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OUTRIDADE EM REFLEXOS: UMA TESSITURA ENTRE “O ESPELHO” DE ASSIS E “O LODO” DE RUBIÃO

OTHERNESS IN REFLECTIONS: A TESSITURE BETWEEN “O ESPELHO” BY ASSIS AND “O LODO” BY RUBIÃO

Resumo

Investigam-se, neste artigo, as relações de outridade presentes nos contos “O espelho”, de Machado de Assis, e “O lodo”, de Murilo Rubião. A hipótese do artigo se articula em torno da ideia de que a estrutura da díade eu-outro está presente em ambas as obras. Contudo, cada autor a trabalhou de maneira singular, dado o contexto histórico-social, as transformações profundas da cultura e a problematização do sujeito que cada um deles experienciou. Resultados de pesquisa apontam para uma tessitura muito particular entre os contos, ora aproximando-os, ora distanciando-os, em termos de estrutura, temática, foco narrativo e desfecho.

Palavras-chave:
outridade; Murilo Rubião; fantástico; inconsciente; realismo

Abstract

This article investigates the relations of otherness present in the short stories “O espelho”, by Machado de Assis, and “O lodo”, by Murilo Rubião. The hypothesis of the article is articulated around the idea that the structure of the myself-other dyad is present in both works. However, each author worked in a unique way, given the historical-social context, the profound changes in culture and the problematization of the subject that each one of them experienced. Research results point to a very particular texture between the stories, often bringing them closer, sometimes distancing them, in terms of structure, theme, narrative focus and outcome.

Keywords:
otherness; Murilo Rubião; fantastic; unconscious; realism

Introdução

Machado e Murilo. Assis e Rubião. Um mestre em desvelar o real e o outro perito em fantasiar o real. Cada qual à sua maneira. Contudo, em uma leitura mais dedicada, pode-se ver como esses escritores possuem pontos de toque singularmente relevantes. Machado, a partir do século XIX, assevera, pelas lentes do realismo, o conjunto de hábitos e costumes da sociedade brasileira urbana tacanha, que se seduz pelos contos de réis e se acovarda diante do impasse amoroso. Sociedade esta sempre às voltas com a opinião pública e com a dimensão do prestígio social. Murilo, já no século XX, lança mão do fantástico para tirar do lugar o que os olhos se acostumaram a ver, como se uma certa intrusão do insólito fosse necessária para se enxergar não o que escapa à lógica do real, mas, precisamente, o que o constitui como tal.

Se, por um lado, vemos com Jorge Luis Borges, um dos maiores nomes do realismo mágico, que a realidade não tem a menor obrigação de ser interessante, por outro, é igualmente verdadeiro que o fantástico se abstém da ideia de ser divertido e lúdico. Ao contrário. Vê-se, com olhos absortos, como a prosa de Rubião, não por acaso, lança mão do realismo fantástico justamente para enaltecer aspectos de realidade que não cessam de se inscrever. Conforme assevera Schwartz (2016, p. 253), uma crítica muito profunda da sociedade à época e dos valores culturais subverte verticalmente os valores do fantástico muriliano. Com efeito, o elemento irreal introduzido no fio da prosa não é o que se mostra extraordinário, mas as condições do meio social e as relações tensionadas sustentando ou dizimando por completo o ponto fora da curva narrativa. É precisamente por esse filão que se objetiva introduzir o ponto de discussão ora cotejado. Será por meio dessas relações muito singulares com o realismo que se inicia o presente percurso de investigação.

Aventa-se, portanto, que Machado e Murilo emergem do mar do realismo em coordenadas diferentes, mas que em dado momento, essas coordenadas têm um ponto de convergência. Dito de outro modo, na leitura mais atenta, pode ser visto como constituintes da narrativa de contos dos dois autores apresentam um certo grau de paralelismo estético, o qual diz respeito à mobilização de elementos que apontam para a relação inescapável com a alteridade. Vazados a partir da articulação de recursos narrativos, estes elementos põem em xeque o duplo. Veiculando-se, portanto, pelo par eu-outro o deslizamento de objetos e figuras.

À vista disso, para materializar essa tessitura dos dois autores, empreende-se uma investigação a partir de dois contos, postos em relevo mediante uma perspectiva comparatista (NITRINI, 2015NITRINI, Sandra. Literatura comparada: história, teoria e crítica. 3. ed. São Paulo: Edusp , 2015.). "O espelho", obra escrita por Machado em 1882, e "O lodo", conto de autoria de Murilo no ano de 1974. Conforme mencionado, no presente gesto de análise, o ponto de contato dos dois contos é a mobilização da estrutura de alteridade - ou outridade -, articulada pela díade eu-outro. Este par assume diferentes formas ao longo dos mencionados textos dos autores, mas a tônica central em ambos é o contato-confronto que constitui a alteridade como força motriz de desvelamento das estruturas sociais e consequente caracterização do sujeito em cada um dos respectivos cortes temporais dos contos. Com efeito, apresenta-se a hipótese de que, enquanto em Machado a alteridade aparece na figura dos outros - cavalheiros, tia, escravos, parentes - como uma maneira de questionar as estruturas sociais e culturais do sujeito à época oitocentista, em Murilo, por seu turno, a outridade se configura atravessada pela irremediável presença do inconsciente psicanalítico freudiano, fazendo fremir as estruturas do sujeito moderno às voltas com seus recalques, traumas e melancolia.

A partir das alegorias mobilizadas nos contos - as quais serão explicitadas na subseção seguinte -, tanto o espelho quanto o lodo podem representar o atravessamento, nem sempre pacífico, do outro no eu. Em Machado, Jacobina se ocupa da posição imaginária de alguém mais importante do que se supõe, mediante o olhar do outro: senhor alferes, diziam eles. Assim, o narrador enxerga nos outros o maior espelho de si. E ele goza com isso. Na ausência de todos os outros - leia-se todos os espelhos -, só resta o delírio da imagem de si refletida no desejo bovarista (KEHL, 2018KEHL, Maria Rita. Bovarismo brasileiro. São Paulo: Boitempo, 2018.) de reconhecimento do outro em si mesmo. Em Murilo, a sátira de um sujeito chamado Galateu - obra homônima renascentista de Giovanni Della Casa que trata justamente da retidão de costumes e maneiras de viver em sociedade - que se vê imerso em questões morais, desde episódios de infidelidade conjugal com a esposa de seu chefe, até uma alusão a uma relação incestuosa com sua irmã Epsila, ocasionam um quadro de depressão e feridas no peito que expõem o interior em carne viva, lodo e podridão. Aqui, a figura do analista reflete em Galateu a imagem do que ele desejava manter recalcado. Como Galateu suprime a palavra - a confissão da interdição incestuosa não chega nunca -, o corpo padece. Assim, o excesso de presença do outro - analista - não cessa de escrever as imagens especulares de si e do outro. E ele sofre com isso.

