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"A cartomante": vertigem machadiana

Resumo

Este ensaio desenvolve uma leitura de "A cartomante", de Machado de Assis, a partir da hipótese de que o conto machadiano trama, junto ao leitor, um "efeito de vertigem", desestabilização inquietante na leitura, corte com uma pretensa linearidade, que vem ligado à estrutura da narrativa. São operadores de passagens com efeitos paradoxais que estão implicados na vida e na ficção: trabalho do estilo, das obliquidades e ironias machadianas.

"A cartomante"; efeito de vertigem; Moebius; ironia

Abstract

This work develops a reading of The "Fortune Teller", by Machado de Assis, based on the hypothesis that the Machadian short story, along with the reader, devises a vertigo effect, disturbing destabilization in the reading process, cut with deceptive linearity that is connected to the structure of the narrative. Passage operators with paradoxical effects are what is implied in life and in fiction: the work of Machadian irony, obliquity, and style.

"The Fortune Teller"; vertigo effect; Moebius; irony

Camilo brinca com Rita, por ela ter ido a uma cartomante na véspera. Ela afirma que a cartomante sabia tudo: adivinhara o motivo da consulta antes mesmo de ser revelado. "Apenas começou a botar as cartas, disse-me: 'A senhora gosta de uma pessoa...'. Confessei que sim, ela continuou [...]".1 1 ASSIS, A cartomante, p. 477. A cartomante tranquiliza Rita do temor de que Camilo a esquecesse. Camilo jura que lhe quer muito, que caso receasse algo ele mesmo seria a melhor cartomante, o imprudente era ser vista por aquelas casas, vá que Vilela ficasse sabendo...

Rita fala do cuidado que tomou, a cartomante morava na rua da Guarda e ninguém a viu entrar. Camilo quer saber se ela acredita mesmo nessas coisas:

Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muita cousa misteriosa e verdadeira nesse mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranquila e satisfeita.2 2 Idem, p. 478.

Camilo não queria tirar-lhe as ilusões, ele mesmo havia sido muito supersticioso quando criança, e ainda depois, diz o narrador, que vai posicionando o relato. "Teve um arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram".3 3 Ibidem. Quando caiu "essa vegetação parasita", e restou só o tronco da religião, Camilo, como havia recebido da mãe ambos os ensinamentos, "envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma negação total. Camilo não acreditava em nada".4 4 Ibidem. Mas o narrador observa a sutileza: limitando-se a negar tudo, Camilo não afirmava a incredulidade, somente dava de ombros ao mistério. Ao mesmo tempo, sentia-se lisonjeado pelo ato de Rita em procurar uma cartomante como sondagem sobre seu amor.

Vilela e Rita formavam o casal; com Camilo, o triângulo. Os dois homens eram muito amigos: quando Vilela chegou ao Rio de Janeiro, voltando do interior, casado, foi Camilo quem os recebeu. E teve boa impressão de Rita, graciosa, bonita e viva nos gestos. O narrador pincela novamente: Vilela, traços graves, parecia mais velho que ela. Camilo, ao contrário, um ingênuo na vida, tanto na moral quanto na prática. O casal, especialmente Rita, cuidou de Camilo quando este perdeu a mãe. Ao se dar conta, ele estava entregue: não soube bem como chegaram ao amor, mas percebeu os olhares mais longos dela, consultando-o antes que ao marido, as mãos frias, e, por último, houve um bilhete que ela lhe escreveu, cumprimentando-o pelo aniversário. O bilhete era tão rascunhado e simples que se denunciou pelo avesso, pode-se dizer.

Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente, foi se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória delirante.5 5 Idem, p. 479.

Camilo afastou-se da casa dos Vilela, deu desculpas vagas, o romance seguindo. Porém, acontecimentos se precipitaram: chega uma carta anônima, chamando-o de imoral e pérfido, dizendo que a aventura não é segredo. A intranquilidade se acentua. Chegam outras cartas para Camilo, Rita diz que Vilela anda sombrio, os dois se preocupam. Combinam de não se encontrarem por um tempo, separam-se em lágrimas. No dia seguinte, Camilo recebe um bilhete de Vilela: "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora".6 6 Idem, p. 480.

