reserva institucional” implica que os políticos devem evitar práticas que, embora legais, violem o espírito democrático, sendo comedidos no uso de suas prerrogativas. A erosão dessas normas facilita o avanço de políticas nacionalistas excludentes, pois a falta de reconhecimento mútuo e o uso excessivo de poderes institucionais abrem espaço para movimentos que promovem a exclusão de migrantes considerados indesejados, ameaçando os princípios democráticos ao não reconhecer a legitimidade e os direitos de todos os membros da sociedade.

Os diagnósticos sobre as crises e transformações das democracias são variados e complexos. Przeworski reconhece a dificuldade de estabelecer critérios claros para avaliar o momento atual e admite que suas conclusões são incertas. Ainda assim, mantém sua intuição dos anos 1990 de que existe uma correlação significativa entre democracia e desenvolvimento econômico. Segundo ele, o colapso de uma democracia em países com altos níveis de renda per capita, como os Estados Unidos, é uma possibilidade remota. Isso sugere que o que presenciamos hoje não é um colapso total das democracias, mas uma transformação no tipo de competição política e nas preferências predominantes no eleitorado.

Os partidos considerados “antissistema” não representam uma ameaça à democracia no sentido tradicional. Isto é, essas forças políticas não propõem eliminar as eleições como mecanismo de escolha de governantes. Ao contrário, posicionam-se como defensores de um retorno do poder ao “povo”, supostamente tomado pelas elites, buscando canalizar o descontentamento popular dentro do próprio sistema democrático. Assim, embora suas propostas sejam marcadas por xenofobia e racismo, a retórica de devolver o controle ao povo não visa subverter o processo democrático, mas, segundo Przeworski, reforçar um tipo específico de democracia que questiona as formas tradicionais de governança sem necessariamente romper com as estruturas eleitorais existentes (Przeworski, 2020).

Se Przeworski parece continuar a apostar na economia como um pilar de sustentação para a estabilidade e sobrevida das democracias; de outro lado, autores como André Singer, Cicero Araújo e Fernando Rugitsky (2022) interpretam a crise atual da democracia a partir da própria ideia de derrocada do capitalismo, e da consequente crise econômica que se alastra no globo, pelo menos, desde 2008. Para os autores, o momento político atual exigiria um esforço de compreensão dos limites e possibilidades dos regimes democráticos diante dos avanços de uma “ordem neoliberal”. Tal ordem não seria apenas uma medida econômica adotada por estados capitalistas, mas um padrão de interação entre estados e sociedades, em que as finanças ocupam o plano decisivo (Singer et al., 2022. p. 12); aquilo que Wendy Brown (2019) chamou de uma forma de razão e valoração capaz de se espraiar pelos diferentes âmbitos da vida não só econômica, mas também legal, cultural e política.

Como parte dessa linha interpretativa, Singer e Fanton (2022) nomeiam a crise em termos de um “interregno”, seguindo a acepção de Streeck (2016, p. 13). Ou seja, em vez de prever o surgimento de uma nova ordem econômica ou política, como o socialismo ou outro sistema global bem definido, o que se seguiria à atual crise do capitalismo não é uma transição ordenada, mas sim um longo período de desorganização social e caos, caracterizado por incerteza e falta de direção. Esse interregno não representa um novo equilíbrio de forças, mas sim uma fase prolongada de instabilidade e indeterminação, na qual as velhas estruturas não são completamente superadas, mas também não dão lugar a uma nova forma de organização social. Em suma, o que Singer, Araújo e Rugitsky (2022, p. 12) expressaram como “um período de declínio sem perspectiva de superação, de capitalismo descoordenado e instabilidade política”.

Embora esses diagnósticos ofereçam um panorama teórico diverso, notamos uma lacuna comum: a falta de atenção à interseção entre democracia e nacionalismo nas dinâmicas de migração indesejada.

Diante disso, ao escutar as vozes de líderes como Trump, Ben Habib e Bolsonaro, devemos nos perguntar: O nacionalismo é elemento fundante e indispensável ao demos que constitui a democracia? Quais possibilidades a democracia oferece para lidar com o ‘outro’, definido como estrangeiro? Qual o papel dessas questões no diagnóstico das crises democráticas? São essas as perguntas que exploraremos a seguir.

