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Um eu todo retorcido: a voz enunciadora nas crônicas machadianas da série “A semana”

A twisted me: the announcer voice in the series of chronicles “a semana”, by Machado de Assis

Resumo

O ensaio examina a questão da distância estética nas crônicas machadianas da série “A semana”. Nesta série em particular, Machado mistura diferentes usos da primeira pessoa, o que torna sua interpretação especialmente desafiadora. A partir da análise de algumas variações da instância enunciadora neste conjunto de textos, constata-se a autonomia das crônicas entre si e, como consequência, a impossibilidade da eleição de um método crítico a priori para sua abordagem.

Palavras-chave:
Machado de Assis; crônicas; “A semana”; voz enunciadora

Abstract

The essay examines the problem of the aesthetic distance in “A Semana”, a series of chronicles by Machado de Assis. In this particular series, the author mixes different uses of the first person, which makes its interpretation especially challenging. The analysis of some variations of the enunciating instance in this set of texts reveals the autonomy of the chronicles among themselves and, as a consequence, the impossibility of choosing an a priori critical method for their approach.

Keywords:
Machado de Assis; chronicles; “A semana”; enunciating voice

Uma questão espinhosa com que se depara aquele que estuda as crônicas de Machado de Assis diz respeito à voz que relata ou comenta os eventos. A atitude mais comum na interpretação desses textos é a de se considerar a crônica como um gênero dissertativo tout court e atribuir diretamente ao autor as opiniões ali emitidas. Nesse sentido, John Gledson é atualmente o crítico que melhor representa essa tradição. Como ele próprio faz questão de sublinhar, sua abordagem da obra machadiana parte de um assumido intencionalismo, ou seja, de sua tentativa de deduzir o que Machado queria dizer em sua obra. Assim, para Gledson, as crônicas seriam um veículo privilegiado para a compreensão do pensamento do autor e daquilo que seriam suas “verdadeiras opiniões” (2003GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e história. São Paulo: Paz e Terra, 2003., p. 142).

Perspectiva crítica oposta a essa é defendida principalmente por Sidney Chalhoub, que tem apontado com veemência para o caráter ficcional das crônicas machadianas. Chalhoub (2009CHALHOUB, S. A crônica machadiana: problemas de interpretação, temas de pesquisa. IN: Revista Remate de Males, v. 29, n. 2, pp. 231-246, 2009., p. 236) questiona a frequente recusa em se reconhecer a presença de um narrador nas crônicas, afirmando que “a complexidade dos movimentos dos narradores ficcionais em primeira pessoa das crônicas não é necessariamente menor do que a de seus correlatos nos romances ou contos”. Para sustentar o argumento, ele descreve quatro características da crônica machadiana,1 1 São elas: a imersão na indeterminação da época, o enfoque na matéria política, a subjetividade do ponto de vista da narrativa, e um paradigma narrativo segundo o qual os narradores identificam um problema real e, após demonstrarem perplexidade “diante da dificuldade em formar opinião diante dele, (...) acabam por aderir à posição que lhes parece mais cômoda ou individualmente vantajosa”. porém faz a importante ressalva de que tal paradigma vale somente para as séries compostas nas décadas de 1870 e 1880 (de “História de 15 dias” a “Bons dias!”). Chalhoub (2009CHALHOUB, S. A crônica machadiana: problemas de interpretação, temas de pesquisa. IN: Revista Remate de Males, v. 29, n. 2, pp. 231-246, 2009., p. 235) exclui as séries anteriores “por terem outro feitio” ou “por ainda não se saber o suficiente sobre elas”, e também a série “A semana”, “outra que nunca mereceu estudo aprofundado”.

De fato, a série “A semana” configura-se como um desafio à parte. Publicada na Gazeta de Notícias entre os anos de 1892 e 1897,2 2 Duas outras crônicas foram publicadas posteriormente, em 04 e 11 de novembro de 1900. ela foi composta em um período crucial não só no que diz respeito ao contexto brasileiro mais amplo, mas também em relação à obra do escritor. Se, no que tange ao país, “A semana” é a única série que testemunha a República, em relação à obra de Machado, trata-se do último conjunto de crônicas, escrito em um período considerado como a maturidade artística do autor, portanto quando ele exibe grande domínio da forma. O confronto entre “A Semana” e as séries anteriores do escritor revela o ressurgimento ou o aprofundamento de traços já explorados, ao mesmo tempo que apresenta características próprias. Assim, o objetivo deste ensaio é analisar a performance da voz do cronista nesta série em particular.

Sim, performance - porque o desempenho desse sujeito que comenta os acontecimentos semanais é justamente um dos traços estilísticos mais salientes nesta série. Com frequência, a voz que tece os comentários exibe uma atuação teatral, chegando mesmo a assumir o protagonismo em muitas das crônicas (daí Chalhoub usar a expressão máscara para se referir a ela). Contudo, há variações sensíveis na instância enunciadora neste conjunto de textos tão amplo quanto variado. Se às vezes é nítido o posicionamento do autor, por outras o uso e o abuso da ironia deixam o leitor sem saber a quem atribuir os comentários emitidos, e enredado na pergunta: quem está falando aqui?

A voz do dono ou o dono da voz

Para começarmos a desbravar o emaranhado formado pelos 248 textos que compõem “A semana”, podemos partir da trilha aberta por Chalhoub. Conforme destacado, a presença de um narrador ficcional é um dos principais aspectos distintivos que ele observa nas séries de crônicas machadianas publicadas nas décadas de 1870 e 1880. O crítico nota que, fossem ou não assinadas por pseudônimos, essas séries “vinham quase todas na primeira pessoa do singular”,3 3 Ele aponta uma exceção, “mais aparente do que real”, na série curta “A + B”, composta de textos dialogados. sendo obras de autores “imaginários que se constituíam personagens fictícias da história real” (CHALHOUB, 2009CHALHOUB, S. A crônica machadiana: problemas de interpretação, temas de pesquisa. IN: Revista Remate de Males, v. 29, n. 2, pp. 231-246, 2009., p. 236).

