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RESENHA DE O NÁUFRAGO DA EXISTÊNCIA: MACHADO DE ASSIS E ARTHUR SCHOPENHAUER - CARICATURA, PARÓDIA, TRAGÉDIA E ÉTICA ANIMAL, DE JAIR BARBOZA

REVIEW OF O NÁUFRAGO DA EXISTÊNCIA: MACHADO DE ASSIS E ARTHUR SCHOPENHAUER - CARICATURA, PARÓDIA, TRAGÉDIA E ÉTICA ANIMAL, BY JAIR BARBOZA

BARBOZA, Jair. . O náufrago da existência: Machado de Assis e Arthur Schopenhauer - Caricatura, paródia, tragédia e ética animal. São Paulo: Editora Unesp, 2022. 176 p.

Como entender o contínuo e crescente interesse que a obra de Machado de Assis suscita? De um lado, o mérito está, sem dúvida, no próprio autor, cuja genialidade literária urdiu textos que, tendo dialogado com sua época, continuam dialogando com a nossa - é um autor atual, atualíssimo. De outro lado, há a recepção de sua obra, que, tendo atraído críticos renomados, como Raymundo Faoro, Antonio Candido, Alfredo Bosi e Roberto Schwarz, segue desafiando novos intérpretes, que buscam, a seu modo, lançar novas perspectivas hermenêuticas em busca de capturar uma nova compreensão possível. Como pontuou Hélio de Seixas Guimarães (2008GUIMARÃES, Hélio de Seixas. O escritor que nos lê. Cadernos de Literatura Brasileira: Machado de Assis, Rio de Janeiro, n. 23/24, p. 273-292, jul. 2008.), Machado de Assis cifrou uma condição nacional que tem desafiado seus leitores a recompor os cacos de um espelho propositadamente estilhaçado por ele. No entanto, conclui o crítico, a imagem vista nesse espelho parcialmente recomposto é a dos próprios intérpretes. E acrescento: que colocam na obra machadiana o sentido que querem pescar.

É o caso desta nova, instigante e criativa interpretação de Quincas Borba presente no livro O náufrago da existência: Machado de Assis e Arthur Schopenhauer - Caricatura, paródia, tragédia e ética animal, de Jair Barboza (2022BARBOZA, Jair. O náufrago da existência: Machado de Assis e Arthur Schopenhauer. Caricatura, paródia, tragédia e ética animal. São Paulo: Editora Unesp, 2022.), publicado pela Editora Unesp. Com pós-doutorado na Universität Hamburg e na Universität Frankfurt, o autor é mestre e doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo, tradutor e comentador da obra de Schopenhauer.

Jair Barboza não é o primeiro a relacionar Machado de Assis à filosofia - Alcides Maya, Alfredo Pujol, Augusto Meyer, Afrânio Coutinho e Miguel Reale seguiram essa senda -, nem mesmo o primeiro a aproximar Machado de Assis de Schopenhauer, mas é o primeiro a lançar a hipótese de que Quincas Borba, que aparece em Memórias póstumas de Brás Cubas e cede seu nome tanto ao romance homônimo como ao cachorro herdado por Rubião, é uma caricatura e paródia de Arthur Schopenhauer e sua filosofia pessimista.

A demonstração dessa tese, ou sua tentativa, é realizada pela forma ensaio, que, de acordo com o autor, além de evitar excessos de citações e notas, foi escolhida por "abrir espaço para a liberdade de fantasia com vistas a operar simultaneamente com conceitos metafísicos, cenas e personagens literárias, retratos, desenhos, fotografias, anedotas etc." (BARBOZA, 2022BARBOZA, Jair. O náufrago da existência: Machado de Assis e Arthur Schopenhauer. Caricatura, paródia, tragédia e ética animal. São Paulo: Editora Unesp, 2022., p. 21). Escolha acertada, a forma ensaística e o estilo ao mesmo tempo rigoroso e inquieto, acurado e vivaz presenteiam a leitora e o leitor com uma prosa envolvente, às vezes provocativa, que salta da biografia para a filosofia e desta para a ficção ao longo de dez capítulos estriados de numerosas e breves seções.