Nacionalismo e democracia no horizonte: entre necessidade e degeneração

Em um livro recente que compartilha o mesmo título do capítulo de Charles Taylor, “Degenerations of Democracy” (2022), encontramos uma contribuição inovadora em sua tentativa de compreender e caracterizar o nosso tempo presente. Sua originalidade reside precisamente na centralidade que atribui à relação entre nacionalismo e democracia como elemento constitutivo das crises democráticas contemporâneas - um ponto que, como reconstruído na seção anterior, é frequentemente negligenciado nas principais interpretações sobre o presente e o futuro das democracias.

Como leitor e intérprete da obra hegeliana e, portanto, rejeitando qualquer concepção de normatividade que proponha uma separação entre valor e história, Taylor considera a democracia um conceito télico. Isso significa que se trata de um conceito que não apenas descreve, mas também prescreve o que deve ser realizado: a constituição de uma sociedade composta por sujeitos livres e iguais.

O mais próximo da garantia das condições para que o ideal de igualdade e liberdade seja efetivamente realizado, segue Taylor, seria uma sociedade na qual todas as classes e grupos, incluindo elites e não elites, teriam poder proporcional para influenciar e determinar os resultados das decisões políticas. Contudo, estamos diante de uma condição que talvez tenhamos sido capazes de alcançar em certas partes do mundo, mas não se trata de uma realidade estável. É precisamente na falta de estabilidade que encontramos uma das características importantes das dinâmicas das democracias, o que reforça suas teses sobre os caminhos atuais da sua degeneração, pontua o autor6.

Teóricos da democracia, segue Taylor, especialmente aquelas posições que se aliam a uma definição minimalista e interpretam a democracia como um meio específico para agregar preferências contrárias de modo não violento, costumam perder de vista exatamente como as democracias são instáveis. No entanto, reconhece Taylor, há alguma verdade na crença segundo a qual pessoas que vivem sob um estado de direito resistem à perda de direitos, o que torna a democracia mais estável do que outros modos de organizar as instituições e uma sociedade. O que a crença na estabilidade das democracias como forma de governo tende a subestimar, no entanto, são os recursos que regimes autoritários podem acessar e que são parte dos regimes democráticos, mas que os direcionam para sua própria destruição: o nacionalismo é parte do que é frequentemente acessado nos caminhos da degeneração da democracia. E é o nacionalismo que aparece no que o autor define como as “ondas de exclusão” nas democracias contemporâneas do Ocidente, no contexto de sua degeneração.

Os movimentos impulsionados pela demanda pela exclusão, define o autor, são aqueles que se organizam pelo reconhecimento, por certos membros da polis, de determinadas pessoas como não sendo verdadeiramente membros. Essa é uma das suscetibilidades das democracias representativas modernas que merece uma avaliação cuidadosa.

Mas, afinal, qual seria a relação entre nacionalismo, democracia e a sua degeneração?

No argumento proposto por Taylor o nacionalismo é um dos recursos que podem ser acessados por autoridades políticas autoritárias - como é o caso dos representantes das direitas autoritárias contemporâneas -, como parte dos regimes democráticos, mas que levará à sua própria destruição. Entretanto, o nacionalismo, aquele que nasce enraizado em um contexto em que democracias se organizam sob as estruturas dos estados nacionais seria, argumenta Taylor, condição de necessidade para que a democracia pudesse cumprir seus ideais. Afirmação que, por seu turno, não responde à pergunta sobre o que, ou como, se está definindo o nacionalismo neste diagnóstico.

Ainda que não seja parte da letra do texto a definição que se busca aqui, defendemos que Taylor admite em sua formulação uma concepção de nacionalismo comum entre diferentes concepções ou tradições do pensamento político nacionalista. De acordo com tal definição geral, em primeiro lugar, afirma-se que nações são reais - há algo que diferencia as pessoas que pertencem a uma nação de pessoas que pertencem a um bairro, a um clube ou a uma família. Brasileiras são diferentes de Finlandesas, e não importa a história que se conte sobre o surgimento dessas diferenças, o ponto é que nações são reais e pessoas que se identificam dessa maneira não estão iludidas. Em segundo lugar, sustenta-se que o pertencimento a uma nação tem implicações práticas em um mundo de estados nacionais. Pertencer a um estado nacional confere direitos e impõe obrigações aos indivíduos. Em terceiro lugar, a nacionalidade é definida como politicamente e moralmente significativa (Miller, 1995, p. 529-530).

