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TRÊS CARTAS DE MÁRIO DE ALENCAR A JOSÉ VERÍSSIMO E O LEGADO MACHADIANO DAS FOLHAS VELHAS

THREE LETTERS FROM MÁRIO DE ALENCAR TO JOSÉ VERÍSSIMO AND THE MACHADIAN LEGACY OF OLD SHEETS OF PAPER

Resumo

Neste artigo, apresentamos e publicamos a transcrição e as cópias digitalizadas de três cartas enviadas por Mário de Alencar a José Veríssimo, logo após a morte de Machado de Assis. Nas missivas, contextualiza-se a transmissão do legado machadiano à Academia Brasileira de Letras em 1908, quando parte de seu espólio intelectual chegou à instituição. As cartas revelam especificidades do material e documentos hoje perdidos.

Palavras-chave:
Mário de Alencar; José Veríssimo; epistolografia; espólio intelectual

Abstract

In this article, we present and publish the transcription and the digitalized copies of three letters written by Mário de Alencar to José Veríssimo, right after Machado de Assis's death. These letters contextualize the transmission of the Machadian legacy to the Brazilian Academy of Letters in 1908, when some of his intellectual estate was received by the institution. The letters reveal particularities of the material and documents currently missing.

Keywords:
Mário de Alencar; José Veríssimo; epistolography; intellectual estate

Dentre as folhas velhas de e sobre Machado de Assis, muita coisa ainda está por ser revelada, muita mais ficou esquecida. Josué Montello (1961MONTELLO, Josué. Um diálogo epistolar sobre Machado de Assis. In: ______. O presidente Machado de Assis. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1961. p. 229-240.), em artigo intitulado "Um diálogo epistolar sobre Machado de Assis", comentava a correspondência entre José Veríssimo e Mário de Alencar, logo após a morte do Bruxo do Cosme Velho. O período imediatamente posterior ao dia 29 de setembro de 1908 foi marcado por sessões acadêmicas em louvor e de saudade do mestre e amigo, além de outras iniciativas para homenageá-lo e providências ligadas ao seu legado póstumo. Dentre essas providências, estava a transmissão para a Academia Brasileira de Letras (ABL) de parte do espólio machadiano, assunto que os dois amigos e acadêmicos abordaram em suas cartas.

José Veríssimo, um dos primeiros críticos de relevo na cena literária brasileira, foi também amigo próximo de Machado, com quem se correspondeu por mais de 25 anos. Tendo sido diretor da Revista Brasileira em uma de suas fases, aproximou-se mais do amigo e cooperou para a formação de uma sociabilidade literária nascida no escritório de redação de seu periódico, grupo que mais tarde formaria a ABL.

Já Mário de Alencar e Machado de Assis tornaram-se correspondentes e amigos íntimos nos últimos anos de vida do autor de Dom Casmurro. Apesar dos 33 anos de diferença de idade entre ambos, eles compartilhavam confidências sobre doenças, angústias e aflições. Mário esteve ao lado do Mestre em vários episódios de enfermidade, indicando, inclusive, receitas de remédios homeopáticos, e foi um dos que acompanharam de perto o drama dos últimos dias de vida de Machado.

Machado, por sua vez, reconhece a amizade de Mário em várias ocasiões, como na carta a Magalhães de Azeredo, na qual afirma que Mário é "um dos [amigos] que me tem valido nestes dias de solidão e de velhice" (ASSIS, 1969ASSIS, Machado de. Correspondência de Machado de Assis com Magalhães de Azeredo. Ed. Carmelo Virgillo. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1969., p. 288).

Esse relacionamento foi importante também por outros motivos. Pela proximidade e intimidade que tinham, Mário tornou-se um dos principais responsáveis por organizar o testamento literário do autor.

