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RESENHA DE PRIMEIRAS EDIÇÕES DE MACHADO DE ASSIS NA BIBLIOTECA BRASILIANA GUITA E JOSÉ MINDLIN, DE HÉLIO DE SEIXAS GUIMARÃES, IEDA LEBENSZTAYN E LUCIANA ANTONINI SCHOEPS

REVIEW OF PRIMEIRAS EDIÇÕES DE MACHADO DE ASSIS NA BIBLIOTECA BRASILIANA GUITA E JOSÉ MINDLIN, BY HÉLIO DE SEIXAS GUIMARÃES, IEDA LEBENSZTAYN AND LUCIANA ANTONINI SCHOEPS

GUIMARÃES, Hélio de Seixas; LEBENSZTAYN, Ieda; SCHOEPS, Luciana Antonini. . Primeiras edições de Machado de Assis na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin.São Paulo: Publicações BBM, 2022. 256 p., il.

“Toda a gente sabe que a primeira edição de um livro é mais valiosa que as outras. É quase sempre a regra para as obras literárias", escreve Rubens Borba de Moraes (2018MORAES, Rubens Borba de. O bibliófilo aprendiz: ou prosa de um velho colecionador para ser lida por quem gosta de livros, mas pode também servir de pequeno guia para formar uma coleção de obras raras ou modernas. Apresentação de Cláudio Giordano. São Paulo: Publicações BBM, 2018., p. 125). Porém, como ele mesmo argumenta, "a grande maioria das vezes é simplesmente uma questão sentimental", pois é preciso considerar que não raro uma primeira edição vem "mal impressa, em papel barato", além de ser "um livro francamente feio" (MORAES, 2018MORAES, Rubens Borba de. O bibliófilo aprendiz: ou prosa de um velho colecionador para ser lida por quem gosta de livros, mas pode também servir de pequeno guia para formar uma coleção de obras raras ou modernas. Apresentação de Cláudio Giordano. São Paulo: Publicações BBM, 2018., p. 125). Pelo sim, pelo não, as edições princeps ainda são cobiçadas pelos colecionadores, da mesma forma que contribuem com pistas importantes para as investigações no âmbito da história do livro, da cultura e da crítica literária.

Em Primeiras edições de Machado de Assis na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, há exemplares para satisfazer a todos os gostos e todas as curiosidades. Mais do que um catálogo das obras pertencentes ao acervo da BBM-USP, esse livro-exposição permite aos leitores adentrar na intimidade dos livros, seja em razão da alta qualidade com que foram registrados pelas lentes do já experiente fotógrafo Wagner Souza e Silva, seja pelo trabalho criterioso de descrição e análise realizado por Hélio de Seixas Guimarães, Ieda Lebensztayn e Luciana Antonini Schoeps. E como estamos a tratar de um livro sobre livros, convém observar que todo o projeto vem enfeixado, como se dizia outrora, em um volume ricamente ilustrado, composto em bom papel e bons tipos.

Alguns "achados" merecem especial registro. Por exemplo, a edição de Quase ministro: comédia em um ato, publicada pelo livreiro-editor carioca Serafim José Alves, em 1863-1864?, guarda um envelope endereçado a Astrojildo Pereira com os seguintes dizeres:

"Exmo. Sr. Astrojildo Pereira (Livraria José Olympio, rua [do] Ouvidor, nesta)", datado de 22 de setembro de 1945, com carimbo do correio indicando "Rio de Janeiro, sucursal n. 7, cr$ 020", no qual se lê a frase: "Machado de Assis, Quase ministro, exemplar defeituoso" (GUIMARÃES; LEBENSZTAYN; SCHOEPS, 2022GUIMARÃES, Hélio de Seixas; LEBENSZTAYN, Ieda; SCHOEPS, Luciana Antonini. Primeiras edições de Machado de Assis na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. São Paulo: Publicações BBM, 2022. , p. 46-47).

Ora, a imagem desse envelope surrado e amarelado pelo tempo reporta o leitor a outra história, dessa vez narrada por um Euclides da Cunha entre compadecido e surpreso com a homenagem que um jovenzinho, guardando-se anônimo, fez ao Bruxo do Cosme Velho em seu leito de morte:

E o anônimo juvenil - vindo da noite - foi conduzido ao quarto do doente. Chegou. Não disse uma palavra. Ajoelhou-se. Tomou a mão do mestre: beijou-a num belo gesto de carinho filial. Aconchegou-o depois por algum tempo ao peito. Levantou-se e, sem dizer palavra, saiu. (CUNHA, 1908CUNHA, Euclides da. Última visita. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 30 set. 1908, p. 2. )1 1 Euclides da Cunha publicou a crônica no Jornal do Commercio em 30 de setembro de 1908. A reprodução pode hoje ser lida em https://blogdaboitempo.com.br/2022/06/27/a-ultima-visita/.