No que tange à “Semana”, o primeiro traço que salta aos olhos é a ausência de qualquer assinatura. Não há pseudônimo, não há indicação da identidade real do autor. John Gledson (In: ASSIS, 1996ASSIS, Machado de. A Semana. Ed., intr. e notas de John Gledson. São Paulo: Editora Hucitec, 1996., p. 13) observa que, apesar do anonimato, é difícil imaginar que a autoria de Machado fosse desconhecida.4 4 Nas citações das crônicas, utilizei a edição anotada por John Gledson, que abrange os dois primeiros anos da série. Para os demais anos, utilizei a edição das Obras completas da Jackson. Ele cita duas menções feitas por terceiros à autoria da série. A primeira referência foi registrada por Artur Azevedo em O álbum, em janeiro de 1893: dizia o dramaturgo que “Atualmente escreve Machado de Assis, todos os domingos, na Gazeta de Notícias, uns artigos intitulados A semana, que noutro país mais literário que o nosso teriam produzido grande sensação artística”. A segunda menção data de 10 de abril do mesmo ano, quando “uma correspondente do jornal A Cidade do Rio, comentando as opiniões expressas pelo cronista no dia anterior a respeito do serviço doméstico, diz que ‘A crônica de Machado de Assis fez-me escrever esta carta...’”. Além disso, Gledson lembra o texto do dia 08 de outubro de 1893, no qual a morte do editor e livreiro Garnier suscita a recordação de lembranças pessoais do autor, como exemplo de um momento em que “não há dúvidas de quem está escrevendo”.

Observemos o que ocorre nessas crônicas em que o relato inclui memórias pessoais de Machado. Isso ocorre com particular frequência em dois tipos de circunstâncias: quando o assunto da crônica suscita comparações com o passado vivido ou testemunhado pelo autor (ocasião que propicia o relato de lembranças particulares), ou quando da morte de algum amigo ou de alguma pessoa por quem o escritor nutrisse admiração especial. Veja-se como exemplo deste último caso a famosa e belíssima crônica em que Machado comenta a morte do editor e livreiro Baptiste-Louis Garnier:

Segunda-feira desta semana, o livreiro Garnier saiu pela primeira vez de casa para ir a outra parte que não a livraria. Revertere ad locum tuum - está escrito no alto da porta do cemitério de S. João Batista. Não, murmurou ele talvez dentro do caixão mortuário, quando percebeu para onde o iam conduzindo, não é este o meu lugar; o meu lugar é na Rua do Ouvidor 71, ao pé de uma carteira de trabalho, ao fundo, à esquerda: é ali que estão os meus livros, e minha correspondência, as minhas notas, toda a minha escrituração.

Durante meio século, Garnier não fez outra cousa, senão estar ali, naquele mesmo lugar, trabalhando. Já enfermo desde alguns anos, com a morte no peito, descia todos os dias de Santa Teresa para a loja, de onde regressava antes de cair a noite. Uma tarde, ao encontrá-lo na rua, quando se recolhia, andando vagaroso, com os seus pés direitos, metido em um sobretudo, perguntei-lhe por que não descansava algum tempo. Respondeu-me com outra pergunta: Pourriez-vous résister, si vous étiez forcé de ne plus faire ce que vous auriez fait pendant cinquante ans? Na véspera da morte, se estou bem informado, achando-se de pé, ainda planejou descer na manhã seguinte, para dar uma vista de olhos à livraria. (ASSIS, 1996ASSIS, Machado de. A Semana. Ed., intr. e notas de John Gledson. São Paulo: Editora Hucitec, 1996., p. 310)

O relato de um encontro casual com o editor revela discretamente, nas entrelinhas do texto, o convívio pessoal com Garnier, e é a base mesma das impressões que o cronista tece a seu respeito, destacando a grande dedicação do amigo ao trabalho. Mais adiante, o texto apresenta novas revelações pessoais, quando Machado evoca lembranças dos momentos que passou na livraria e dos autores com que lá conviveu. Após afirmar que “se deu pouco” com Macedo, acrescenta: “Com José de Alencar foi diferente; ali travamos as nossas relações literárias. Sentados os dous, em frente à rua, quantas vezes tratamos daqueles negócios de arte e poesia, de estilo e imaginação, que valem todas as canseiras deste mundo” (ASSIS, 1996ASSIS, Machado de. A Semana. Ed., intr. e notas de John Gledson. São Paulo: Editora Hucitec, 1996., pp. 311-312), fornecendo indicações preciosas não apenas de seu convívio com o autor do Guarani como também da intensa troca intelectual entre os dois escritores.

Já em relação à outra modalidade de inclusão de memórias pessoais de Machado nas crônicas (quando o assunto do presente ocasiona comparações com o passado vivido pelo autor), veja-se como exemplo o texto publicado no dia 08 de janeiro de 1893. O prefeito havia ordenado que se cumprisse uma postura municipal e que fossem definitivamente despejados os mercadores das calçadas. Fica nítido o tom melancólico do cronista ao tratar do despejo dos ambulantes: ele anuncia que a semana finda foi “mui triste”, que o estado da Rua Primeiro de Março era de “desolação”, dada a ausência lamentada das “turcas, ao pé das caixas de bugigangas”, dos “engraxadores de sapatos com as suas cadeiras de braços e o demais aparelho”, dos tabuleiros de quitanda e dos samburás de frutas (ASSIS, 1996ASSIS, Machado de. A Semana. Ed., intr. e notas de John Gledson. São Paulo: Editora Hucitec, 1996., pp. 177-178). E lembra então que “a posse das calçadas é antiga”:

Há vinte ou trinta anos, não havia a mesma gente nem o mesmo negócio. Na velha Rua Direita, centro do comércio, dominavam as quitandas de um lado e de outro, africanas e crioulas. Destas, as baianas eram conhecidas pela trunfa, - um lenço interminavelmente enrolado na cabeça (...). Ao lado da igreja da Cruz vendiam-se folhetos de várias espécies, pendurados em barbantes. Os pretos-minas teciam e cosiam chapéus de palha. Havia ainda... Que é que não havia na Rua Direita? (ASSIS, 1996ASSIS, Machado de. A Semana. Ed., intr. e notas de John Gledson. São Paulo: Editora Hucitec, 1996., p. 178)

Nessa crônica, e em outras semelhantes, nota-se certa atitude saudosista, além do registro da paisagem humana da cidade em tempos idos a partir das memórias do cronista. Porém, o exemplo talvez mais surpreendente de crônica em que Machado resvala para o relato de memórias encontra-se no texto publicado em 14 de maio de 1893. Comentando as celebrações da Abolição, ele escreve:

Houve sol, e grande sol, naquele domingo de 1888, em que o Senado votou a lei, que a regente sancionou, e todos saímos à rua. Sim, também eu saí à rua, eu o mais encolhido dos caramujos, também eu entrei no préstito, em carruagem aberta, se me fazem favor, hóspede de um gordo amigo ausente; todos respiravam felicidade, tudo era delírio. Verdadeiramente, foi o único dia de delírio público que me lembra ter visto. (ASSIS, 1996ASSIS, Machado de. A Semana. Ed., intr. e notas de John Gledson. São Paulo: Editora Hucitec, 1996., p. 239)

Em todos esses casos, creio não haver dificuldade em se admitir que Machado nitidamente fala em nome próprio. Assim, ainda que sua assinatura não constasse abaixo das crônicas desta série, o relato pessoal cumpria a função de apontar para a instância autoral, por mais indeterminada que ela fosse. Mais do que isso, como veremos, essa ordem de comentários também servia para atestar o prestígio do nome ao qual se vinculava o jornal. Como isso acontecia? Mesmo que em momento algum haja menção ao nome de Machado nas crônicas (e que consideremos, então, que para uma grande parcela dos leitores a autoria desses textos tenha permanecido incógnita), a indicação do prestígio do cronista fica nítida nos textos em que ele comenta sua presença nos jantares mensais da Revista Brasileira. O cronista mal consegue disfarçar seu orgulho ao demonstrar o círculo social mais seleto em que circula, como na crônica de 19 de julho de 1896: “Este que aqui vedes jantou duas vezes fora de casa esta semana. A primeira foi com a Revista Brasileira, o jantar mensal e modesto, no qual, se não faltam iguarias para o estômago, menos ainda as faltam para o espírito” (ASSIS, 1953bASSIS, Machado de. Obras completas. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: W. M. Jackson, 1953b. Vol. 26., p. 233). Mais adiante, ele comenta o outro jantar a que foi convidado, este em homenagem ao escritor, diplomata e político Joaquim Francisco Assis Brasil, reunião a que também compareceram “o chefe da Gazeta”, além de “outras dezenas de homens da política, das letras, da ciência, da indústria e do comércio” (ASSIS, 1953bASSIS, Machado de. Obras completas. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: W. M. Jackson, 1953b. Vol. 26., p. 234). Além de estar presente na indicação dos convivas (“quatro ou cinco dezenas de homens de boa vontade” reunidos para homenagear “nosso ilustre patrício” - (ASSIS, 1953bASSIS, Machado de. Obras completas. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: W. M. Jackson, 1953b. Vol. 26., p. 234) - e na descrição do ambiente (“O salão do Casino tinha um magnífico aspecto, embaixo pelo arranjo da mesa, em cima pela agremiação das senhoras que a comissão graciosamente convidou para ouvir os brindes” - (ASSIS, 1953bASSIS, Machado de. Obras completas. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: W. M. Jackson, 1953b. Vol. 26., pp. 234-235), a altivez do cronista se revela na elevação do tom perceptível em toda a passagem - o que não impede que, alguns parágrafos adiante, ele mesmo zombe de sua admiração excessiva por si próprio: “Não quisera falar de mim; mas um pouco de egotismo não fica mal a um espírito geralmente desinteressado” ((ASSIS, 1953bASSIS, Machado de. Obras completas. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: W. M. Jackson, 1953b. Vol. 26., p. 236).

Essas crônicas também apontam para um modelo que, embora atenuado, evidencia-se nesta série de Machado: as conversações de salão. Conforme indica Marie-Ève Thérenty (2007THÉRENTY, Marie-Ève. La Littérature au quotidien. Poétiques journalistiques au XIXe siècle. Paris: Éditions du Seuil, 2007., p. 174) a respeito das crônicas francesas, “ao longo do século XIX, a conversação é convocada como um modelo nobre, ligado aos salões do século XVIII e, sem dúvida, aos escritos de Madame de Staël”.5 5 « Au long du XIX e siècle, la conversation est convoquée comme un modèle noble, référant d’abord aux salons du XVIII e siècle et sans doute aux écrits de madame de Staël. » Apesar de uma vertente da historiografia da imprensa associar o desenvolvimento do jornalismo ao desaparecimento da tradição do salão aristocrático, a autora argumenta que o jornal tanto suplanta quanto desenvolve a tradição dos salões. Gradativamente ao longo do século, os salões são substituídos pelos cafés como espaço preferencial de sociabilidade (Thérenty não deixa de notar a proximidade entre as salas de redação e o boulevard; no nosso caso, lembremos que a da redação da Gazeta localizava-se à Rua do Ouvidor, no. 70), mudança que se fará sentir no conteúdo dos artigos, os quais pouco a pouco trocam o ideal elevado da conversação dos salões pela conversa mais familiar dos cafés. Entretanto, o modelo conversacional do salão setecentista não desaparece de todo. Quando presente, o ideal do salão relaciona-se a uma série de fatores, entre os quais é possível destacar: a) o caráter relativamente restrito e elitista do público; b) um espaço propício ao debate de ideias (em particular as políticas, mas também as filosóficas etc.); c) uma atitude ao mesmo tempo elegante e fria (sendo principalmente nesse aspecto que as conversações de salão se distinguem das discussões nos cafés); d) um terreno neutro onde todas as ideias são igualmente representadas e respeitadas. Como se verá, todas essas características são mencionadas por Machado na crônica de 17 de maio de 1896:

Chego ao Hotel do Globo. Subo ao segundo andar, onde acho já alguns homens. São convivas do primeiro jantar mensal da Revista Brasileira. O principal de todos, José Veríssimo, chefe da Revista e do Ginásio Nacional, recebe-me, como a todos, com aquela afabilidade natural que os seus amigos nunca viram desmentida um só minuto. Os demais convivas chegam, um a um, a literatura, a política, a medicina, a jurisprudência, a armada, a administração... Sabe-se já que alguns não podem vir, mas virão depois, nos outros meses.

