Resumo
Os dois últimos romances machadianos distinguem-se por terem um autor ficcional comum, o Conselheiro Aires. Obedecem, no entanto, a uma forma literária diferente: Esaú e Jacó, ao romance, sendo a narração atribuída a um narrador omnisciente, em terceira pessoa; Memorial de Aires, ao diário, narrativa em nome próprio e que se mostra em curso de escrita.
Apesar da diferença de forma narrativa, é possível reconhecer-lhes características comuns. Neste texto, discutirei o modo como a forma livro é tratada nestes romances finais de Machado de Assis, defendendo, a este propósito, ser possível delimitar um projecto literário próprio do Conselheiro Aires, identificável e isolável no universo da poética machadiana.
Palavras-chave: Conselheiro Aires; livro; romance; diário; legibilidade
Abstract
The last two novels by Machado de Assis have the same fictional author, Counselor Aires. The form of these two books is, however, different: in Esau and Jacob, the narration is attributed to an omnipresent narrator, in the third person; Counselor Ayres' Memorial, on its side, takes the form of a diary, a narrative in the author's own name, a book in the process of writing.
Despite the different narrative form of the books, it is possible to identify, in these two books, a common style that characterizes Counselor Aires. In this text, I will discuss how the book form is considered by Machado de Assis, arguing that Counselor Aires has a proper literary project, autonomous from the others Machado fictional authors and from Machado de Assis himself.
Keywords: Counselor Aires; book; novel; diary; readability
1. Introdução
Uma das características comum aos livros que se integram no que se designa por segunda fase da obra de Machado de Assis é a atribuição da autoria a um autor ficcional. A excepção, nos livros desta fase da sua obra, é apenas Quincas Borba, uma narrativa em terceira pessoa, da qual Machado se apresenta como autor.
Nos dois últimos romances escritos por Machado de Assis, o autor ficcional é o mesmo, embora a forma narrativa escolhida em cada um dos livros seja distinta: em Esaú e Jacó, uma narrativa em terceira pessoa, no Memorial de Aires, a escrita diarística, em nome próprio. Se o recurso aos autores ficcionais é um mecanismo conhecido em Machado de Assis, com o Memorial de Aires Machado torna a questão mais complexa, tanto porque recorre a um autor ficcional já "utilizado",1 como porque atribui uma forma narrativa distinta a cada um dos livros do Conselheiro Aires.
A diferença entre as formas narrativas escolhidas para os livros levanta questões quanto ao modo como estes serão lidos e até quanto à sua legibilidade. Enquanto Esaú e Jacó, narrativa em terceira pessoa, obedece às regras do romance e se apresenta como um livro com um projecto, uma fabula, criando o efeito próprio desta (BAPTISTA, 1998, p. 525), o Memorial de Aires constitui-se como um diário, um livro no processo de se escrever, "sem projecto que o discipline nem finalidade que o subordine" (BAPTISTA, 1998, p. 525).
O que pretendo, neste artigo, é pensar as semelhanças entre Esaú e Jacó e Memorial de Aires, de modo a tentar delimitar características próprias da escrita do Conselheiro Aires que permitam a sua autonomização relativamente aos outros autores ficcionais machadianos e ao próprio Machado de Assis. A ideia será verificar se a unidade autoral permite distinguir um projecto literário específico do Conselheiro Aires, independente da forma dos livros. Este projecto poderá assentar numa problematização da leitura mostrada pela dificuldade de articulação entre a promessa de legibilidade dada pela forma romance - a que obedece Esaú e Jacó e que acaba por ser o que o Memorial de Aires é - e a ilegibilidade de um livro a ser escrito, como é o diário que constitui o Memorial de Aires e o diário, memorial do conselheiro, citado e transcrito em Esaú e Jacó.2 O problema de articulação das duas formas narrativas existe tanto entre os dois livros vistos conjuntamente, como em cada um deles isoladamente, uma vez que cada um deles coloca problemas de articulação destas formas narrativas, ao integrar elementos característicos da outra na sua estrutura.
O modo específico de afirmação do projecto literário do Conselheiro Aires passa, então, pelo esbatimento ou mitigação das diferenças entre estes dois tipos de narrativa, e por uma modalização dos enunciados que caracterizaria o seu estilo.
Começarei por considerar a moldura ficcional dos dois livros, dada pelas advertências que os iniciam, que contribui para a problematização da sua autoria comum. Considerarei, de seguida, as características distintivas entre as duas formas de narrativa - em terceira pessoa e em nome próprio -, mostrando o modo como as diferenças normalmente atribuídas a cada uma delas aqui se esbatem. Tal esbatimento, defenderei, é reflexo das características temperamentais do autor ficcional dos livros, e tem como resultado o que pode ser reconhecido como um projecto literário próprio do Conselheiro Aires.