Do exposto, o presente artigo empreende esse gesto de análise comparatista entre Machado e Murilo, aventando a hipótese da outridade em ambos os contos como o fio de tessitura em comum. Machado mobiliza o outro para alcançar o social. Murilo articula no outro o mais profundo de si. Dessa forma, para levar a cabo essa investigação, elegem-se as seguintes perguntas de pesquisa: de que maneira as relações de alteridade aparecem nos contos “O espelho” e “O lodo”? Além disso, de que forma essas relações representam momentos histórico-sociais das épocas em que foram escritas as obras analisadas? Para fins de apresentação da pesquisa, principiaremos pelo cotejo dos contos, descrevendo aspectos formais dos textos, bem como destacando os resultados de análise a partir do relevo da materialidade linguística com o fio teórico condutor do gesto interpretativo. Por fim, breves alinhavos finais são descritos mediante a tessitura ora empreendida.

É digno de nota, como palavra final, que não se deseja, de forma alguma, planificar as diferenças constitutivas das respectivas obras dos autores envolvidos nesta pesquisa. Ao contrário, é tendo plena consciência das singularidades históricas, temáticas e estilísticas - inconciliáveis, diga-se com clareza - dos textos, que este manuscrito tem condições de principiar seu gesto de análise. É bem verdade que fios machadianos são sensíveis na obra de Murilo. Não nos abstemos deles. Contudo, decidiu-se enaltecer aspectos específicos inerentes à obra do mineiro, em franca comparação com a do carioca. Para tanto, privilegiaremos um recorte bem manejado e pontual de análise comparativa, a fim de não incorrer em um manuscrito lacunar. Iniciemos o percurso de investigação.

Machado e Murilo: os dois tempos do eu-outro

Em “O espelho”, Machado principia o conto com uma premissa relativamente simples: o ser humano tem duas almas. Esse ponto de partida é enunciado pela figura central da obra, Jacobina, homem entre quarenta e cinquenta anos, “[...] provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico” (ASSIS, 2006ASSIS, Machado. O espelho. In: ______. Papéis avulsos. Belo Horizonte: Itatiaia, [1882] 2006. p. 143-151., p. 143). Machado opta por inverter a estrutura da narrativa, ao começar o texto pelo fim. Explico. Jacobina, em meio a uma reunião com outros quatro homens de perfil semelhante ao seu, narra um acontecimento central de sua juventude, o qual lhe permitiu presumir algo da mais profunda relevância e que estaria em consonância ao que os senhores discutiam naquela noite, no alto de Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Com efeito, o conto mergulha no fluxo narrativo de Jacobina, não sem antes os demais personagens observarem a proposição severa dele:

Nem conjectura, nem opinião, redarguiu ele: uma ou outra pode dar lugar a dissentimento, e, como sabem, eu não discuto. Mas, se querem ouvir-me calados, posso contar-lhes um caso de minha vida, em que ressalta a mais clara demonstração acerca da matéria de que se trata. Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas… (ASSIS, 2006ASSIS, Machado. O espelho. In: ______. Papéis avulsos. Belo Horizonte: Itatiaia, [1882] 2006. p. 143-151., p. 144).

Jacobina, até então quieto e monossilábico nas reuniões, se dispõe a falar, desde que não fosse interrompido, interpelado ou posto em situação de debate, dado que o narrador dos fatos acredita que “[...] a discussão era a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem, como herança bestial; e acrescentava que os serafins e os querubins não controvertiam nada” (ASSIS, 2006ASSIS, Machado. O espelho. In: ______. Papéis avulsos. Belo Horizonte: Itatiaia, [1882] 2006. p. 143-151., p. 143). Dessa forma, o texto se recolhe para a mocidade de Jacobina, naquilo que irá ocupar a maior parte do conto. O jovem, de origem humilde, conquista o posto de alferes da Guarda Nacional. Apesar de modesta - sem grandes regalias -, a nomeação ao cargo desemboca em um episódio de onde ele tira estofo para sustentar a tese da existência de duas almas, a interior, que olha de dentro para fora e outra exterior, cujo movimento é o inverso da primeira.

A partir da nomeação, Jacobina, tratado à época como “Joãozinho”, alça à categoria de “senhor alferes”, não por força de tratativa institucional, mas por reconhecimento social que a mudança lhe conferiu. A mãe, os tios, primos, todos passam a caracterizar o outrora jovem pobre como alguém distinto pela mobilidade que o cargo lhe propiciou perante o círculo imediato. Como o “senhor alferes” respondia a maior parte do tempo, sua ação passa a ser predominante sobre o jovem Joãozinho. Os abraços de tia Marcolina, os rapapés dos escravos e os elogios frequentes endossaram a forma diferente de Jacobina enxergar a si perante o outro. O exterior alferes eclipsa o interior João. À vista disso, a farda e o posto na Guarda Nacional insuflam a alma exterior, a qual lima completamente a interior. Com efeito, “o alferes eliminou o homem” (ASSIS, 2006ASSIS, Machado. O espelho. In: ______. Papéis avulsos. Belo Horizonte: Itatiaia, [1882] 2006. p. 143-151., p. 147).