Ao fim de poucos instantes, sentados à mesa, lembrou-me Platão; vi que o nosso chefe tratava não menos que de criar também uma República, mas com fundamentos práticos e reais. O Carceler podia ser comparado, por uma hora, ao Pireu. Em vez das exposições, definições e demonstrações do filósofo, víamos que os partidos podiam comer juntos, falar, pensar e rir, sem atributos, com iguais sentimentos de justiça. Homens vindos de todos os lados, - desde o que mantém nos seus escritos a confissão monárquica, até o que apostolou, em pleno império, o advento republicano - estavam ali plácidos e concordes, como se nada os separasse. (ASSIS, 1953bASSIS, Machado de. Obras completas. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: W. M. Jackson, 1953b. Vol. 26., p. 183)

Mais adiante, Machado comenta: “Não se falou de política, a não ser alguma palavra sobre a fundação dos Estados, mas curta e leve. Também se não falou de mulheres. O mais do tempo foi dado às letras, às artes, à poesia, à filosofia. Comeu-se quase sem atenção. A comida era um pretexto” (ASSIS, 1953bASSIS, Machado de. Obras completas. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: W. M. Jackson, 1953b. Vol. 26., p. 184). Assim, essas passagens assinalam certa feição aristocrática nas crônicas machadianas - o que não deve provocar espanto se nos lembrarmos de que, por essa época, Machado se ocupava cada vez mais com a criação da Academia Brasileira de Letras. Como indiquei, o modelo é atenuado em comparação a outro estilo também presente nessas crônicas, o da conversação dos cafés (estilo mais oral e democrático); contudo, vale registrar sua presença.

Essa exposição da subjetividade do autor, que se manifesta através de memórias da infância ou de comentários sobre seu círculo social, também se faz perceber em apreciações críticas que podem ser atribuídas diretamente a Machado de Assis. Tais momentos podem ser flagrados em trechos claramente sérios, ou seja, em que a ironia está ausente. Um exemplo é a crônica de 20 de setembro de 1896, em que o cronista comenta a morte de Carlos Gomes, ocorrida em Belém do Pará. A cidade de Campinas, terra natal do compositor, manifestara o desejo de que o corpo lhe fosse devolvido, pedido com que o Pará concordou. Machado chama atenção para a “linguagem dos Estados, um dos quais reconhece implicitamente ao outro o direito de guardar Carlos Gomes, pois que ele aí morreu, e o outro acha justo restitui-lo àquele onde ele viu a luz”. Veja-se a conclusão a que o escritor chega a partir desse simples episódio: “Atentai, mais que tudo, para esse sentimento de unidade nacional, que a política pode alterar ou afrouxar, mas que a arte afirma e confirma, sem restrição de espécie alguma, sem desacordos, sem contrastes de opinião. A dor aqui é brasileira” (ASSIS, 1953bASSIS, Machado de. Obras completas. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: W. M. Jackson, 1953b. Vol. 26., p. 288). O tom do comentário é sério; não há motivo para que não se atribua a opinião diretamente a Machado de Assis. Outros exemplos podem ser encontrados nas crônicas em que Machado comenta a falta de sentimento cívico e participação política em nossos cidadãos, um mote recorrente na série.

Vozes veladas, veludosas vozes

Entretanto, como veremos, nem sempre é tão simples determinar a procedência ou a seriedade das opiniões emitidas nas crônicas. Em 24 de junho de 1894, o cronista afirma que, quando pegou na pena para iniciar a crônica semanal, ouviu “uma voz de espectro” que apregoava: “São João! sortes de São João!” (ASSIS, 1953aASSIS, Machado de. Obras completas. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: W. M. Jackson, 1953a. Vol. 25., p. 132). Com a insistência do anúncio, ele teria ido à rua para ver o autor do brado, deparando-se então com um homem que trazia “meia dúzia de folhetinhos na mão” - como o cronista esclarece, “eram sortes, eram versos para a noite de São João” (ASSIS, 1953aASSIS, Machado de. Obras completas. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: W. M. Jackson, 1953a. Vol. 25., p. 133), que havia sido na véspera. A visão lhe traz à lembrança antigas tradições de São João que teria presenciado na infância ou na juventude:

Tornei à casa, e, como nos mistérios espíritas, concentrei-me. A concentração levou-me a anos passados, se muitos ou poucos não sei, não os contei; era no tempo em que havia São João e a sua noite. Gente moça em volta da mesa, um copo de marfim e dois ou três dados. Fora, ardiam as últimas achas da fogueira; tinham-se comido carás e batatas; ia-se agora à consulta do futuro. Um ledor abria o livro das sortes, e dizia o título do capítulo: “Se há de ser feliz com a pessoa a quem adora”. Corriam os dados. O ledor buscava a quadrinha indicada no número, sibilava:

Felicidades não busques,

Incauta... (ASSIS, 1953aASSIS, Machado de. Obras completas. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: W. M. Jackson, 1953a. Vol. 25., pp. 133-134)

E acrescenta a seguinte advertência ao leitor: “Vós que nascestes depois da morte de S. João, e antes da Morte de D. João, não cuideis que invento. Não invento nada; era assim mesmo” (ASSIS, 1953aASSIS, Machado de. Obras completas. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: W. M. Jackson, 1953a. Vol. 25., p. 134). Note-se, porém, que na sequência imediata do texto o cronista brinca quanto à definição de sua idade, dissimulando a figura do enunciador:

Remontemos ao dia 24 de julho de 1841... Se pertenceis ao número dos meus inimigos, como Lulu Sênior, repetireis a velha chalaça de que foi nesse ano que fiz a barba pela primeira vez. Eu me calo, Adalberto, ou não respondo, como dizia João Caetano em não sei que tragédia, (...). (ASSIS, 1953aASSIS, Machado de. Obras completas. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: W. M. Jackson, 1953a. Vol. 25., pp. 134)

Vê-se, assim, que nem sempre a identidade da voz enunciadora é inequívoca. Especulando sobre a experiência dos leitores coevos diante da questão da interpretação das opiniões manifestas (ou seja, se os leitores atribuíam os juízos emitidos nas crônicas ao autor ou a uma máscara ficcional), Chalhoub faz observações importantes. Em primeiro lugar, lembra, em relação à série “Bons dias!”, que “o fato de ser Machado de Assis o autor da série era desconhecido dos contemporâneos”, de modo que “os leitores da Gazeta de Notícias tinham de lidar apenas com o autor ficcional, se reparava nele, pois que o outro escolhera o anonimato” (CHALHOUB, 2005CHALHOUB, S. A arte de alinhavar histórias: a série 'A + B' de Machado de Assis. IN: Sidney Chalhoub, Leonardo Affonso de Miranda Pereira & Margarida de Souza Neves (Orgs). História em cousas miúdas: Capítulos de história social da crônica no Brasil. Campinas: Editora da UNICAMP, 2005. , p. 70). Como ele aponta, o caso é diferente em nossa série:

Em “A semana”, ao contrário de “Bons dias!”, a autoria da série era conhecida, ao menos para um pequeno círculo de literatos e jornalistas que quiçá reparavam em semelhante cousa. Os leitores da Gazeta, todavia, liam a crônica no jornal sem assinatura real ou fictícia (como era também o caso em “Bons dias!”, aliás). Ao lê-la, sabiam ser Machado quem a escrevia? Mais importante, pensavam que eram de Machado as ideias e interpretações presentes em tais textos? (CHALHOUB, 2005CHALHOUB, S. A arte de alinhavar histórias: a série 'A + B' de Machado de Assis. IN: Sidney Chalhoub, Leonardo Affonso de Miranda Pereira & Margarida de Souza Neves (Orgs). História em cousas miúdas: Capítulos de história social da crônica no Brasil. Campinas: Editora da UNICAMP, 2005. , pp. 71-72)

Para responder a essas perguntas, o crítico remete à passagem de uma crônica (de 25 de setembro de 1892) em que o narrador comenta cartas enviadas à Gazeta de Notícias a propósito dos comentários que ele havia feito na semana anterior sobre a importação de mão-de-obra chinesa (os “chins”). O narrador se queixa de que a semana começara mal, pois ele havia recebido vinte e seis cartas agradecendo o modo como havia defendido a introdução dos trabalhadores chineses na crônica anterior. Ele comenta então: “Eu não sou homem que recuse elogios. Amo-os; eles fazem bem à alma e até ao corpo. As melhores digestões da minha vida são as dos jantares em que sou brindado” (ASSIS, 1996ASSIS, Machado de. A Semana. Ed., intr. e notas de John Gledson. São Paulo: Editora Hucitec, 1996., p. 124). Apesar disso, confessa que desta vez nem teve tempo de saborear os louvores e que ficou espantado porque não defendeu nada nem ninguém: “Não fiz mais que apontar as qualidades do chim e as de outros imigrantes, para significar que, entrado o chim, os outros somem-se. Não defendi nada, nem acusei. Não me deitem louros nem grilhões” (ASSIS, 1996ASSIS, Machado de. A Semana. Ed., intr. e notas de John Gledson. São Paulo: Editora Hucitec, 1996., p. 124). Chalhoub (2005CHALHOUB, S. A arte de alinhavar histórias: a série 'A + B' de Machado de Assis. IN: Sidney Chalhoub, Leonardo Affonso de Miranda Pereira & Margarida de Souza Neves (Orgs). História em cousas miúdas: Capítulos de história social da crônica no Brasil. Campinas: Editora da UNICAMP, 2005. , pp. 72-73) destaca a formação de uma rede de interlocução social, em que os leitores escrevem para a redação do jornal concordando ou não com as ideias do cronista; ou seja, ao abordar certos assuntos, “o cronista desafiava seus leitores a formar opinião própria”, convidando-os para o espaço público e para a arena política. Mas o crítico também destaca “o comentário, implícito na anedota, de que tais leitores não distinguiam o autor da série cronística, Machado de Assis, de um suposto narrador ficcional, construído por Machado ao escrever tais textos”, e passa a analisar outros trechos em que se evidencia o “investimento para delinear um narrador”.

Antes de chegarmos lá, quero insistir nesse aspecto da confusão gerada pelo uso vacilante que Machado de Assis faz da primeira pessoa nas crônicas desta série. Em 09 de julho de 1893, comentando o parlamentarismo, o cronista escreve que “A Constituição republicana não mudou os hábitos morais dos homens”, e que “o parlamentarismo parece estar ainda na massa do sangue” (ASSIS, 1996ASSIS, Machado de. A Semana. Ed., intr. e notas de John Gledson. São Paulo: Editora Hucitec, 1996., p. 264). Já melindrado com a recorrência da falta de entendimento quanto às suas opiniões, o cronista adverte o leitor:

Concluir dali que sou parlamentarista, é imitar aquele homem que me dizia, uma vez, notando-lhe eu que certa casa estava pintada de amarelo:

- Ah! o senhor gosta do amarelo?

- Perdão: digo-lhe que esta casa está pintada de amarelo (...)

- Estou vendo; mas que graça acha em semelhante cor?