2. Aires
As advertências dos dois livros constituem uma moldura ficcional que permite a caracterização destes livros como tratando da "história de um editor que encontra os cadernos de um diplomata que registra em seu diário íntimo a vida de seus conhecidos" (CRUZ, 2009, p. 263). Em cada um dos livros há um editor, que assina as advertências (em rigor, assina apenas a de Memorial de Aires, mas, nesta, reconhece a autoria também da de Esaú e Jacó), e que dará forma a dois conjuntos narrativos distintos deixados pelo Conselheiro Aires, nos quais este contava a vida de alguns seus conhecidos - e a sua própria: "Quando o conselheiro Aires faleceu, acharam-se-lhe na secretária sete cadernos manuscritos, rijamente encapados em papelão. Cada um dos primeiros seis tinha o seu número de ordem, por algarismos romanos, I, II, III, IV, V, VI, escritos a tinta encarnada. O sétimo trazia este título: Último" (ASSIS, 1975, p. 61).
Em Último a narração foi entregue a um narrador omnisciente e o Conselheiro Aires aparece nele apenas como personagem. A autoria do livro é-lhe, no entanto, atribuída - era um dos cadernos manuscritos encontrados na secretária do conselheiro -, limitando-se o editor a escrever a advertência, onde informa ter decidido mudar-lhe o título antes de o publicar: de Último passa a Esaú e Jacó, nomes citados uma vez por Aires (ASSIS, 1975, p. 61) e, portanto, a autoria ainda é passível de lhe ser atribuída.
Já no Memorial de Aires, também de acordo com o paratexto, o editor teria intervindo mais profundamente, "decotando", "desbastando" e "estreitando" (são os três verbos usados por M. de A., que assina a advertência) o que dos cadernos constava, de modo a conseguir uma "narração seguida, […] conservando só o que liga o mesmo assunto" (ASSIS, 1977, p. 63). O Memorial de Aires, tal como conformado pelo editor M. de A., pretende contar uma história apesar de adoptar a forma diário, em regra uma narrativa sem outro propósito que o registo do quotidiano. O Memorial de Aires é diferente do memorial citado em Esaú e Jacó, visto que no primeiro há intervenção do editor e no segundo não. A própria utilização que é feita do memorial em Esaú e Jacó - se aceitarmos, como resulta da advertência deste livro, que a intervenção do editor se limitou à alteração do título - é atribuível a Aires, autor ficcional de Esaú e Jacó, que terá feito a selecção do modo como o diário de lembranças do Conselheiro aparece em Esaú e Jacó.
A advertência do Memorial de Aires refere-se, no entanto, a Esaú e Jacó em termos que podem pôr em causa que a intervenção do editor se tenha, aí, restringido ao título do livro. Ao referir que, no Memorial, "não houve pachorra nem habilidade" de transformar o texto deixado pelo conselheiro numa narrativa, ao contrário do que acontecera em Esaú e Jacó, o editor levanta a dúvida de se, aí, a mudança de forma narrativa poderia ser atribuída ao editor e não ao conselheiro, como resultaria da leitura isolada da advertência de Esaú e Jacó. O que é certo é que, tanto num caso como no outro, existiu uma intervenção do editor, sendo a autoria dos livros atribuída ao Conselheiro Aires.3
O Conselheiro Aires é, então, autor ficcional de três textos: (i) Esaú e Jacó, em que entrega a narração a um narrador terceiro e omnisciente e em que Aires figura como personagem; (ii) o memorial, seu diário íntimo, em que fala na primeira pessoa, relatando a sua experiência pessoal, transcrito ocasionalmente em Esaú e Jacó; (iii) Memorial de Aires, o livro que constitui a narração seguida de cerca de dois anos (1888-1889) da vida do Conselheiro Aires e seus conhecidos, que mantém a forma diário do memorial.
Esaú e Jacó, apesar de ter um narrador omnisciente e em terceira pessoa que não é expressamente identificado com o Conselheiro Aires - autor suposto e personagem do livro -, é apresentado como o último dos cadernos deixados pelo Conselheiro quando morreu. É do memorial que sairá, depois do trabalho do editor, o Memorial de Aires, parte de um conjunto de textos atribuídos a Aires. Neste sentido, apesar da forma narrativa distinta, tanto Esaú e Jacó como o Memorial de Aires fazem parte do conjunto de que Aires é autor, estando os factos nele relatados limitados pela sua perspectiva.
Sendo isto evidente no texto escrito em nome próprio, é também o que acontece no escrito em terceira pessoa, com um narrador omnisciente. Tudo o que consta de Esaú e Jacó é condicionado pelo ponto de vista de Aires, autor do relato, e constará do memorial que o conselheiro vai escrevendo.4 Mesmo quando relata factos a que o conselheiro não assistiu - por exemplo, a maior parte dos capítulos iniciais, em que o foco narrativo incide sobre a unidade familiar Santos -, a narração em terceira pessoa exprime sempre o que Aires pensa. É, então, reconhecível uma coincidência entre o ponto de vista de Aires-autor e o do narrador omnisciente de Esaú e Jacó: é só porque Aires falou de alguns factos no seu memorial que o narrador os pode contar em Esaú e Jacó; tudo o que não consta da narrativa de Aires está excluído da narração omnisciente de Esaú e Jacó.