E é sobre esta última característica, qual seja, a dimensão política e moral do nacionalismo, que centraremos a nossa atenção. Para Taylor, as repúblicas democráticas, para serem estáveis e capazes de se realizarem de maneira plena, ou seja, para que se realizem enquanto sociedade de pessoas livres e iguais, requerem um sentido definido de identidade: são os americanos, os alemães, os franceses que reivindicam serem cidadãos de suas democracias. Nos termos de Taylor a identificação nacional é condição para a realização da democracia.

Nesse raciocínio, estaria na própria natureza da democracia o requerimento de um comprometimento forte, do tipo nacional. Ou seja, democracias requerem fidelidade para que se vá à guerra, requerem participação política nas eleições, requerem participação na divisão dos bens produzidos socialmente, requerem algum grau de fidelidade. E cada uma dessas demandas requer que haja um grupo bem definido, tal como a definição nacional é capaz de garantir.

Haveria, sugere Taylor, dois aspectos dessa identificação forte entre grupos nacionais organizados em contextos democráticos: o primeiro é conformado por certos princípios - acredita-se na democracia representativa, nos direitos humanos, no valor da autonomia e assim por diante; o segundo aspecto tem a ver com a ideia de que nós, como cidadãos e cidadãs, compartilhamos certo passado e um certo projeto político que está justificado por um conjunto de princípios socialmente enraizados. Contextos democráticos, neste raciocínio, são definidos por suas particularidades. Ou seja, são formados por vínculos entre pessoas que participam de uma entidade política comum. “As repúblicas que funcionam”, propõe Taylor, “são como famílias neste aspecto crucial: o de que parte daquilo que une as pessoas é sua história comum. Os vínculos familiares ou as velhas amizades são profundos por causa do que vivemos juntos, e as repúblicas recebem coesão do tempo e das transições climáticas” (Taylor, 2000, p. 204).

Taylor é um dos representantes daquela tradição do pensamento político definida pelo esforço de justificar normativamente a relação entre o nacionalismo e a democracia. Outro importante representante dessa posição, nos debates da teoria política contemporânea, é David Miller e, em mais de um sentido, Taylor e Miller compartilham o mesmo espaço conceitual e normativo nesta defesa. De acordo com Miller, existiriam evidências empíricas de que a divisão cultural entre os membros de uma comunidade política reduziria a confiança interpessoal e a confiança nas instituições políticas. A redução da confiança não significaria necessariamente o fim de uma democracia; entretanto, poderia desempenhar um papel importante na mudança do seu funcionamento institucional. É essa mudança que está na base das ondas de exclusão que colocam a migrante indesejada como representante de um perigo e de um risco que precisa ser devidamente combatido. Nesses contextos, sugere o autor inglês, de desconfiança causada pela diferença, seria menos provável ocorrer uma deliberação democrática, entendida como um momento em que os participantes tentam alcançar um consenso sobre o que deve ser feito, respeitando-se o princípio da equidade (Miller, 1995).

Em nome da preservação da autodeterminação, da confiança e da solidariedade, estados legítimos que atendem aos critérios para o exercício de jurisdição sobre suas fronteiras - ou seja, que respeitam os direitos humanos básicos e que respeitam a autodeterminação dos outros estados - estariam autorizados a excluir aquelas e aqueles que não são bem-vindos, as imigrantes indesejadas, conclui Miller (2013), sem que isso possa ser identificado como um problema de degeneração da democracia; longe disso, é condição para sua existência. E é nesse ponto que há discordância entre Miller e Taylor.

Ainda que o problema endereçado por Taylor não seja o de saber se os estados democráticos podem legitimamente excluir aqueles que demandam entrada, Taylor entende que o nacionalismo, condição necessária para a existência da democracia e da justiça social, de acordo com o que foi apresentado, pode degenerar a democracia quando e na medida em que se transforma em ondas de exclusão de uma diferença identificada como perigosa e indesejada. Uma identificação que, sabemos, é racializada, generificada e nacionalizada. Em outras palavras, quando as identidades nacionais fortes se transformam em razão e justificativa, no debate público, para políticas que excluem aqueles que são identificados como representantes de uma diferença perigosa, a democracia segue o caminho de sua degeneração.

