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A astúcia da análise

The astuteness of analysis

Resumo

O artigo analisa a crítica de Roberto Schwarz a uma crônica de Machado de Assis "chamada" "O punhal de Martinha". Apresenta, tendo em vista essa crítica, o contraditório quanto ao seu método de vincular forma literária e processo social. Procura estabelecer, através das crônicas de "A Semana" e mediante a relação entre fato real e fato imaginado, a dimensão social da narrativa machadiana.

Machado de Assis; crônicas; fato real e fato imaginado

Abstract

This study analyzes the critical review by Roberto Schwarz of Machado de Assis's chronicle "entitled" "O punhal de Martinha" ("Martinhas'dagger").In light of this review, this study introduces the contradiction inherent in Schwarz’s method of connecting literary forms and social processes. Moreover, this paper seeks to establish the social dimension of Machado's narrative by considering the relationship between real and imagined facts in the chronicles in Machado’s column, "A Semana" [The Week].

Machado de Assis; chronicles; real and imagined facts

Dizer que Machado de Assis é um autor canônico não passa de um truísmo, de uma banalidade. No entanto, atribuir os mesmos qualificativos a Roberto Schwarz, crítico de Machado, não é possível. Quer dizer, não é um truísmo, não é uma banalidade, mas é um fato.

Ao menos dois fatores podem servir para atestar essa posição. O primeiro é que seu nome se tornou presença quase obrigatória nas referências bibliográficas de obras, dissertações, teses e artigos que se produzem sobre o escritor carioca, independentemente da linha teórica adotada. O segundo, a meu ver o definitivo, diz respeito à troca de lugar: em vez de agente, tem-se transformado em paciente do ato crítico. Ele próprio é o alvo da reflexão de seus pares. Cito o justo livro-homenagem Um crítico na periferia do capitalismo: reflexões sobre a obra de Roberto Schwarz, organizado por Maria Elisa Cevasco e Milton Ohata. Cito também Alfredo Bosi e seu Brás Cubas em três versões. Uma dessas versões, "a leitura sociológica [...] centrada no tipo social de Brás e no contexto ideológico do Brasil Império", tem como representante máximo Roberto Schwarz.1 1 BOSI, Brás Cubas em três versões, p. 51. Em suma, a referência a Roberto Schwarz é uma estrada incontornável. Quem quiser chegar a Machado de Assis está obrigado a passar por ela. Por isso, é espinhosa a missão de quem se dispõe a contestá-lo. É possível fazê-lo, parodiando Merquior, sem ser reacionário em crítica literária, ou sem que o mundo lhe caia na cabeça? Tenho que este artigo provará que sim, quanto à primeira cláusula, já que, em relação à segunda, ele nada pode.

Um dos seus mais recentes textos sobre "o mestre na periferia do capitalismo" é de julho de 2006, publicado originalmente na revista Novos Estudos Cebrap (republicado em Martinha versus Lucrécia, Companhia das Letras, 2012, de onde extraio as citações). Chamado "Leituras em competição", interpreta a crônica "A Semana" da Gazeta de Notícias de 5 de agosto de 1894. O artigo compõe-se de 35 páginas, sendo quinze dedicadas especificamente à crônica.

Na primeira parte, ele desenvolve considerações mais gerais, contrapondo uma leitura nacional a uma outra internacional em relação aos estudos machadianos. A "descoberta" forasteira da obra de Machado de Assis teria proporcionado, em consequência, um incremento de sua fortuna crítica mediante entradas vindas do estrangeiro. "O patrocínio teórico vinha entre outros do New criticism, da desconstrução, das ideias de Bakhtin sobre a carnavalização em literatura, dos Cultural studies, bem como do gosto pós-moderno pela metaficção e pelo bazar de estilos e convenções."2 2 SCHWARZ, Leituras em competição, p. 12. Essa "cesta de teorias literárias em voga nas pós-graduações dos Estados Unidos", embora vinda de lugares como a União Soviética, Paris ou Nova Délhi, sofreria um "caldeamento no mercado acadêmico 'local', uma instância do American way of life".3 3 Idem, p. 20.

A obra de Machado de Assis se amoldaria bastante bem a tais teorias, ditas "universalistas". O ponto de contato entre elas se encontraria no "questionamento do realismo ou da representação, e em certo destaque da forma, concebida como estrangeira à história" (grifos do autor);4 4 Idem, p.12. cortariam "o afluxo das conotações históricas, ou seja, das energias do contexto".5 5 Idem, p. 20. Aí está a leitura internacional, empenhada em identificar "obras-primas remotas e avulsas, em seguida incorporadas ao repertório dos clássicos internacionais".6 6 Idem, p. 19.

A leitura nacional se pautaria por outra ordem de ideias, naturalmente opostas à leitura internacional. Daquele ponto de vista, a narrativa machadiana seria a expressão dos problemas nacionais: "as questões estéticas ditas abstratas, de congruência formal e dinâmica interna, bem como de originalidade, se estavam tornando inseparáveis do seu lastro histórico específico".7 7 Idem, p. 17.

Entre os críticos nacionais desse lastro histórico específico, cita, além dele próprio, Silviano Santiago, Alfredo Bosi, John Gledson e José Miguel Wisnik. Entre os internacionais cita Susan Sontag, Helen Caldwell e Michael Wood. Este último parece ser, nas considerações de Schwarz, o representante mais credenciado e atual da leitura de um Machado universal e cosmopolita, a qual confere pouca importância às condicionantes históricas na obra do escritor brasileiro.

Ele faz menção e reparos a uma resenha de Wood dos romances machadianos da maturidade, todos vertidos para o inglês ("Master among the Ruins", New York Review of Books, 18 de julho de 2002). Sem desconsiderar as situações locais, Wood teria ponderado que tais situações não explicariam a "maestria e modernidade de Machado"; "faltaria saber 'por que os romances são mais do que documentos históricos'".8 8 Idem, p. 16.

De fato, Wood afirmou isto: "But we still need to know what Machado's mastery and modernity consist of, and why his novels are more than historical documents – even documents of the oblique and sophisticated kind that Schwarz identifies for us".9 9 WOOD, Master among the Ruins, p. 297.