Machado havia deixado instruções, tanto em cartas quanto em seu testamento, sobre o destino de seus papéis e de alguns objetos valiosos para si. Em carta do dia 21 de abril de 1908, o autor de Helena dá permissão a José Veríssimo para recolher e publicar a sua correspondência (ASSIS, 2015______. Correspondência de Machado de Assis. Tomo V - 1905-1908. Org. Sergio Paulo Rouanet, Irene Moutinho e Sílvia Eleutério. Rio de Janeiro: ABL, 2015., p. 324). O testamento machadiano outorga à sobrinha-neta Laura (filha de Sara Braga da Costa e do Major Bonifácio Gomes da Costa, mencionado na carta escrita por Mário no dia 18 de dezembro de 1908, publicada neste dossiê) a herança universal de seus bens (FRANCO, 2009FRANCO, Gustavo H. B. (Org.). A economia em Machado de Assis: o olhar oblíquo do acionista. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009., p. 249-250). Contudo, segundo consta da ata da sessão acadêmica de 3 de outubro de 1908 (HENRIQUES, 2001HENRIQUES, Claudio Cezar (Org.). Atas da Academia Brasileira de Letras: presidência Machado de Assis (1896-1908). Rio de Janeiro: ABL , 2001., p. 177), pouco antes de morrer, o autor teria declarado verbalmente a intenção de doar parte de sua herança intelectual para a ABL.

Morto Machado, parte de seus papéis e livros foram doados para a Academia, processo que podemos acompanhar pelas atas das reuniões, como a de 30 de novembro de 1908:

O Sr. José Veríssimo pediu a palavra para comunicar o desempenho da comissão que a ele e ao Sr. Mário de Alencar foi incumbida pela Academia para entender-se com a família do Major Bonifácio da Costa, legatária de Machado de Assis. Diz que receberam, e já fizeram transportar para a Academia, papéis manuscritos, originais, e de correspondências, retratos com dedicatórias, pequenos quadros oferecidos por amigos de Machado de Assis, a secretária e cadeira que lhe serviram desde 1874 e várias obras com dedicatórias. (HENRIQUES, 2001HENRIQUES, Claudio Cezar (Org.). Atas da Academia Brasileira de Letras: presidência Machado de Assis (1896-1908). Rio de Janeiro: ABL , 2001., p. 192)

Além desses documentos, cartas, como as que reproduzimos aqui, trocadas entre Mário e José, de 18 e 24 de dezembro de 1908 e de 30 de agosto de 1909, ilustram como foi o processo de transferência do espólio machadiano para a Academia e como eles trabalharam na organização desses papéis. As três cartas, escritas por Mário e enviadas a Veríssimo, apesar de já parcialmente publicadas e comentadas por Josué Montello (1961MONTELLO, Josué. Um diálogo epistolar sobre Machado de Assis. In: ______. O presidente Machado de Assis. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1961. p. 229-240.), estavam esquecidas no arquivo pessoal do filho de José de Alencar, guardado na ABL. Ambos os acadêmicos foram os responsáveis por acompanhar o processo de transmissão do espólio e por encetar uma série de iniciativas de homenagens póstumas ao autor, ficando a cargo de Mário a organização e a catalogação dos papéis manuscritos doados.

As folhas velhas dessas três cartas selecionadas trazem o tom amargo da voz do amigo enlutado, que não cessa de repassar a cena do desenlace do escritor ("Tenho presente a meus olhos o quadro mortuário, vejo-o naquela modesta cama em que o vi os três últimos dias, reproduzem-se os seus gestos, as suas palavras; e tudo me fica na visão como uma sombra que escurece o espetáculo da vida") e de sofrer fisicamente com a perda recente ("Quando na cidade eu me ocupava em compor os papéis dele, havia em mim um constrangimento espiritual [...]. Fisicamente também eu me sentia mal, porque até aquele cheiro característico da moléstia da boca reaparecia insistentemente. Trazer os papéis para cá era continuar as sensações aborrecidas"), como lemos na carta de 24 de dezembro de 1908.

Além disso, elas ajudam a traçar uma história do que foi doado e do que se perdeu ao longo do tempo. Por exemplo, na carta de 18 de dezembro de 1908, Mário escreve sobre três folhas do manuscrito de Dom Casmurro, as quais, junto com outras obras citadas, tais como o manuscrito de um romance histórico, o manuscrito de um conto dialogado e notas lexicográficas, estão desaparecidas.