O movimento de renacionalização da política democrática, na interpretação de Taylor, representa um traço importante da degeneração da democracia na medida em que justifica a exclusão em termos que estão em desacordo com os ideais que sustentam esse modo de organização das instituições e da sociedade. A defesa de que quem migra é o inimigo que precisa ser combatido e que, portanto, pode ser tratado como alvo pelo aparato coercitivo e violento dos estados é bandeira de mais de um movimento político no mundo que se diz democrático, mas que, ao contrário, representa a sua degeneração. É em nome da manutenção da ordem natural da nação - e do que ela garantiria, ou seja, a confiança, a coesão e a solidariedade - que muros são construídos, fronteiras são estabelecidas e policiadas, centros de detenção são mantidos em funcionamento e milhares de pessoas são devolvidas para o seu devido lugar. Esses migrantes indesejados são vistos como elementos que perturbam a estabilidade da ordem social e as políticas distributivas, ameaçando a possibilidade de haver justiça social, deliberação política e democrática, por serem capazes de romper com a cultura nacional compartilhada. Por outro lado, para Taylor e Miller, a identidade nacional compartilhada é condição necessária para que a democracia e a justiça social possam se consolidar com estabilidade. Estamos, portanto, realmente diante de uma relação de necessidade justificada normativamente entre a democracia e o nacionalismo? Trataremos dessa relação no que se segue.

Democracia e nacionalismo: os limites do que é afirmado como necessário

A resposta para a questão que termina a seção anterior é “não”. No que se segue pretendemos problematizar a relação normativa entre democracia e nacionalismo, questionando a suposição de que identidades nacionais compartilhadas são condições necessárias para a estabilidade e o florescimento das instituições democráticas. A partir de uma revisão crítica das posições apresentadas, argumentamos que a insistência na centralidade do nacionalismo resulta em limitações normativas que ignoram a diversidade e o pluralismo inerentes às sociedades contemporâneas. Em vez de considerar o nacionalismo como um elemento estabilizador, defendemos que ele se torna uma força que pode minar a própria democracia ao gerar exclusões sistemáticas e justificar a supressão de grupos minoritários, indesejáveis e que não cabem na formação de um certo nós. Ao submeter essas posições a um escrutínio teórico mais rigoroso, esta seção questiona até que ponto o nacionalismo pode realmente servir como base normativa para as práticas democráticas e quais seriam as alternativas teóricas para superar essas limitações7.

Do que foi reconstruído até aqui, tanto para Taylor quanto para Miller, as comunidades nacionais seriam responsáveis por criar os elementos necessários para que a identidade nacional surja e possa sustentar o ambiente necessário para a deliberação democrática. Em uma primeira aproximação, é possível concluir que os autores compartilham uma visão holística da sociedade, o que revela um dos primeiros limites de suas posições. Nesse sentido, com Seyla Benhabib enfatizamos que concepções holistas de sociedade pertencem ao que ela considera a “infância das ciências sociais”, exatamente por não reconhecerem as profundas divisões internas das sociedades humanas em termos de classe, gênero, etnia e religião. Essa visão holística toma como modelo as aspirações dos movimentos nacionalistas liberais da segunda metade do século XIX e início do século XX e as apresenta como se fossem fatos sociais. No entanto, os povos não são descobertos, mas se formam ao longo da história. E uma forma crucial pela qual povos divididos por classe, gênero, etnia e religião se desenvolvem é precisamente por meio da contestação dos termos e do significado de sua “natureza moral” comum. Considerar os povos como entidades homogêneas, dotadas de uma “natureza moral” claramente identificável e como fontes de “simpatias comuns” não é apenas um equívoco sociológico, mas também uma perspectiva que se opõe aos interesses daqueles que foram excluídos por não aceitarem ou respeitarem o código moral hegemônico estabelecido (Benhabib, 2004, p. 80-81).