É digno de nota que, não por acaso, Machado mobiliza a questão da nomeação para um cargo de oficiais como o grande disparador da premissa central do conto. Conforme assevera Boris Fausto (2018FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. São Paulo: Edusp, [2001] 2018., p. 129), “[...] o quadro de oficiais do Exército teve características de elite até 1850”. Contudo, o historiador destaca também que esse prestígio social entra em declínio, bem ao passo da ruína do Brasil monárquico da segunda metade do século XIX. Para o autor,

[e]ssa composição social mudou bastante nas décadas seguintes. A baixa remuneração, as más condições de vida e a lentidão das promoções tendiam a desencorajar os filhos das grandes famílias a dedicar-se à carreira militar. Cresceu o número de filhos de militares ou de burocratas como aspirantes ao oficialato. (FAUSTO, 2018FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. São Paulo: Edusp, [2001] 2018., p. 129).

Nesse sentido, tendo em vista a escrita do conto em 1882, a característica central mobilizada em torno da nomeação do cargo de alferes, leia-se o prestígio social descrito, já era, por si só, um aspecto em pleno declínio, como aponta Fausto. Dessa forma, Machado introduz no conto um dado que faz refletir sobre a relevância dessa instância em termos mais concretos. Dito de outro modo, Jacobina acessa o repasto em fim de festa. Envaidece-se de algo cuja tônica é precisamente a debilidade. Para tanto, quase em um fluxo contra a corrente, vê-se a mobilização de figuras que buscam sustentar essa corrente. Os outros são colocados em cena como veículos necessários para manter as representações que elevam a troca de ofício como uma mudança forçosamente social. E que outros são esses trazidos à baila para tal intento? Outros oficiais ou membros das forças armadas? Nobres? Políticos? A resposta para todas as perguntas anteriores é negativa. O que se compraz na ascensão de Joãozinho a Jacobina é o círculo mais imediato da personagem. Mãe, primos, tios, amigos, Tia Marcolina, o cunhado desta, escravos. Nesse ponto do conto, a relação de alteridade entre Jacobina e os demais é descrita a partir da chave eu-outro, um eu que se envaidece de si catalisado pelo olhar de outro. Alfredo Bosi destaca que é este olhar que introduz a dimensão especular no texto, uma vez que

[e]m um primeiro momento, Jacobina, outrora Joãozinho, mirava-se no espelho e nele via refletida a figura de si mesmo construída pelo olhar do grupo de convivência. Era a imagem do alferes fardado que tantos elogios provocara da parte dos parentes e moradores do sítio. Essa fusão de aparências do papel social com a autoimagem de Jacobina remete à dimensão especular inerente tanto no olhar do outro como no reflexo realizado pelo espelho. (BOSI, 2017BOSI, Alfredo. O duplo espelho em um conto de Machado de Assis. In: ______. Três leituras: Machado, Drummond, Carpeaux. São Paulo: Editora 34, 2017. p. 7-34., p. 11).

Portanto, ponto necessário de destaque é que o espelho, objeto notável e que confere título ao conto, não é mobilizado no texto somente como item físico, o qual muda de espaço na casa da tia Marcolina, por ocasião da visita de Jacobina ao sítio dela, como forma de agrado ao Senhor Alferes que se instalava em um de seus quartos. Tampouco, o espelho é colocado em destaque como mecanismo de regulação da alma exterior frente à interior. O que está em jogo é muito mais o espelhamento do que o “[...] espelho que lhe dera a madrinha [de Marcolina], e que esta herdara da mãe, que o comprara a uma das fidalgas vindas em 1808 com a corte de D. João VI” (ASSIS, 2006ASSIS, Machado. O espelho. In: ______. Papéis avulsos. Belo Horizonte: Itatiaia, [1882] 2006. p. 143-151., p. 146). Esse espelhamento é, indubitavelmente, veiculado na tensão eu-outro pelo fio da narrativa. Com efeito, após a mudança para o sítio de Marcolina, as atenções dispensadas por esta, pelos escravos e pelo cunhado fazem com que Jacobina conclua que “[n]o fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes” (ASSIS, 2006ASSIS, Machado. O espelho. In: ______. Papéis avulsos. Belo Horizonte: Itatiaia, [1882] 2006. p. 143-151., p. 147).

Ocorre que esse mesmo espelhamento, a partir do olhar do outro, que enaltece, pode igualmente deslustrar, por ocasião de sua ausência. É o que fica patente na escrita de Machado. A mesma tia Marcolina que exalta o senhor alferes, por necessidade de acudir a filha doente em outra região, teve de se ausentar do sítio, deixando Jacobina apenas em companhia dos escravos. Com a casa esvaziada, os escravos fugiram, deixando o alferes sozinho. “Jacobina perdeu de repente o olhar dos outros que o constituíam e sustentavam a sua nova identidade” (BOSI, 2017BOSI, Alfredo. O duplo espelho em um conto de Machado de Assis. In: ______. Três leituras: Machado, Drummond, Carpeaux. São Paulo: Editora 34, 2017. p. 7-34., p. 10). Como em um espelho sem anteparo, o alferes viu forma sem nitidez, status sem pompa, figura sem reflexo. Paradoxalmente, sentindo a ausência, declara: “[m]inha solidão tomou proporções enormes” (ASSIS, 2006ASSIS, Machado. O espelho. In: ______. Papéis avulsos. Belo Horizonte: Itatiaia, [1882] 2006. p. 143-151., p. 148). Em suma, “[f]altando o olhar do outro, Jacobina entra em um estado de solidão que beira a angústia” (BOSI, 2017BOSI, Alfredo. O duplo espelho em um conto de Machado de Assis. In: ______. Três leituras: Machado, Drummond, Carpeaux. São Paulo: Editora 34, 2017. p. 7-34., p. 11).

Em outras palavras, a díade eu-outro ilustra com propriedade a angústia de Jacobina, uma vez que ele só era alguém para outro alguém. Retira-se um dos elementos da díade, o impasse está feito. Outro ponto digno de atenção é o que a posição de alferes representava em termos político-sociais. A posição alcançada responde a um conjunto de outros cargos que se organizam por hierarquia. Ora, hierarquia só faz sentido quando há uma organização que mantém fixas as camadas e que, eminentemente, é reconhecida por aqueles de dentro e, principalmente, de fora da organização. Jacobina, sozinho no sítio, estaria hierarquicamente superior a quem? Ademais, como assevera Sérgio Buarque de Holanda (2014HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras , [1955] 2014., p. 40), no Brasil, “[t]oda hierarquia funda-se necessariamente em privilégios”. Nenhum privilégio gozaria o alferes em um espaço “[...] sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante do terreiro deserto e da roça abandonada. Nenhum fôlego humano. Corri a casa toda, a senzala, tudo, nada, ninguém, um molequinho que fosse” (ASSIS, 2006ASSIS, Machado. O espelho. In: ______. Papéis avulsos. Belo Horizonte: Itatiaia, [1882] 2006. p. 143-151., p. 148).

