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RESENHA DE REVISITANDO DOM CASMURRO: ASPECTOS RETÓRICOS EM CONEXÃO COM A BÍBLIA, DE LINEIDE DO LAGO SALVADOR MOSCA E PAULO SÉRGIO DE PROENÇA, E RESENHA DE ESTUDOS SOBRE DOM CASMURRO: HOMENAGEM A LINEIDE DO LAGO SALVADOR MOSCA

REVIEW OF REVISITANDO DOM CASMURRO: ASPECTOS RETÓRICOS EM CONEXÃO COM A BÍBLIA, BY LINEIDE DO LAGO SALVADOR MOSCA AND PAULO SÉRGIO DE PROENÇA, AND REVIEW OF ESTUDOS SOBRE DOM CASMURRO: HOMENAGEM A LINEIDE DO LAGO SALVADOR MOSCA

MOSCA, Lineide do Lago Salvador; PROENÇA, Paulo Sérgio de. . Revisitando Dom Casmurro: aspectos retóricos em conexão com a bíblia. Curitiba: Appris, 2020. 165 p.
CHAUVIN, Jean Pierre. (Org.). Estudos sobre Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Luva Editora, 2021. 192 p.

Machado de Assis já foi virado de ponta-cabeça. Tudo se disse sobre ele. Coisas duras, como Sílvio Romero. Coisas doces, como José Veríssimo. Abordagens múltiplas - históricas, psiquiátricas, sociológicas, psicanalíticas, econômicas...

Mas não, sempre haverá algo mais, que falta, que sempre faltará. É a sina dos grandes: Machado, Rosa, Drummond.

Dessa vez o "algo" que se conta a mais está em dois livros: Revisitando Dom Casmurro (2020) e Estudos sobre Dom Casmurro (2021). Estão estreitamente ligados. Revisitando Dom Casmurro, que possui dupla autoria - Lineide do Lago Salvador Mosca e Paulo Sérgio de Proença - e o subtítulo "aspectos retóricos em conexão com a bíblia", foi lançado virtualmente1 1 O encontro de lançamento de Revisitando Dom Casmurro pode ser visto em https://www.youtube.com/watch?v=CWHlew15Has&t=64s. em dezembro de 2020, mediante intervenções dos autores que compõem a coletânea de Estudos sobre Dom Casmurro.2 2 Eis os artigos: Rosalice Pinto, "Dom Casmurro e suas estratégias retóricas: percurso interpretativo de (des)dicotomização"; Jean Pierre Chauvin, "Autoelogio e censura em Dom Casmurro"; João Adalberto Campato Jr, "Retórica e crítica retórica em Dom Casmurro, de Machado de Assis"; Lucas Nascimento, "A flor mais bela: um elogio à polêmica em Dom Casmurro"; Paulo Sérgio de Proença, "Palavra divina e interesses humanos: considerações sobre a presença da bíblia em Dom Casmurro"; Isaar Soares de Carvalho, "Considerações sobre o contexto histórico, cultural, ideológico e político de Dom Casmurro".

Revisitando Dom Casmurro seria, assim, uma espécie de livro-guia a orientar o segundo na direção da abordagem retórica do romance. Por isso, é aconselhável, diria mesmo imperiosa, a resenha dupla. As obras ficam daqui por diante também denominadas de "livro-guia" e "livro segundo", ao qual se fará referência implícita só com o emprego do termo "artigo".

Dizer que Dom Casmurro é um romance em que o narrador tenta convencer-nos de que foi traído por sua mulher é uma verdade trivial, trivialíssima, para adotar o estilo de José Dias. Afinal, toda história que se conta tenta-nos convencer de algo, por mais singela, ingênua ou neutra que aparenta ser. O próprio fato da narração é em si um ato persuasório.