Mas Wood, em artigo posterior – "Entre Paris e Itaguaí" (2009) –, responde a Schwarz:

Schwarz descreve o ângulo de visão de um ensaio meu como "leitura [...] internacional (ou várias não nacionais)", como se publicar na New York Review of Books fosse viver no centro do mundo cultural [...]. Certamente procuro, e fico feliz de encontrar, obras literárias "remotas e avulsas" de interesse, embora não deseje, para fazê-lo, negligenciar obras próximas e familiares [...]. Mas não me preocupa muito se os textos em questão são ou não obras-primas, e não tenho um "repertório dos clássicos internacionais", em parte porque não acredito que exista o internacional [...]. Mas o mundo, creio, é constituído de múltiplas localidades, e no melhor dos casos alcança algo que poderíamos chamar de transnacional, a viagem do material de um lugar a outro [...].

Para mim, a questão crítica, depois de feito o esforço de descobrir sobre o contexto nacional saturado de determinada obra, é como devemos ligar nossa experiência de leitura a outros contextos, especialmente o nosso próprio; como levar a cabo o duplo projeto de literalismo e analogia que julgo que toda literatura propriamente dita demanda. Concentramo-nos no que está lá, e queremos saber, com o máximo detalhe que conseguirmos, onde está o "lá". E associamos esse "lá" a diferentes localidades, reais e imaginadas, vividas e lidas.10 10 WOOD, Entre Paris e Itaguaí, p. 188, 189.

A citação foi um tanto longa, mas creio que necessária para explicitar a, por assim dizer, poética crítica do resenhista norte-americano. Registre-se que o artigo de Schwarz foi publicado no ano seguinte (2007) na New Left Review, prestigiosa revista britânica de esquerda. Longe de situar-se em posição marginal, a corrente a que ele se alinha – a crítica marxista – está bem plantada na tradição crítica do Ocidente, embora com nuanças diferentes, através de nomes como Adorno, Benjamin, Goldmann, Lukács, Jameson. Receio, então, que não importa determinar a origem das teorias e dos teóricos, pois, se estes levam em conta o contexto histórico local, tratarão de haver-se com esta circunstância, sejam internacionais ou não; mas importa reconhecer se a linha teórica adotada tem cabida na interpretação do texto em exame, ou se não passa de um molde, uma fôrma em que se obriga a entrada, ainda que as dimensões dela – fôrma – e dele – texto – não sejam compatíveis.

O "texto em exame" é uma crônica de 5 de agosto de 1894, publicada na coluna "A Semana" da Gazeta de Notícias. É a ela que Schwarz dedica as quinze páginas finais de seu artigo, o qual tentarei acompanhar passo a passo, dada a argumentação cerrada do grande crítico.

Comecemos citando o resumo que Schwarz faz da crônica.

A questão ["duvidar da universalidade do universal, ou do localismo do local" – tema da primeira parte do artigo] tem importância para a arte de Machado, que a dramatizou numa crônica das mais engenhosas, chamada "O punhal de Martinha". Trata-se da apresentação, em prosa clássica pastichada, dos destinos paralelos de dois punhais. Um lendário e ilustre, que serviu ao suicídio de Lucrécia, ultrajada por Sexto Tarquínio. Outro comum e brasileiro, por isso mesmo destinado à "ferrugem da obscuridade", que permitiu a Martinha vingar-se das importunações de um certo João Limeira. A moça, diante da insistência deste, previne: "Não se aproxime, que eu lhe furo". Como ele se aproxima, "ela deu-lhe uma punhalada, que o matou instantaneamente".11 11 SCHWARZ, cit., p. 29, 30.

Notemos, em primeiro e decisivo lugar, que Schwarz demonstra não ter familiaridade com as crônicas de "A Semana", publicadas entre 1892 e 1897 na Gazeta de Notícias, às quais poderíamos acrescentar mais duas "Crônicas" de 1900. E esta questão não pode ser considerada de menor importância, pois afeta a interpretação, como se verá.

A crônica "chamada" "O punhal de Martinha" não ganhou este nome de Machado de Assis. Ele não as nomeava, elas seguiam abaixo da coluna "A Semana", que saía aos domingos na Gazeta. Aliás, retifico, ele deu nome a apenas uma delas: "Guitarra fim de século" (29 de novembro de 1896); a outras seis também deu nome, mas quando as reaproveitou, alterando, no livro Páginas recolhidas (1899) – "Vae soli!", "Salteadores da Tessália", "O sermão do Diabo", "A cena do cemitério", "Canção de Piratas" e "Garnier". "O punhal de Martinha" é título inventado por Mário de Alencar, o primeiro a coligi-las (A Semana, 1914).

Contudo, "O punhal de Martinha" não mereceu o apreço de figurar em outras coletâneas. Na seção de Antologia do importante e sempre citado livro da editora Ática dedicado a Machado de Assis (1982), por BOSI et al, ela não está. Na coletânea Crônicas escolhidas (Ática, 1994), também não está.

Portanto, é uma crônica sem presença constante nas coletâneas que se organizaram até 2005. Estava destinada, como sói acontecer, à lata de lixo do esquecimento, depois de consumida pelo leitor dominical da Gazeta, um bem tão fungível e efêmero quanto o jornal em que estava compaginado. Aliás, como assinala o próprio cronista em 5 de junho de 1894: "Notícias da manhã, lidas à noite, produzem sempre o efeito de modas velhas, donde concluo que o melhor encanto das gazetas está na hora em que aparecem".12 12 ASSIS, Páginas recolhidas, p. 154. E afinal, note-se, ainda, que, a julgar pelas palavras de Mário de Alencar, nem mesmo Machado se mostrou lá muito animado em publicá-las:

Ao próprio autor lembrei e pedi que as reunisse em livro, e posto me objetasse às vezes com a dúvida sobre o valor desses escritos, salvo um ou outro além dos já publicados nas Páginas escolhidas [sic], não me pareceu que ficasse alheio ao pensamento de fazer a coleção.13 13 ALENCAR, Advertência, p. 5.