Camilo imagina cenas – Rita chorando, Vilela escrevendo o bilhete, certo de que ele atenderia e pronto para matá-lo. Camilo sente medo, passa em casa para ver se há alguma notícia de Rita; nada. Pensa que a denúncia anônima chegou a Vilela, que ele deve ter associado isso ao rarear de suas visitas; a comoção cresce pouco a pouco, pensa em ir armado, a voz insiste em soar como num sussurro constante: "Vem já, já... ". Entra num tílburi, pensa que quanto mais cedo melhor, quer ir de uma vez. A angústia cresce no conto.

No caminho, ocorre um imprevisto: a rua por onde Camilo segue para a casa dos Vilela encontra-se, de repente, obstruída. Há burburinho, aconteceu algo logo ali à frente, ele não sabe bem o quê e espera. Passam-se alguns minutos, o suficiente para que ele se dê conta de onde está na rua da Guarda, justo na frente da casa da cartomante. Observa; a essa altura dos acontecimentos, as janelas das casas vizinhas estão todas abertas vendo a carroça que caíra na rua, com curiosidade, menos aquela: "Dir-se-ia a morada indiferente do Destino",7 7 Idem, p. 481. o narrador indica. Camilo se recosta no tílburi, para não ver nada:

A agitação dele era grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar à primeira travessa, e ir por outro caminho; ele respondeu que não [...] era a ideia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua gritavam os homens, safando a carroça:

– Anda! agora! empurra! vá! vá!8 8 Ibidem, grifo nosso.

E ele vai até ela, o sangue latejando, a curiosidade. A cartomante o leva por uma escada ruim e obscura, a casa com trastes velhos, um ar de pobreza. Ela, as unhas mal cuidadas, desleixadas, as mãos magras que embaralham as cartas enxovalhadas, uns olhos sonsos, mas agudos, "olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos".9 9 Idem, p. 482. A partir das três cartas sobre a mesa, ela diz: "– Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto...".10 10 Ibidem.

Camilo fica maravilhado e diz que sim. A partir daí, o narrador deixa claro o clima de deslumbramento e alegria. Camilo quer beber uma por uma as palavras da cartomante, tudo se apazigua, ela diz que os dois se amam, que ele não tenha medo de nada, nada de mau aconteceria nem a ele, nem a sua amada. Camilo paga, mais do que o comum; afinal, ela lhe deu algo muito valioso: paz de espírito.

Na saída, tudo está diferente, a rua já está livre, o céu límpido, e ele imagina felicidades e reconciliações, os termos do bilhete de Vilela tinham sido os da intimidade, onde ele pensou em ameaça? Quer retomar a amizade, quer chegar sem demora, como explicar esse atraso ao amigo? A cartomante adivinhara tudo, o motivo da consulta, o estado em que ele se encontrava; por que não adivinharia o resto? "O presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro."11 11 Idem, p. 483, grifo nosso.

"Vá, ragazzo inamoratto",12 12 Ibidem. haviam sido as palavras dela. E ele vai. Vilela o recebe, ele pede desculpas por não chegar mais cedo, pergunta o que há. Vilela não responde, leva-o a uma sala onde está Rita, morta e ensanguentada. Vilela segura-o pela gola e, com dois tiros, deixa-o morto no chão.

Em "A cartomante", a imagem destacada das palavras da narrativa, "os giros concêntricos", pode nos auxiliar a percorrê-la. Tudo gira, de alguma maneira, entre o amor e a morte, a crença e o limite; entre os três que compõem o triângulo, onde a cartomante funciona como um pivô; entre o contingente e o necessário: acaso e destino, onde as palavras da cartomante operam, no pano de fundo, com tudo o que pode animar um efeito de oráculo.

O incontornável apresenta-se desde o início, quando Rita posiciona a cartomante para Camilo: esta sabe tudo. Um saber que vai, também, em giros que se somam; saber da mulher amada, mais o enigmático depositado em uma cartomante, mais o saber que se organizou junto à mãe, com todas as superstições e ainda a fé religiosa, Machado arremata.