O anônimo, que mais tarde se revelou, era justamente Astrojildo Pereira. Ele dedicaria a Machado vários estudos já na idade adulta, da mesma forma que firmou seu nome como um dos fundadores do Partido Comunista do Brasil (PCB), em 1922, e veio a se tornar um dos maiores bibliófilos brasileiros. Quis o destino e os azares da história que após sua morte, em 20 de novembro de 1965, os livros cuidadosamente e milagrosamente conservados, durante toda uma vida marcada pela militância e pela perseguição política, fossem empilhados nos fundos de um sebo no Centro de São Paulo, tal era o perigo que a posse da biblioteca de um militante representava na época da ditadura civil-militar.

Papéis avulsos abandonados dentro dos volumes constituem parte de um inventário minucioso que testemunha a vida dos livros. Gralhas tipográficas, listas de livros, ou mesmo catálogos completos encadernados junto ao título principal, compõem elementos relevantes na descrição e análise das primeiras edições. Não escapam tampouco outros indícios que singularizam os exemplares, tais como os selos de encadernadores e de livreiros, "ex-libris, dedicatórias, assinaturas, preços das obras, marcas de leitura, riscos, rabiscos, anotações, recortes de jornal e cartões encontrados dentro dos livros" (GUIMARÃES; LEBENSZTAYN; SCHOEPS, 2022GUIMARÃES, Hélio de Seixas; LEBENSZTAYN, Ieda; SCHOEPS, Luciana Antonini. Primeiras edições de Machado de Assis na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. São Paulo: Publicações BBM, 2022. , p. 13). Para além dos testemunhos que as primeiras edições trazem, tanto em termos (con)textuais, como materiais, essas informações dão conta de muitas camadas de história (e de histórias) encerradas entre as capas.

Ao esforço de descrição fac-similar que se opera sobre cada exemplar, de acordo com os princípios bibliográficos, somam-se informações várias, relativas às estratégias de publicidade dos títulos nos jornais da época, à recepção por parte da crítica e até mesmo à análise das marcas de leitura e posse. Nada escapa aos organizadores, o que faz desse livro-exposição um testemunho eloquente do estado da arte dos estudos sobre o livro no Brasil, os quais se caracterizam, hoje, pela interdisciplinaridade, o que possibilita essa articulação sempre tão complexa e enriquecedora da bibliografia com a sociologia dos textos, na acepção de Mackenzie (2017MCKENZIE, Donald Francis. Bibliografia e sociologia dos textos. São Paulo: Edusp, 2017.), mas também da história literária/e ou cultural com a história editorial. Continente e conteúdo são finalmente postos em um mesmo plano analítico em benefício dos estudiosos e dos leitores em geral.

De fato, a iniciativa de trazer à lume as primeiras edições de uma coleção particular deve ser valorizada sob diferentes prismas. Do ponto de vista acadêmico e do interesse público, como assinalado, porque ela estimula a percepção do livro como um objeto multidisciplinar, produto de um trabalho coletivo e documento no qual decantam muitas camadas de história. No caso da "machadiana", ela nos permite conhecer esse universo por outros prismas, de tal sorte que o livro, como suporte da escrita e da leitura, tem seu protagonismo no processo de criação e difusão da obra literária. Do ponto de vista institucional, um livro-exposição como esse pode contribuir para inculcar no imaginário de seus leitores o valor da biblioteca como guardiã do conhecimento e da memória da humanidade. Pelo menos, ele revela e ilumina vestígios de uma civilização que talvez os poderosos algoritmos jamais estarão aptos a alcançar.

Referências

  • CUNHA, Euclides da. Última visita. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 30 set. 1908, p. 2.
  • GUIMARÃES, Hélio de Seixas; LEBENSZTAYN, Ieda; SCHOEPS, Luciana Antonini. Primeiras edições de Machado de Assis na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. São Paulo: Publicações BBM, 2022.
  • MCKENZIE, Donald Francis. Bibliografia e sociologia dos textos. São Paulo: Edusp, 2017.
  • MORAES, Rubens Borba de. O bibliófilo aprendiz: ou prosa de um velho colecionador para ser lida por quem gosta de livros, mas pode também servir de pequeno guia para formar uma coleção de obras raras ou modernas. Apresentação de Cláudio Giordano. São Paulo: Publicações BBM, 2018.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2023
  • Aceito
    05 Jun 2023
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