Assim, quando Schwarz afirma, mesmo tomando-se como mais uma ironia de quem escreve a crônica – "Enquanto o cronista se queixa do pouco sucesso de Martinha, é claro que ela está mais que imortalizada"14 14 SCHWARZ, cit., p. 39, grifo meu. –, ele, relevem-me o clichê cediço, está sendo mais realista que o rei. Se Machado "inventou a situação narrativa" com "deliberação meticulosa" para dar conta dos impasses entre localismo e universalismo, ele não deu os passos necessários a ecoar tal impasse, preferindo "imortalizar" outros seis escritos. Realmente quem imortalizou e internacionalizou Martinha foi a crítica canônica de um crítico canônico. Creio não restar dúvida quanto à presença dela em futuras coletâneas que se organizarem a partir de agora. Um exemplo é a preparada por John Gledson (Crônicas escolhidas, 2013), em que, além da crônica, há menção ao artigo de Schwarz: "No ensaio 'Leituras em competição', o primeiro de seu livro intitulado, justamente, Martinha versus Lucrecia (2012), Roberto Schwarz faz uma interpretação desta crônica, focalizando a sua 'universalidade moderna'".15 15 GLEDSON, [Comentário à crônica de 5 de agosto de 1894], p. 211.

Depois do resumo, Schwarz inicia a argumentação. O cronista, "um literato ultra-afetado do Rio de Janeiro", ironiza o caso e a ação de Martinha em comparação com o caso e a ação de Lucrécia, a romana insigne. A nossa pobre e obscura conterrânea não mereceu o registro histórico ilustre de um Tito Lívio. Mas logo a seguir, segundo a análise de Schwarz, "Machado inverte a ironia", ressaltando a superioridade e a bravura de Martinha, que não confiou a vingança a ninguém: vingou-se com as próprias mãos.

A análise de Schwarz de um texto em que o cronista unicamente deplora o destino de Martinha e seu punhal, acontecimento concreto, em face de Lucrécia e seu punhal, pura lenda que se fez memória histórica – a análise de Schwarz, como dizia, executa uma espécie de contorcionismo hermenêutico. O cronista primeiro ironiza as inferioridades, depois as superioridades de Martinha; primeiro é um crítico das diferenças, depois um consertador de injustiças.

O contorcionismo é também linguístico. Trata-se de um cronista que busca "diferençar-se da barbárie popular", que se refere ao leitor "na empolada segunda pessoa do plural, com subjuntivos e condicionais difíceis: 'Talvez esperásseis que ela se matasse a si própria. Esperaríeis o impossível, e mostraríeis que me não entendestes'".16 16 Idem, p. 31. Mas a seguir, no mesmo texto, o cronista usa certos indicadores gramaticais que "funcionam na contracorrente da dicção emproada".17 17 Idem, p. 32. Os indicadores gramaticais são o emprego do artigo definido diante de Cachoeira – a Cachoeira, tornando a localidade familiar; e a utilização do diminutivo afetuoso Martinha, "incluindo-a na esfera da cordialidade brasileira".18 18 Idem, p. 31.

Ora, o tratamento na segunda pessoa do plural é recorrente nas crônicas de "A Semana". Está presente nas crônicas de 24 de abril de 1892, 1º de maio de 1892, 8 de maio de 1892, 12 de junho de 1892, 26 de junho de 1892, 4 de setembro de 1892, 18 de setembro de 1892, 20 de novembro de 1892, 4 de dezembro de 1892, 25 de dezembro de 1892, 05 de março de 1893, 30 de julho de 1893, 12 de novembro de 1893, 7 de janeiro de 1894, 21 de janeiro de 1894, 27 de maio de 1894, 8 de julho de 1894, 17 de março de 1895, 8 de setembro de 1895… Ressalte-se que a relação está longe de ser exaustiva. É evidente que o uso da segunda pessoa do plural acarretará sempre, quando exigidos, "subjuntivos e condicionais difíceis". Veja-se este exemplo na crônica – mais uma – de 13 de outubro de 1895: "Cozinheiros do monopólio do café, se advertísseis que Lamartine não foi eleito, mas outro, consideraríeis que o mesmo pode suceder ao monopólio de café".19 19 ASSIS, Obra completa, vol. 4, p. 1216.

No que toca ao emprego do artigo antes de Cachoeira, pode-se considerá-lo um fato aleatório, um dado estatisticamente irrelevante, pois Cachoeira aparece três vezes, duas com o artigo, uma sem ele. O curioso é que, no ensaio, Schwarz menciona oito vezes a palavra Cachoeira, em todas precedida pelo artigo. O diminutivo afetuoso Martinha, por sua vez, não é, muito provavelmente, uma opção do autor. Machado apenas cita o nome tal como ele é referido no jornal A Ordem, do qual extraiu a notícia: "'Martinha (diz ele [o jornal]) é uma rapariga franzina' [...]".

Portanto, o que chamei de contorcionismo linguístico e Schwarz de "mescla de dicções" não pode ser tomado como a forma literária que se ajusta ao processo histórico-social, pois parece ser antes um artifício criado pelo ensaísta do que presença verdadeiramente significativa no texto da crônica.

O procedimento analítico adotado por Schwarz, sistematizado, consagrado e tornado paradigma nos estudos machadianos, procura articular intimamente forma literária e processo social. Assim, no ensaio clássico Um mestre na periferia do capitalismo sobre Memórias póstumas de Brás Cubas, ele assinala o capricho e a volubilidade do narrador, de certa maneira, um "literato ultra-afetado", como a forma da desfaçatez de classe; aponta a união desconjuntada das ideias liberais e das práticas persistentes do Antigo Regime, como o escravismo e o patriarcalismo, entre outras, resultando numa escalada disparatada do capital num país periférico; assim, universal e particular se negariam mutuamente, o cotejo do modo local do universal com o universal desmoraliza o universal, reproduzindo as condições locais de um universalismo que não passa de mistificação ideológica.

Não é objetivo deste artigo desconstruir nada, apenas fazer reparos a uma leitura da crônica dita "O punhal de Martinha" e apresentar outra. Paradigmas não são cláusulas pétreas. Até em respeito a quem os cria, é saudável questioná-los – sem melindre nem vassalagem –, sobretudo quando parecem ser empregados de modo discricionário. Em outras palavras, quero dizer que paradigmas devem ser criticados. Creio que não se pode aceitá-los passivamente (vassalagem), nem supor que tais críticas, feitas de modo consciente e honesto, possam afetar suscetibilidades, tanto dos autores quanto dos seguidores dos paradigmas. Assim, por exemplo, se, em Memórias póstumas, pode-se afirmar que está bem definida a condição social de Brás Cubas, o mesmo não se pode dizer do Cronista da Gazeta, como Schwarz insiste em apontar mais de uma vez:

O paralelo [...] tem ranço de classe inconfundível [...]. O cronista deplora a sorte obscura dos compatriotas pobres e provincianos, mas a comparação culta na verdade lhe serve para sublinhar a distância que o separa deles e de nossa hinterlândia cheia de facadas,20 20 SCHWARZ, cit., p. 31. pois alinha o escritor na franja europeizada e culta, estranha às circunstâncias cruas e remotas da vida popular no interior do país.21 21 Idem, p. 32.