Esta pode ser a razão pela qual, anos depois, diante de uma reunião de cavalheiros, quando estava a contar sua narrativa, Jacobina não admite réplica ou corte. Ele quer o outro ouvinte por inteiro e fixo, tal qual um espelho na parede. A mensagem emitida vai e retorna em forma de reflexo sobre o próprio emissor. Espelhos que se (loco)movem ou rebatem não produzem imagens nítidas. Já tendo obtido seu reflexo - leia-se contado o suficiente de sua história, iniciada junto ao preâmbulo do conto, sem réplica ou debate - e satisfeito com o que viu, Jacobina decide seu caminho e do outro. Em um átimo, abandona o espelhamento antes que este o abandone uma vez mais. Depois de enunciar toda a história, “[q]uando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as escadas” (ASSIS, 2006ASSIS, Machado. O espelho. In: ______. Papéis avulsos. Belo Horizonte: Itatiaia, [1882] 2006. p. 143-151., p. 151).

O duplo machadiano novamente aparece neste conto. Primeiramente, como a díade eu-outro, vazada no contato-confronto entre Jacobina e seu círculo imediato. Contudo, mesmo dentro dessa díade, o outro assume uma dupla forma, como se dobrasse sobre si. O conto coloca em cena o outro como os familiares, escravos, amigos, tão logo que houve a ascensão de cargo. Ocorre que, ao final da leitura, Jacobina, já em meia-idade, narrando o episódio ocorrido para os cavalheiros, reconduz o outro à condição de espelho de si. Agora, mais experiente, ele não permite que a posição do outro - neste ponto assumido pelos cavalheiros - o abandone, Jacobina se antecipa e se coloca como o primeiro a desfazer o par, não sem antes gozar da imagem filtrada pelo olhar do outro.

Este é precisamente um dos pontos que une os contos de Machado e Murilo: o intento de fazer e desfazer a díade eu-outro. Enquanto no autor fluminense o outro é condição necessária para o que o narrador possa e queira enxergar a si, no escritor mineiro, o outro é o assombro de si, sendo evitado a todo custo pelo narrador. Dito de outra maneira, em “O espelho”, Jacobina necessita da presença do outro, uma vez que por meio deste “[...] a identidade do sujeito [é] forjada pelo olhar social” (BOSI, 2017BOSI, Alfredo. O duplo espelho em um conto de Machado de Assis. In: ______. Três leituras: Machado, Drummond, Carpeaux. São Paulo: Editora 34, 2017. p. 7-34., p. 21), em “O lodo”, Galateu prescinde da presença do outro, dado que o excesso de presença da alteridade não cessa de lhe lembrar o que o narrador busca - inconscientemente - esquecer: “Procurou concentrar-se no trabalho, mas o pensamento girava entre o episódio sepultado no inconsciente e a curiosidade malsã do doutor Pink. Insurgia-se contra essa intromissão em sua vida, receoso de que o médico pressentisse a verdade toda” (RUBIÃO, 2016RUBIÃO, Murilo. O lodo [1974]. In: ______. Obra completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 71-80., p. 73). Para endossar essa tessitura, será preciso adentrar um pouco mais no conto de Rubião, o qual, semelhante ao de Machado, apresenta uma premissa relativamente simples: Galateu, motivado por um quadro de depressão, procurou um analista.

O narrador, em terceira pessoa, aponta que até então Galateu não sabia como atuava um analista. Por isso, as perguntas sobre a infância e a adolescência, fatos sobre a relação com os pais e o uso do divã o deixaram francamente desconfortável. Como o analista não agiu segundo o que Galateu esperava, em outras palavras, prescrevendo de imediato um medicamento para uma possível cura da depressão, o paciente se aborrece. Além disso, o analista buscou investigar mais sobre a vida pregressa - infância e adolescência - de Galateu, o que o irrita mais ainda, fazendo com que a personagem assuma uma postura taxativa: “Doutor, vim atrás de clínico, não de padre” (RUBIÃO, 2016RUBIÃO, Murilo. O lodo [1974]. In: ______. Obra completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 71-80., p. 71). Essa proposição de Galateu dá o tom do que veremos nas páginas seguintes do conto. Pelas palavras mobilizadas, Galateu pensava estar acometido por uma doença do corpo, devendo deixar de lado aquilo que estava na seara da alma para outro lugar, talvez a igreja, com suas fórmulas para pecados - veja bem - da carne.

Uma outra díade forma-se aqui: corpo-alma. Por limitação de espaço, não trataremos dela neste manuscrito. Ocorre que muito desse incômodo de Galateu não é de todo infundado. Diante da resistência da personagem - diga-se, de passagem, muito típica no início da prática psicanalítica -, o analista, doutor Pink, assevera que “[...] o paciente carregava dentro de si imenso lodaçal” (RUBIÃO, 2016RUBIÃO, Murilo. O lodo [1974]. In: ______. Obra completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 71-80., p. 71). Por mais que seja incomum esse tipo de proposição por parte de analistas, essa declaração recai sobre os ombros de Galateu com peso. E, possivelmente, para mantê-lo assíduo, doutor Pink recusa o pagamento ao fim da primeira sessão. Precisaria de mais frequência e “[...] o pagamento seria mensal” (RUBIÃO, 2016RUBIÃO, Murilo. O lodo [1974]. In: ______. Obra completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 71-80., p. 72). A fim de tentar se desvencilhar do analista, Galateu insiste no pagamento e tenta arrematar: “É bom pegar o dinheiro agora, caso contrário darei melhor destino a ele: mulheres” (RUBIÃO, 2016RUBIÃO, Murilo. O lodo [1974]. In: ______. Obra completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 71-80., p. 72).