O que singulariza Dom Casmurro é a aplicação estrita e direcionada da retórica para esse fim. Já o mérito de Revisitando Dom Casmurro e Estudos sobre Dom Casmurro consiste no ineditismo, salvo engano, de apresentar e ratificar, respectivamente, de modo sistemático e teórico, os recursos de argumentação utilizados no romance. Como afirmam Mosca e Proença, a investigação do livro recai na "técnica de composição". Ou seja, no "conjunto de procedimentos e técnicas de persuasão pelo discurso" (CAMPATO JR, 2021CAMPATO JR, João Adalberto. Retórica e crítica retórica em Dom Casmurro, de Machado de Assis. In: CHAUVIN, Jean Pierre (Org.). Estudos sobre Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Luva Editora, 2021. , p. 69), que é o próprio conceito de retórica firmado pelo articulista em seu artigo.

Para encerrar essas considerações preliminares, cumpre dizer que a abordagem retórica de Dom Casmurro, como de resto do discurso literário em geral, não concorre, não colide e nem implica interpretações de diferente natureza. Ela pode valer por si mesma ou fornecer subsídios, servir como base, se engastando a outras abordagens. Ou, dito de forma mais enxuta: ela "pode ser utilizada tanto como meio de abordagem principal, quanto como recurso complementar no exame do corpus eleito para sondagem" (CAMPATO JR, 2021CAMPATO JR, João Adalberto. Retórica e crítica retórica em Dom Casmurro, de Machado de Assis. In: CHAUVIN, Jean Pierre (Org.). Estudos sobre Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Luva Editora, 2021. , p. 73).

Jean Pierre Chauvin começa seu artigo questionando a observação de Jean Michel Massa sobre ter sido Machado "pouco orador" e "antirretórico". Massa teria confundido o escritor com as personagens. Outra alegação do crítico francês é que não teriam sido encontrados livros de Demóstenes e Cícero na biblioteca do criador de Bentinho. Ao que Chauvin responde que o acervo da biblioteca estava desfalcado. Além disso, por ser um "leitor voraz", as fontes de leitura de Machado não se restringiam aos livros da biblioteca pessoal.

Sem querer me meter nessa alternância de opiniões fazendo uma mediação demagógica, com um pé em Massa e outro em Chauvin, diria, de minha parte, que Machado se mostra antirretórico no sentido pejorativo de uma linguagem empolada e vazia. Inúmeros, incontáveis exemplos desse conceito podem ser encontrados na obra do escritor.

E mesmo que se situem no âmbito da ficção não deixam de representar a voz do autor-criador da obra Machado de Assis com sua ironia aguda e seu espírito crítico. No conto "A desejada das gentes", o conselheiro tenta em vão conquistar a arredia e divina Quintília: "Escrevi cartas sobre cartas; todas me pareciam frias, difusas, ou inchadas de estilo" (ASSIS, 2004______. Várias histórias. São Paulo: Martins Fontes, 2004., p. 82). Em "Teoria do medalhão", para sopitar ideias e tornar-se um medalhão completo, o pai de Janjão o aconselha a "lançar mão de um regime debilitante, ler compêndios de retórica, ouvir certos discursos" (ASSIS, 2011______. Papéis avulsos. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011., p. 102). E na crônica, onde a presença do escritor se faz mais autêntica, entre outros exemplos, há este, na de 15 de março de 1896, em que se registra que "a falta de ideias dá eleição às palavras" (ASSIS, 2008______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. v. 4., p. 1262); ou este, na de 25 de novembro de 1894: "como é que nós, que temos o gosto de adoçar a pronúncia e muitas vezes alongar a palavra, adotamos esta forma ríspida e breve pic-nic?" (ASSIS, 2008______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. v. 4., p. 1122); ou este, na de 20 de agosto de 1893: "Uma das minhas convicções (e tenho poucas) era esta: se algum dia Sarah [Bernhardt] escrever a nosso respeito, não empregará a velha chapa de todos os viajantes que por aqui passam: ce pays féerique" (ASSIS, 2008______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. v. 4., p. 1008). Aqui a crítica é ao lugar-comum, "a velha chapa". Outro exemplo encontra-se em "O anel de Polícrates", da coletânea Papéis avulsos: "falava [Xavier] do lar saudoso, do sacerdócio da imprensa, dos jantares opíparos, sem acrescentar ao menos um relevo qualquer a toda essa chaparia de algibebe" (ASSIS, 2011______. Papéis avulsos. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011., p. 177-178).