O argumento de que a confiança e a solidariedade podem ser estabelecidas mais facilmente entre os membros de uma nação do que entre integrantes de uma classe, de movimentos sociais ou de grupos linguísticos é, segundo Benhabib (1998, p. 108), apenas “uma esperança especulativa”. Além disso, nem David Miller nem Charles Taylor explicam como a nacionalidade pode ser uma fonte comum de identidade em sociedades que estão profundamente divididas em termos de raça, etnia, religião ou estilo de vida. Por que o estado nacional, e não o partido político, o movimento social ou a classe, não poderia ser a base dessas afinidades? Os autores parecem não oferecer uma resposta convincente para esse questionamento. Especialmente nos casos em que tais divisões assumem relevância política e moral justamente porque o consenso nacional - supostamente necessário para a coesão e a solidariedade - excluiu as vozes das minorias no passado e continua a excluí-las no presente, como mostram as vozes que abrem este texto. É precisamente nesses contextos que a relação entre o ideal nacional e a autodeterminação democrática deve ser questionada, tanto quanto à sua necessidade, quanto à sua validade empírica e desejabilidade normativa.

Além de não responderem às questões levantadas anteriormente, os argumentos de Miller e Taylor mostram-se ainda mais vulneráveis quando consideramos os achados de Hochschild (2016). O que motivou a autora não foi a suposta concórdia e solidariedade que deveriam surgir entre aqueles que compartilham a cidadania nos Estados Unidos, mas o oposto. Ao se aprofundar no cotidiano das eleitoras do Partido Republicano no sul dos Estados Unidos, Hochschild revela, por um lado, que o partidarismo se tornou uma importante fonte de lealdade e confiança entre aqueles que compartilham a mesma afiliação partidária. Por outro lado, esse mesmo partidarismo também emerge como uma fonte de ressentimento e uma barreira de confiança entre cidadãos: a nacionalidade compartilhada entre eleitores democratas e republicanos não se traduz, nesse caso, na solidariedade que autores como Miller e Taylor esperavam encontrar. É justamente o sentimento de ausência de um projeto comum entre aqueles e aquelas que, apesar de compartilharem a mesma nacionalidade, divergem profundamente em suas lealdades partidárias que inspira o título da obra de Hochschild: Estranhos em sua própria terra.

Nada do que foi argumentado até aqui, é importante enfatizar, inviabiliza a ideia de que valores e normas compartilhadas podem constituir parte essencial das identidades pessoais e, portanto, devem ser levados em consideração na formulação de argumentos normativos sobre o que devemos umas às outras ou sobre qual é a melhor forma de nos organizarmos enquanto comunidade política. Contudo, isso não significa que um consenso dessa natureza seja uma condição necessária ou mesmo uma realidade desejável, como demonstra a diversidade de identidades que coexistem sem necessariamente partilhar o grau de consenso exigido pelas posições aqui criticadas. Além disso, mesmo aquelas identidades afetivas, muitas vezes presumidas como fundamento de culturas compartilhadas, não parecem requerer, de forma imprescindível, os valores, crenças e normas que se supõe serem comuns nas sociedades descritas nos termos propostos por Miller e Taylor.

Se a premissa de que o compartilhamento de identidades requer consenso em torno de valores for verdadeira, é apenas no sentido trivial de que parte do significado de partilhar uma identidade é a crença de que seus membros constituem, em condições de liberdade e igualdade, uma determinada comunidade política. Identidades coletivas apresentam diversas qualificações, de acordo com as múltiplas interpretações dos indivíduos que compõem esse “nós”. A suposição de que a integração social necessária para sustentar práticas e instituições democráticas e de justiça social exige um compartilhamento robusto de valores, significados e características mais ou menos objetivas - como língua, história comum, entre outros - ignora o que realmente é necessário para a coordenação de ação coletiva.

Em um sentido negativo, conforme argumenta Arash Abizadeh (2002, p. 500), a ação coletiva não exige que todos os atores envolvidos possuam a mesma interpretação sobre as interações em questão. O que uma ação coletiva coordenada requer não é um consenso prévio e uniforme sobre o significado das práticas envolvidas, mas sim, sugere Abizadeh, uma compatibilidade, em um sentido fraco, dos significados atribuídos individualmente a essas práticas e ações coordenadas, de modo que sejam capazes de persistir mesmo diante de reações contrárias daqueles que podem não compartilhar a mesma interpretação. Em outros termos, “diante da indeterminação hermenêutica de significado, o consenso é ao mesmo tempo desnecessário e irrealizável” (Abizadeh, 2002, p. 500, tradução nossa).