Ao mesmo tempo, a narrativa apresenta em paralelo a linha do contraste, o que dá o tom do irrisório dessa arquitetura dos saberes e garantias; basta tomarmos a frase que Rita escolhe como sustentação da sua afirmação de que a cartomante sabia tudo – a frase mais banal, a obviedade enunciada por ela ao início da consulta: "A senhora gosta de uma pessoa...". Como se pode crer, a partir daí, que Rita tenha tomado cuidados? Cuidado nenhum, nem ela nem ele, ambos estão prontos a se deixar capturar pelo que o enamoramento produz; o que inclui, em um giro mais amplo, a própria reação à fala da cartomante. Ela é também parte da "vegetação parasita" que o endereçamento amoroso com seu engodo permite surgir.

"Aquele a quem eu suponho o saber, eu o amo",13 13 LACAN, O seminário, p. 91. diz Lacan, no viés da psicanálise, a propósito do amor que está na base de todo endereçamento nas relações do que se conhece como transferência. Uma cartomante, uma vidente e todas as suas derivações partilham de algo desse investimento, podemos dizer. A cartomante machadiana sublinha essa vertente. Ela fica investida dessa autoridade da suposição de saber, e é nesse sentido que suas palavras podem ser escutadas como vindas do lugar da verdade.

E também é assim, no conto, que as superstições soterradas que Camilo deixara para trás, recalcadas, retornam como que pelo mesmo fio, pela voz dessas outras mulheres "que sabem". Camilo bem que tenta resistir (diz rindo para Rita, ao início, que a cartomante errou), mas a imagem sobreposta de mais uma volta dos círculos concêntricos, agora na figura da serpente literalmente enrolando a presa, esmagando seus ossos, pingando o veneno, é poderosa. Principalmente porque ele está incluído no par, na cena, "hipnotizado e hipnotizador".

Aqui abro um parêntese para enunciar o fio da meada de meu trabalho ao longo dos últimos anos: a formulação, a partir da leitura dos contos de Machado de Assis, de que ele constrói uma espécie de vertigem em seus contos, um "efeito de vertigem", que leva o leitor a lidar com lugares de desacomodação, de viradas no texto, torções dos rumos lineares nas narrativas.

E isto fez o norte deste trabalho: a torção que surge na narrativa de Machado de Assis, que incide sobre o leitor como vacilação, perda de chão, "efeito de vertigem"; é preciso pensar nessa vertigem como um efeito singular que dá notícia da torção que está na estrutura. E que constitui, proponho, um princípio de composição de contos14 14 Encontramos o "efeito de vertigem" em um conjunto de contos que pode expandir-se, os que reconhecemos nessa condição vêm a partir de Papéis avulsos, contemporâneos da virada no estilo de escrita de Machado, com Brás Cubas no romance. Nesse conjunto, podemos referir "Umas férias", "A chinela turca", "Missa do galo", "Noite de almirante", "O enfermeiro", "Singular ocorrência", entre outros, trabalho desdobrado em O conto machadiano: uma experiência de vertigem. que está presente no estilo de Machado de Assis.

John Gledson, em "Os contos de Machado de Assis: o machete e o violoncelo", artigo em que apresenta uma antologia de contos de Machado, comenta em dois momentos o que ele chama de impressão de vertigem, efeito produzido pelo conto sobre o leitor:

Nas Memórias póstumas, como bem nos mostra Roberto Schwarz, a ironia está concentrada na figura do narrador, embora também nos capítulos iniciais do romance Machado procure semear confusão na cabeça do leitor, de várias maneiras. Nesses contos as soluções são tanto ou mais engenhosas; todas as suas circunstâncias estão envolvidas em ironias, que simplesmente abrem espaço para outras ironias. Isso explica a sensação de quase vertigem que às vezes essas histórias proporcionam.15 15 GLEDSON, Por um novo Machado de Assis: ensaios, p. 46.

O maior exemplo da extraordinária força adquirida em Papéis avulsos é o conto inicial, "O alienista". Continua sendo um dos trabalhos mais fascinantes de Machado, que nele combina toda a sensação de vertigem de histórias como "O espelho" com uma variedade maior de assuntos, permitida por sua extensão.16 16 Idem, p. 49-50.