A ligação entre o projecto de livro, romance, que é Esaú e Jacó, e o diário fica assim patente, e implica a limitação do romance ao ponto de vista do Conselheiro Aires. Tudo o que é descrito em Esaú e Jacó, tenha ou não sido vivido por Aires, foi tirado do seu diário. O capítulo "O resto é certo" apoia esta conclusão, quando, a propósito de outros eventuais amores dos gémeos, diz "mas de tais [amores] não rezam as notas que servem a este livro" (ASSIS, 1975, p. 116), pelo que se torna matéria relativamente à qual é apenas possível conjecturar, mas não relatar. A história narrada no livro está limitada pelo memorial que o Conselheiro Aires deixou escrito. A trama do romance acontece em vários níveis, mas que podem, todos eles, ser remetidos a Aires, como narrador (PEIXOTO, 1980, p. 90).
Em Esaú e Jacó, o capítulo onde se apresenta Aires ("Esse Aires") introduz a distinção entre os dois planos de actuação do conselheiro (e, portanto, entre estas duas vozes narrativas): o exterior, em que o conselheiro procura sempre o consenso e a unificação dos contrários, e o íntimo, em que a sua opinião pode divergir da dos outros. É neste último que se inscreve o memorial, em que "não acertava de ter a mesma opinião [que os outros], e valia a pena escrever a sua" (ASSIS, 1975, p. 90). É porque o memorial não se destina a ser lido por ninguém a não ser pelo seu autor que, aí, o conselheiro não terá de actuar de acordo com o seu plano exterior de acção, podendo expor o seu plano íntimo. A "expectativa de interlocução", na expressão de Hélio de Seixas Guimarães (2012, p. 243), é, no diário, praticamente inexistente, visto que "é da natureza do diário ser uma espécie de conversa íntima", sem outros com quem dialogar que não o próprio que escreve. Inversamente, em Esaú e Jacó narra-se uma história destinada a ser lida por terceiros, portanto já expurgada dos pensamentos que o autor entende serem publicamente inconfessáveis.
Enquanto na vida pública Aires é reconhecido como aquele que concorda sempre com os outros5 e não divulga o que pensa, fazendo com que o plano íntimo (o pensamento) não se revele na esfera exterior,6 no seu escrito privado, o conselheiro está "livre da obrigação social de aquiescer e concordar" (PEIXOTO, 1980, p. 81).
Os dois planos de actuação do conselheiro revelados no capítulo 12 são identificados por Marta Peixoto como dois níveis narrativos, que serão as duas versões de Aires, "escrevendo em dois tempos diferentes e de duas diferentes perspectivas". Por um lado, como autor do diário - o plano íntimo -, conferindo "estrutura verbal à sua experiência recente", alguém que viveu os acontecimentos que descreve e que estão presentes no enredo narrativo; por outro, como narrador que "constrói a sua novela" - o plano exterior -, voltando a contar a experiência, agora na terceira pessoa e com uma visão distanciada, também temporalmente, de todos os intervenientes (PEIXOTO, 1980, p. 82).
3. Livro
Esta distinção de níveis narrativos - íntimo e exterior - tem também consequências nos destinatários previstos para cada um dos livros e, globalmente, na ideia de livro que resulta de cada um deles.
A distância entre o plano íntimo e o exterior é necessariamente menor no Memorial de Aires do que em Esaú e Jacó, uma vez que ali se está sempre perante Aires a escrever o seu diário, relatando a sua experiência de vida imediata. Como se disse, no diário, Aires não sente as constrições resultantes da leitura por terceiros, podendo expor o seu plano íntimo. Porém, tanto o jogo de interlocuções presente no Memorial de Aires como o gesto de publicação do memorial em Esaú e Jacó complexificam a distinção entre os planos público e o íntimo. Por um lado, o escrito privado admite vir a ser conhecido de terceiros - cfr., por exemplo, a entrada de 12 de fevereiro de 1889;7 por outro, ao incluir o escrito privado em Esaú e Jacó, decide-se tornar público o que seria privado.
Na medida em que Esaú e Jacó se destina a ser lido são inúmeras as referências ao leitor, seja interpelando-o, seja em diálogo com ele; já no Memorial de Aires o interpelado é o papel em que o Conselheiro escreve o seu diário.8 O papel funcionará como uma instância censória, convocada pelo conselheiro, que lhe pede que o impeça de revelar tudo o que vai no seu íntimo - cfr. a entrada de 8 de abril de 1888: "Papel, amigo papel, não recolhas tudo o que escrever esta pena vadia" (ASSIS, 1977, p. 38). A preocupação resulta da natureza perene e legível da escrita, e, portanto, da susceptibilidade de ser conhecida de terceiros, apesar de não se dirigir a eles. Também por isto, quando o conselheiro quer confessar o seu interesse pela viúva, recorre ao expediente do sonho, evitando a confissão, mesmo para si próprio, de amar alguém que podia ser sua filha - cfr. a entrada de 24 de maio de 1888, “ao meio dia”.
Aliás, ainda que o Memorial de Aires não se destine a ser lido por outros, mais perto do final do livro Aires começa a admitir a leitura do texto por Rita, seja porque lho dá a ler, seja depois da morte do conselheiro - cfr., por exemplo, as entradas de 12 e 25 de fevereiro de 1889.