Como notou Josué Montello, ao comentar o diálogo epistolar entre os acadêmicos, "[...] não obstante o seu [de Mário de Alencar] zelo e o seu registro, muitos papéis do mestre saíram do Arquivo da Academia, sem encontrar até hoje o caminho do regresso nem deixar o mais vago indício de seu paradeiro" (MONTELLO, 1961MONTELLO, Josué. Um diálogo epistolar sobre Machado de Assis. In: ______. O presidente Machado de Assis. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1961. p. 229-240., p. 233).

Contudo, para além de apontar para o que se perdeu desse inestimável legado, as cartas mostram também momentos de uma faceta desconhecida do autor, reputado como alguém pouco afeito a declarações sobre sua obra. Na carta de 24 de dezembro de 1908 - na qual ainda ficamos sabendo mais informações sobre as folhas perdidas do manuscrito de Dom Casmurro -, Mário revela que Machado lhe teria contado algo de seu processo de composição ficcional:

A folha-frontispício do Dom Casmurro, que achei manuscrita, traz como epígrafe aquela citação de Diderot que vem como epígrafe do Várias histórias. Conjecturo que o primeiro plano do Dom Casmurro foi fazê-lo conto; o desenvolvimento em romance teria vindo com a composição do trabalho. Esse foi talvez o processo de todos os romances de Machado. Ele não os delineava à maneira de Flaubert. O próprio assunto ia dando a matéria. Uma vez que eu lhe falei da dificuldade de compor um romance, disse-me ele que o principal, tendo-se um assunto, era pôr mãos à obra: o mais viria, a inspiração, os episódios, e o resto; e que a ele muita vez lhe acontecera achar no meio e no fim de um trabalho ideias em que não cogitara ao começá-lo.

Outro dado relevante: o diminuto número de cartas que Mário menciona, também na missiva do dia 24 de dezembro de 1908, faz supor que muitos manuscritos estivessem dispersos, já que hoje sabemos que esse número não era pequeno, haja vista os cinco volumes da correspondência machadiana publicados pela ABL (ASSIS, 2008______. Correspondência de Machado de Assis. Tomo I - 1860-1869. Org. Sergio Paulo Rouanet, Irene Moutinho e Sílvia Eleutério. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional; ABL, 2008.; 2009______. Correspondência de Machado de Assis. Tomo II - 1870-1889. Org. Sergio Paulo Rouanet, Irene Moutinho e Sílvia Eleutério. Rio de Janeiro: ABL, 2009.; 2011______. Correspondência de Machado de Assis. Tomo III - 1890-1900. Org. Sergio Paulo Rouanet, Irene Moutinho e Sílvia Eleutério. Rio de Janeiro: ABL, 2011.; 2012______. Correspondência de Machado de Assis. Tomo IV - 1901-1904. Org. Sergio Paulo Rouanet, Irene Moutinho e Sílvia Eleutério. Rio de Janeiro: ABL, 2012.; 2015______. Correspondência de Machado de Assis. Tomo V - 1905-1908. Org. Sergio Paulo Rouanet, Irene Moutinho e Sílvia Eleutério. Rio de Janeiro: ABL, 2015.). Também é curioso que Mário de Alencar, embora tendo citado o manuscrito de O Almada, nada tenha dito sobre a existência dos manuscritos dos romances Esaú e Jacó e Memorial de Aires, hoje sob a guarda da Academia, levando-nos a crer que a história do legado machadiano ainda tem lacunas a serem preenchidas e episódios a serem explicados, com possíveis novas revelações.

Aguardemos outras folhas velhas.

***

Em tempo: foi feita uma transcrição linear da integralidade das três cartas selecionadas, com a grafia atualizada e o desenvolvimento de abreviaturas. Um agradecimento especial cabe à arquivista Juliana Amorim e à chefe do arquivo, Maria de Oliveira, ambas do Arquivo Múcio Leão, da ABL, por terem disponibilizado e autorizado a reprodução dos documentos aqui mencionados.