No primeiro destaque, a vertigem fica por conta da ironia, mas talvez esse efeito possa desdobrar-se ainda além.

Alcides Villaça ocupa-se do narrador em "A cartomante", acentuando o caminho da ironia como marca de fogo da idade madura do autor, na qual o narrador se movimenta com uma liberdade vertiginosa enquanto "tradutor" das tradições, em relação ao patrimônio cultural; narrador este que, jogando com desproporções e equivalências, pode atrair o leitor para o seu sistema. Desproporções e equivalências que podem também contribuir para a perda do chão, podemos pensar.

O termo vertigem joga simultaneamente com duas faces: uma de fascínio, outra de perturbação. O fascínio – atração frente ao vão, quando olhamos de uma grande altura, algo que puxa como em continuidade; a perturbação – com o horror do buraco, como abismo, sumidouro, descontinuidade.

E é nessa direção que gostaria de inclinar a leitura, em linha transversa, propondo esses pontos de virada na ficção machadiana como lugares, em sua escrita, que põem em questão aquilo que na vida tem relação com o que é faltoso, por estrutura. Os enigmas, as fendas, os terrenos descontínuos, sem respostas totalizantes, e com os quais temos que nos virar.

Machado constrói vertigens no fio narrativo de seus contos, e esses momentos de torção, ou de "dobra", que desacomodam o leitor, não raro funcionam como operadores de passagens. Destaco como passagens duas em especial, que aqui nos interessam mais diretamente: passagens onde o escritor recolhe os elementos fantasmáticos da subjetividade que estão no imaginário social e joga para dentro da ficção; passagens onde se apresenta o que é da ordem das descontinuidades fundamentais da condição humana, dos enigmas que interrogam a cada um – origem/morte, e o encontro com o sexual. Justamente os enigmas da subjetividade que também foram os grandes interrogantes para Freud, e que no contexto em questão nos permitem o trânsito e diálogo entre a ficção machadiana e a psicanálise.

Há contos que me parecem "registrar", assinar algo do estilo do escritor: como se um efeito de vertigem surgisse por perto cada vez em que está em jogo o encontro com esses enigmas, índices das descontinuidades e do trato com a alteridade. Isso também contribui para o transporte da obra no tempo, e destaca um dos traços que compõem sua profunda atualidade.

Fechemos aqui os parênteses para voltar lá onde deixamos Camilo, enrolado pela serpente, o veneno sendo pingado em sua boca, ele cego por Rita, pela cartomante, e assim por diante (indo terminar na mãe, saber da subjetividade que Machado desvela).

Estamos em cheio no terreno da vertigem tal como esse antropólogo tão preciso e interessante em suas considerações, Roger Caillois, a considerou, examinando ritos de passagem em sociedades tradicionais, ou mesmo a ruína do jogador frente ao pano verde, ou a do homem frente à chamada "mulher fatal": o poder da vertigem é o do consentimento, um abandono comandado pelo fascínio que aliena.

A ideia de ouvir a cartomante, ideia que voa em círculos sobre ele, ave cinzenta, garras de ferro, já prenuncia o lugar que o espera: ele será a carniça, objeto resultante do mortífero dessa entrega, o "deixar-se aspirar pelo abismo".

É como no Vertigo,17 17 Vertigo, um corpo que cai. de Alfred Hitchcock, também orientado pelo que pode funcionar como fatal ligado a uma mulher, com as imagens concêntricas pontuando todo o filme – o movimento que circunda os olhos, fechando o zoom nas pupilas, e o detalhe mais inusitado, o foco da câmera diretamente levado ao círculo vazio do buraco do coque, do penteado de Madeleine.