Que dados concretos, porém, a crônica fornece sobre a condição social do escritor para determinar aquele "ranço de classe". Não conhecemos sua genealogia, não sabemos como foi sua infância, se maltratou escravos, se possuiu escravos, se vagabundeou por Coimbra em vez de estudar, se disputou herança com a irmã, se rejeitou pretendente pobre e coxa, se foi deputado etc. etc. Schwarz infere o "ranço de classe inconfundível" pelo uso da segunda pessoa do plural e a citação de texto clássico. Mas, como vimos, o cronista emprega a segunda pessoa do plural em várias outras crônicas, e em outras não; e citar Tito Lívio não me parece ser apanágio de literato erudito que o torne "empolado", "empertigado", "ultra-afetado". São dados insuficientes. O que sabemos, de fato, dele é que é um Cronista da Gazeta de Notícias, "jornal barato, popular, liberal, vendido a 40 réis o exemplar";22 22 SODRÉ, A história da imprensa no Brasil, p. 224. e que, nesta crônica específica, deplora a razão parcial da História, contrapondo-a à imaginação da Poesia. Assim, a meu ver, o "ranço inconfundível de classe" é pura especulação.

Mas Schwarz convoca o mesmo paradigma, e a ele recorre para a análise da crônica de Machado. Está bem no início do artigo:

Elas [superioridades e inferioridades] resultam do cotejo abstrato de vícios e virtudes, termo a termo, perfil contra perfil, que prefere o exercício retórico ao tino para a história – uma opção que o tempo havia tornado obsoleta e burlesca. Assim, a comparação leva a rir de Cachoeira, porque ela não se compara a Roma, e a rir de Roma, que talvez não passe de uma Cachoeira revestida de belas palavras. Refletidas uma na outra, a localíssima Cachoeira e a universalíssima Roma funcionam como uma dobradinha de comédia.23 23 SCHWARZ, cit., p. 30, 31.

Pronto, eis aí praticamente toda a proposição de Schwarz. O que faz a seguir é repetir, variando, os termos do trecho citado, ou melhor, trocando o "exercício retórico" pela problemática de classe e pelos aspectos históricos envolvidos na comparação:

Em suma, universalismo e localismo são ideologias ou chavões, ou timbres, de que Machado se vale como de pré-fabricados possíveis de uso satírico.24 24 Idem, p. 40.

Esses quiproquós, que são depositários da transformação periférica da cultura europeia, põem de pé uma problemática inédita difícil, de classes e de inserção internacional, de que a oposição corrente entre localismo e universalismo oferece uma versão distorcida e característica.25 25 Idem, p. 41; grifos do autor.

[...] as experiências locais deixam mal a cultura autorizada e vice-versa, num amesquinhamento recíproco de grande envergadura, que é um verdadeiro "universal moderno".26 26 Idem, p. 43.

A última citação fecha o artigo. Se o pé formal é um artifício criado pelo ensaísta, não o é menos o pé sócio-histórico. Não há nenhum referente histórico na crônica de Machado – nem para Lucrécia e a Roma antiga, nem para Martinha e Cachoeira. Como pode a longínqua Roma antiga, a remotíssima e lendária Lucrécia servirem de parâmetro, ocuparem posição universalista, terem parte na "problemática de classes" em relação a Cachoeira e Martinha dos fins do século XIX? Mas se a comparação não tem "tino para a história", nem o texto da crônica induz a ela, a sagacidade do ensaísta consiste em operá-la dentro de seus termos dele. Assim, o que não é passa a ser: "Martinha está para Lucrécia como o Brasil para os países adiantados".27 27 Idem, p. 40. E, se o paralelo é "arbitrário como toda a montagem", Schwarz o atribui à "acuidade" de Machado, que substitui "modos passadistas e farsescos", para "aludir à condição inferiorizada e problemática de país periférico".28 28 Ibidem.

A astúcia da análise, no entanto, é ainda mais pródiga, pois ela tem consciência de que não há contexto na crônica que motive a dialética entre local e universal, ou, como prefere Schwarz, entre periferia e centro. E por ter essa consciência, antecipa-se, mais de uma vez, a possíveis objeções:

[...] a nossa apresentação vem forçando a nota num ponto delicado: palavras da esfera histórico-política, como pátria, nação, Brasil etc., e também as referências à questão nacional, em que insistimos, não comparecem no argumento explícito da crônica. Elas são suas presenças ausentes.29 29 Idem, p. 25.

Esta [a questão nacional], cuja ausência é estridente, passa a ter a presença que o leitor insatisfeito seja capaz de lhe conferir por conta própria.30 30 Idem, p. 26.

A ironia e a ambiguidade machadianas fazem dele um ser proteiforme, propenso a perfilhar cada uma das mais caras convicções ideológicas de seus críticos. Lendo Schwarz, Machado se transforma, temos a impressão, num literato-militante, ou melhor, num militante-literato, engajado, comprometido com uma linha política, a revelar, "com deliberação meticulosa", a "desimportância que aflige o Brasil e as suas classes pobres",31 31 Idem, p. 36. a desvelar, com "acuidade mimética", disputas de amplo escopo, "luta de classes, luta entre nações, patamares desiguais de acumulação cultural, além de luta artística e crítica",32 32 Idem, p. 42. a tomar "o partido de assumir as decalagens, fazendo delas e de seu jogo – entre Roma e Caixa-Pregos – uma regra de sua prosa";33 33 Idem, p. 43. em suma, colocado bem à esquerda do espectro político; ou, nos termos de Bosi, "o mais radical dos críticos da sociedade brasileira de todos os tempos".34 34 BOSI, cit., p. 64. Entretanto, em nove crônicas da série "A Semana" em que trata explicitamente de anarquismo/socialismo não demonstra semelhante tendência. Na maioria delas, em comentários pontuais que ocupam apenas parte da crônica, apesar da "simpatia que essa classe [operária] merece de todos os corações bons" (21 de agosto de 1892),35 35 ASSIS, A Semana, p. 108. é o mesmo irônico e cético de sempre em relação a toda e qualquer ideologia; quanto aos anarquistas, faz reparos ao uso de meios violentos – "Concordo com eles que a sociedade está mal organizada; mas para que destruí-la?" (22 de abril de 1894);36 36 ASSIS, Obras completas, vol. 4, p. 1066. o mesmo vale para "paredistas" – "Os paredistas queriam maior salário e buscavam o pior caminho. Há meios pacíficos e legais para obter melhoria de vencimentos" (24 de fevereiro de 1895).37 37 Idem, p. 1151.