Passamos agora a abordar o argumento relacionado aos laços de confiança. Podemos questionar: O compartilhamento de uma cultura nacional, ou de uma identidade nacional, é uma condição necessária para a confiança entre indivíduos?

Primeiro, deve-se pontuar: a confiança social, aquela que se tem em relação às instituições, por exemplo, não é a mesma que a confiança interpessoal. Nos debates sobre o local em que o julgamento de Pinochet deveria ser feito, exemplifica Abizadeh (2002, p. 501), havia muitas chilenas e chilenos que confiavam mais nas instituições e nos juízes ingleses e espanhóis do que em seus próprios. É muito difícil afirmar que, nos termos propostos pelo argumento nacionalista, os chilenos compartilhavam uma cultura política comum com os ingleses e espanhóis e por isso puderam estabelecer laços de confiança além-mar. Ou melhor, é difícil identificar uma cultura compartilhada ou uma identidade comum como uma variável indispensável para que os laços de confiança fossem estabelecidos em relação àquelas instituições. Assim, o que possibilitou o surgimento de laços de confiança entre as chilenas, os chilenos e os tribunais estrangeiros não pode ser explicado em termos do compartilhamento do que é partilhado em um sentido nacional. É do mesmo modo plausível supor, para as relações de confiança interpessoal, casos em que consumidores de um grupo cultural específico podem confiar mais em produtos fabricados por grupos de outros Estados do que aqueles produzidos por suas comunidades. Também nesse caso a confiança não deriva do compartilhamento de uma cultura comum ou de uma identidade nacional partilhada.

Além disso, não está claro no argumento de nenhum dos autores o que a confiança interpessoal tem a ver com a autodeterminação democrática. A tomada de decisões democráticas exige respeito por outras pessoas com as quais, por mais opostos que sejam nossos pontos de vista, deve-se chegar a um acordo sobre algumas questões, ainda que não todas. Nesse sentido, preciso confiar nelas apenas na medida em que sei que, diante de conflitos e discordâncias, elas respeitarão os mesmos princípios de julgamento constitucional que eu.

A democracia nunca significou unanimidade; o que ela requer é um espaço para que as minorias discordantes possam continuar a viver e a discordar (Benhabib, 2002). No sentido afirmado aqui, a confiança significa a crença segundo a qual outra pessoa ou instituição é confiável e, nesse sentido, agirá de acordo com o que é requerido pela imparcialidade e pela justiça (Abizadeh, 2002). É evidente que os sentidos e as concepções do que a imparcialidade e a justiça requerem variam e estão em disputa. O que não quer dizer, por sua vez, que estas disputas de sentido têm alguma coisa a ver com o compartilhamento forte de identidade ou cultura nacional.

Conectado a esse argumento sobre confiança interpessoal, há a defesa da necessidade de coesão e integração sociais. Miller, alinhado a Taylor, sustenta que a cultura comum e uma língua partilhada são necessárias para a deliberação democrática, ou então, no melhor dos casos, haveria somente corpos separados por opiniões que criariam cenários em que somente as elites poderiam negociar. Entretanto, parece ser correto questionar: Para além dos problemas teóricos que a afirmação da existência de uma identidade comum apresenta, é realmente possível descrever na prática o compartilhamento de características tão fortes como aquelas demandas na identificação própria da cultura pública comum?

Como parte do raciocínio que possui uma resposta positiva para essa questão, a cultura aparece como uma “entidade”, cujas fronteiras são definidas e parecem intransponíveis. As barreiras construídas para que emerja o argumento da necessidade de uma cultura pública comum parece jamais corresponder à fronteira de coletividades específicas. Qualquer tentativa que pretende estabelecer os limites de uma cultura compartilhada deve enfrentar o problema intransponível que surge na medida em que a diferença sempre pode aparecer dentro dos limites que supostamente devem proteger a comunidade e demarcar a sua especificidade. Nesse sentido, é impossível estabelecer as linhas fixas de uma cultura sem ser arbitrário, sem forçar a criação de uma homogeneidade que não deveria ser esperada e não pode ser encontrada em lugar algum. É ainda possível alegar, reforçando a objeção, que no nível societal, o compartilhamento da cultura ou de uma identidade comum não é nem necessário nem suficiente para o entendimento mútuo - aquele requerido por práticas e interações democráticas.