Como disse, poderia citar exemplos à exaustão, mas o espaço deste escrito não permite. Para isso, remeto os leitores para um livrinho muito valioso, quase esquecido e lembrado por Chauvin em seu artigo - Machado de Assis e a análise da expressão, de Maria Nazaré Lins Soares (1968SOARES, Maria Nazaré Lins. Machado de Assis e a análise da expressão. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1968.).

O que afirmaria, ousando me insinuar entre Chauvin e Massa, é que o exercício da retórica machadiana é profundo, no sentido de elaborar a mais fina expressividade de ideias, conceitos e sentimentos. "Machado de Assis é dotado de espírito retórico, o que resta patente não apenas na formulação de Dom Casmurro, como igualmente, na chamada segunda fase de sua prosa de ficção" (CAMPATO JR, 2021CAMPATO JR, João Adalberto. Retórica e crítica retórica em Dom Casmurro, de Machado de Assis. In: CHAUVIN, Jean Pierre (Org.). Estudos sobre Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Luva Editora, 2021. , p. 85).

Retiro, não de Dom Casmurro, mas de Quincas Borba, uma pequena amostra dessa finura retórica ou desse "espírito retórico". Rubião recebe de Sofia um pequeno cesto de morangos. Vai junto uma carta que dizia: "Mando-lhe estas frutinhas para o almoço, se chegarem a tempo; e, por ordem do Cristiano, fica intimado a vir jantar conosco, hoje sem falta. Sua verdadeira amiga Sofia" (ASSIS, 1998______. Quincas Borba. Rio de Janeiro; Belo Horizonte: Garnier, 1998., p. 56).

Rubião, através do discurso indireto do narrador, põe-se a analisá-la:

Cada palavra dessa página inesperada era um mistério; a assinatura uma capitulação. Sofia apenas; nenhum outro nome da família ou do casal. Verdadeira amiga era evidentemente uma metáfora. Quanto às primeiras palavras: Mando-lhe estas frutinhas para o almoço respiravam a candidez de uma alma boa e generosa. Rubião viu, sentiu, palpou tudo pela única força do instinto e deu por si beijando o papel, - digo mal, beijando o nome, o nome dado na pia do batismo, repetido pela mãe, entregue ao marido como parte da escritura moral do casamento, e agora roubado a todas essas origens e posses para lhe ser mandado a ele, no fim duma folha de papel... Sofia! Sofia! Sofia! (ASSIS, 1998______. Quincas Borba. Rio de Janeiro; Belo Horizonte: Garnier, 1998., p. 58)

O conteúdo da carta equivale para Rubião a uma confissão de amor. Sofia está completamente rendida aos seus encantos. É uma "capitulação". Capitulação que se expressa na "assinatura", isto é, no prenome apenas; só na figura física de Sofia, na sua intimidade de pessoa, sem as mediações civis do nome de família ou de casada. "Verdadeira amiga era evidentemente uma metáfora". Isto é, era um substituto, um esconderijo para o sentimento real. Confirmação que "ela o amava, e que o amava muito" (ASSIS, 1998______. Quincas Borba. Rio de Janeiro; Belo Horizonte: Garnier, 1998., p. 23). A ternura do diminutivo "frutinhas" transmite-se a Sofia para compor junto com "candidez", "boa" e "generosa", palavras do mesmo campo semântico, uma alma também terna. Mas as considerações de Rubião não prevalecem sós, não são um absoluto. Intervém a palavra do narrador, do autor-criador do romance para nos alertar que elas estão motivadas pela "única força do instinto". Não há o cálculo frio de um julgamento inteligente. Além disso, a repetição final "Sofia! Sofia! Sofia!" já não poderia apontar para as primeiras manifestações da obsessão doentia de Rubião?