CARTA DE 18 DE DEZEMBRO DE 1908

Meu caro Amigo,

O Moreira Guimarães, oficial de Gabinete do Ministro do Interior, respondendo à minha carta relativa à publicação do In Memoriam,1 1 Projeto de publicação em homenagem póstuma a Machado de Assis, consistia em uma recolha de notícias e artigos publicados sobre o autor e sobre sua morte. Organizado por José Veríssimo e revisado por Mário de Alencar, o trabalho perdeu-se no incêndio ocorrido na Tipografia Nacional em 1911. As provas tipográficas, que estavam com Veríssimo e que se teriam salvado do sinistro, estão hoje desaparecidas. disse-me que ia providenciar sobre o aviso à Imprensa. A viagem que teve de fazer a São Paulo terá demorado a ação dele, mas fio que tudo fará e acertado. Peço-lhe que o procure na Secretaria do Interior. Ele que o conhece e admira, há de recebê-lo com muita gentileza.

Mando o pacote dos originais para o Garnier, endereçado ao Senhor.

Já tenho aqui as duas latas de papéis do nosso querido Machado de Assis. Examinei tudo e pus tudo em ordem. Trabalhos dele, vieram: manuscrito (talvez incompleto) do poema herói-cômico O Almada;2 2 Poema publicado postumamente, em 1910, no livro Outras relíquias. Alguns trechos saíram nos jornais e em livro durante a vida de Machado, com diferentes títulos: Revista brasileira (15 de outubro de 1879, "A assuada"), A estação (15 de agosto de 1885, "Trecho de um poema inédito"), Poesias completas ("Velho fragmento", 1901). O manuscrito, incompleto, está atualmente no Arquivo Múcio Leão da ABL. manuscrito de um romance histórico não acabado,3 3 Manuscrito hoje perdido, até onde se tem notícia. e que pela letra parece muito antigo; manuscrito de um conto dialogado4 4 Manuscrito hoje perdido, até onde se tem notícia. também antigo; manuscrito (cópia) de uma tradução do Suplício de uma mulher,5 5 O manuscrito não autógrafo encontra-se atualmente no Arquivo Múcio Leão da ABL. de Émile Girardin e Alexandre Dumas Filho; manuscrito de uma tradução (História francesa);6 6 Manuscrito hoje perdido, até onde se tem notícia. Notas lexicográficas;7 7 As notas aqui referidas eram notas de leitura efetivadas por Machado, com cópias de citações de excertos de obras lidas, recobrindo em sua grande parte expressões linguísticas retiradas dos clássicos portugueses. Com o manuscrito hoje perdido, elas foram publicadas pela primeira vez por Mário de Alencar em duas partes na Revista da Academia, no número 1, ano I, de julho de 1910, e no número 2, ano II, de janeiro de 1911. três folhas do manuscrito de Dom Casmurro;8 8 Manuscrito hoje perdido, até onde se tem notícia. algumas folhas soltas de vários trabalhos; retalhos de jornais:9 9 Parte desses retalhos de jornais ainda se encontra no Arquivo Múcio Leão da ABL, testemunhando o gesto autoral de guardar e arquivar sua própria produção. Destaca-se que os referidos retalhos de A semana, encontrados por Mário, possivelmente serviram de base para sua recolha póstuma das crônicas machadianas, intitulada A semana e publicada em 1914. parte dos folhetins A Semana, do Cruzeiro; 4 contos, não publicados em livro: Viagem à roda de mim mesmo, , Identidade; 1 Balas de estalo; Artigo sobre a literatura brasileira, publicado n'O Novo Mundo; 1 Semana Literária, carta sobre a morte do Eça de Queirós; Guilherme Malta (carta ao Conselheiro Lopes Netto); artigo sobre Horas Sagradas; sobre o Secretário d'El Rey; carta a José Tomás da Porciúncula, sobre Varela; um soneto em francês Réfus, e finalmente A Semana, da Gazeta de 1892 a 1897, quase completa. Separei-a pelos anos, e só falta colar as tiras; notei falta de alguns meses; talvez sejam as crônicas já publicadas nas Páginas recolhidas.