E é assim que Camilo se vê simultaneamente empurrado e puxado, o que constitui um dos momentos mais fortes do redemoinho, da irrupção dos "fantasmas de outro tempo" e que se misturam, confundem-se com as vozes que tratam de arredar a carroça, o "obstáculo" ao caminho livre na rua (ponto máximo da torsão forma/conteúdo, no conto): "– Anda! agora! empurra! vá! vá!".18 18 ASSIS, cit., p. 481. Máxima tensão compartilhada com o leitor, a voz que empurra, como que vinda de trás (do que na sua história restou como terreno fértil ao fascínio), para que ele adentre mais e mais nesse girar, ao mesmo tempo sofre a força que puxa desde o sumidouro – a cegueira amorosa, o engano implicado em cada amor, o "inclinar-se em direção ao vazio". Machado nos oferece o homem fascinado, transmutado, ele mesmo, em carroça...

Acreditando Camilo, paradoxalmente, que agora é que o caminho estava livre do obstáculo (e pressionado pelo temor e pela angústia), a crença irrompe, ele se entrega de todo, como Rita, à primeira frase da cartomante. Ela "olha sob os olhos", novamente a obliquidade do olhar machadiano, e lhe adivinha um susto como motivo da consulta (ele nesse momento é, também, ainda, o menino supersticioso).

As palavras de Vilela fazem a função de imperativo que produz uma espécie de injunção; o "vem já, já" é escutado em sussurro, sai do "externo" para perturbar tudo o que é da ordem do "interno" dele mesmo (como o sussurro em William Wilson, de Edgar A. Poe). Desenha-se mais uma volta; é traçado o pensamento de Camilo, veiculado pelo narrador, na relação direta com os fatos: ele pensa que foi, sim, um traidor da confiança de Vilela, dá-se conta de que os cuidados que tomou com Rita devem ter sido absolutamente insuficientes, e de que, com o surgimento das cartas denunciadoras, ele pode ser alvo de um ódio mortal. Em seguida, abre-se a curva que distende todo esse pensamento, considerando melhor acreditar no saber que ele supõe pertencer ao Outro, no caso, à cartomante, como em qualquer relação de suposição amorosa; e, ao final, o engano da escolha.

Desde que Camilo encontra essa mulher, tudo no conto indica sua cegueira. Vai a primeiro plano o enxovalhado da cartomante, o sujo, o oportunista: apostando no efeito que suas palavras exerceram, ela deixa que Camilo estabeleça o valor da "consulta" – e ele paga cinco vezes mais, feliz, nada disso passa por qualquer dúvida. As dúvidas ficaram no início do conto, só o suficiente para lembrar que o rapaz não havia completado a operação de se desfazer da superstição que o universo materno constitui – e que aqui evoca a crença no saber materno, saber que se acredita ilimitado, a primeira grande crença na vida. Ele simplesmente dava de ombros ao mistério, mas não afirmava a incredulidade.

O que pensar desse momento que se abre em Camilo como um oásis no limite, logo depois da saída da cartomante e imediatamente antes da chegada ao seu destino? Marcado por outro imperativo, "vá, ragazzo inamoratto", ele é todo amor para com Rita, para com Vilela, ele imagina a reconciliação e o estreitamento dos laços, o mundo é banhado pela bênção. É quando a palavra da cartomante opera como efeito de oráculo, como saber do destino. Mais um engano.

"A morada indiferente do Destino", temos no conto. Uma palavra que venha de um lugar de saber suposto pode evocar algo dos oráculos, acessemos a tradição de Delfos em nossa cultura.

A cartomante é um texto amplamente trabalhado, sabemos, e elementos que destacamos aqui dialogam com outras leituras. Dário F. de Sousa Neto aborda a interferência do destino, no conto, como que posicionando Camilo frente ao Templo de Delfos. Sua relação, ao apontar o tragicômico no conto, é inicialmente com a tragédia. A personagem sabendo de seu destino vai do Templo até o local da catástrofe; mas aqui o trágico é desarticulado e o desfecho é tecido com os elementos da ironia.

Michael Wood, em seu livro The Road to Delphi, the Life and Afterlife of Oracles,19 19 Michael Wood é escritor e professor de Literatura em Princeton. WOOD, The Road to Delphi, the Life and Afterlife of Oracles. afirma que não só o nome de oráculo sobrevive, como por exemplo nomeando um dos sistemas de informática mais utilizados no mundo inteiro (Oracle), mas também em práticas na atualidade que funcionam como oraculares. Pode ser na interpelação a um deus, e também aparece nos lugares mais inusitados, como na economia ou na medicina.