Demonstra-se, assim, voltando ao livro-guia depois desta longa excursão, que, de fato, Machado de Assis "é grande retórico [...]: Ele rejeita a evidência, promove o ambíguo, desconfia, sustenta a controvérsia. [...]. Usa com consciência os recursos formais de expressão, particularmente os mecanismos de qualificação retórica, em conformidade com interações e objetivos próprios de seu projeto literário" (MOSCA; PROENÇA, 2020MOSCA, Lineide do Lago Salvador; PROENÇA, Paulo Sérgio de. Revisitando Dom Casmurro: aspectos retóricos em conexão com a bíblia. Curitiba: Appris, 2020., p. 42).

Esse conceito mais genérico dos autores se concentra em Dom Casmurro, para o qual se volta agora o foco: "A narrativa, peça de acusação de advogado a que falta a prova material do ilícito, quer prescrever a condenação; nisso, o narrador está investido no papel sincrético de juiz, em causa na qual figura como acusação - e pode até figurar como réu" (MOSCA; PROENÇA, 2020MOSCA, Lineide do Lago Salvador; PROENÇA, Paulo Sérgio de. Revisitando Dom Casmurro: aspectos retóricos em conexão com a bíblia. Curitiba: Appris, 2020., p. 64). "É uma peça jurídica em embalagem romanesca, o que é coerente, porque narrado por um advogado" (MOSCA; PROENÇA, 2020MOSCA, Lineide do Lago Salvador; PROENÇA, Paulo Sérgio de. Revisitando Dom Casmurro: aspectos retóricos em conexão com a bíblia. Curitiba: Appris, 2020., p. 64). Em termos retóricos, é considerado como pertencente ao gênero judiciário da tradição aristotélica. É o livro III da Retórica que trata do gênero, também chamado de Forense. Entre as proposições do estagirita, uma parece ter sido seguida à risca por Bento Santiago. Nas questões envolvendo ataque e defesa, Aristóteles preconiza que aquele que acusa "deve situar seu ataque no epílogo, de modo a fixar-se melhor no espírito dos juízes" (ARISTÓTELES, 2011ARISTÓTELES. Retórica. Tradução, textos adicionais e notas de Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2011., p. 254).

Recordemos, então, o último capítulo de Dom Casmurro, para comprovar a força acusatória do fim. Ele reúne nesse capítulo os estigmas que celebrizaram para sempre a figura literária e quase física de Capitu aos olhos dos leitores. Nenhuma das mulheres com que se relacionou depois "tinha os olhos de ressaca, nem os de cigana oblíqua e dissimulada" (ASSIS, 1992ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro; Belo Horizonte: Garnier, 1992., p. 234). A traição não foi um incidente na vida de Capitu. Estava inscrita, por assim dizer, em seu código genético. Ele convoca, como se estivesse num tribunal de julgamento, o leitor-jurado a concordar com ele: "se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma [a Capitu da Praia da Glória] estava dentro da outra [a Capitu de Matacavalos], como a fruta dentro da casca" (ASSIS, 1992ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro; Belo Horizonte: Garnier, 1992. p. 234). Finalmente, o terceiro argumento inclui seu maior amigo, Escobar. É o argumento final, é a "coisa que fica", a "suma das sumas", o "resto dos restos": "a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me... A terra lhes seja leve! Vamos à História dos subúrbios" (ASSIS, 1992ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro; Belo Horizonte: Garnier, 1992., p. 234).