Mandei o homem ao diabo. Vá o leitor ter com ele, se concluir a mesma coisa. O que eu digo, é que esta bota parlamentarista há de levar tempo a descalçar. (...) (ASSIS, 1996ASSIS, Machado de. A Semana. Ed., intr. e notas de John Gledson. São Paulo: Editora Hucitec, 1996., p. 264)

Assim como Chalhoub observa a respeito da crônica sobre os chineses, configura-se aqui certa independência e desinteresse por parte do cronista em relação aos assuntos que aborda - atitudes que ele aproxima às de Brás Cubas (“escritor defunto, desafrontado do mundo”, lembrando então suas palavras: “não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados”). Citando outras passagens, o crítico identifica semelhanças com Dom Casmurro (“que alega contar a verdade sobre si mesmo”), e detém neste ponto suas considerações: “Enfim, ainda que a questão sobre o narrador em ‘A semana’ seja assunto complexo, o qual não tenho como destrinchar agora, há traços dele nos trechos citados, assim como indícios de que os leitores não distinguiam muito entre as figuras do escritor real e do narrador ficcional” (CHALHOUB, 2005CHALHOUB, S. A arte de alinhavar histórias: a série 'A + B' de Machado de Assis. IN: Sidney Chalhoub, Leonardo Affonso de Miranda Pereira & Margarida de Souza Neves (Orgs). História em cousas miúdas: Capítulos de história social da crônica no Brasil. Campinas: Editora da UNICAMP, 2005. , p. 74).

Dando seguimento a essa linha de raciocínio, é possível flagrar diversos momentos em que se evidenciam semelhanças entre a voz do cronista e a de Brás Cubas - ou, mais precisamente, entre a atitude geral do narrador do romance e um comportamento semelhante observável nos narradores de algumas crônicas. Tome-se como exemplo a volubilidade do narrador em Memórias Póstumas, que encontra eco nesta crônica de 04 de dezembro de 1892: “Eu, sempre divergente do gênero humano, quisera adotar uma opinião média, mas não posso, - ao menos, por ora; esperemos que os acontecimentos me deem lugar” (ASSIS, 1996ASSIS, Machado de. A Semana. Ed., intr. e notas de John Gledson. São Paulo: Editora Hucitec, 1996., p. 160). No parágrafo final da mesma crônica:

Pelo que me toca, eterno divergente, não tenho tempo de achar uma opinião média. Temo que a Humanidade, viúva de Deus, se lembre de entrar para um convento; mas também posso temer o contrário. Questão de humor. Há ocasiões em que, neste fim de século, penso o que pensava há mil e quatrocentos anos um autor eclesiástico, isto é, que o mundo está ficando velho. Há outras ocasiões em que tudo me parece verde em flor. [grifo meu] (ASSIS, 1996ASSIS, Machado de. A Semana. Ed., intr. e notas de John Gledson. São Paulo: Editora Hucitec, 1996., p. 162)

A indecisão entre soluções opostas é tematizada em diversas crônicas. Em 14 de junho de 1896, o narrador escreve:

Eu, posto creia no bem, não sou dos que negam o mal, nem me deixo levar por aparências que podem ser falazes. As aparências enganam; foi a primeira banalidade que aprendi na vida, e nunca me dei mal com ela. Daquela disposição nasceu em mim esse tal ou qual espírito de contradição que alguns me acham, certa repugnância em execrar sem exame vícios que todos execram, como em adorar sem análise virtudes que todos adoram. Interrogo a uns e a outros, dispo-os, palpo-os, e se me engano, não é por falta de diligência em buscar a verdade. O erro é deste mundo. (ASSIS, 1953bASSIS, Machado de. Obras completas. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: W. M. Jackson, 1953b. Vol. 26., p. 205)

O tal “espírito de contradição” encontra formulação magistral na crônica de 07 de outubro de 1894, em que a dificuldade de se posicionar perante os assuntos da semana faz com que o narrador se divida: “Um dia, - ó dia nefasto! - descobri em mim dois homens, eu e eu mesmo, tal qual sucedeu a Camões, naquela redondilha célebre: Entre mim mesmo e mim” (ASSIS, 1953aASSIS, Machado de. Obras completas. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: W. M. Jackson, 1953a. Vol. 25., p. 208). A princípio, o tema que o faz hesitar é a resistência da população em tomar parte no júri popular; assim, as duas metades do narrador tomam parte em um debate tão vivo quanto equilibrado, fazendo com que ele perceba a presença de um terceiro:

Assisti a esse duelo de razões, examinando-as com tal imparcialidade, que não estou longe de crer que, além dos dois homens, surdira em mim um terceiro. Nisto fui superior ao poeta. Examinei as razões, e desesperando de conciliar os autores, aventei uma ideia que me pareceu fecunda: estipendiar os jurados. Todo serviço merece recompensa, disse eu, e se o juiz de direito é pago, por que o não será o juiz de fato? Replicaram os dois que não era uso em tal instituição; ao que o terceiro homem (sempre eu!) replicou dizendo que os usos amoldam-se aos tempos e aos lugares. (...) (ASSIS, 1953aASSIS, Machado de. Obras completas. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: W. M. Jackson, 1953a. Vol. 25., pp. 208-209)

Para além da mera brincadeira, a continuação do debate explicita os posicionamentos assumidos segundo os interesses de cada um dos personagens. Mais à frente, o foco da discussão passa para a lei municipal que regulamenta a lotação de passageiros para os bondes. A esse respeito, escreve o narrador:

Entre mim mesmo e mim travou-se a princípio grande debate. Um quer que a autoridade não tire ao passageiro o direito de ir incomodado, quando se pendura feito pingente. Outro replica que o passageiro pode ir incomodado uma vez que não incomode os demais, e mostra o remédio ao mal, que é aumentar o número dos veículos e alterar as tabelas das viagens. Protesto do primeiro, que é acionista, e defende os dividendos. O segundo alega que é público e quer ser bem servido. (ASSIS, 1953aASSIS, Machado de. Obras completas. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: W. M. Jackson, 1953a. Vol. 25., p. 211)

O narrador afirma que seu desconsolo seria grande e “terrível a luta” caso ele não achasse um meio de conciliar as opiniões; a solução cinicamente fornecida é deixar passar o tempo, já que era óbvio que a lei municipal não seria cumprida.