Mas o importante a lembrar é que a relação com o oráculo não pode ser, de qualquer maneira, uma relação direta. Um oráculo propõe uma palavra que precisa ser trabalhada. A pergunta do senso comum, em geral, é: a interpretação do oráculo foi certa ou errada? O que Wood trabalha e que me pareceu muito preciso: os desígnios não são verdadeiros nem falsos quando proferidos, eles aguardam confirmação – adquirem significação pelo posicionamento do que foi dito. As predições têm que se tornar histórias, narrativas que posicionam.

Dialoguemos com outra cartomante da nossa literatura: em A hora da estrela,20 20 LISPECTOR, A hora da estrela. de Clarice Lispector, a moça recebe a palavra da cartomante, da "madama", com esse efeito oracular. Sai radiante, só que a luz que atinge sua vida não é o fulgor do grande amor que vem como um príncipe de cavalo branco, o "gringo" rico que está destinado a ela; e sim os faróis do carro que a atinge, enlevada (como Camilo) pela miragem. Quando ela cai no chão, pensa: a queda foi só um empurrão, a predição já começou a acontecer (pois ela viu que o carro era de alto luxo)... minha vida começou agora... Morre, envolta na ideia de que agora, finalmente, nasceu.

Porém, aqui o interessante é justamente o efeito: a narrativa é que produz o lugar onde o oráculo terá sempre acertado, sempre falando a verdade. "Joga com" e subverte a ideia do "livro já escrito do destino". Michael Wood propõe: "Nesse sentido, o oráculo não significa, ele joga uma carta verbal. Aquele que consulta escolhe uma carta e deixa de procurar/achar outras".21 21 WOOD, cit., p. 53. Citação original: “But strictly oracles don’t mean. They play a verbal card, and the card is picked up […]. When the player picks the wrong name, he hasn’t exactly missed the oracle meaning. He has chosen one meaning and ceased to look for others”.

Camilo escolheu logo, sem dúvida. Mas sua cartomante, ao mesmo tempo, não produziu um desígnio ou um enigma digno do lugar de onde era esperada sua palavra (do lugar da verdade). Cartomante não é oráculo, Machado evidencia.

Se Camilo é chamado por essas palavras do externo/interno, como sussurro, o "vem já, já", se é empurrado como carroça para o buraco, siderado por essa mulher que olha "por baixo", se o efeito de vertigem na leitura vem por essas viradas na narrativa que são apontadas pelos traços mínimos, detalhes (o real irrompe para o sujeito por um detalhe), o leitor é chamado a compartilhar essas dobras, engodos ou essas "escolhas" das cartas.

Buscar apontar as relações do texto machadiano com o que é provocador do efeito de vertigem, mais diretamente, é também situar a hipótese de enlace deste com o que apontamos como o encontro com o sexual, a origem, a morte, a alteridade. Nessa direção, o "umbigo" da trama, para lembrar a proposição freudiana, pode ser referida a uma especificade, ponto nodal. Com o terreno movediço da dinâmica da vertigem, Machado reiterou a operação que apresenta uma subversão dos lugares: encontro e perda (continuidade/descontinuidade). Esta é a dinâmica da fantasia que trabalha para cada um, nos processos subjetivos: o que serve para supostamente dominar, controlar, na ideia de que possamos ter o amplo controle de nossos direcionamentos, intenções, desejos, objetos ou circuitos de gozo, termina por revelar o lugar desde onde se é tomado, "se está como objeto" oferecido a determinada alienação subjetiva. Onde se está "perdido" justamente por ter sido constituído, subjetivamente, em uma operação de alienação ao Outro (no conto, a "captura" de Camilo – alienação ao Outro materno) que nos precede e que nos sustenta imaginária e simbolicamente sobre esse "buraco" do real para o qual não se tem saber.

Nesse ponto, o movimento das torções na narrativa ganha espaço e nos coloca em cheio no interesse sobre a questão da estrutura.