Presumo que ainda há muita coisa em casa do Major, os manuscritos do Dom Casmurro e de outras obras, e muito retalho de imprensa.

Da correspondência também creio que não veio tudo: coligi e separei as cartas; do Eça encontrei apenas uma, e deveria haver muitas, pois suponho que Machado e ele se corresponderam durante anos. O mais que veio consta de retalhos de jornais (quase que toda a sua Revista Literária), sobre vários assuntos, e de crítica à obra dele.10 10 Documentos hoje perdidos, até onde se tem notícia.

Se tivéssemos a Revista da Academia,11 11 Projeto que ficou em gestação por vários anos, a Revista da Academia teve seu primeiro número lançado em 1910, por iniciativa de Mário de Alencar. poderíamos dar alguns números interessantíssimos com esses vários trabalhos.

Veio mais: manuscrito do Casimiro de Abreu, Camões e Jaú;12 12 Manuscrito hoje perdido, até onde se tem notícia. coleção em manuscrito de poesias de Pedro Luiz, prontas para o prelo.13 13 Manuscrito hoje perdido, até onde se tem notícia. É outra publicação que faria valer a nossa Revista, além das cartas de mortos, como Artur de Oliveira, Joaquim Serra, Gentil Homem, Henrique Muzzio, etc..

Empacotei todos os papéis e aqui os deixo em casa; não os levo para a Tijuca, porque já fica feito o trabalho mais urgente que era o de reunir e classificar os papéis.

O que falta fazer pede maior aplicação do espírito, e eu não posso, não quero usá-lo agora para nada. Recomendam-me que me embruteça, vou me embrutecer.

Sigo depois de amanhã para a chácara, e aqui lhe mando o meu abraço de despedida. Peço que me recomende à sua Família.

Adeus. Seu amigo e admirador

Mário de Alencar

Rio, 18-XII-1908

CARTA DE 24 DE DEZEMBRO DE 1908

Tijuca, 24 de dezembro de 1908

Meu caro Amigo,

Recebi ontem as suas cartas de 21 e 22. Deram-me prazer grande, ainda que me avivaram saudades do nosso Machado. Não só porque falavam dele, como porque nos outros anos e no princípio deste aqui me vinham as suas carinhosas cartas, que há pouco tempo reli, depois de reler as que eu de cá lhe havia escrito. A sensação de sua falta não tem diminuído, parece-me ao contrário que vai aumentando com o decorrer dos dias. Tenho presente a meus olhos o quadro mortuário, vejo-o naquela modesta cama em que o vi os três últimos dias, reproduzem-se os seus gestos, as suas palavras; e tudo me fica na visão como uma sombra que escurece o espetáculo da vida. Presumo que é isso que me tem feito mal. Quando na cidade eu me ocupava em compor os papéis dele, havia em mim um constrangimento espiritual que em certos momentos se tornava intolerável; não me distraía então a natural curiosidade do que podia encontrar ali de precioso. Fisicamente também eu me sentia mal, porque até aquele cheiro característico da moléstia da boca reaparecia insistentemente. Trazer os papéis para cá era continuar as sensações aborrecidas, e eu desisti do meu propósito de completar em breve tempo a classificação do arquivo. Surpreendeu-me, como lhe disse, o pequeno número de cartas recebidas por ele durante cinquenta anos pelo menos, a contar dos seus vinte e nove de idade, tempo em que ele começou a ser mais largamente conhecido como escritor aqui e em Portugal. Ele guardava tudo: cartas, cartões, convites impressos, tudo. Dos jornais não perdia coisa nenhuma, ao menos dos jornais que lia habitualmente: Jornal do Commercio, Gazeta e nos últimos anos o Correio da manhã. Imagine que achei entre os retalhos as Consultas do Cândido de Figueiredo,14 14 Documentos hoje perdidos, até onde se tem notícia. as cartas filológicas do Mário Barreto.15 15 Documentos hoje perdidos, até onde se tem notícia. Que podia aprender nelas o nosso Machado? As cartas do Artur de Oliveira são insignificantes, meros recados; uma porém é curiosa, pedindo a Machado a restituição de uns livros emprestados e censurando o mau costume dos que se esquecem de devolver os livros. Não me pareceu de homem de espírito.