Na crônica de 09 de abril de 1893, que versa sobre a regulamentação do serviço doméstico, o cronista afirma, a certa altura:

Enquanto, porém, não me chega o infortúnio, quero o regulamento, que é muito mais a meu favor do que a favor do meu criado. Na parte que me constrange, não será cumprido, porque eu não vim ao mundo para cumprir uma lei, só porque é lei. Se é lei, traga um pau; se não traz um pau, não é nada. (ASSIS, 1996ASSIS, Machado de. A Semana. Ed., intr. e notas de John Gledson. São Paulo: Editora Hucitec, 1996., p. 221)

Assim como em Memórias Póstumas, o que temos aqui é o ponto de vista do escravocrata por excelência. Esse cinismo aparece ainda no texto de 30 de abril de 1893, em que, a propósito de uma quermesse, o cronista afirma que gosta de frequentar esse tipo de festejo pela sua semelhança com as casas de jogos: “A quermesse é tavolagem. Que tenho eu com isso, se me convida a fazer bem? Não se trata (reflita o colega), não se trata de beneficiar a um estranho, mas a minha alma” (ASSIS, 1996ASSIS, Machado de. A Semana. Ed., intr. e notas de John Gledson. São Paulo: Editora Hucitec, 1996., p. 233). Reencontramos aqui a relação tão explorada por Machado nos romances entre a face pública e a particular das ações. Lembre-se a confissão de Brás Cubas sobre a criação de seu emplasto: “Assim, a minha ideia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim” (ASSIS, 1943, p. 16). No entanto, mais cínico ainda do que Brás Cubas (que afinal de contas só revela o verdadeiro propósito ao passar para a condição de defunto, quando então pode revelar sem pudores o mote de suas ações),6 6 “Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que negá-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os modestos me argúam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os hábeis”. Memórias Póstumas de Brás Cubas, capítulo II (ASSIS, 1946, pp. 15-16). o cronista não faz questão de esconder o interesse pessoal. Pode-se entrever um raciocínio semelhante na crônica de 13 de agosto de 1893, na qual, após dizer que não pôde ouvir muito bem determinada notícia, explica:

Chovia e ventava muito, o bonde tinha as cortinas alagadas; as cortinas, longe de serem de oleado, eram de pano de algodão que se encharcam mais, posto custem menos dinheiro. Não devia zangar-me com isso, porque o bonde era de Botafogo, companhia de que sou acionista, e quanto menos custarem as cortinas, mais valerão os papéis. Entretanto, zanguei-me, porque o pano molhado, tocado pelo vento, batia-me na cara, nas pernas e no chapéu, sem deixar-me ouvir o lance dos autos e do cartório. Só depois de apeado e recolhido é que recobrei a alegria. Com efeito, tinha estragado o chapéu; mas chapéu não rende, e ação rende. (ASSIS, 1996ASSIS, Machado de. A Semana. Ed., intr. e notas de John Gledson. São Paulo: Editora Hucitec, 1996., p. 282)

Outro traço típico de Brás Cubas recorrente nas crônicas de “A semana” é a agressividade em relação ao leitor, como na crônica de 27 de janeiro de 1895:

Não me digas que confundo alhos com bugalhos, ignorando que parlamentarismo quer dizer governo de parlamento, - cousa que nada tem com prazos curtos nem compridos. Eu sei o que digo, leitor; tu é que não sabes o que lês. Desculpa, se falo assim a um amigo, mas não é com estranhos que se há de ter tal ou qual liberdade de expressão, é com amigos, ou não há estima nem confiança. (ASSIS, 1953aASSIS, Machado de. Obras completas. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: W. M. Jackson, 1953b. Vol. 26., p. 302)

Em 17 de novembro de 1895, o narrador começa a crônica queixando-se do seu estado de saúde, e manifestando seu desprezo pela compaixão do leitor:

Tal é o meu estado, que não sei se acabarei isto. A cabeça dói-me, os olhos doem-me, todo este corpo dói-me. Sei que não tens nada com as minhas mazelas, nem eu as conto aqui para interessar-te; conto-as, porque há certo alívio em dizer a gente o que padece. O interesse é meu, tu podes ir almoçar ou passear. (ASSIS, 1953bASSIS, Machado de. Obras completas. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: W. M. Jackson, 1953b. Vol. 26., p. 39)

Veja-se a que requintes ele chega na crônica de 14 de fevereiro de 1897. O narrador conta que estava comprando jornais na Rua São José quando chegou “uma mulher simples” e pediu ao vendedor um jornal com “o retrato desse homem que briga lá fora”. Ele comenta: “Leitor obtuso, se não percebeste que ‘esse homem que briga lá fora’ é nada menos que o nosso Antônio Conselheiro, crê-me que és ainda mais obtuso do que pareces” (ASSIS, 1953bASSIS, Machado de. Obras completas. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: W. M. Jackson, 1953b. Vol. 26., p. 424).

Em todos esses trechos, notam-se ecos da voz de Brás Cubas; contudo, isso não basta para que se atribua uma mesma identidade a todas essas crônicas. O que se percebe é uma atitude geral, sem que se possa afirmar se todas as suas manifestações devem ser atribuídas a um mesmo sujeito: o acionista da companhia dos bondes é o mesmo que se compraz em jogar nas quermesses? O sujeito dubitativo é o mesmo que se recusa a cumprir as leis?