O escritor argentino Ricardo Piglia tem trabalhado sobre hipóteses a respeito da operatória formal nos contos, a partir do exame da arquitetura resultante da produção dos grandes contistas. Propõe, em seu livro Formas breves, duas teses sobre os contos.

Primeira tese: um conto narra sempre duas histórias. Segunda tese: o conto é um relato que encerra uma história secreta. Ele apresenta um exemplo mínimo, retirado das notas de Tchecov: "Um homem em Montecarlo vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa, suicida-se". Segundo Piglia, a forma do conto está condensada aí, na contramão do que seria previsível: jogar, perder, suicidar-se. A anedota desvincula duas histórias tramadas: a história do jogo é uma, a história do suicídio é outra, vem por outro lado; o conto trabalharia a tensão e a trama entre as duas.

Ao mesmo tempo em que postula essa duplicidade, Piglia ressalta os pontos de intersecção, nos contos, detalhes que articulam as passagens entre as histórias e as colocam em simultaneidade. Em "A cartomante", podemos encontrar como intersecção este momento especial de tensão na trama, o do "Anda! Agora! Empurra! Vá! Vá!", que vale tanto para a carroça quanto para Camilo. E aqui, mais um passo no pensar a estrutura, forma do escrito, novo diálogo, Piglia e Lacan.

Lacan trabalhou, ao longo de sua obra, sobre a estrutura do sujeito na sua relação com as formações do inconsciente, e mesmo sobre o sujeito e o social, tomando como referência uma figura que vem do campo da topologia: a banda ou fita de Moebius.

A banda de Moebius é uma superfície enigmática e paradoxal: aparentemente, é uma fita com duas faces, um dentro e um fora, um "cara ou coroa". Mas ela possui uma torção que muda radicalmente sua estrutura: desarticula o dual, subverte a separação entre externo e interno. O direito e o avesso agora em continuidade ficam como que contidos um no outro.

A formulação de Ricardo Piglia – cada conto traz duas histórias – nos possibilita articular a dualidade, mas o acento que dá aos pontos de intersecção pode nos permitir um outro passo: o de formular esses lugares na estrutura do conto como os de uma torção, assim como na banda de Moebius; torção que, na narrativa de contos de Machado, vai muito perto do próprio funcionamento da estrutura do sujeito. Ultrapassando a dualidade, a ironia ganha lugar: não é através dela que Machado traça suas passagens, escrevendo "um olhar oblíquo" através do qual algo da verdade atravessa?

O interessante sobre a ironia no contexto que nos concerne: ela transita em meio a um mal-estar, não se deixando reduzir facilmente. Falando da ironia no quadro dos processos sociais, Hamon22 22 HAMON, L’ironie littéraire, essays sur les formes de l’écriture oblique. salienta que, mesmo que para alguns a ironia possa servir como índice de certa autoridade adquirida ou marca de superioridade (de casta ou de classe), ela pode ser, por outro lado, um recurso da resistência à dominação, sem produzir um ataque frontal. Tem a ver com certo confronto, polarização, mas não se ancora nem em dominantes nem em dominados; a ironia não se rege por oposições binárias que terminariam por descartar os "demais", e os "nem tanto", os "um pouco", os "quase nem": as nuances. Ou seja, a ironia se vale do binário, das oposições, mas não cai nele, atravessa-o na transversal, podemos dizer. No binário, nada de nuances – justo os elementos fundamentais na ironia.

O ironista, em geral, fragmenta aquilo que se apresenta como tendendo à totalização, ao massivo. Ele toma o traço mínimo, faz a "dissecção de coisas majestosas", indo pela fratura; o detalhe que vem junto com o prazer pela desorganização das regularidades – a obliquidade que faz perturbação a tudo o que aparece como dentro do controlável.

A ironia em Machado traz isso, é lugar de passagem, faz o corte do chão, é veiculadora da vertigem (que vem pelo detalhe), e é uma forma da obliquidade (certa torção) na escrita. Ultrapassando a dualidade e inserindo a contagem do três na jogada (os pontos "equívocos", que servem a um lado e ao outro), chegamos perto do dito espirituoso, do chiste, que é uma das formações do inconsciente.