Essas palavras finais, em seu sentido frio, formal e literal, parecem dizer que a suposta traição de Capitu é página virada, passou a ser irrelevante, tratar-se-á agora de escrever a História dos subúrbios, projeto esboçado no capítulo II. Mas, por trás do sentido estrito, há muito mais. As reticências e a falsa pretensão de mudar de assunto, ao contrário, ressoam fundamente no espírito do leitor-jurado. Mesmo porque ele sabe que Bentinho quase matou o próprio filho, julgado fruto espúrio por nascer da relação de Capitu e Escobar.

E por que Bentinho pode também figurar como réu? Porque ele condena Capitu sem apresentar evidências de provas e sem lhe conceder a palavra. Essa duplicidade ou dubiedade é destacada por Rosalice Pinto em seu artigo no livro segundo: "Os autores, com esse livro, procuram fazer uma 'leitura retórica da obra machadiana', salientando o caráter controverso, dúbio, que lhe é característico e que permeou várias discussões teóricas" (PINTO, 2021PINTO, Rosalice. Dom Casmurro e suas estratégias retóricas: percurso interpretativo de (des)dicotomização. In: CHAUVIN, Jean Pierre (Org.). Estudos sobre Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Luva Editora , 2021., p. 22).

Machado de Assis foi um mestre em arquitetar a dúvida que, por sua vez, fomenta a polêmica, como salientam Mosca e Proença: "Capitu é acusada, mas a prova não é apresentada. Daí a dúvida que marca a interpretação do livro. Afinal, houve ou não traição? Essa dúvida alimenta a polêmica interpretativa. E não restam dúvidas: o âmbito da polêmica é o espaço vital da retórica" (MOSCA; PROENÇA, 2020MOSCA, Lineide do Lago Salvador; PROENÇA, Paulo Sérgio de. Revisitando Dom Casmurro: aspectos retóricos em conexão com a bíblia. Curitiba: Appris, 2020., p. 43-44).

E é justamente disso, da polêmica, que trata o artigo de Lucas Nascimento no livro segundo. Ela seria fundamental para o romance, "guia a construção e a interpretação de Dom Casmurro" (NASCIMENTO, 2021NASCIMENTO, Lucas. A flor mais bela: um elogio à polêmica em Dom Casmurro. In: CHAUVIN, Jean Pierre (Org.). Estudos sobre Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Luva Editora , 2021. , p. 106). E também ela - a polêmica - estava selada com o timbre da duplicidade, pois "enquanto Casmurro trava uma polêmica aberta com Capitu, nas palavras desta uma 'injúria', Machado de Assis, como autor da obra, trava uma polêmica velada com seu narrador-personagem" (NASCIMENTO, 2021NASCIMENTO, Lucas. A flor mais bela: um elogio à polêmica em Dom Casmurro. In: CHAUVIN, Jean Pierre (Org.). Estudos sobre Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Luva Editora , 2021. , p. 114). Na polêmica aberta, "não se ataca simplesmente uma tese a fim de mostrar seu equívoco, o projeto de desqualificação ataca a pessoa" (NASCIMENTO, 2021NASCIMENTO, Lucas. A flor mais bela: um elogio à polêmica em Dom Casmurro. In: CHAUVIN, Jean Pierre (Org.). Estudos sobre Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Luva Editora , 2021. , p. 116). O ataque à pessoa desqualifica seus argumentos. Na polêmica velada entre autor e personagem, o objetivo visado é a crítica aos valores de uma sociedade patriarcal, representada na figura de Bentinho: "homem, branco, cristão-católico, rico, advogado" (NASCIMENTO, 2021NASCIMENTO, Lucas. A flor mais bela: um elogio à polêmica em Dom Casmurro. In: CHAUVIN, Jean Pierre (Org.). Estudos sobre Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Luva Editora , 2021. , p. 118).

