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UMA BREVE RELEITURA DA PERSONAGEM HELENA E A FISSURA NO ROMANTISMO

A BRIEF NEW READING OF THE CHARACTER HELENA AND THE BREACH IN ROMANTICISM

Resumo

Este texto propõe uma breve releitura da personagem Helena, do romance homônimo de Machado de Assis. Ele parte da crítica de João Hernesto Weber (2008)WEBER, João Hernesto. Machado de Assis: uma apresentação. Disponível em: <Disponível em: https://www.machadodeassis.ufsc.br/apresentacao/Weber.htm >, 2008. Acesso em: 21 abr. 2021.
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e passa pela proposição e denúncia da afrodiáspora, conforme Edimilson de Almeida Pereira (2021)PEREIRA, Edimilson de Almeida. Contando histórias e ligando fios (Mesa). FEIRA LITERÁRIA DE ANDARAÍ, 2ª Edição Virtual: Andaraí. Mesa 8. Disponível em: <Disponível em: https://flian.com.br/mesas/mesa-8 />. Acesso em: 20 abr. 2021.
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, para demonstrar que o romance em questão, geralmente localizado numa fase romântica do escritor, não pode ser facilmente acomodado nessa estética de expressão triunfante do século XIX. A permanência dessa narrativa no lugar em que a crítica a situou sobrevive mais por conta do caráter nacionalista anunciado em textos críticos do próprio autor e se torna questionável, quando olhamos novamente, e um pouco mais distantes no tempo, para a personagem Helena e suas tensões na sociedade escravocrata.

Palavras-chave:
Helena; Machado de Assis; Recolocação dos corpos; Romantismo

Abstract

This text proposes a brief new reading of the character Helena from Machado de Assis’s homonymous novel. It starts from João Hernesto Weber’s review (2008)WEBER, João Hernesto. Machado de Assis: uma apresentação. Disponível em: <Disponível em: https://www.machadodeassis.ufsc.br/apresentacao/Weber.htm >, 2008. Acesso em: 21 abr. 2021.
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, going through the proposition and denunciation of the African Diaspora, according to Edimilson de Almeida Pereira (2021)PEREIRA, Edimilson de Almeida. Contando histórias e ligando fios (Mesa). FEIRA LITERÁRIA DE ANDARAÍ, 2ª Edição Virtual: Andaraí. Mesa 8. Disponível em: <Disponível em: https://flian.com.br/mesas/mesa-8 />. Acesso em: 20 abr. 2021.
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, to demonstrate that this novel, usually considered as belonging to the author’s romantic period, cannot be easily accommodated in this aesthetics of triumphant expression in the nineteenth century. The permanence of this narrative where critics have placed it survives mainly due to the nationalist character announced in critical texts by the author himself, and it becomes questionable when we look again, a little further in time, at the character Helena and her tensions in the slave-based society.

Keywords:
Helena; Machado de Assis; Placement of bodies; Romanticism

O professor e crítico literário João Hernesto Weber, em texto de apresentação à obra completa de Machado de Assis publicada pelo Ministério da Educação______. Obras completas. Disponível em: <http://machado.mec.gov.br/>. Acesso em: 20 abr. 2021.
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, em parceria com o Portal Domínio Público e com o Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina, em 2008 (WEBER, 2008WEBER, João Hernesto. Machado de Assis: uma apresentação. Disponível em: <Disponível em: https://www.machadodeassis.ufsc.br/apresentacao/Weber.htm >, 2008. Acesso em: 21 abr. 2021.
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), fez coro com uma parte da crítica machadiana, dentre os quais, Roberto Schwarz, que vê no conjunto de romances formado por Ressurreição (1872), A mão e a luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878) uma fase romântica do autor que, mais tarde, ressignificaria a trajetória do romance brasileiro ao tensionar limites da expressão realista.