Assim, apesar da diferença de destinatários inerente à forma que os livros assumem, a preocupação quanto à legibilidade existe também no Memorial de Aires, sendo, portanto, comum aos dois livros.
Como refere Abel Barros Baptista (1998), a forma livro exige ao romance, de modo a que haja uma coincidência entre eles, três requisitos: a) a existência de uma voz identificável capaz de manter uma conversa com o leitor - ou seja, de um autor, como descrito por Foucault (2002, p. 45) na sua função-autor; b) uma unidade da história, com princípio e fim, delimitados pela própria forma livro, e c) uma linearidade narrativa, "que a mantenha unida e significante" (BAPTISTA, 1998, p. 61). Cumprindo estes requisitos o romance pode coincidir com o livro, podendo transmitir uma história única e completa, legível e compreensível por terceiros. É a este esquema que obedece "o modelo canônico" do romance que, "em termos de correntes ou escolas literárias encontrou a melhor realização no romance naturalista" (BAPTISTA, 1998, p. 61). A crise deste modelo, como salienta Baptista, está identificada há muito e o diário, escrita quotidiana, no imediato, que não pode ter o fim delimitado pelo seu autor, é uma das formas como se manifesta. Ao diário faltaria uma das características necessárias para ser legível: a falta de fim, impossibilitando a completude e fechamento exigida pela forma livro e que permite a leitura.9 Veja-se, exemplificativamente, a este respeito, o prefácio do diário de João Palma-Ferreira (1972, p. 7, grifo meu): "[i]niciei este livro em 1952. Entretanto descobri que era um livro interminável".
Esta dificuldade de articulação entre a promessa de legibilidade do romance e a ilegibilidade de um livro a ser escrito coloca-se, aliás, nas duas obras. Esaú e Jacó pode ser visto como um primeiro ensaio de articulação entre as duas formas, ao introduzir o diário do conselheiro no romance. Se, aqui, ainda se podem distinguir os dois planos de actuação do Conselheiro Aires referidos antes, o Memorial de Aires radicalizaria a experiência. Trata-se de um livro, que é um diário, escrito apenas para ser lido por quem o escreve, mas que admite vir a ter outros leitores e, portanto, tem a necessidade de ser legível. Além disto, apesar da forma diário, foi-lhe atribuída a forma de um livro, passando a estar condicionado pelas exigências que a forma livro faz aos textos.
O interesse que, na advertência do Memorial, se admitiu que o livro pudesse vir a ter após a intervenção do editor (ASSIS, 1977, p. 63), seria um interesse genérico, para destinatários indeterminados à partida. Os gestos do editor visariam fazer com que se contasse uma história, dar-lhe princípio e fim, tornando-a linear e completa e, consequentemente, legível. Implica a transformação de um livro que poderia ser considerado um "livro sobre nada" (BAPTISTA, 1998, p. 544) e "interminável" (PALMA-FERREIRA, 1972, p. 7) num romance que se apresenta como um livro total, que substitui a própria realidade. Mas, simultaneamente, os gestos implicam uma escolha e exclusão, mostrando que a realidade - que o diário com as suas "circunstâncias, anedotas, descrições e reflexões" (ASSIS, 1977, p. 63) digressivas exibia - pode não caber num livro/romance.
A sobreposição dos planos da escrita de Aires - íntimo e exterior -, bem como das formas diário e romance, no Memorial de Aires, radicalizam a interrogação da forma livro feita através da interferência da forma diário, iniciada em Esaú e Jacó.
Quanto à temporalidade da escrita, na ficção, e em Esaú e Jacó, desde o início que o fim do livro é conhecido do seu autor, a narração é feita depois de tudo ter acontecido, e a narrativa tem o propósito de contar uma história, mostrando, como se refere na Advertência, "um pensamento interior e único" (ASSIS, 1975, p. 61); no diário, a escrita acontece imediatamente a seguir à ocorrência dos eventos narrados - ou mesmo enquanto estes se desenrolam. Neste caso, em que a escrita acontece quase em paralelo com a acção contada, é impossível uma antecipação do que acontecerá no futuro, assim como é impossível saber quando e como se chegará ao fim. Em Esaú e Jacó, como se sabe o que se quer contar, é possível ter uma ideia de livro e do equilíbrio que a narração exige, fazendo sentido à economia do livro resumos como o do capítulo 17 - "Tudo isso restrinjo só para não enfadar a minha leitora curiosa de ver os meus meninos homens e acabados" (ASSIS, 1975, p. 98) - ou a exposição de um método na escrita - "A pessoa mais moça não entra já neste capítulo por uma razão valiosa, que é a conveniência de apresentar primeiro os pais" (ASSIS, 1975, p. 117).
Porém, em Esaú e Jacó, e como reflexo da hibridez genológica que parece caracterizar este livro, há vários passos em que se aproxima a temporalidade da narração com a que se esperaria caracterizar um livro em curso de escrita, seja através de divagações10 ou interrupções,11 seja pela incerteza quanto ao que é o tema do romance.