Considerações finais

A série “A semana” revela a grande liberdade alcançada por Machado de Assis nesse ponto de sua carreira: a ausência de assinatura e de pseudônimo funciona como uma espécie de “cheque em branco”, permitindo ao cronista usar seu espaço como bem entender. Assim, alternam-se livremente memórias pessoais, opiniões do autor, crônicas à maneira de contos ou de poesia, e narradores da cepa de Brás Cubas. Essa oscilação também se faz presente em outras séries, embora nelas fique mais delineado um projeto que enquadra a série como um todo. São indícios disso os pseudônimos ou os cacoetes mais acentuados e mais frequentes. A impressão que se tem em “A Semana” é que, tendo experimentado uma ampla gama de recursos expressivos, e gozando de reconhecimento público, Machado se sente à vontade para lançar mão desses recursos a seu bel-prazer, sem nenhum plano predefinido.

Nesta série em particular, Machado mistura diferentes usos da primeira pessoa, de modo que a interpretação deve ser feita caso a caso, isto é, cada crônica solicita abordagem distinta. Aqui, mais do que em outras séries, é difícil alcançar formulações genéricas sobre a distância estética existente entre o autor real e o autor putativo das crônicas. Daí não haver propriamente escolha a se fazer de antemão quanto ao método de análise desses textos: a perspectiva de John Gledson adequa-se às crônicas em que a voz de Machado é nítida, mas isso não ocorre sempre e, quando se configura um narrador, então é preciso mediar a análise, assim como o fazem Roberto Schwarz e Sidney Chalhoub. A atitude do proprietário é recorrente, mas não exclusiva. Ela é responsável por boa dose de veneno nessas crônicas - mas essas crônicas não são feitas só de veneno: há momentos líricos (como a crônica em homenagem a Garnier), e outros cômicos, sem grandes intenções críticas. Há comentários banais sobre os acontecimentos da semana, e há momentos de crítica poderosíssima, sem que se possa atribuir uma identidade única à voz enunciadora. Portanto, desmentindo o título deste ensaio, emprestado de Drummond, não há apenas um eu nessas crônicas, mas uma série de eus, com tanta autonomia uns em relação aos outros como têm as crônicas da série entre si.

Referências

  • ASSIS, Machado de. A Semana Ed., intr. e notas de John Gledson. São Paulo: Editora Hucitec, 1996.
  • ASSIS, Machado de. Memorias Posthumas de Braz Cubas IN: Obras completas Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: W. M. Jackson, 1946. Vol. 5.
  • ASSIS, Machado de. Obras completas Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: W. M. Jackson, 1953a. Vol. 25.
  • ASSIS, Machado de. Obras completas Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: W. M. Jackson, 1953b. Vol. 26.
  • CHALHOUB, S. A arte de alinhavar histórias: a série 'A + B' de Machado de Assis. IN: Sidney Chalhoub, Leonardo Affonso de Miranda Pereira & Margarida de Souza Neves (Orgs). História em cousas miúdas: Capítulos de história social da crônica no Brasil Campinas: Editora da UNICAMP, 2005.
  • CHALHOUB, S. A crônica machadiana: problemas de interpretação, temas de pesquisa. IN: Revista Remate de Males, v. 29, n. 2, pp. 231-246, 2009.
  • GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e história São Paulo: Paz e Terra, 2003.
  • THÉRENTY, Marie-Ève. La Littérature au quotidien. Poétiques journalistiques au XIXe siècle Paris: Éditions du Seuil, 2007.
  • 1
    São elas: a imersão na indeterminação da época, o enfoque na matéria política, a subjetividade do ponto de vista da narrativa, e um paradigma narrativo segundo o qual os narradores identificam um problema real e, após demonstrarem perplexidade “diante da dificuldade em formar opinião diante dele, (...) acabam por aderir à posição que lhes parece mais cômoda ou individualmente vantajosa”.
  • 2
    Duas outras crônicas foram publicadas posteriormente, em 04 e 11 de novembro de 1900.
  • 3
    Ele aponta uma exceção, “mais aparente do que real”, na série curta “A + B”, composta de textos dialogados.
  • 4
    Nas citações das crônicas, utilizei a edição anotada por John Gledson, que abrange os dois primeiros anos da série. Para os demais anos, utilizei a edição das Obras completas da Jackson.
  • 5
    « Au long du XIX e siècle, la conversation est convoquée comme un modèle noble, référant d’abord aux salons du XVIII e siècle et sans doute aux écrits de madame de Staël. »
  • 6
    “Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que negá-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os modestos me argúam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os hábeis”. Memórias Póstumas de Brás Cubas, capítulo II (ASSIS, 1946ASSIS, Machado de. Memorias Posthumas de Braz Cubas. IN: Obras completas. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: W. M. Jackson, 1946. Vol. 5., pp. 15-16).

Avaliador A

Sobre o autor do parecer

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O artigo traz uma contribuição interessante ao retomar uma importante polêmica entre dois nomes da crítica machadiana, de há quase vinte anos. No fim das contas, ao mostrar que qualquer radicalismo de posição é estranho ao entendimento da obra machadiana, fica mais perto dos sentidos possíveis propostos por esses textos de uma ironia aguda, o que já dificulta certezas interpretativas, bem como considera a liberdade atingida pelo cronista à época dessas crônicas. Ela lhe permitia a oscilação constante entre visões, pontos de vista e proposições de uma ironia aguda, o que já dificulta certezas interpretativas, bem como considera a liberdade atingida pelo cronista à época dessas crônicas.

Avaliador B

Sobre o autor do parecer

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Na linha das interpretações mais recentes que apontam o caráter ficcional das crônicas machadianas, o artigo examina algumas crônicas da série “A Semana” nas quais o/a autor/a identifica variações na instância enunciadora que põem em xeque a interpretação de John Gledson que atribui a Machado de Assis as ideias expostas nos textos. Ainda assim, o artigo ganharia maior densidade se a questão da autoria anônima das crônicas viesse acompanhada de reflexões teóricas acerca da autoria ficcional. Apesar de carecer de reflexão teórica que conferisse maior densidade à questão proposta referentemente às crônicas da série “A Semana”, qual seja, “as variações da instância enunciadora”, o artigo aborda tópico relevante para a fortuna crítica machadiana.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    31 Out 2021
  • Aceito
    13 Nov 2021
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