A folha-frontispício do Dom Casmurro, que achei manuscrita, traz como epígrafe aquela citação de Diderot que vem como epígrafe do Várias histórias.16 16 A citação de Diderot, incluída em Várias histórias, livro publicado em 1896, faz referência ao gênero dos textos que ali vieram à luz, o conto: "Mon ami, faisons toujours des contes... Le temps se passe, et le conte de la vie s'achève, sans qu'on s'en aperçoive" ["Meu amigo, façamos sempre contos... O tempo passa, e o conto da vida acaba, sem que se nos apercebamos", tradução nossa]. Conjecturo que o primeiro plano do Dom Casmurro foi fazê-lo conto; o desenvolvimento em romance teria vindo com a composição do trabalho. Esse foi talvez o processo de todos os romances de Machado. Ele não os delineava à maneira de Flaubert. O próprio assunto ia dando a matéria. Uma vez que eu lhe falei da dificuldade de compor um romance, disse-me ele que o principal, tendo-se um assunto, era pôr mãos à obra: o mais viria, a inspiração, os episódios, e o resto; e que a ele muita vez lhe acontecera achar no meio e no fim de um trabalho ideias em que não cogitara ao começá-lo.

Nas gavetas da secretária dele julgo que haverá papéis. Quando tiver tempo, peço-lhe que vá à Academia ver o que ali ficou.

O aviso à Imprensa Nacional relativo às impressões para a Academia talvez tenha sido expedido pelo Ministério da Fazenda. Rodrigo17 17 Rodrigo Octavio, acadêmico próximo a Machado, também participou do episódio da transmissão do legado à ABL. Ao longo de sua ativa atuação na Academia, foi primeiro-secretário, fundou a biblioteca que originou a atual Biblioteca Lúcio de Mendonça, cuidou da comissão de bibliografia e participou da Revista da Academia. deve saber disso e ter a data do aviso. A minha primeira ideia é que tivesse sido do Ministério do Interior e por isso escrevi ao Moreira Guimarães. Em todo caso este rapaz pode ser-nos útil, porque é prestimoso e delicado. Folgo de que ele o houvesse recebido com a gentileza que eu esperava dele.

Ainda não lhe falei de mim, o que é bom sinal. Efetivamente parece que vou melhor deste corpo ingrato. Não tenho sentido o meu reumatismo da espádua; tenho digestões mais fáceis, e não me tem afligido a ânsia que era tão frequente na cidade. Como bem, durmo bem, e comecei a experimentar um sistema de ginástica dinamarquesa de Müller (O meu sistema).18 18 O livro de J. P. Müller, publicado em 1904, prometia ganhos excepcionais em saúde com uma rotina diária de exercícios de 15 minutos. Foi um sucesso mundial no século XX e ganhou tradução em vários idiomas. Não tenho lido, nem escrito nada. Estas são as primeiras linhas que escrevo. Se não fosse o mal do espírito, que é como a sensação do horizonte fechado, a ilusão de saúde era completa.

E o Senhor? E os seus todos? Desejo-lhes todo o bem que merecem e é muito. Baby19 19 Apelido da esposa de Mário, Helena Cochrane de Afonseca. e os meus agradecem-lhe os cumprimentos e recomendam-se ao Senhor e à sua Família.

Eu abraço-o com saudade.

Seu amigo e admirador

Mário de Alencar

Tijuca, 24-XII-1908

CARTA DE 30 DE AGOSTO DE 1909

Meu caro Amigo,

Recebi carta do Doutor Fred Vasconcelos a respeito da colocação da placa na casa em que residiu Machado de Assis.20 20 Mais uma das homenagens póstumas da ABL encabeçadas por Mário e Veríssimo, no aniversário de um ano da morte do autor foi colocada uma placa na casa em que ele residiu por quase 24 anos no bairro do Cosme Velho. Os proprietários "acedem com grande satisfação aos nobres desejos da Academia".