De facto, em Esaú e Jacó há, desde o início, uma profecia que se espera venha a verificar-se no curso do livro - a de que os dois gémeos serão "grandes". Afirmada desde o capítulo inicial (ASSIS, 1975, p. 67), a expectativa criada para a leitura é a de que o romance nos contará o modo como os gémeos atingirão tal "grandeza", e o que serão as "cousas futuras" previstas pela cabocla do Castelo. Esta expectativa de leitura é, no entanto, gorada, uma vez que a confirmação da previsão é excluída da narrativa.12 A afirmação inicial de que os gémeos serão grandes sem que isso seja confirmado no livro é um dos modos como, na narrativa, se mostra a ambivalência do Conselheiro Aires - neste caso, como narrador omnisciente; por um lado, afirma a previsão da grandeza dos gémeos; por outro, não confirma essa previsão, mas também não a infirma, deixando-a em aberto.
O aproximar do fim do livro, marcado, aliás, pelos títulos dos capítulos finais ("Que anuncia os seguintes", "Penúltimo", "Último"), depois de um intitulado "Cousas passadas, cousas futuras", que remete ao princípio da obra, parece uma sugestão de releitura, e uma indicação de que o livro, ainda que materialmente delimitado, nunca está completo e fechado. Se a expectativa de leitura criada não é confirmada - como se descobre no fim - e o livro não é sobre o modo como os gémeos serão grandes, exige-se nova leitura, livre desta expectativa, e que possa descobrir o assunto do livro. Como Alexandre Eulalio (2012, p. 122) destaca, ao pôr-se em causa o tema do livro como a "própria maneira pela qual discorre sobre ele" (a forma romance), Machado exponencia alguns dos procedimentos metaficcionais usados nos romances anteriores, como o diálogo com o leitor que é "não só comentário da narração", mas "o próprio construir da narrativa". Eulalio (2012, p. 120) refere também que a função da entrada do memorial-diário em Esaú e Jacó é criar uma "moldura gráfica, assimétrica e fantasista", em que o narrador, "ao comentar a obra e dialogar com o leitor, cria uma moldura caligráfica que ao mesmo tempo separa e integra, num movimento de ida e volta, o absoluto da criação romanesca e a relatividade do seu existir em livro". As considerações de Hélio de Seixas Guimarães (2012, p. 229) sobre este assunto vão no sentido de Eulalio, realçando que a entrada do memorial em Esaú e Jacó permite que a narração se volte para "si mesma para refletir sobre o modo como ela se apropria dos cadernos do conselheiro, discutir procedimentos da composição narrativa e fazer conjecturas sobre o que ocorre do lado de cá das páginas, na relação do leitor com o texto". Ou seja, mais do que um romance que quer contar uma história, Esaú e Jacó mostra-se como um livro que reflecte sobre a escrita.
No diário, por seu lado, a escrita não tem fim determinado, conta-se o que vai sucedendo sem pretender qualquer unidade e não se conhecendo o fim até lá se chegar. A escrita do diário terá o objectivo de relembrar o passado e, eventualmente, pôr-lhe ordem, de forma a torná-lo compreensível para quem o escreve.13 É isso que resulta do que se diz em Esaú e Jacó sobre a escrita do memorial: Aires lia e relia o memorial, compunha-o ou revia o composto, "para relembrar as cousas passadas" (ASSIS, 1975, p. 124) ou de modo a relembrar, ligar e decifrar os factos que relata (ASSIS, 1975, p. 146). No diário, só a chegada ao fim, indeterminado à partida, permite a descoberta do que se queria contar, transformando-se a narração retroactivamente por efeito do final definitivo. Na medida em que não há plano inicial, só a chegada ao fim permite descobrir o que acabou por ser a história contada. Paralela mas inversamente, em Esaú e Jacó, só a chegada ao fim permite perceber que o livro não é a história de como os gémeos serão grandes.
No Memorial de Aires, indica-se, como já vimos, desde o momento inicial da advertência, que, aí, apesar da forma diário, o editor, responsável pela forma do livro,14 pretenderia contar uma história, afastando-se, conceptualmente, do que caracteriza um diário: uma narrativa do quotidiano sem um final premeditado. E, deste modo, aproxima-se de Esaú e Jacó, a narrativa deixada escrita pelo Conselheiro Aires. Os dois livros, apesar da diferença de forma, são narrativas e contam histórias, mas, simultaneamente, em ambos aparece o diário, escrito imediatamente à ocorrência dos factos narrados, mostrando o posicionamento íntimo daquele que o escreve, sem preocupações de vir a ser lido por outros, e em ambos há digressões na escrita, que a afastam da narração da história que se conta.15
Assim, e em resumo, à escrita do Conselheiro Aires poderia ser atribuída como característica esta hibridez entre os géneros em que escreve: no romance faz entrar o diário; ao diário atribui características do romance. Por um lado, temos um romance entrecortado com passos do diário de uma das personagens; por outro, um diário a que foi dada a forma própria do romance, retirando dele o que poria em causa a narração seguida de um assunto, característica do romance. Por sua vez, o que é o assunto de Esaú e Jacó é permanentemente interrogado ao longo do livro: se pareceria, desde o princípio, ser a história de como os gémeos Pedro e Paulo seriam "grandes", isso não é confirmado pelo livro, parecendo, ao terminar, dar uma indicação de releitura de forma a que se tente perceber então qual o assunto do livro, livre da expectativa criada nos seus capítulos iniciais.