Mas, por todos os motivos, deve ser desconcertante ler a crônica de 20 de outubro de 1895 para quem alimente o juízo de um machado schwarziano tout court. Vale a pena transcrever o primeiro parágrafo:

Vamos ter, no ano próximo, uma visita de grande importância. Não é Leão XIII, nem Bismarck, nem Crispi, nem a rainha de Madagascar, nem o imperador da Alemanha, nem Verdi, nem o marquês Ito, nem o marechal Iamagata. Não é terremoto nem peste. Não é golpe de Estado, nem câmbio a 27. Para que mais delongas? É Luísa Michel.38 38 Idem, p. 1216.

Não é preciso saber quem é Luísa Michel para atinar com a grossa ironia da expressão "visita de grande importância". Bem machadianamente, isto é, de modo indireto, sem despender um adjetivo, o cronista desqualifica a figura de Luísa Michel. A só relação de destacadas personalidades internacionais e de acontecimentos graves cumpre esse papel. E quem é ela? Louise Michel (1830-1905), professora primária, militante anarquista, lutou ao lado dos combatentes pela Comuna de Paris (1871). Reprimido o movimento, foi deportada para Nova Caledônia, território francês do ultramar. Retornou a Paris em 1880. Passou a proferir palestras pregando ideias de mudança social, exilando-se mais tarde em Londres.

Mas a derrisão de Luísa Michel e de suas ideias não para aí, segue por toda a crônica. O primeiro período do parágrafo seguinte é assim: "Li que um empresário americano contratou a diva da anarquia para fazer conferências nos Estados Unidos e na América do Sul".39 39 Idem, p. 1218. Luísa Michel assume a condição de estrela, ganha a antonomásia de uma cantora de ópera, fonte de lucros de um empresário americano.

É evidente que a visita não se realizou. Contudo, Machado não se dá por satisfeito: ficcionaliza a visita – sem o que não seria quem é. Concebe entrevistas que ela teria com pessoas ou entidades. Um poeta lhe apresentará o último livro de versos, Dilúvios sociais. Três moças lhe pedirão um palpite no bicho: carneiro ou leão?:

– O carneiro, minhas senhoras; o carneiro é o povo, há de vencer, e o leão será esmagado.

– Então não devemos comprar no Leão?

– Não comprem nem vendam. Que é comprar? Que é vender? Tudo é de todos. Oh! Esqueçam essas locuções, que só exprimem ideias tirânicas.40 40 Ibidem.

Receberá, enfim, três representantes da União dos Proprietários. Vêm-lhe pedir socorro.

– Madama, nós vimos pedir-lhe socorro contra os opressores que nos governam, que nos logram, que nos dominam, que nos empobrecem: os locatários [...]. O inquilino é tudo. O menor defeito do inquilino, madama, é não pagar em dia; há os que não pagam nunca, outros que mofam do dono da casa. [...]

– Mas então a anarquia está feita, o comunismo está feito. [...] Mas que me vindes pedir, vós outros, proprietários? Que vos defenda os aluguéis? Uma convenção precária, um instrumento de opressão, um abuso da força.41 41 Idem, p. 1219.

A crônica é arrasadora para os que nutram as pretensões de um Machado militante ou defensor de causas. No último encontro, em que o embate entre inquilinos e proprietários poderia transformar-se num típico exemplo de luta de classes, nos termos formulados por Schwarz de denúncia de um "quadro de desigualdades e humilhações", dos "desníveis nacionais", de aflições de nossos "compatriotas pobres" – esse embate é posto abaixo pela irrisão absoluta do cronista.

Sim, é certo que as ideias de um autor não se identificam necessariamente com o potencial crítico de sua obra. Como é igualmente certo que Lukács se valeu das Ilusões perdidas, de Balzac, a despeito dele e até contra ele, para mostrar como Balzac, monarquista e legitimista, retrata a sociedade francesa na época da Restauração; para mostrar como nesse romance a literatura e as atividades do espírito são transformadas em mercadoria; para mostrar como Balzac, contraditoriamente, "apesar de todas as suas ilusões, escreveu as suas Ilusões perdidas".42 42 LUKÁCS. Balzac: Les Illusions Perdues, p. 119.

Tal objeção não pode ser feita à análise deste artigo, pois ele incide não sobre as ideias do cidadão Machado de Assis, mas sobre a crônica dita "O punhal de Martinha". Julgo, a propósito, que, nas causas várias implicadas na realidade literária de uma obra, deve-se considerar a que determina as demais. E, nas motivações da crônica em questão, a causa determinante não reside nas relações de classe, mas na relação entre fato real e fato imaginado. Para isso, valho-me, principalmente, por tratar-se do mesmo cronista, de outras crônicas de "A Semana", tanto para negar a hipótese de Schwarz como para afirmar a deste artigo, objetivo expresso dele.

O contraditório à abordagem de Schwarz aqui exposto não consente dizer que Machado de Assis tenha descurado das questões de seu tempo, da vida do país e do mundo. Muito ao contrário, esta é matéria vencida, cujo desmentido, se se faz algo subentendido na obra de ficção, torna-se mais notório nas crônicas de "A Semana". O cronista é observador atento, leitor de vários jornais. O Rio, o Brasil e o Mundo passam nas crônicas de "A Semana".

Mas se, como disse, está vencida a noção de um Machado alheio às questões de seu tempo, é preciso mensurar o aspecto social de seus escritos. E essas crônicas são, a meu ver, o metro mais ajustado para isso.