Em nossa leitura, é precisamente com essa asserção que Galateu revela mais do que supôs. A partir deste ponto em diante, a relação eu-outro - Galateu e analista - atinge um patamar de outridade que opera por duas linhas de força: 1) evitação por parte do possível analisando em revolver as narrativas pessoais e íntimas recalcadas e 2) excesso de presença do analista interessado no que Galateu recusa contar. Tais linhas de força vão ditar a maior parte do conto. Galateu resiste. Doutor Pink insiste:

Dois dias após, atendeu a um telefonema. A voz macia lhe agradou desde logo. Só não contava com o recado:

- O doutor Pink manda lembrar-lhe a entrevista de hoje. (RUBIÃO, 2016RUBIÃO, Murilo. O lodo [1974]. In: ______. Obra completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 71-80., p. 72).

Mal iniciara as tarefas de atuário na Companhia de Seguros Gerais, Galateu foi chamado ao telefone. Levantou-se contrariado. O aparelho ficava distante e detestava ser interrompido durante o serviço.

- Sim. Como? Por que não compareci? Ora, doutor, estou bem e peço que não me incomode. (RUBIÃO, 2016RUBIÃO, Murilo. O lodo [1974]. In: ______. Obra completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 71-80., p. 72).

Findo o expediente, Galateu caminhava em direção a seu carro, quando avistou o doutor Pink:

- A brincadeira está indo longe demais. O senhor não considera falta de ética aliciar clientes? (RUBIÃO, 2016RUBIÃO, Murilo. O lodo [1974]. In: ______. Obra completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 71-80., p. 73).

Passado o espanto e superada a náusea, quis chamar um médico. Só não o fez ante o temor de repetir-se a infeliz experiência que tivera com o doutor Pink. Preferiu medicar-se na farmácia da esquina. (RUBIÃO, 2016RUBIÃO, Murilo. O lodo [1974]. In: ______. Obra completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 71-80., p. 73).

Apesar de obter certo sucesso em evitar o analista Pink, algo desse contato-confronto ficou em Galateu. O analista, mesmo em ausência, era pura presença. Como um fantasma que se faz tanto mais efetivo quanto menos evidente. O outro estava inteiramente no eu, semelhante ao que cantou o poeta Rimbaud, “O eu é um outro”. Mesmo querendo se livrar, não havia meios para isso. E a resistência de Galateu era, em parte, endossada pelo próprio analista, uma vez que Pink, em um dos poucos momentos de conversa com Galateu, reitera: “Você não compreende que o seu inconsciente é lodo puro?” (RUBIÃO, 2016RUBIÃO, Murilo. O lodo [1974]. In: ______. Obra completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 71-80., p. 73). Ricardo Iannace já chamava atenção para uma possível articulação entre o conto muriliano e a investigação do inconsciente, uma vez que, para o pesquisador, já há bastantes “[...] leituras que procuram alinhar o fantástico a pressupostos teóricos no campo da psicanálise, senão na vertente social” (IANNACE, 2016IANNACE, Ricardo. Murilo Rubião e as arquiteturas do fantástico. São Paulo: Edusp , 2016., p. 26).

Contudo, esse fantástico, em Murilo, não ocorre de maneira fortuita ou errante, como poderia supor o senso comum que alimenta ideias imprecisas sobre esse estilo de narrativa. Com Rubião, vemos que “[...] o fantástico retira de sua própria improbabilidade certo índice de possibilidade imaginária, mas, longe de perseguir alguma verdade - mesmo que fosse aquela da psique escondida e secreta - ele tem consistência na sua própria falsidade” (BESSIÈRE, 2009, p. 3). Ao explorar essa relação absolutamente improvável entre analista e analisando, Murilo traz à baila uma das tônicas de seus contos, nos quais “[...] o imprevisto caracteriza diálogos ambíguos, em que a não explicação ou mesmo o mal-entendido se inscrevem nos fatos sucessivamente agravados pela excepcionalidade do circunstancial [...]” (IANNACE, 2016IANNACE, Ricardo. Murilo Rubião e as arquiteturas do fantástico. São Paulo: Edusp , 2016., p. 65).

À vista disso, se voltarmos ao conto machadiano, Jacobina obtinha do outro uma matéria para construção especular de si. Já em Murilo, Galateu obtém do outro precisamente o que lhe fragmenta como sujeito, o que lhe torna humano, demasiadamente humano, ou seja, o traço que remove do sujeito o controle de si, o tudo-saber, o tudo-poder, leia-se o inconsciente. Destarte, diante deste contraste entre os contos, uma pergunta razoável de ser feita é: a díade eu-outro é rigorosamente a mesma nos dois contos, mas trabalhada de formas diferentes, por quê? A resposta se apresenta a partir de uma análise de textura mais comparatista (NITRINI, 2015NITRINI, Sandra. Literatura comparada: história, teoria e crítica. 3. ed. São Paulo: Edusp , 2015.).

Mário de Andrade (2002ANDRADE, Mário de. Machado de Assis [1939]. In: ______. Aspectos da literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, [1943] 2002. p. 107-128.) nos lembra o caráter histórico-social dos textos machadianos, em que a textura oitocentista fica, muitas vezes, evidenciada pelas personagens, pela trama e por conflitos interpessoais. O autor pontua que um dos triunfos de Machado é “[...] aquilo em que ele se tornou perfeitamente expressivo da sociedade burguesa do Segundo Reinado e imagem reflexa do nosso acomodado Imperador” (ANDRADE, 2002ANDRADE, Mário de. Machado de Assis [1939]. In: ______. Aspectos da literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, [1943] 2002. p. 107-128., p. 112). Dessa forma, em “O espelho” ocorre uma certa dose de “homem cordial” (HOLANDA, 2014HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras , [1955] 2014.) em Jacobina, precisamente no questionamento do eu-outro na sociedade de privilégios de um Brasil republicano, cuja “[...] vida em sociedade é, de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele [homem cordial] sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência” (HOLANDA, 2014HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras , [1955] 2014., p. 177).