As interrupções e divagações na narrativa, a entrada do memorial que o conselheiro escreve em Esaú e Jacó e a abertura do livro a novas leituras por a expectativa de leitura inicial não ser confirmada mitigam as diferenças entre este romance, Esaú e Jacó, e o diário do conselheiro quanto à temporalidade e ao método de escrita dos livros e, ao mesmo tempo, mostram um livro (ou dois livros) estilhaçado em dualidades que lhe quebram a coerência, mas que passa a constituir uma nova unidade (EULALIO, 2012, p. 122, fala em "uma verdadeira nova figuração").
Trata-se, portanto, de dois livros assentes em dicotomias (e que constituem, aliás, eles próprios uma dicotomia), que procuram a superação por uma terceira via, a mediação que permita a conciliação entre os opostos. Estas dicotomias são reveladas tanto pelas personagens,16 como pela dupla qualidade de Aires,17 como ainda pela presença das duas formas narrativas - diário e romance - em Esaú e Jacó ou de características próprias do romance no Memorial de Aires, apesar da forma diário a que obedece.18 Note-se, aliás, que, mesmo aqui, Aires relata uma história como se a ela fosse alheio, aparecendo nela como personagem a par de outras. É isto que leva Sena (1989, p. 206) a afirmar que, apesar da forma autobiográfica, pessoal, do Memorial de Aires, nele se perdeu "a virtude da participação". No diário, Aires oferece "benevolência e compreensão aos protagonistas, ao lidar com eles", num "registo melancólico de quão pouco isso altera o destino que cada um cria para si mesmo" (SENA, 1989, p. 206).
4. Conclusão
Este registo melancólico é visto por Pedro Meira Monteiro (2016, p. 228) como uma "prosa fenecente", reflexo de um estilo tardio que, no caso de Machado, se caracterizaria por "uma espécie de desistência, de recolhimento do ser e abafamento das suas pulsões vitais". Mais do que livros sem assunto,19 como são frequentemente descritos, Esaú e Jacó e Memorial de Aires exibem a tensão machadiana entre a forma livro e o livro que se mostra a ser escrito, de um modo que se pode afirmar radicalizado, por ser separado da autobiografia (BAPTISTA, 1998, p. 409-410) - ao contrário do que acontecia em Dom Casmurro e em Memórias póstumas de Brás Cubas, onde tal tensão também é visível. Enquanto nos dois primeiros romances em que Machado recorre a um autor suposto o assunto da sua escrita é estritamente autobiográfico, sendo a história contada a sua própria, não é isto que acontece nos livros de que o Conselheiro Aires é autor. O motivo autobiográfico está neles presente, através do memorial, diário de lembranças, mas os livros contam além da autobiografia. Esaú e Jacó será o primeiro ensaio de conjugação das duas formas - narrativa e diário -, ao chamar o diário do conselheiro à narrativa. Memorial de Aires, respeitando a forma diário, intensifica esta questão: o ilegível livro a ser escrito torna-se legível, problematizando, através da própria forma, a legibilidade.
Esta diferença acarreta ainda uma outra entre Brás Cubas e Bento Santiago, por um lado, e o Conselheiro Aires, por outro: enquanto nos primeiros romances os narradores se dirigem "explicitamente a diversos interlocutores", nos livros de que o Conselheiro Aires é autor o jogo de interlocução será mínimo, designadamente no "Memorial [que] pressupõe a identidade entre quem escreve e quem lê o próprio relato, uma identidade que assim como a de Tristão e Fidélia é construída textualmente" (GUIMARÃES, 2012, p. 255; grifo do original). A "especificidade" de Aires residiria no facto de este "aparecer como parte de uma consciência dividida que, ao mesmo tempo em que narra, vai relativizando e interpretando o contado" (GUIMARÃES, 2012, p. 229-230), reforçando a questão da legibilidade do texto. Se não há expectativa de interlocução, se temos um livro em que o autor narra e interpreta, como se se dividisse ele no que narra e no que ouve a narração, a questão da legibilidade volta a colocar-se.
Em conclusão, a questão da problematização da leitura é atribuível a Machado de Assis e comum a todos os romances da segunda fase. O que é específico do Conselheiro Aires é o modo como o faz, recorrendo a permanentes dicotomias que tentam ser superadas por uma terceira via, a mediação que permita a conciliação entre os opostos. Como um compasso que une os dois extremos (ASSIS, 1977, p. 145).
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- GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. 2. ed. São Paulo: Edusp; Nankin , 2012.
- MONTEIRO, Pedro Meira. O outono da escrita: as últimas páginas de Machado de Assis e a promessa não cumprida do Brasil. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 35, n. 2, p. 227-239, jul. 2016.
- NEUMANN, Martin. Estratégias de um diário ficcional: Augusto Abelaira, Bolor. In: BRAUER-FIGUEIREDO, M. Fátima Viegas; HOPFE, Karin (Org.). Metamorfoses do eu: o diário e outros géneros autobiográficos na literatura portuguesa do século XX. Frankfurt am Main: Verlag Teo Ferrer de Mesquita, 2002. p. 139-160.