Nascimento repete quase com os mesmos termos o argumento de Proença e Mosca na caracterização de Bentinho: "o ethos pré-discursivo é decisivo para a persuasão e mostra a condição social de Bento Santiago: homem, branco, cristão, rico, advogado" (MOSCA; PROENÇA, 2020MOSCA, Lineide do Lago Salvador; PROENÇA, Paulo Sérgio de. Revisitando Dom Casmurro: aspectos retóricos em conexão com a bíblia. Curitiba: Appris, 2020., p. 142). E são ainda esses valores, segundo eles, que irão nortear a análise da obra por parte da primeira geração de críticos: "essa é a perspectiva de Augusto Meyer, Lúcia Miguel Pereira, Alfredo Pujol e Astrojildo Pereira. De forma geral, a linha de interpretação dessa primeira fase punha Capitu no banco dos réus, fiando-se no relato de Bento Santiago" (MOSCA; PROENÇA, 2020MOSCA, Lineide do Lago Salvador; PROENÇA, Paulo Sérgio de. Revisitando Dom Casmurro: aspectos retóricos em conexão com a bíblia. Curitiba: Appris, 2020., p. 146).

Essa linha interpretativa começaria a mudar a partir de 1960, com Helen Caldwell e seu Otelo brasileiro de Machado de Assis, "que pergunta se, de fato, Capitu era culpada; é preciso considerar que a suposta adúltera não tem direito à palavra" (MOSCA; PROENÇA, 2020MOSCA, Lineide do Lago Salvador; PROENÇA, Paulo Sérgio de. Revisitando Dom Casmurro: aspectos retóricos em conexão com a bíblia. Curitiba: Appris, 2020., p. 149). Ela "desviou-se das trilhas predominantes de interpretação da hegemonia crítica então vigente, sugerindo que a forma correta de ler o drama não deve ser buscada na voz de Bento" (MOSCA; PROENÇA, 2020MOSCA, Lineide do Lago Salvador; PROENÇA, Paulo Sérgio de. Revisitando Dom Casmurro: aspectos retóricos em conexão com a bíblia. Curitiba: Appris, 2020., p. 149).

E, de fato, a análise de Caldwell inicia outra chave argumentativa de Dom Casmurro:

A "narrativa" de Santiago não passa de uma longa defesa em causa própria. [...] E, sagaz advogado que é, deixa indeterminado o caráter de cada personagem do caso que possa testemunhar contra ele, suprime evidências, impõe adiamentos até que as testemunhas morram. O argumento funciona da seguinte forma: ele, Santiago, não é ciumento sem causa; ele não executou uma vingança injusta; Capitu é culpada [...] Ele fundamenta o caso na Culpa de Capitu. O capítulo final é a última palavra para o júri: Capitu é dissimulada desde a semente (CALDWELL, 2002CALDWELL, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis: um estudo de Dom Casmurro. Tradução de Fábio Ferreira de Melo. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002., p. 99-100).

Por fim, a abordagem adicional bíblica, presente em Revisitando Dom Casmurro - a "conexão com a bíblia", como está no subtítulo -, nos mostra com o que logo o leitor se depara ao se debruçar sobre a obra machadiana - uma vasta cultura bíblica: "As ocorrências do uso da bíblia são representativas do prestígio que essa fonte tinha para o escritor brasileiro. Elas figuram, desde muito cedo, na vida literária de Machado de Assis e se fazem presentes praticamente em todos os gêneros por ele praticados" (MOSCA; PROENÇA, 2020MOSCA, Lineide do Lago Salvador; PROENÇA, Paulo Sérgio de. Revisitando Dom Casmurro: aspectos retóricos em conexão com a bíblia. Curitiba: Appris, 2020., p. 97).