Machado de Assis residiu ali de 1884-1908, 24 anos pois, incompletos. Brás Cubas, Papéis Avulsos e Histórias sem data foram escritos antes de 1881; sendo das obras perfeitas do grande escritor, convém fazer uma pequena modificação nas palavras da lápide: em vez de as suas obras perfeitas, deve-se dizer muitas das suas obras perfeitas, com o que não ficam excluídas aquelas.

O atual inquilino da casa é o Doutor José Mariano Filho, que já foi prevenido pelos proprietários e acolheu a notícia com prazer.

Achei entre os papéis do Machado uma coleção de poesias autógrafas de José Bonifácio, o moço,21 21 Documentos hoje perdidos, até onde se tem notícia. e as poesias de Dias da Rocha22 22 Documentos hoje perdidos, até onde se tem notícia. em provas de impressão. Que excessiva reserva tinha o nosso saudoso amigo! Mais de uma vez na Academia ou na Garnier ouvi em presença dele falar-se num e noutro poeta, manifestando-se o desejo e a necessidade de coligir-lhes as produções esparsas. Entretanto ele nunca revelou a posse desses trabalhos, nunca se referiu à remessa que alguém lhe tivesse feito. O mesmo silêncio em relação às poesias de Pedro Luís,23 23 Documentos hoje perdidos, até onde se tem notícia. que uma filha lhe enviou em 1890 ordenadas para a impressão pedindo-lhe um juízo crítico.