- PALMA-FERREIRA, João. Diário. Lisboa: Publicações Europa-América, 1972.
- PEIXOTO, Marta. Aires as Narrator and Aires as Character in Esaú e Jacó. Luso-Brazilian Review, Madison, v. 17, n. 1, p. 79-92, 1980.
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RONCARI, Luiz. Memorial de Aires: a alma em compasso. Travessia, Florianópolis, n. 19, p. 64-82, 1989. Disponível em: <Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/travessia/article/view/17328/15898 >. Acesso em: 14 dez. 2021.
» https://periodicos.ufsc.br/index.php/travessia/article/view/17328/15898 - SENA, Jorge de. Machado de Assis e o seu quinteto carioca. In: ______. Vinte e sete ensaios. Lisboa: Círculo de Leitores, 1989, p. 197-209.
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1
O que é uma novidade face aos autores anteriores que escrevem apenas um livro cada um.
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Esta dificuldade de articulação é visível também em Memórias póstumas de Brás Cubas e em Dom Casmurro. O que é específico nestes dois últimos livros é a própria forma assumida pelos livros, e a complementaridade entre a forma de cada um dos livros, permitir discutir a questão.
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3
Em Memórias póstumas de Brás Cubas, o prólogo à quarta edição assinado por Machado de Assis obedece à mesma lógica: Machado de Assis edita o livro de Brás Cubas, inicialmente publicado "aos pedaços na Revista Brasileira", corrigindo "o texto em vários lugares". Ao revê-lo para a terceira edição, decide ainda emendar "alguma cousa e suprimi[r] duas ou três dúzias de linhas" (ASSIS, 1960, p. 107). O autor (ficcional) é sempre, no entanto, Brás Cubas.
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Veja-se o capítulo 46 que diz que Aires escrevia os gémeos no memorial, "onde se lê que a consulta ao velho Plácido dizia respeito aos dous, e mais a ida à cabocla do Castelo e a briga antes de nascer, casos velhos e obscuros que ele relembrou, ligou e decifrou" (ASSIS, 1975, p. 146).
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Cfr., p. ex., o diálogo entre Aires e Flora, no capítulo 87 de Esaú e Jacó, em que esta o acusa de "concordar sempre", tendo mesmo já o "achado em contradição", dada essa necessidade de concordar com todos (ASSIS, 1975, pp. 227-8).
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Cfr., p. ex., a conversa no bonde com Natividade, no capítulo 38 de Esaú e Jacó, em que esta lhe pede "não me responda repetindo o que eu digo. Quero o seu pensamento verdadeiro" (ASSIS, 1975, p. 133).
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"Algum dia, quando sentir que vou morrer, hei de ler esta página a mana Rita" (ASSIS, 1977, p. 191).
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Há, no entanto, pelo menos um caso em que o destinatário da interpelação de Aires é um potencial leitor - veja-se a entrada de 8 de abril: "- Ah minha amiga (ou meu amigo), se eu fosse a indagar onde param os mortos, andaria o infinito e acabaria a eternidade" (ASSIS, 1977, p. 205).
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9
Discutindo o ensaio de Frank Kermode, "The Sense of an Ending", Baptista (1998, p. 114) salienta como a "necessidade de um fim" é uma "condição de legibilidade", passando o problema do fim do livro "por conjugar numa construção coerente a inevitabilidade de o livro chegar ao fim, no sentido de não haver mais páginas para ler, com a configuração de uma acção completa", sendo esse "indistintamente um problema da construção do livro e um problema da legibilidade do livro".
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Cfr., p. ex., a passagem "Não tendo outro lugar em que fale delas, aproveito este capítulo, e o leitor que volte a página, se prefere ir atrás da história. Eu ficarei durante algumas linhas, recordando as duas barbas mortas, sem as entender agora, como não as entendemos então, as mais inexplicáveis barbas do mundo" (ASSIS, 1975, p. 107-108).
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P. ex., o capítulo "Antes que me esqueça" (ASSIS, 1975, p. 226), ou um pouco à frente a passagem "Esqueceu-me dizer que [...]" (p. 228).
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Poderia admitir-se que a eleição dos gémeos para deputados, no capítulo 117 de Esaú e Jacó, fosse a confirmação da predição da cabocla do Castelo. No entanto, não parece ser assim, uma vez que Natividade, antes de morrer, refere não ter chegado a assistir à concretização dessa previsão: "[…] a minha esperança era vê-los grandes homens. Deus não quer, paciência" (ASSIS, 1975, p. 282).
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Cfr. Neumann (2002, p. 142): "[…] o diário é o meio par excellence através do qual o sujeito moderno vai à procura desesperada da sua identidade".
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Roger Chartier (1992, p. 21, tradução minha) salienta que "[o]s autores não escrevem livros; não, escrevem textos que se tornam objectos escritos, manuscritos, gravados, impressos (e hoje informatizados)". Um caso-limite da transformação do texto em livro - ou da "transfiguração do texto" (BAPTISTA, 1998, p. 540) - é o que ocorre, ficcionalmente, com o Memorial de Aires: Aires, o seu autor, deixou escrito um texto (o seu memorial), que M. de A. transformou num livro.