Ocorrências que não se revestem de fervor religioso: "Faltam em Machado os arroubos de espiritualidade transcendente e o abandono voluntário à dimensão divina. Espelha-se, nas páginas machadianas, a religiosidade burocrática, peça de um jogo calculado cujas regras são as da formalidade" (MOSCA; PROENÇA, 2020MOSCA, Lineide do Lago Salvador; PROENÇA, Paulo Sérgio de. Revisitando Dom Casmurro: aspectos retóricos em conexão com a bíblia. Curitiba: Appris, 2020., p. 116-117). E, portanto, estão longe de confortar as angústias dos personagens: "Em Machado, o sofrimento humano desafia a dimensão divina, que é indiferente à angústia de cá" (MOSCA; PROENÇA, 2020MOSCA, Lineide do Lago Salvador; PROENÇA, Paulo Sérgio de. Revisitando Dom Casmurro: aspectos retóricos em conexão com a bíblia. Curitiba: Appris, 2020., p. 116). Os autores também dão como exemplo o final de Quincas Borba: "O Cruzeiro, que a linda Sofia não quis fitar, como lhe pedia Rubião, está assaz alto para não discernir os risos e as lágrimas dos homens" (ASSIS, 1998______. Quincas Borba. Rio de Janeiro; Belo Horizonte: Garnier, 1998., p. 277).

As viravoltas interpretativas de Dom Casmurro não cessarão, por certo. Como toda grande obra que se tornou clássica, permanecerá imune ao tempo, isto é, o tempo não apagará a polêmica. Os dois livros aqui apresentados asseguram isso. E, como também se disse, não há senão que os apresentar de forma conjunta. O "livro segundo" é decorrência do "livro-guia", como os denominei. O vínculo entre eles é claramente reivindicado. Vínculo temático que se solidifica pelo preito à figura da professora Lineide do Lago Salvador Mosca.

Referências

  • ARISTÓTELES. Retórica. Tradução, textos adicionais e notas de Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2011.
  • ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro; Belo Horizonte: Garnier, 1992.
  • ______. Quincas Borba. Rio de Janeiro; Belo Horizonte: Garnier, 1998.
  • ______. Várias histórias. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
  • ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. v. 4.
  • ______. Papéis avulsos. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.
  • CAMPATO JR, João Adalberto. Retórica e crítica retórica em Dom Casmurro, de Machado de Assis. In: CHAUVIN, Jean Pierre (Org.). Estudos sobre Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Luva Editora, 2021.
  • CALDWELL, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis: um estudo de Dom Casmurro. Tradução de Fábio Ferreira de Melo. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.
  • CHAUVIN, Jean Pierre (Org.). Estudos sobre Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Luva Editora , 2021.
  • MOSCA, Lineide do Lago Salvador; PROENÇA, Paulo Sérgio de. Revisitando Dom Casmurro: aspectos retóricos em conexão com a bíblia. Curitiba: Appris, 2020.
  • NASCIMENTO, Lucas. A flor mais bela: um elogio à polêmica em Dom Casmurro. In: CHAUVIN, Jean Pierre (Org.). Estudos sobre Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Luva Editora , 2021.
  • PINTO, Rosalice. Dom Casmurro e suas estratégias retóricas: percurso interpretativo de (des)dicotomização. In: CHAUVIN, Jean Pierre (Org.). Estudos sobre Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Luva Editora , 2021.
  • SOARES, Maria Nazaré Lins. Machado de Assis e a análise da expressão. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1968.
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    O encontro de lançamento de Revisitando Dom Casmurro pode ser visto em https://www.youtube.com/watch?v=CWHlew15Has&t=64s.
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    Eis os artigos: Rosalice Pinto, "Dom Casmurro e suas estratégias retóricas: percurso interpretativo de (des)dicotomização"; Jean Pierre Chauvin, "Autoelogio e censura em Dom Casmurro"; João Adalberto Campato Jr, "Retórica e crítica retórica em Dom Casmurro, de Machado de Assis"; Lucas Nascimento, "A flor mais bela: um elogio à polêmica em Dom Casmurro"; Paulo Sérgio de Proença, "Palavra divina e interesses humanos: considerações sobre a presença da bíblia em Dom Casmurro"; Isaar Soares de Carvalho, "Considerações sobre o contexto histórico, cultural, ideológico e político de Dom Casmurro".

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    12 Dez 2022
  • Aceito
    01 Fev 2023
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