Para Weber, se nos atentarmos aos escritos críticos do autor de Dom Casmurro, veremos revelados traços do ideal romântico nacionalista. Ou seja, mesmo reivindicando junto aos contemporâneos de seu tempo uma melhor elaboração estética para se buscar de um modo de falar que fosse efetivamente brasileiro - referimo-nos, claro, ao texto “Notícia da atual literatura brasileira: Instinto de nacionalidade” (1873) -, Machado de Assis ainda exigia essa depuração artística para que se pudesse demonstrar que, sim, o país tinha uma sensibilidade e uma inteligência próprias.

O crítico e professor nos ajuda a ver que o crítico Machado concorda com os intelectuais da época que não viam na busca pela cor local o atributo primordial da literatura nacional, mas ao mesmo tempo discordava dos mesmos, já que estes negavam o Indianismo como elemento do projeto de independência cultural. Para o autor de Helena, o Indianismo não garantia a dicção nacional, mas não podia ficar de fora, pois tudo poderia consistir em matéria para a poesia. E todo o pano de fundo dessa discussão ainda é o projeto nacionalista. Diz-nos João Hernesto Weber:

Esse o resumo da primeira parte do ensaio de Machado. E dele podemos extrair duas questões básicas, já indicadas anteriormente. A primeira é a de que o horizonte de Machado, em 1873, ano da publicação do ensaio, ainda é aquele desenhado pelo Romantismo: é forte a presença dos índices de nacionalidade literária românticos, como a cor local, o indigenismo, a natureza americana, o que lhe permite construir e rastrear uma das linhas de continuidade da literatura brasileira, a se estender de Santa Rita Durão a Gonçalves Dias. A outra é que, se o horizonte discursivo de Machado ainda é o do Romantismo, esse discurso não é, pura e simplesmente, assimilado como tal: ao mesmo tempo em que Machado reconstitui o discurso romântico, ele o destrói em sua exclusividade. (WEBER, 2008WEBER, João Hernesto. Machado de Assis: uma apresentação. Disponível em: <Disponível em: https://www.machadodeassis.ufsc.br/apresentacao/Weber.htm >, 2008. Acesso em: 21 abr. 2021.
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)

Notemos que o crítico e professor lê na minúcia o ensaio mencionado e acaba, a exemplo do que fizeram outros - Roberto SchwarzSCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. 6. ed. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2012., Antonio CandidoCANDIDO, Antonio. Vários escritos. 4. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul; São Paulo: Duas Cidades, 2004., Alfredo BosiBOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 47. ed. São Paulo: Cultrix, 2006. (este com alguma ressalva) -, acomodando as narrativas de Machado da década de 1870 numa possível fase romântica, porém, claro, sem limitar os romances a simples emulações de uma época.

Não queremos aqui, com a breve releitura de uma personagem, negar a inconteste presença de traços românticos no livro de 1876. Afinal, encontramos em Helena descrições de personagens e de idílios amorosos tipicamente românticos, bem como encontramos ambientação e contextualizações sociais comuns ao estilo, ou ainda, notamos a incessante interferência do clero na vida dos protagonistas. Sugerimos apenas que uma leitura atualizada da personagem Helena pode revelar fissuras importantes no conjunto de elementos que cercam e atravessam a produção romântica da época e sofisticam a trajetória de Machado em meio ao Romantismo.

Há uma cena em Helena na qual a protagonista e seu ainda irmão Estácio passeiam a cavalo por uma estrada afastada que, posteriormente saberemos, leva até a casa de Salvador (verdadeiro pai de Helena). Essa paisagem é importante na trama, pois figurará também como presente de aniversário a Estácio e ainda como objeto por meio do qual supostamente se revela o segredo da moça.