Lacan, ao tratar das formações do inconsciente,23 23 LACAN, As formações do inconsciente. acentua a passagem, nos chistes, pela instância terceira, não dual (à diferença do cômico, que estaria no dual). No chiste, há a mensagem que circula, mas é preciso que passe pelo Outro, pelo lugar que não está dito, mas suposto, lá onde isso faz a graça. O chiste só se produz assim, "ele designa, e sempre de lado, aquilo que só é visto quando se olha para outro lugar". Não se trata novamente da obliquidade?

[...] por razões profundas, que se prendem à natureza mesma daquilo de que se trata no Witz, é precisamente ao olharmos para isso que veremos com mais certeza aquilo que não está totalmente ali, aquilo que está de lado, e que é o inconsciente. O inconsciente, justamente, só se esclarece e só se entrega quando o olhamos meio de lado.24 24 Idem, p. 25.

E quando a piada acontece, se corta, "lê", pode aparecer o que estava ali cifrado no meio do próprio dizer, a piada, o suposto, o desejo que circula no meio da cena, na estrutura.

"Anda! Agora! Empurra! Vá! Vá!... " E Camilo foi. A cartomante? Ela era o que era, enxovalhada, disse o que ele queria ouvir para que pagasse mais. A morada indiferente (a ironia machadiana) do Destino.

E nisso Machado compartilha um gozo com o leitor – com a forma pela qual se deixa tomar na linguagem –, transmitindo no mesmo movimento algumas verdades duras e alguns enigmas fortes da condição humana, questões que seguem nos interrogando e constituindo nossas ficções.

Referências

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  • Vertigo, um corpo que cai Produção e direção de Alfred Hitchcock. Paramount, 1958.
  • VILLAÇA, Alcides. Machado de Assis: tradutor de si mesmo. Revista Novos Estudos, São Paulo, n. 51, jul. 1998.
  • WOOD, Michael. The Road to Delphi, the Life and Afterlife of Oracles. Nova York: Farrar, Straus and Giroux, 2003.
  • 1
    ASSIS, A cartomante, p. 477.
  • 2
    Idem, p. 478.
  • 3
    Ibidem.
  • 4
    Ibidem.
  • 5
    Idem, p. 479.
  • 6
    Idem, p. 480.
  • 7
    Idem, p. 481.
  • 8
    Ibidem, grifo nosso.
  • 9
    Idem, p. 482.
  • 10
    Ibidem.
  • 11
    Idem, p. 483, grifo nosso.
  • 12
    Ibidem.
  • 13
    LACAN, O seminário, p. 91.
  • 14
    Encontramos o "efeito de vertigem" em um conjunto de contos que pode expandir-se, os que reconhecemos nessa condição vêm a partir de Papéis avulsos, contemporâneos da virada no estilo de escrita de Machado, com Brás Cubas no romance. Nesse conjunto, podemos referir "Umas férias", "A chinela turca", "Missa do galo", "Noite de almirante", "O enfermeiro", "Singular ocorrência", entre outros, trabalho desdobrado em O conto machadiano: uma experiência de vertigem.
  • 15
    GLEDSON, Por um novo Machado de Assis: ensaios, p. 46.
  • 16
    Idem, p. 49-50.
  • 17
    Vertigo, um corpo que cai.
  • 18
    ASSIS, cit., p. 481.
  • 19
    Michael Wood é escritor e professor de Literatura em Princeton. WOOD, The Road to Delphi, the Life and Afterlife of Oracles.
  • 20
    LISPECTOR, A hora da estrela.
  • 21
    WOOD, cit., p. 53. Citação original: “But strictly oracles don’t mean. They play a verbal card, and the card is picked up […]. When the player picks the wrong name, he hasn’t exactly missed the oracle meaning. He has chosen one meaning and ceased to look for others”.
  • 22
    HAMON, L’ironie littéraire, essays sur les formes de l’écriture oblique.
  • 23
    LACAN, As formações do inconsciente.
  • 24
    Idem, p. 25.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2016

Histórico

  • Recebido
    04 Fev 2016
  • Aceito
    07 Mar 2016
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