Essa é uma das tônicas de Machado, mas, de certa forma, também presente em Murilo. Os contos do mineiro são igualmente recheados de um profundo questionamento da sociedade e da maneira como as estruturas histórico-sociais interpelam o sujeito, deixando-o, muitas vezes, sem saída. Basta ver contos como “O ex-mágico da Taberna Minhota” e “O edifício”. Destarte, observa-se com frequência que

[...] [o]s seres de Murilo vivem sob a pressão do inevitável. [...] Todos, na verdade, estão "bloqueados" de algum modo. Atuam como "bodes expiatórios", como vítimas de um sacrifício inexplicável, a que se submetem, sem que sua revolta se alce contra essa obrigação obscura que os condiciona. Protestam contra o mínimo, mas suportam o máximo (ARRIGUCCI JR., 1987ARRIGUCCI JR., Davi. Minas, assombros e anedotas (os contos fantásticos de Murilo Rubião). In: ______. Enigma e comentário: ensaios sobre literatura e experiência. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 141-166., p. 158).

Então, diante da presença da outridade e do teor social destacado em ambos os autores, o que pode contribuir para que a tensão eu-outro seja radicalmente diferente nos escritores? Sem dúvida, as mudanças muito profundas dos regimes de Monarquia e de República sob os quais o Brasil viveu durante os séculos XIX e XX é um horizonte. Contudo, em nossa leitura, o que marca a diferença entre os dois, nos contos analisados, é a presença incontornável da descoberta freudiana do inconsciente, calcada nos Estudos sobre a histeria (1895) e A interpretação dos sonhos (1899), no final do século XIX.

Pudera, o sujeito de que fala Machado é invariavelmente diferente daquele que Murilo questiona. Não só por tempo cronológico, mas também por incidência psicossocial. Machado acentua o social por uma demanda de seu próprio tempo. Murilo, atravessando um eu-cindido, escreve o que resta de um sujeito esvaziado. Das três feridas narcísicas (GODINO CABAS, 2009GODINO CABAS, Antônio. O sujeito na psicanálise de Freud a Lacan: da questão do sujeito ao sujeito em questão. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.) - a morte de Deus, a morte do homem e a descoberta do inconsciente -, Machado, cronologicamente, só chega até a segunda. Já Murilo, descrevendo uma personagem permeada pelo inconsciente, retrata exatamente um sujeito às voltas com a demanda incessante e insuportável de uma voz sutil que não desiste enquanto não for ouvida. Galateu, resistindo ao analista, tolhendo a palavra-significante do registro inconsciente, padece, qual histérica freudiana, no corpo o freio à verdade sobre si. Além disso, conforme assevera Iannace,

[...] o onírico sela a amistosa cumplicidade entre o texto e o leitor, a quem os impasses e os incidentes da grandeza do absurdo confiam recepção diferenciada. Insólito, o acontecimento não oferece visos de verdade ao conto - estranho, evidentemente, a toda e qualquer referência que delineie a medida do real. (IANNACE, 2016IANNACE, Ricardo. Murilo Rubião e as arquiteturas do fantástico. São Paulo: Edusp , 2016., p. 65, grifo nosso).

Como barrasse o acesso ao “inconsciente lodo puro” por meio da palavra, o corpo de Galateu enuncia o “lodaçal”. Assim, após uma noite de sono agitado, com pesadelos, uma dor insuportável atravessava seu corpo. “Apalpou o peito e as mãos encontraram uma coisa pegajosa. Meio entorpecido pela ação dos soníferos, buscou no banheiro o espelho e viu que o mamilo esquerdo desaparecera. No lugar despontara uma ferida sangrenta, aberta em pétalas escarlates” (RUBIÃO, 2016RUBIÃO, Murilo. O lodo [1974]. In: ______. Obra completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 71-80., p. 74). Por meio de uma pomada e dois meses de intervalo, Galateu encontra um breve alívio, o qual retorna, qual sintoma do inconsciente, da mesma maneira que anteriormente. “Acordou, de manhã, com uma dor penetrante. Nem teve necessidade de tocar no mamilo, para certificar-se de que a ferida ressurgira, agora do lado direito” (RUBIÃO, 2016RUBIÃO, Murilo. O lodo [1974]. In: ______. Obra completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 71-80., p. 75).

O mal-estar evolui a ponto de ele ficar inteiramente debilitado e acamado, mas ainda reticente aos cuidados do doutor Pink. Nesse momento, a grande questão que paira no ar é que matéria inconsciente é essa que Galateu tanto resiste em trazer para o consciente, resistindo ao esforço do analista? Essa é a centralidade do conto e que está intimamente relacionada ao título do texto e que acentua “[...] a originalidade e [...] maestria no modo de manipular e de entretecer os dados e os estratagemas asseguradores do acontecimento de verve alucinante que estrutura tais narrativas” (IANNACE, 2016IANNACE, Ricardo. Murilo Rubião e as arquiteturas do fantástico. São Paulo: Edusp , 2016., p. 72). Primeiramente, Murilo destaca que essa resistência poderia ser ligada a um episódio de infidelidade: “[...] Galateu se dividia entre a rotina do escritório e os encontros com a mulher do diretor” (RUBIÃO, 2016RUBIÃO, Murilo. O lodo [1974]. In: ______. Obra completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 71-80., p. 74-75).

Contudo, e aqui está também a genialidade de Rubião, tal qual um lodo real, de pântano, que é terroso, lamento, turvo, o lodaçal de Galateu não é simples de identificar. É preciso separar as várias matérias orgânicas de que é feito um lodaçal. Tarefa nada fácil. Contudo, conforme assevera Nunes, o “[...] contraste entre a particular coerência do discurso narrativo, minucioso e imperturbável, e a particular incoerência da matéria narrada, isto é, dos acontecimentos extraordinários que constituem a trama esquemática de cada história” (NUNES, 1975NUNES, Benedito. Recensão crítica a ‘O convidado’, de Murilo Rubião. Revista Colóquio/Letras, Lisboa, n. 28, p. 91-92, nov. 1975., p. 91, grifo do original). Assim, vemo-nos intrigados com o modo como a matéria viva do lodaçal pode ser esmiuçada. É preciso principiar pelo início.