Creio que haja evidências suficientes em sua obra que permitam afirmar ser Machado de Assis um autor materialista. Astrojildo Pereira, um marxista fino e sensível, demonstra com fartura como "o ficcionista traduz em imagens concretas o jogo escondido do pensamento e do sentimento".43 43 PEREIRA, Machado de Assis: ensaios e apontamentos avulsos, p. 149. Mas, ao contrário de Astrojildo Pereira – "seu pensamento é materialista, e seu processo de pensar e de exprimir-se é um processo dialético"44 44 Idem, p. 31. –, o materialismo de Machado de Assis possui um caráter não dialético. Não há superação nas contradições, não há síntese possível. As querelas dos irmãos Pedro e Paulo, em Esaú e Jacó, com seus simbolismos subjacentes, permanecem em aberto, não levam a nada. A propósito, cito trecho do artigo de Schwarz, ainda que fora de contexto, para concordar com ele: "Artificioso e sumário, o dualismo tem certa esterilidade enjoativa que não vai a lugar nenhum".45 45 SCHWARZ, cit., p. 31.

A concepção do tempo em Machado reflete esse caráter não dialético, essa eterna repetição do conflito. É dupla a dimensão do tempo. Há uma dimensão linear e inexorável do tempo, à qual se engasta uma outra dimensão, dimensão de um tempo cíclico, que a abrange. Ambas se consorciam para compor um conjunto harmônico, uma espécie de dispositivo em que a mudança se move no âmbito da permanência. Talvez não tenha ficado clara a descrição do funcionamento desse dispositivo. Um exemplo, acaso, tornará compreensível o que quis dizer. Ele nos é dado por uma crônica de 4 de novembro de 1900, na qual o cronista destaca, entre os assuntos da semana, a morte de João, o sineiro da igreja da Glória.

Ex-escravo, durante quase meio século, desde 1853, registrou por meio de dobres e repiques, conforme fossem tristes ou alegres, os acontecimentos grandes ou miúdos, públicos ou privados que atravessaram a sua existência:

Noivos casavam, ele repicava às bodas; crianças nasciam, ele repicava ao batizado; pais e mães morriam, ele dobrava aos funerais. Acompanhou a história da cidade. Veio a febre amarela, o cólera-morbus, e João dobrando. Os partidos subiam ou caíam, João dobrava e repicava, sem saber deles. Um dia começou a Guerra do Paraguai, e durou cinco anos; João repicava e dobrava, dobrava e repicava pelos mortos e pelas vitórias. Quando se decretou o Ventre Livre dos escravos, João é que repicou. Quando se fez a abolição completa, quem repicou foi João. Um dia proclamou-se a República, João repicou por ela, e repicaria pelo Império, se o Império tornasse.

Não lhe atribuas inconsistência de opiniões; era o ofício.46 46 ASSIS, Obra completa, vol. 3, p. 1329, 1330.

Há, assim, um tempo linear, tempo do desaparecimento do indivíduo, tempo de vida de João, inscrito num tempo cíclico, tempo das gerações, tempo dos fatos recorrentes – homens nascem e morrem, partidos sobem e descem, regimes de governo são reversíveis entre si. Isso se reproduz no plano da linguagem, com a reiteração dos verbos "dobrar" e "repicar", catorze vezes repetidos, ciclicamente citados – "repicava e dobrava, dobrava e repicava".

A concepção é de uma imobilidade universal circunscrevendo a finitude humana. O suceder de gerações não produz fato novo. Tudo incide na curva do tempo cíclico, sem ideia de progresso. No capítulo "O delírio" de Memórias póstumas, Brás Cubas é levado ao alto de uma montanha para contemplar o desfile dos séculos, o voltear dos sucessos com "sua regularidade de calendário".

O materialismo em Machado de Assis não se prende apenas ao tratamento dado ao fato real, mas também ao fato imaginado, tal sua densidade, tal a magnitude das consequências que produz. Antonio Candido aponta a relação "entre o fato real e o fato imaginado" como um dos temas frequentes na obra do autor de Quincas Borba. Ele exemplifica com o romance Dom Casmurro, em que "não importa muito que a convicção de Bento [de ter sido traído] seja falsa ou verdadeira, porque a consequência é exatamente a mesma nos dois casos: imaginária ou real, ela destrói a sua casa e a sua vida".47 47 CANDIDO, Vários escritos, p. 31. Em Esaú e Jacó, o velho Aires escrevia no Memorial algo muito parecido: "Não é a verdade que vence, é a convicção. Convence-te de uma ideia, e morrerás por ela".48 48 ASSIS, Esaú e Jacó, p. 226.

Assim, quando Schwarz desqualifica esta passagem final da crônica:

Não quero mal às ficções, amo-as, acredito nelas, acho-as preferíveis às realidades; nem por isso deixo de filosofar sobre o destino das coisas tangíveis em comparação com as imaginárias. Grande sabedoria é inventar um pássaro sem asas, descrevê-lo, fazê-lo ver a todos, e acabar acreditando que não há pássaros com asas…49 49 ASSIS, Obras completas, vol. 4, p. 1091, 1092.

Quando Schwarz a desqualifica como "conclusão acaciana do cronista filósofo", "generalidade atemporal e vazia", enxergando "nessa graçola do espírito mais outro exemplo de defeito nacional, pronto para figurar naquela mesma lista de traços de atraso, à qual a mania de transformar em pontos de filosofia as nossas mazelas históricas se integra à perfeição",50 50 SCHWARZ, cit., p. 37. ele estará desqualificando uma característica essencial da poética machadiana.

Este mesmo trecho mereceu a apreciação de Ivan Teixeira:

Sugere [o fragmento], entre outras coisas, que a vida não cabe na arte [...]. Ao artista interessa, portanto, dar ênfase aos signos que o conduzem não aos fatos, mas à poética dos fatos. [...] Nem a ciência nem a filosofia poderão enfrentar o desarranjo dos negócios no mundo. Somente a arte, convertendo o mundo em discurso, possui condições de figurá-lo, ainda que apenas para produzir o riso, um riso cheio de desencanto e reflexão.51 51 TEIXEIRA, Introdução, p. 21, 22.