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Cfr. Betella (2007, p. 59): "Assim percebemos a unidade do romance ser invadida em vários momentos por contaminações da multiplicidade do diário, não somente pela presença real deste naquele, mas sobretudo pelas interrupções explicativas do narrador. Outro tipo de multiplicidade é incorporado por meio do método referencial de narrar, isto é, o romance se faz como uma espécie de paródia ou como aglomerado de comparações com inúmeras narrativas consagradas através dos tempos. O diário, por sua vez, contagia-se com a unidade própria do romance, ao investir no relato sobre a vida de um determinado círculo de pessoas, enquanto mantém seu estatuto de écriture du moi".
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Em Esaú e Jacó, os antagónicos gémeos Pedro e Paulo e o amor de Flora por ambos serão os exemplos mais claros.
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Em Esaú e Jacó, narrador omnisciente e personagem-autor do diário, no Memorial, autor do diário, em que diz por escrito, e personagem (mesmo se descrito por si próprio), que nada diz aos outros. Nas palavras de Luiz Roncari (1981, p. 75), "[e]sse desdobramento de Aires em personagem e narrador permitiu que as duas vozes, aparentemente opostas como verdade e mentira, se harmonizassem e criassem uma verdade única e complexa".
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18
Também a linguagem usada pelo Conselheiro - cuja análise, por questões de espaço, terá de ficar de fora deste texto - se mostra, mesmo no plano da escrita íntima, no jogo entre a obscuridade e a necessidade de ser legível, condição de todos os livros, incluindo o diário.
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Betella (2007, p. 52) fala em "enredos fracos", em que "a coesão é abalada constantemente pela interpolação de observações do narrador, no primeiro livro, e pela escrita pessoal, obrigatoriamente carregada de comentários, no segundo".
Pareceres
Sobre o autor do parecerAvaliador A (Dilson Ferreira da Cruz Júnior): Aceitar
O artigo constitui uma importante contribuição para o estudo da obra de Machado de Assis, pois as ideias nele contidas são originais, pertinentes e desenvolvidas com clareza. O artigo deve, portanto, ser publicado. Observo, porém, que seu propósito inicial, indicado na introdução - delimitar características próprias da escrita do Conselheiro Aires que permitam a sua autonomização relativamente aos outros autores ficcionais machadianos e ao próprio Machado de Assis - não foi, em meu entendimento, cumprido em sua totalidade. O autor é bastante hábil ao comparar os dois romances de Aires, indicando suas semelhanças apesar das diferenças de forma e enredo, mas não tão feliz no contraponto com os demais romances de Machado de Assis. Tal abordagem ocorre apenas na conclusão, de forma sucinta e, creio, superficial, a qual destoa do cuidado demonstrado pelo autor no restante do artigo.
Por exemplo, seria interessante examinar - consideradas as limitações de espaço impostas pelo periódico - em que medida a tão conhecida ironia machadiana, assim como sua preocupação com a enunciação, contribuem para autonomizar Aires em relação aos demais narradores machadianos ou se, ao contrário, elas reforçam suas semelhanças. Registre-se, porém, que minhas observações não devem ser um entrave para que o artigo seja publicado na forma como se encontra, se assim desejar seu autor.
- recomendação: aceitar
Pareceres
Sobre o autor do parecerAvaliador B (parecerista não autorizou a identificação): Aceitar
Embora o artigo traga substância com relação aos níveis narrativos presentes nos romances Esaú e Jacó e Memorial de Aires, a argumentação constitui uma leitura parafrástica, sobretudo na primeira parte do texto. Tal leitura pode surpreender o leitor machadiano novato ou o leitor que não conhece os romances, contudo, no âmbito da crítica machadiana as considerações não apresentam novidades, conforme se pode avaliar a partir de um cuidadoso exame da fortuna crítica sobre os estudos da utilização da primeira pessoa pelo escritor brasileiro, em particular por meio dos estudiosos que se debruçaram sobre os romances de fim de vindima. Outro aspecto relevante é a pouca integração das estratégias narrativas machadianas - o artigo menciona narradores em primeira pessoa, alguns romances, porém sem demonstração da exploração de meios pelo discurso e sem estender tais comparações a outros gêneros praticados por Machado, como o conto e a crônica. O texto apresentado também carece de fundamentação crítica adequada, especialmente no que diz respeito aos gêneros autobiográficos (diários) e ao diálogo mais aprofundado com fortuna crítica brasileira, que parece apenas pontuar alguns comentários. O objetivo de "delimitar um projeto literário próprio do Conselheiro Aires" é cumprido parcialmente, tendo em vista a exígua exploração da figura pública do Conselheiro José da Costa Marcondes Aires, criada por Machado de Assis para ser autor, protagonista e narrador de seus últimos romances. Uma devida investigação nesse sentido poderia trazer conclusões interessantes no tocante aos "níveis" ou "planos" narrativos.
- recomendação: aceitar
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
22 Abr 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
14 Dez 2021 -
Aceito
24 Mar 2022