Pode ser verdade que a heterogeneidade tem seus custos para a consolidação de espaços públicos e de relações de solidariedade, lócus primordial em que discussões e deliberações emergem e que práticas distributivas são justificadas publicamente. Contudo, contra os teóricos do nacionalismo e contra as vozes com que abrimos esse texto, convém destacar: tais custos não parecem piores do que qualquer tentativa de imposição de homogeneidade de valores e crenças culturais, conforme nos ensina mais de uma experiência histórica do século XX. Afirmar que a integração social necessária tanto para as instituições e ações democráticas quanto para políticas de justiça social só pode estar assentada em uma cultura pública comum ou em uma identidade nacional é supor mais do que o argumento - empírico e normativo - pode oferecer.

***

Ao longo deste artigo, buscamos demonstrar em que medida a defesa de categorias como cultura comum, identidade nacional e valores compartilhados é problemática, tanto em termos normativos quanto descritivos, especialmente no que se refere às sociedades democráticas contemporâneas, marcadas por um pluralismo profundo.

Para desenvolver esse argumento, articulamos duas dimensões do debate sobre nacionalismo e democracia que se mostraram fundamentais para o nosso percurso analítico. Em primeiro lugar, tratamos o nacionalismo como uma ideologia política que confere significado e estrutura à ação no mundo, organizando a distribuição de deveres e responsabilidades entre aqueles que são considerados membros de uma nação. Nessa perspectiva, o nacionalismo atua como um referencial normativo que delimita quem pertence e quem deve ser excluído das esferas de proteção e direitos, com base em conceitos como território, língua e comunidade imaginada. Em segundo lugar, abordamos o nacionalismo como um ideal normativo que é frequentemente apresentado como condição necessária para a estabilidade das democracias e para a manutenção de um senso de coesão social e justiça ao longo do tempo (Miscevic, 2023).

Essas duas dimensões se entrelaçam de maneira complexa, criando um espaço interpretativo onde o nacionalismo se torna, simultaneamente, fonte de pertencimento para alguns e de exclusão para muitos outros. Ao longo do texto, mostramos como discursos de lideranças políticas contemporâneas, como Trump e Bolsonaro, assim como os apelos de partidos de extrema-direita na Europa, exemplificam como a construção de um “outro” indesejado e a defesa de identidades nacionais fortes funcionam como alicerces para uma forma de política antidemocrática, marcada pela exclusão e pela restrição de direitos. Esse fenômeno revela a insuficiência dos diagnósticos que se limitam a abordar as crises da democracia apenas em termos de mudanças institucionais ou econômicas, sem levar em consideração como o nacionalismo opera como um catalisador para a degeneração dos ideais democráticos. Ao mostrar que o nacionalismo é, simultaneamente, uma ferramenta de exclusão e um recurso mobilizado para fortalecer projetos antidemocráticos dentro de democracias liberais, argumentamos que é necessário adotar uma postura teórica que rejeite a premissa de que identidades nacionais compartilhadas são essenciais para que a coesão e a solidariedade democrática existam garantido, por sua vez, a sua estabilidade.

Com isso, sugerimos que o principal desafio teórico é superar o vínculo normativo que associa democracia e nacionalismo como se fossem dependentes um do outro, uma perspectiva que tende a naturalizar práticas excludentes em nome da proteção do “nós” nacional. Diante dessa análise, a conclusão inevitável é a de que a concepção de democracia mobilizada pelos diagnósticos sobre a crise e a degeneração da democracia deve ser reformulada para romper com essas amarras e para enfrentar os dilemas impostos por contextos de pluralismo radical. Assim, propomos que diagnósticos sobre as crises democráticas devem incorporar uma crítica ao nacionalismo que não apenas reconheça seus impactos destrutivos, mas também rejeite a ideia de que ele é indispensável para a coesão democrática.