Sempre como uma figura solitária, a primeira ocorrência de um elemento familiar - sobre o qual a personagem se recusou a falar na primeira sessão com o analista Pink - ocorre quando Galateu menciona um sonho em que a irmã Epsila e o analista, “[...] debruçados sobre o seu corpo, acompanham atentos os movimentos irregulares da lâmina”, no episódio da ferida no mamilo esquerdo. Epsila reaparece quando Galateu, já debilitado e sem condições de autocuidado, necessita de assistência de terceiros, tendo a empregada sido dispensada e Epsila assumindo as funções. Esta vai ao apartamento de Galateu em companhia de “[...] um menino com a aparência de retardado mental” (RUBIÃO, 2016RUBIÃO, Murilo. O lodo [1974]. In: ______. Obra completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 71-80., p. 77), de nome Zeus. Ele é filho de Epsila. Um ponto de atenção é o fato de que Galateu se surpreende não somente com a chegada da irmã e do menino, mas, sobretudo, com a aparência real dela. Essa surpresa vem de uma comparação entre a “jovem que aparecera no sonho” e a mulher que “[p]erdera, em doze anos, o viço, a suavidade de traços. Magra, muito magra, os olhos sem brilho e a falta de dentes no maxilar superior davam-lhe um aspecto contristador” (RUBIÃO, 2016RUBIÃO, Murilo. O lodo [1974]. In: ______. Obra completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 71-80., p. 77).

Sonho e realidade entram em choque. Epsila é mencionada no conto mais algumas vezes, sempre em episódios de dispensa de cuidados e de tentativa de interlocução, por telefone, entre doutor Pink e Galateu. Todavia, a referência mais contundente à Epsila é feita por seu filho Zeus. Galateu acorda certo dia e pergunta pela empregada, que ele julgava ainda estar trabalhando por lá. Zeus, ao pé da cama de Galateu, lhe diz: “Pai, a mãe mandou ela embora” (RUBIÃO, 2016RUBIÃO, Murilo. O lodo [1974]. In: ______. Obra completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 71-80., p. 78).

Diante da declaração do garoto, Galateu expressa o espanto: “Quem disse que sou seu pai? - Além da repugnância que lhe provocavam os esgares do pequeno mentecapto, ficara desconcertado com a revelação” (RUBIÃO, 2016RUBIÃO, Murilo. O lodo [1974]. In: ______. Obra completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 71-80., p. 78). Próximo ao fim do conto, nova menção é feita.

Em uma tentativa de fuga de seu apartamento, Galateu, na madrugada, tenta sair pela porta, mas a encontra trancada. Sem forças, cai ao chão da cozinha no escuro. Zeus, de cima de um tamborete, acende a luz e assevera: “As chaves. A mãe escondeu” (RUBIÃO, 2016RUBIÃO, Murilo. O lodo [1974]. In: ______. Obra completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 71-80., p. 79). Chama-se atenção para a cadeia de ligações tramadas por Rubião: ora, sendo Epsila irmã de Galateu e sendo Zeus filho de Epsila e Galateu, só nos resta concluir que o menino é fruto de uma relação incestuosa entre irmãos. Triângulo edípico que atualiza o desejo inconsciente e fragmenta a lei universal de socialização, como já apontou Freud em "Horror ao incesto", em Totem e tabu (1913), e Lévi-Strauss com As estruturas elementares do parentesco (1949).

O interdito consumado é o lodo de Galateu. A personagem resiste em se confrontar com o que achava recalcado. Galateu resiste ao analista, pois estar diante dele é estar às voltas com a lei que ele infringiu e cujo fruto não cessa de lhe lembrar a interdição. Galateu aprisiona a palavra, reprime a confissão e padece no corpo das consequências: “[e]xalava um odor fétido da pústula” (RUBIÃO, 2016RUBIÃO, Murilo. O lodo [1974]. In: ______. Obra completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 71-80., p. 80).

Se estivemos até aqui entretecendo os textos de Machado e Murilo foi por acreditar que a díade eu-outro se configura de maneira semelhante, guardando as diferenças já expostas anteriormente. O personagem machadiano usa o outro como espelho de si. O personagem muriliano se esgueira do outro para não ver sua imagem incestuosa refletida. Mais além, em Murilo

[...] o linguístico, o social, o histórico-cultural e o simbólico armam-se no conto de Rubião pela insígnia do fantástico. Essa categoria subversiva aos princípios de verossimilhança do mundo real assegura o discurso coercitivo, mas nem por isso convincente, da personagem que opera uma linguagem descontínua e extenuada, desestabilizando patentes do domínio da certeza e da transparência. (IANNACE, 2016IANNACE, Ricardo. Murilo Rubião e as arquiteturas do fantástico. São Paulo: Edusp , 2016., p. 56, grifo do original).

Destarte, Galateu sufoca a confissão proibida diante do analista, uma vez que, como assevera Safatle (2017SAFATLE, Vladimir. Introdução a Jacques Lacan. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.),

[a] fala já traz a figura de seu ouvinte ideal. Se o analista atuar como um espelho vazio, ou seja, como alguém que não “responde”, mas que, graças a um não agir calculado, apenas permite a projeção dessas imagens no interior da relação analítica, então a análise poderá começar. (SAFATLE, 2017SAFATLE, Vladimir. Introdução a Jacques Lacan. Belo Horizonte: Autêntica, 2017., p. 40, grifo do original).

Com efeito, Galateu foge de sua imagem espelhada no analista. Foge da condenação moral por ter cedido ao desejo interditado desde a fundação da estrutura da sociedade mais primitiva. Galateu tenta se esquivar da lei de socialização. Não consegue. Sem meios de lograr êxito, finalmente aceita se olhar no espelho vazio: “Em resposta, apenas balbuciou: - Venha. - Uma baba de sangue escorreu pelos cantos da boca” (RUBIÃO, 2016RUBIÃO, Murilo. O lodo [1974]. In: ______. Obra completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 71-80., p. 80).