Nessa estrada, Estácio e Helena se deparam com um escravo que, sentado à beira, descasca uma laranja e alimenta, com as cascas, uma das mulas que conduzia. Diante da imagem, a protagonista e o irmão travam um diálogo a respeito do escravo. Estácio, personagem estereotipado na narração como homem correto, sensível, letrado e preparado para a vida pública, diz já ter refletido sobre a escravidão e que, em sua opinião, o pior peso ao escravo não seria o da privação de coisas fugazes, mas sim sua sujeição a outros homens. Diz ainda que o dinheiro, no seu caso, bem como no de todos de sua classe social, compra coisas que o escravo jamais poderá ter, por exemplo, a possibilidade de se deslocar com mais rapidez, o que daria a eles, membros de uma classe abastada, certa economia de tempo. Helena então manifesta uma reflexão bastante incomum:

- Tem razão, disse Helena: aquele homem gastará muito mais tempo do que nós em caminhar. Mas não é isto uma simples questão de ponto de vista? A rigor, o tempo corre do mesmo modo, quer o esperdicemos, quer o economizemos. O essencial não é fazer muita coisa no menor prazo; é fazer muita coisa aprazível ou útil. Para aquele preto o mais aprazível é, talvez, esse mesmo caminhar a pé, que lhe alongará a jornada, e lhe fará esquecer o cativeiro, se é cativo. É uma hora de pura liberdade. (ASSIS, 1959ASSIS, Machado de. Helena. São Paulo: W.M. Jackson, 1959., p. 68)

Estácio, na sequência, insinua que Helena deveria ter nascido homem e advogado, dada sua habilidade em lidar com assuntos pouco comuns às mulheres. Mas faz isso sem revelar certo desconforto com as opiniões contrárias da protagonista. Desconforto esse que se dissipa por certa acomodação intencional de Helena aos moldes em que, sabe ela, o irmão queria vê-la.

A passagem é rápida no romance, mas não passa despercebida ao leitor atual. Outro índice significativo desse momento da narrativa se desdobra no desenho que Helena pinta para presentear o irmão no dia de seu aniversário. Ela esboça essa mesma paisagem em que a cena ocorre.

Ali entrados, abriu a moça uma pasta de desenhos, na qual havia um só, mas significativo: era uma parte da estrada de Andaraí, a mesma por onde eles costumavam passear, mas com algumas particularidades do primeiro dia. Dois cavaleiros, ele e ela, iam subindo a passo lento; ao longe, e acima via-se a velha casa da bandeira azul; no primeiro plano, desciam o preto e as mulas. (ASSIS, 1959ASSIS, Machado de. Helena. São Paulo: W.M. Jackson, 1959., p. 118)

Não podemos deixar de ressaltar, em uma sociedade escravocrata, o quão pouco comum era a colocação do escravo no primeiro plano de uma pintura ou de qualquer objeto de arte. Claro, sabemos que as reflexões de Helena, assim como o desenho, não se ajustam às pautas de denúncia da diáspora africana dos séculos XX e XXI; porém, temos de convir que esse ângulo de observação em que Machado de Assis instala Helena, bem como o destaque do escravo no primeiro plano do desenho dado de presente a Estácio, marcam fissuras importantes no modo de pensar da sociedade escravista.

Pedimos licença para dar um salto momentâneo no tempo. Em 28 de março de 2021, na Feira Literária de Andaraí, estado da Bahia, o pesquisador, crítico e poeta Edimilson de Almeida PereiraPEREIRA, Edimilson de Almeida. Contando histórias e ligando fios (Mesa). FEIRA LITERÁRIA DE ANDARAÍ, 2ª Edição Virtual: Andaraí. Mesa 8. Disponível em: <Disponível em: https://flian.com.br/mesas/mesa-8 />. Acesso em: 20 abr. 2021.
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, ao responder a uma questão sobre a colocação do corpo negro na sociedade atual, responde com uma sofisticada proposição. Ele sugere, em outras palavras, que a violenta invisibilização do corpo negro na sociedade brasileira ao longo dos séculos opera num regime ontológico. Não se trata apenas do corpo físico, mas, antes, de uma violência contra o corpo ontológico do negro. O corpo físico é machucado, na visão de Edimilson, até hoje, como procedimento para esvaziar o corpo ontológico, entendendo este como o corpo por meio do qual o negro inscreve sua particular forma de ser no mundo, com suas idiossincrasias e potências.