A conclusão a que chegamos é a de que é imperativo revisitar os fundamentos normativos da teoria democrática, rejeitando tanto a concepção de que o nacionalismo é um sustentáculo necessário quanto a noção de que ele possa ser conciliado com os ideais democráticos. Essa recusa constitui parte de uma demanda mais ampla, qual seja, evitar que nossas teorias se tornem reféns da resignação de que o declínio da democracia estaria intrinsecamente vinculado aos mesmos elementos que possibilitam sua existência, aceitando normativamente tais justificativas. O grande desafio teórico e, em alguma medida também político, que se impõe, é, portanto, reconciliar as possibilidades de uma sociedade e de instituições democráticas em contextos nos quais a nação e o nacionalismo não representam a condição de viabilidade da democracia, mas, sim, a sua própria destruição. Assim, defendemos que repensar os fundamentos normativos de uma sociedade democrática é crucial para desenvolver respostas que rompam com a resignação e projetem a democracia para além de seus limites nacionais.

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  • YOUNG, Iris Marion. (1990). Justice and the politics of difference. Princeton: Princeton University Press .
  • 1
    A versão preliminar deste trabalho foi apresentada na “3ª Jornada do Acervo Digital Cedec-Ceipoc”, na mesa “Conceitos e Constituição em Disputa”. Agradecemos ao coordenador da mesa, Pedro Vasques, ao organizador do evento, Andrei Koerner, e aos demais pesquisadores e pesquisadoras que, na ocasião, se dispuseram a debater o texto e contribuíram com valiosos comentários e sugestões.
  • 2
  • 3
    Iris Young (1990) refere-se aqui aos movimentos feministas, aos movimentos pelos direitos civis e pela libertação negra, aos movimentos indígenas e pela libertação LGBT.
  • 4
    A indiferença em relação à forma democrática de governo, em comparação a formas não democráticas, também vem crescendo na América Latina, conforme revelam os dados do Latinobarômetro. Em 1997, apenas 14% dos entrevistados afirmaram que “um regime democrático e um regime não democrático dão no mesmo”. Em 2023, contudo, esse percentual subiu para 28%. Entre aqueles que apoiam abertamente formas autoritárias de governo, observa-se na região uma minoria consistente e estável. Comparando-se os últimos anos, entre 2020 e 2023, o percentual de pessoas que acreditam que “em algumas circunstâncias, um governo autoritário pode ser preferível a um governo democrático” aumentou de 13% para 17%. Entretanto, na série histórica, os anos de 1997 e 1998 registraram 18%, com o ponto mais alto em 2001, quando atingiu 19%, seguido de uma tendência de queda constante que perdurou até 2010 (Latinobarômetro, 2023).
  • 5
    Segundo Przeworski (2020, p. 129), o golpe militar sofrido pela democracia chilena em 11 de setembro 1973, e que levou o país a uma das mais cruéis e violentas ditaduras da América Latina, representaria um exemplo paradigmático: de acordo com Przeworski, cerca de seis meses antes do golpe conduzido pelo general Augusto Pinochet, “apenas” 27,5% dos entrevistados achavam que um golpe militar era uma alternativa conveniente para o Chile, de modo que o apoio popular não seria fator suficiente para explicar o trágico destino de uma democracia. Assim, conclui o autor: “a relação de causa e efeito entre respostas de pesquisas e o desgaste da democracia deve depender das ações de grupos políticos organizados” (Przeworski, 2020, p. 129).
  • 6
    Importa lembrar que a temporalidade da degeneração da democracia está aqui em diálogo com a bibliografia que sugere ser a sobrevida da ordem neoliberal uma sequência de “compras de tempos” (Streeck), com início em meados da década de 1970, com a tolerância à inflação dos anos de 1970, seguida de dívida pública nos anos de 1980, acompanhada pela destruição das relações salariais e pela proliferação de dívida privada, a qual termina na enorme bolha financeira, que marcou 2008, como uma profecia auto anunciada (Singer; Fanton, 2022).
  • 7
    Parte dos argumentos retomados aqui foram elaborados em Ventura (2013).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2025
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    24 Jun 2024
  • Aceito
    17 Out 2024
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