Não seria forçar a interpretação trocar, no trecho acima citado, "vida" por "fato real" e "arte" por "fato imaginado"; e, dando mais um passo, trocá-los de novo, respectivamente, por História e Poesia. Machado parece entreter um sentimento de desconfiança ou mal-estar em relação à História, tanto a dos acontecimentos miúdos quanto a dos eventos célebres, pois um "amanuense basta para trocar as mãos à História".52 52 ASSIS, Esaú e Jacó, cit., p. 274. E, se colocadas em confronto, a Poesia goza de superioridade cognitiva sobre a História. É isso que se deduz pela crônica de 18 de março de 1894, em que o cronista, convidado a subir um dos morros da cidade para assistir a uma batalha da Revolta da Armada, recusa, preferindo ficar em casa:

Em casa, ocorreu-me que podia ter a visão da batalha, sem sol nem fadiga. Era bastante que me ajudasse o gênio humano com o seu poder divino. A história, por mais animada que fosse, não sei se me daria a própria sensação da coisa. A poesia era melhor; Homero, por exemplo, com a Ilíada. [...] Nem eu pedia mais que a vista da realidade por sugestão da poesia.53 53 ASSIS, Obra completa, cit., p. 1056.

José Luiz Passos, tratando das "pessoas" na ficção de Machado, adota perspectiva muito próxima dessa e da de Ivan Teixeira. E supõe-se que seja perspectiva consolidada, pois por duas vezes ele a exprime:

A arte enleva, ilude e restaura os protagonistas de Machado, solucionando-lhes obstáculos pela breve interrupção de suas vidas.54 54 PASSOS, Romance com pessoas, p. 100.

Um dos traços mais característicos dos heróis machadianos é sua capacidade de, quando confrontados com obstáculos à realização de seus desejos, imaginarem vidas ou mundos alternativos e voltarem de lá com respostas tomadas de empréstimo ao mundo do faz de conta.55 55 Idem, p. 199.

Se a hipótese for verdadeira, creio que será o cotejo entre as "coisas tangíveis" e as "imaginárias" que dá "certa unidade" aos contos de Papéis avulsos, que os torna “pessoas de uma só família”, como escreve o autor na advertência. E não sendo nenhum exercício arbitrário acolher dentro desse cotejo o jogo entre máscara e desvelamento, espectador e palco, aparência e ser, opinião e realidade, alma exterior e alma interior, alma e vida, teremos feito dos contos “O alienista”, “A chinela turca”, "Teoria do medalhão", "O anel de Polícrates", "O segredo do bonzo", "O espelho" e "O empréstimo" irmãos ou, ao menos, primos entre si.

Mas a ficção sabe eludir nossos esforços de interpretação, ainda que seja sempre possível comprovar nela aquela característica da poética machadiana. Ao passo que, nas crônicas de "A Semana", o entendimento se torna mais direto, embora Machado de Assis adore se esconder e, por vezes, oculte-se sob o disfarce do "Cronista".

Tais crônicas reafirmam e consolidam o seu programa ético e estético. Sua capacidade de transcender o acontecimento não encontra rival. O fato não é apresentado cru ao leitor como o faria um cronista-repórter tal qual João do Rio. É como se ele passasse por um filtro composto por três estágios. O primeiro é o pensamento, que observa e analisa o fato; o segundo é a memória, que o revê; e o terceiro é a imaginação, que o transfigura. Esses estágios não são instâncias estanques. Elas combinam-se no mesmo texto, com a predominância de uma delas. Mas o certo é que a parada na estação final da imaginação é uma virtualidade, ou seja, suas crônicas estão sempre à beira da ficção.

Assim, sua incessante máquina de fabular, de ficcionalizar o argumento e o acontecimento não esmorece nem nas crônicas. As que ele escolheu para figurar em Páginas recolhidas, com exceção da que ele designou como "Garnier", apresentam evidentes traços ficcionais: construção de personagens, construção de diálogos e a presença de um narrador que se distancia do cronista, transformando-se em mais um personagem. O próprio critério que adotou para selecioná-las é revelador dessa intenção: "alguns retalhos de cinco anos de crônica na Gazeta de Notícias que me pareceram não destoar do livro, seja porque o objeto não passasse inteiramente, seja porque o aspecto que lhe achei ainda agora me fale ao espírito".56 56 ASSIS, Páginas recolhidas, cit., p. 13. Ou seja, objetiva – "o objeto não passasse" – e subjetivamente – "ainda gora me fale ao espírito", um critério que vai no sentido de ultrapassar o plano particular do relato jornalístico para alcançar o plano universal da ficção. A mesma crônica referida de 20 de outubro de 1895 talvez pudesse enquadrar-se em tal critério. Mas outras mais poderiam integrar uma possível coletânea de contos: a de 17 de outubro de 1892, a de 11 de junho de 1893, a de 29 de outubro de 1893, a de 5 de novembro de 1893, a de 4 de março de 1894, a de 8 de abril de 1894, a de 10 de junho de 1894, a de 1º de julho de 1894, a de 16 de julho de 1894, a de 23 de dezembro de 1894, a de 23 de agosto de 1896, a de 3 de janeiro de 1897, podendo esta última ser considerada uma espécie de segunda versão de "A sereníssima República".

De todo modo, a vantagem da crônica para o intérprete é que mais que o texto, ou dentro do texto, vem a palavra menos furtiva do cronista, ainda a de um como Machado de Assis, pois está ancorada no fato. Sidney Chalhoub tece considerações sobre o caráter fictício ou não de algumas séries das crônicas machadianas, mas infelizmente exclui delas as de "A Semana": "Nada digo [...] sobre a série 'A Semana', publicada na Gazeta de Notícias na década de 1890 [...] que nunca mereceu estudo aprofundado".57 57 CHALHOUB, A crônica machadiana: problemas de interpretação, temas de pesquisa, p. 235. Por elas, vê-se que Machado não está preocupado em compor o registro imparcial e mais ou menos objetivo dos eventos da História; ou em exibir, com "deliberação meticulosa" e "acuidade mimética" através da forma literária, "os problemas brasileiros". Para exemplificar com o tema político, de longe o mais presente nelas, ele afirma na crônica de 13 de agosto de 1893: "Propriamente a minha questão não é política. A parte política só me ocupa quando, do ato ou do fato, sai alguma psicologia interessante".58 58 ASSIS, A Semana, p. 281.

Também por ela, pela palavra do autor, mostra-se o acerto da observação de Antonio Candido, segundo a qual "não importa muito que a convicção de Bento seja falsa ou verdadeira" etc. (grifo meu).