E continua. Para ele, a recolocação do corpo negro não deve seguir apenas a pauta de afirmação das belezas e das forças do corpo físico, já que este nunca esteve fora da sociedade. A recolocação desse corpo violentado e que teve suas narrativas esvaziadas deve se dar no nível do adensamento, do enviesamento, da cartografia de um diferente modo de estar entre os corpos.

O procedimento da violência sobre o corpo físico, o machucado, o castigo, o corte, enfim, são procedimentos de dor para esvaziar a presença subjetiva do negro. São procedimentos de redução do corpo, que em sua completude implica fisicalidades e subjetividades, em corpo máquina - máquina de trabalho. Por essa razão o corpo negro sempre esteve em meio à sociedade, porém feito corpo coisa, corpo máquina de trabalhar, corpo fetiche.

Por isso, acredita Edimilson Pereira que a recolocação do corpo consiste também numa disputa no campo do simbólico criativo. É preciso elaborar diferentes formas de aparição do corpo, diferentes ângulos de observação dos corpos.

Sabemos que a reflexão da personagem Helena ainda carrega os limites de compreensão de sua época, por exemplo, associar o alívio da dor com a liberdade propriamente dita, mas não podemos deixar de admitir que seu ângulo de observação gera dissenso no modo de pensar de uma época.

Ainda na esteira do que disse Edimilson de Almeida Pereira, a recolocação criativa dos corpos negros desloca a própria estabilidade do ângulo de observação dos corpos brancos. Helena não alivia o peso da dor do escravo ao observar a cena sob um ângulo diferente e registrar aquele corpo negro em outra dinâmica, no caso, temporal (o deslocamento menos apressado como forma de gozo), mas ela gera o desconforto no corpo branco, o de Estácio, que só consegue ver no corpo cativo do negro o que ele, escravo, nunca conseguirá alcançar.

A esse desconforto primeiro de Estácio, o de ser confrontado por um ponto de vista criativo, segue um segundo desconforto que a própria Helena trata de amenizar, a saber, o de ser contrariado por uma mulher. Ou seja, a fala de Helena causa dissenso em toda a idiossincrasia escravocrata, não apenas à que se refere ao negro escravizado.

Aliás, o ponto nevrálgico do romance está justamente nesse constante dissenso que a presença de Helena provoca. Dito de outro modo, ao elaborar uma personagem como Helena, Machado de Assis não milita em uma frente específica, a da diáspora, ou de qualquer outra, mas cria, sim, fissuras ao recolocar um corpo feminino dissidente no estável ângulo de observação de uma sociedade escravocrata.

Sabemos que Machado de Assis está sempre de olho no leitor do século XIX. Por isso elabora sutis e diferenciadas formas de descrever subjetivamente Helena. Quando se trata de uma cena pública (que para mulheres é ainda doméstica), um jantar, por exemplo, Helena é descrita de maneira romântica: “Era uma moça de dezesseis a dezessete anos, delgada sem magreza, estatura um pouco acima da mediana, talhe elegante e atitudes modestas. A face de um moreno-pêssego, tinha a mesma imperceptível penugem da fruta de que tirava a cor [...]” (ASSIS, 1959ASSIS, Machado de. Helena. São Paulo: W.M. Jackson, 1959., p. 31).

Porém, em momentos mais privados com Estácio, como na volta do passeio em que Helena insinuou ter um segredo muito grave, as descrições subjetivas da protagonista ganham força e dissimulação: “Estácio entrou pensativo; Helena mudou totalmente de ar e maneiras. Alguns segundos antes era sincera a melancolia que lhe assombrava o rosto. Agora regressara a jovialidade de costume” (ASSIS, 1959ASSIS, Machado de. Helena. São Paulo: W.M. Jackson, 1959., p. 75).

Notemos que na convenção romântica da descrição anterior não há o dado melancólico, nem mesmo a transformação repentina de temperamento. E ainda: o comportamento mais aparentemente sincero foi manifesto fora da casa e não na proteção da vida privada, o que revela algo mais sobre a ambiguidade da personagem - várias convenções estão enviesadas aqui.