Os contos de Machado e Murilo terminam diametralmente opostos. Jacobina desce as escadas, após a declaração, deixando os cavalheiros sozinhos. Galateu, sucumbindo à pressão da lei, aceita a presença do analista: “Um quarto de hora depois, aparecia o doutor Pink” (RUBIÃO, 2016RUBIÃO, Murilo. O lodo [1974]. In: ______. Obra completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 71-80., p. 80). E assim, vê-se como a “[...] reescrita infatigável de Rubião persegue o mal-entendido, a confusão que, por si, ofusca” (IANNACE, 2016IANNACE, Ricardo. Murilo Rubião e as arquiteturas do fantástico. São Paulo: Edusp , 2016., p. 54).

Repetindo Rimbaud, se “o eu é um outro”, cada vez que esse outro assume uma forma diferente, o eu se modifica. Cada eu - em Machado e Murilo - é irremediavelmente igual e diferente. O mesmo e distinto. Imagem e realidade. Seja por incidência social ou íntima. Criminoso e vítima, a cada momento e sempre. Em suma, pode-se presumir: há, portanto, um certo espelho em todo lodo. E há, igualmente, um tanto de lodo em cada espelho. É o que os efeitos de sentido refletem.

Alinhavos finais

Pensar em outridade nas obras de Machado e Murilo é refletir não somente sobre a materialidade dos textos, mas, sobretudo, propor um olhar sobre a própria relação entre os autores. Murilo estabelece declaradamente essas relações de proximidade com Machado. Ao incluir em uma de suas famosas epígrafes - no conto Memórias do contabilista Pedro Inácio - um trecho de Memórias póstumas de Brás Cubas, Rubião apresenta um claro resvalo na própria estética literária oitocentista, dialogando com uma ótica expressiva do realismo, sem, contudo, esquecer de seu filão mágico do século XX brasileiro.

Com efeito, pensar em alteridade a partir dos contos analisados é buscar compreender como a tensão eu-outro não só se configura como tônica e preocupação para ambos os autores, como também o quanto isso revela as representações histórico-sociais de cada recorte de análise e de cada autor. Machado, século XIX, de textura oitocentista. Murilo, século XX, se dobrando à insistência do inconsciente sobre o sujeito moderno.

Assim, nos contos analisados, as relações de alteridade ocorrem pelo duplo eu-outro, obtendo diferentes formatos tanto pela genialidade de cada autor, quanto pelo relevo que cada um imprime e destaca. Machado pensando na outridade como um liame entre sujeito e sociedade. Murilo, por seu turno, considerando o outro como um anteparo que pode revelar o mais íntimo do sujeito.

Em “O espelho” fica evidente que Jacobina “[...] rendeu-se à perspectiva e à expectativa social, rigorosamente re-signou-se, reiterando e incorporando a si o signo com que o outro o tinha mirado” (BOSI, 2017BOSI, Alfredo. O duplo espelho em um conto de Machado de Assis. In: ______. Três leituras: Machado, Drummond, Carpeaux. São Paulo: Editora 34, 2017. p. 7-34., p. 20, grifo do original).

Já em “O lodo”, está patente que o “[...] fantástico de sua escrita é justificado na medida em que há a percepção dos níveis simbólicos e alegóricos de significação” (SCHWARTZ, 2016, p. 252). Além disso, vemos como “Rubião desenvolve em suas narrativas - decerto influência dos textos bíblicos e das histórias persas - o gosto pelo extraordinário, senão pelo insólito desdobramento” (IANNACE, 2016IANNACE, Ricardo. Murilo Rubião e as arquiteturas do fantástico. São Paulo: Edusp , 2016., p. 36, grifo do original). E que elemento extraordinário seria esse no conto de Murilo? A relação incestuosa? Zeus, o fruto da interdição? Seguramente que não, pois em “O lodo” a cena sugerida de incesto é real demais para ser fantástica. Contudo, a alegoria da ferida na altura do peito conta mais a história do que a própria narrativa. É preciso cortar da própria carne, abrindo espaço para deixar sair de dentro o que fora recalcado tão fundo no inconsciente.

Urge cavar na profundeza do sujeito para achar o que as formações do inconsciente não cessam de enunciar. Lanhando fundo, atravessando o lodo, separando a matéria orgânica, o que será que encontraremos? Talvez doutor Pink possa ajudar, ou quem sabe Jacobina possa relatar. Uma hipótese segura, após lidos os textos de Machado e Murilo, é que há traços realistas e mágicos de outridade incontornáveis e constitutivos, a cada momento e sempre. Em um anteparo cristalino, assim como em um lodo turvo e intransponível.

Referências

  • ANDRADE, Mário de. Machado de Assis [1939]. In: ______. Aspectos da literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, [1943] 2002. p. 107-128.
  • ARRIGUCCI JR., Davi. Minas, assombros e anedotas (os contos fantásticos de Murilo Rubião). In: ______. Enigma e comentário: ensaios sobre literatura e experiência. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 141-166.
  • ASSIS, Machado. O espelho. In: ______. Papéis avulsos. Belo Horizonte: Itatiaia, [1882] 2006. p. 143-151.
  • BOSI, Alfredo. O duplo espelho em um conto de Machado de Assis. In: ______. Três leituras: Machado, Drummond, Carpeaux. São Paulo: Editora 34, 2017. p. 7-34.
  • FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. São Paulo: Edusp, [2001] 2018.
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  • HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras , [1955] 2014.
  • IANNACE, Ricardo. Murilo Rubião e as arquiteturas do fantástico. São Paulo: Edusp , 2016.
  • KEHL, Maria Rita. Bovarismo brasileiro. São Paulo: Boitempo, 2018.
  • NITRINI, Sandra. Literatura comparada: história, teoria e crítica. 3. ed. São Paulo: Edusp , 2015.
  • NUNES, Benedito. Recensão crítica a ‘O convidado’, de Murilo Rubião. Revista Colóquio/Letras, Lisboa, n. 28, p. 91-92, nov. 1975.
  • RUBIÃO, Murilo. O lodo [1974]. In: ______. Obra completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 71-80.
  • SAFATLE, Vladimir. Introdução a Jacques Lacan. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    31 Dez 2021
  • Aceito
    13 Abr 2022
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