Adeus. Recomendações de Baby e minhas à sua Família e um abraço do seu

de coração

Mário de Alencar

Rio, 30 de Agosto de 1909


Cópias digitalizadas da carta de 18 de dezembro de 1908





Cópias digitalizadas da carta de 24 de dezembro de 1908





Cópias digitalizadas da carta de 30 de agosto de 1909


Referências

  • ASSIS, Machado de. Correspondência de Machado de Assis com Magalhães de Azeredo Ed. Carmelo Virgillo. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1969.
  • ______. Correspondência de Machado de Assis. Tomo I - 1860-1869 Org. Sergio Paulo Rouanet, Irene Moutinho e Sílvia Eleutério. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional; ABL, 2008.
  • ______. Correspondência de Machado de Assis. Tomo II - 1870-1889 Org. Sergio Paulo Rouanet, Irene Moutinho e Sílvia Eleutério. Rio de Janeiro: ABL, 2009.
  • ______. Correspondência de Machado de Assis. Tomo III - 1890-1900 Org. Sergio Paulo Rouanet, Irene Moutinho e Sílvia Eleutério. Rio de Janeiro: ABL, 2011.
  • ______. Correspondência de Machado de Assis. Tomo IV - 1901-1904 Org. Sergio Paulo Rouanet, Irene Moutinho e Sílvia Eleutério. Rio de Janeiro: ABL, 2012.
  • ______. Correspondência de Machado de Assis. Tomo V - 1905-1908 Org. Sergio Paulo Rouanet, Irene Moutinho e Sílvia Eleutério. Rio de Janeiro: ABL, 2015.
  • FRANCO, Gustavo H. B. (Org.). A economia em Machado de Assis: o olhar oblíquo do acionista. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
  • HENRIQUES, Claudio Cezar (Org.). Atas da Academia Brasileira de Letras: presidência Machado de Assis (1896-1908). Rio de Janeiro: ABL , 2001.
  • MONTELLO, Josué. Um diálogo epistolar sobre Machado de Assis. In: ______. O presidente Machado de Assis São Paulo: Livraria Martins Editora, 1961. p. 229-240.
  • 1
    Projeto de publicação em homenagem póstuma a Machado de Assis, consistia em uma recolha de notícias e artigos publicados sobre o autor e sobre sua morte. Organizado por José Veríssimo e revisado por Mário de Alencar, o trabalho perdeu-se no incêndio ocorrido na Tipografia Nacional em 1911. As provas tipográficas, que estavam com Veríssimo e que se teriam salvado do sinistro, estão hoje desaparecidas.
  • 2
    Poema publicado postumamente, em 1910, no livro Outras relíquias. Alguns trechos saíram nos jornais e em livro durante a vida de Machado, com diferentes títulos: Revista brasileira (15 de outubro de 1879, "A assuada"), A estação (15 de agosto de 1885, "Trecho de um poema inédito"), Poesias completas ("Velho fragmento", 1901). O manuscrito, incompleto, está atualmente no Arquivo Múcio Leão da ABL.
  • 3
    Manuscrito hoje perdido, até onde se tem notícia.
  • 4
    Manuscrito hoje perdido, até onde se tem notícia.
  • 5
    O manuscrito não autógrafo encontra-se atualmente no Arquivo Múcio Leão da ABL.
  • 6
    Manuscrito hoje perdido, até onde se tem notícia.
  • 7
    As notas aqui referidas eram notas de leitura efetivadas por Machado, com cópias de citações de excertos de obras lidas, recobrindo em sua grande parte expressões linguísticas retiradas dos clássicos portugueses. Com o manuscrito hoje perdido, elas foram publicadas pela primeira vez por Mário de Alencar em duas partes na Revista da Academia, no número 1, ano I, de julho de 1910, e no número 2, ano II, de janeiro de 1911.
  • 8
    Manuscrito hoje perdido, até onde se tem notícia.
  • 9
    Parte desses retalhos de jornais ainda se encontra no Arquivo Múcio Leão da ABL, testemunhando o gesto autoral de guardar e arquivar sua própria produção. Destaca-se que os referidos retalhos de A semana, encontrados por Mário, possivelmente serviram de base para sua recolha póstuma das crônicas machadianas, intitulada A semana e publicada em 1914.
  • 10
    Documentos hoje perdidos, até onde se tem notícia.
  • 11
    Projeto que ficou em gestação por vários anos, a Revista da Academia teve seu primeiro número lançado em 1910, por iniciativa de Mário de Alencar.
  • 12
    Manuscrito hoje perdido, até onde se tem notícia.
  • 13
    Manuscrito hoje perdido, até onde se tem notícia.
  • 14
    Documentos hoje perdidos, até onde se tem notícia.
  • 15
    Documentos hoje perdidos, até onde se tem notícia.
  • 16
    A citação de Diderot, incluída em Várias histórias, livro publicado em 1896, faz referência ao gênero dos textos que ali vieram à luz, o conto: "Mon ami, faisons toujours des contes... Le temps se passe, et le conte de la vie s'achève, sans qu'on s'en aperçoive" ["Meu amigo, façamos sempre contos... O tempo passa, e o conto da vida acaba, sem que se nos apercebamos", tradução nossa].
  • 17
    Rodrigo Octavio, acadêmico próximo a Machado, também participou do episódio da transmissão do legado à ABL. Ao longo de sua ativa atuação na Academia, foi primeiro-secretário, fundou a biblioteca que originou a atual Biblioteca Lúcio de Mendonça, cuidou da comissão de bibliografia e participou da Revista da Academia.
  • 18
    O livro de J. P. Müller, publicado em 1904, prometia ganhos excepcionais em saúde com uma rotina diária de exercícios de 15 minutos. Foi um sucesso mundial no século XX e ganhou tradução em vários idiomas.
  • 19
    Apelido da esposa de Mário, Helena Cochrane de Afonseca.
  • 20
    Mais uma das homenagens póstumas da ABL encabeçadas por Mário e Veríssimo, no aniversário de um ano da morte do autor foi colocada uma placa na casa em que ele residiu por quase 24 anos no bairro do Cosme Velho.
  • 21
    Documentos hoje perdidos, até onde se tem notícia.
  • 22
    Documentos hoje perdidos, até onde se tem notícia.
  • 23
    Documentos hoje perdidos, até onde se tem notícia.
  • APRESENTAÇÃO E NOTAS DE FLÁVIA BARRETTO CORRÊA CATITA, LUCIANA ANTONINI SCHOEPS

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2019
  • Data do Fascículo
    Abr 2019

Histórico

  • Recebido
    19 Out 2018
  • Aceito
    12 Dez 2018
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