O mesmo ocorre em conversa com o padre Melchior. Quando Helena, na ausência de Estácio, que estava em viagem com a família de Eugênia, vai procurar o padre para tratar de seu destino, este reconhece caracteres de personalidade pouco convencionais às meninas românticas enamoradas e com pele de pêssego: “- Não gosto de tanta reflexão em tão verde idade, replicou benevolamente Melchior; todavia, encanta-me esse raciocínio que, ao cabo de tudo, pode ser verdadeiro” (ASSIS, 1959ASSIS, Machado de. Helena. São Paulo: W.M. Jackson, 1959., p. 175).

Aqui o narrador atribui ao padre o reconhecimento da sagacidade de Helena. Melchior, todos sabemos, lê Helena com mais perspicácia que Estácio. Isso nos fica claro a partir da solução encontrada pelo narrador. Como Estácio sequer sabe de seus próprios sentimentos, tem que ser o narrador a nos revelar as impressões do moço, quando este percebe variações no temperamento da “irmã”. Já o padre, com sua sagacidade, revela por si só.

Essa estratégia composicional mostra que Machado elabora uma Helena para a sociedade escravocrata de seu tempo e, na mesma narrativa, uma Helena particular: aquela que articula com a inteligência e que causa desconforto moral em outros personagens da trama, bem como no leitor folhetinesco pouco submetido em suas leituras a mulheres de sofisticação intelectual.1 1 Personagens femininas dos romances anteriores, Ressurreição e A mão e a luva, já apresentavam essa capacidade articuladora, porém de maneira mais tímida, como aponta João Hernesto Weber no ensaio já citado.

Esse procedimento, notamos, não se aplica a Estácio. Este já nos é apresentado desde o início da narrativa como uma personagem reta, pronta para a vida pública. No caso de Helena, que não devia estar preparada para vida pública, sensação comum também ao leitor da época, foi preciso modular a descrição subjetiva.

Uma das consequências desse efeito é que a narrativa entra em intimidade com o leitor folhetinesco da sociedade escravocrata sem confirmar seu horizonte de valores morais e de participação na vida pública. Antes, Machado se vale dessa intimidade para provocar o dissenso nos acomodados valores românticos circulantes por meio de romances de seu tempo.

Afinal, onde essas relações mencionadas se tocam? Helena não induz corpos brancos de uma sociedade escravocrata a uma mudança de ângulo de observação ao colocar o negro no primeiro plano do desenho dado de presente a Estácio. Ela fissura a visada romântica da época à medida que se impõe como mulher. Ocorre que a sociedade que vê na mulher uma personagem desqualificada para a vida pública é a mesma que sequestra e escraviza africanos. Mexer na ontologia de um corpo, é o que diz Edimilson de Almeida Pereira, equivale a mover todos os outros. Um corpo feminino pensante e articulado, feito o de Helena, quando inserido no universo diegético que encontra sua estabilidade na preservação das convenções, fissura não apenas a concepção supremacista que sustenta a diegese elaborada pelo autor, mas fissura também o supremacismo escravocrata inerente aos valores do leitor, à época, muito íntimo dessa sociedade.2 2 Silviano Santiago nos mostra que mais tarde, com Dom Casmurro, Machado radicaliza essa experiência.

Outro dissenso que podemos recuperar na postura de Helena é a renúncia à própria vida. A protagonista não desiste da vida, deixando-se definhar, por amor a Estácio ou à família que a acolheu, ela desiste de lutar por sua permanência na casa, bem como pela possibilidade de viver seu amor, a partir do afastamento definitivo de seu verdadeiro pai, que trazia consigo toda a elaboração falsa que Helena não conseguiu sustentar, uma vez que a verdade apareceu. Ou seja, suas razões não foram as tradicionais motivações românticas.