Na crônica de 22 de novembro de 1896 vem:

No fundo, há só a convicção que ordena os atos. Assim é que um pobretão, crendo ser rico, não padece miséria alguma, e um opulento, crendo ser pobre, dá cabo da vida para fugir à mendicidade. Tudo é reflexo da consciência. [...] Tudo vale pela consciência. Nós não temos outra prova do mundo que nos cerca senão a que resulta do reflexo dele em nós: é a filosofia verdadeira.59 59 ASSIS, Obra completa, vol. 4, p. 1340 (grifo meu).

José Luiz Passos, em recente artigo, propõe uma revisão na premissa de relacionar o valor literário de uma obra à sua capacidade de fornecer informação sócio-histórica. Para ele: "It is through the matching practice of a game played with others that realism builds up its grammar – and not in a abstract homology of structures or the intentional coincidence between things real and represented".60 60 PASSOS, Machado de Assis, MoralImaginationandtheNovel. Acesso em: 21 jun. 2014.

Portanto, como disse, desdenhar o final da crônica como "generalidade atemporal e vazia" poderá significar, salvo engano, negligenciar um aspecto essencial da poética machadiana. Enfim, "o objeto principal de Machado de Assis é o comportamento humano".61 61 BOSI, O enigma do olhar, p. 11. Isso não significa perfilhar um partidarismo bosiano. Longe disso – nem pró-Bosi nem anti-Schwarz; nem devoção nem maldição. Fosse assim, teriam igualmente de rotular-me de moisesmassaudiano: "Buscava [...] divisar o universal no cotidiano de seu tempo. Procurava no acontecimento do dia o permanente, aquilo que se lhe afigurava retratar a essência do ser humano";62 62 MOISÉS, Machado de Assis cronista, p. 110. ou costalimano: "Claro que há dimensão política em Machado, mas está conjugada com outras. É a dimensão humana que conta".63 63 LIMA, Notícias da literatura brasileira no século XXI. Acesso em: 2 ago. 2015. Insisto: o intento deste artigo é fazer reparos à aplicação, a meu ver, mecânica de um método de análise que pode não ser a melhor forma de interpretar o texto machadiano. O universalismo do comportamento humano é que fornece matéria para o localismo dos problemas brasileiros, mediante um outro tipo de historicidade, que transfigura o fato, não é mero reflexo do acontecimento, seja de maneira imediata como em John Gledson, seja mediada pela forma literária como em Roberto Schwarz. E nem por isso o fornecimento é menos pródigo, sortido e eminente. Ele satisfaz de sobejo historiadores ou cientistas políticos.

Referências

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  • 1
    BOSI, Brás Cubas em três versões, p. 51.
  • 2
    SCHWARZ, Leituras em competição, p. 12.
  • 3
    Idem, p. 20.
  • 4
    Idem, p.12.
  • 5
    Idem, p. 20.
  • 6
    Idem, p. 19.
  • 7
    Idem, p. 17.
  • 8
    Idem, p. 16.
  • 9
    WOOD, Master among the Ruins, p. 297.
  • 10
    WOOD, Entre Paris e Itaguaí, p. 188, 189.
  • 11
    SCHWARZ, cit., p. 29, 30.
  • 12
    ASSIS, Páginas recolhidas, p. 154.
  • 13
    ALENCAR, Advertência, p. 5.
  • 14
    SCHWARZ, cit., p. 39, grifo meu.
  • 15
    GLEDSON, [Comentário à crônica de 5 de agosto de 1894], p. 211.
  • 16
    Idem, p. 31.
  • 17
    Idem, p. 32.
  • 18
    Idem, p. 31.
  • 19
    ASSIS, Obra completa, vol. 4, p. 1216.
  • 20
    SCHWARZ, cit., p. 31.
  • 21
    Idem, p. 32.
  • 22
    SODRÉ, A história da imprensa no Brasil, p. 224.
  • 23
    SCHWARZ, cit., p. 30, 31.
  • 24
    Idem, p. 40.
  • 25
    Idem, p. 41; grifos do autor.
  • 26
    Idem, p. 43.
  • 27
    Idem, p. 40.
  • 28
    Ibidem.
  • 29
    Idem, p. 25.
  • 30
    Idem, p. 26.
  • 31
    Idem, p. 36.
  • 32
    Idem, p. 42.
  • 33
    Idem, p. 43.
  • 34
    BOSI, cit., p. 64.
  • 35
    ASSIS, A Semana, p. 108.
  • 36
    ASSIS, Obras completas, vol. 4, p. 1066.
  • 37
    Idem, p. 1151.
  • 38
    Idem, p. 1216.
  • 39
    Idem, p. 1218.
  • 40
    Ibidem.
  • 41
    Idem, p. 1219.
  • 42
    LUKÁCS. Balzac: Les Illusions Perdues, p. 119.
  • 43
    PEREIRA, Machado de Assis: ensaios e apontamentos avulsos, p. 149.
  • 44
    Idem, p. 31.
  • 45
    SCHWARZ, cit., p. 31.
  • 46
    ASSIS, Obra completa, vol. 3, p. 1329, 1330.
  • 47
    CANDIDO, Vários escritos, p. 31.
  • 48
    ASSIS, Esaú e Jacó, p. 226.
  • 49
    ASSIS, Obras completas, vol. 4, p. 1091, 1092.
  • 50
    SCHWARZ, cit., p. 37.
  • 51
    TEIXEIRA, Introdução, p. 21, 22.
  • 52
    ASSIS, Esaú e Jacó, cit., p. 274.
  • 53
    ASSIS, Obra completa, cit., p. 1056.
  • 54
    PASSOS, Romance com pessoas, p. 100.
  • 55
    Idem, p. 199.
  • 56
    ASSIS, Páginas recolhidas, cit., p. 13.
  • 57
    CHALHOUB, A crônica machadiana: problemas de interpretação, temas de pesquisa, p. 235.
  • 58
    ASSIS, A Semana, p. 281.
  • 59
    ASSIS, Obra completa, vol. 4, p. 1340 (grifo meu).
  • 60
    PASSOS, Machado de Assis, MoralImaginationandtheNovel. Acesso em: 21 jun. 2014.
  • 61
    BOSI, O enigma do olhar, p. 11.
  • 62
    MOISÉS, Machado de Assis cronista, p. 110.
  • 63
    LIMA, Notícias da literatura brasileira no século XXI. Acesso em: 2 ago. 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2016

Histórico

  • Recebido
    09 Abr 2015
  • Aceito
    19 Jan 2016
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