Dito isso, a simples sugestão que pretendemos fazer com esta breve releitura da personagem é mostrar que, apesar dos traços evidentemente românticos do romance Helena, a protagonista desloca ética e esteticamente uma série de convenções da literatura romântica. Primeiramente, pela estratégia de composição que transita entre a descrição de uma personalidade própria ao Romantismo, para atender a uma demanda não apenas da sociedade que acolhe a “irmã” de Estácio, mas a uma demanda da própria sociedade que a lê; e, em segundo, pela recolocação dos corpos da mulher e do negro no enviesamento dos corpos brancos aristocráticos que não apenas pesam sobre o destino de Helena (os corpos da família de Estácio), mas também sobre o corpo do próprio leitor de seu tempo.

Podemos falar, sim, que, já nessa fase de sua literatura, Machado de Assis elabora certa fissura ontológica que implica leitor e fatura estética. Mais tarde, com Brás e Casmurro, essa fissura se ampliará tendo como foco do dissenso uma outra forma de expressão artística - o Realismo.

O que queremos dizer para finalizar é que Machado de Assis olha para a própria literatura como um corpo ontológico. Cria personagens como Helena para enviesar o ângulo de observação da própria literatura. Uma narrativa como essa desloca o corpo todo da literatura e introduz signos (Helena, Brás, Casmurro) que distendem os demais corpos literários.

O que a personagem Helena não fissura, e nisso João Hernesto Weber estava certo, é o desejo pelo elemento nacional. Afinal, distender o Romantismo nos anos de 1870, para o escritor de “Instinto de nacionalidade”, era ainda mostrar uma inteligência capaz de caminhar com as próprias pernas.

Não sugerimos, entretanto, que o ideal nacionalista e a fatura estética articulada em Helena estejam separados, isso seria desmedido para os estudos literários. Afirmamos apenas que, mesmo quando um escritor como Machado de Assis dialoga com a forma de expressão predominante - também será assim mais tarde no Realismo -, sua elaboração artística antes desloca os corpos literários habituados a enxergar as tensões sociais de um mesmo ângulo do que sedimenta uma expressão de época. Ainda uma vez, sua escrita mais problematiza do que se torna exemplo de um estilo de época, mesmo na fase dita romântica. E, sabemos, quando olhamos para a história literária afastados um pouco mais no tempo, damo-nos conta de que o que sabemos do tempo e de seus estilos predominantes é o que aprendemos com as obras. Logo, Machado, por meio do romance Helena, fissura e também faz ver o que chamamos de Romantismo, dado que nos mostra os limites não apenas do estilo, mas também do leitor da época.

Referências

  • ASSIS, Machado de. Helena São Paulo: W.M. Jackson, 1959.
  • ______. Obras completas Disponível em: <http://machado.mec.gov.br/>. Acesso em: 20 abr. 2021.
    » http://machado.mec.gov.br
  • BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira 47. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
  • CANDIDO, Antonio. Vários escritos 4. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul; São Paulo: Duas Cidades, 2004.
  • PEREIRA, Edimilson de Almeida. Contando histórias e ligando fios (Mesa). FEIRA LITERÁRIA DE ANDARAÍ, 2ª Edição Virtual: Andaraí. Mesa 8. Disponível em: <Disponível em: https://flian.com.br/mesas/mesa-8 />. Acesso em: 20 abr. 2021.
    » https://flian.com.br/mesas/mesa-8
  • SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos São Paulo: Perspectiva, 1978.
  • SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas 6. ed. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2012.
  • WEBER, João Hernesto. Machado de Assis: uma apresentação. Disponível em: <Disponível em: https://www.machadodeassis.ufsc.br/apresentacao/Weber.htm >, 2008. Acesso em: 21 abr. 2021.
    » https://www.machadodeassis.ufsc.br/apresentacao/Weber.htm
  • 1
    Personagens femininas dos romances anteriores, Ressurreição e A mão e a luva, já apresentavam essa capacidade articuladora, porém de maneira mais tímida, como aponta João Hernesto Weber no ensaio já citado.
  • 2
    Silviano SantiagoSANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978. nos mostra que mais tarde, com Dom Casmurro, Machado radicaliza essa experiência.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    22 Abr 2021
  • Aceito
    18 Jun 2021
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