O ponto de partida é o espólio da biblioteca machadiana, cuja seção de filosofia é maiormente ocupada por obras de Schopenhauer e Voltaire. Mas não é somente o pensamento do filósofo germânico que interessou o escritor brasileiro, também sua biografia, lida no livro de Jean Bourdeau, Pensées et fragments. Vie de Schopenhauer. Sa correspondance, publicado em 1880, um ano antes da versão definitiva de Memórias póstumas, "em que entra em cena o filósofo Quincas Borba de Barbacena, autor de uma esquisita filosofia chamada Humanitismo" (BARBOZA, 2022BARBOZA, Jair. O náufrago da existência: Machado de Assis e Arthur Schopenhauer. Caricatura, paródia, tragédia e ética animal. São Paulo: Editora Unesp, 2022., p. 18). Machado, portanto, conhecia o perfil do filósofo nascido em Danzig, descrito por Bourdeau como um gênio marcado pela loucura, pela oscilação entre o humor violento e as manias de perseguição, que redigia as suas notas de negócio em grego e latim para evitar golpes financeiros e que tornou seu cão um dos herdeiros testamentários.

Desse modo, para Jair Barboza, assim como Voltaire caricaturou a figura de Leibniz em Cândido ou o otimismo, Machado de Assis teria feito o mesmo com Schopenhauer por meio de Quincas Borba (ambos loucos, autores de uma singular filosofia e que tornaram herdeiro o cão). Teria também parodiado, no Humanitismo, sistema filosófico criado por Quincas Borba, o pessimismo metafísico de Schopenhauer.

É essa a tese que o livro busca demonstrar por meio da articulação de três partes: I - Caricatura, II - Paródia, III - Tragédia e ética animal. Na primeira parte, após uma breve definição do termo "caricatura", o autor investe no resumo biográfico de Schopenhauer e na apresentação da personagem Quincas Borba, ressaltando os pontos de contato, como a afeição pelo cachorro, uma filosofia sistêmica em quatro partes, regida por um monismo metafísico (a Vontade e o Humanitismo), e os traços de loucura.

Com amplo conhecimento da obra de Schopenhauer, o autor recorre, na segunda parte do livro, a filósofos da Antiguidade e a exemplos modernos para caracterizar a paródia, sintetizar os conceitos norteadores do filósofo germânico e expor os pontos de contato com o Humanitismo, que realizaria uma "inversão teórica do pessimismo" (BARBOZA, 2022BARBOZA, Jair. O náufrago da existência: Machado de Assis e Arthur Schopenhauer. Caricatura, paródia, tragédia e ética animal. São Paulo: Editora Unesp, 2022., p. 90).

Para ilustrar sua argumentação, ele cita uma passagem do livro Quincas Borba, na qual um jornal noticia a morte do filósofo de Barbacena:

Era homem de muito saber, e cansava-se em batalhar contra esse pessimismo amarelo e enfezado que ainda nos há de chegar aqui um dia; é a moléstia do século. A última palavra dele foi que a dor era uma ilusão, e que Pangloss não era tão tolo como o inculcou Voltaire... (ASSIS, 2012ASSIS, Machado de. Quincas Borba. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. apud BARBOZA, 2022BARBOZA, Jair. O náufrago da existência: Machado de Assis e Arthur Schopenhauer. Caricatura, paródia, tragédia e ética animal. São Paulo: Editora Unesp, 2022., p. 90, grifos do original)

Para Barboza, "esse pessimismo amarelo e enfezado" é uma referência à doutrina de Schopenhauer, em relação à qual, ao sentenciar seu otimismo metafísico - "todas as coisas são boas", "não existe mal no mundo" -, Quincas Borba se oporia, por meio de uma "paródia filosófica por inversão" (p. 106, grifos do original).

É um argumento válido e potente, ainda mais se tivermos em conta que tanto Rubião quanto o cão Quincas Borba, que prolongaria a existência do filósofo, têm fim trágico. No entanto, cabe-nos perguntar se não haveria aqui muito mais uma paródia ao otimismo, inspirada pelo Pangloss de Voltaire, do que propriamente à filosofia de Schopenhauer. Pois, se de fato o pensamento deste aparece invertido, não estaria Machado de Assis anulando o pessimismo metafísico de Schopenhauer? Dizer que todas as coisas são boas, como o faz o filósofo de Barbacena, não equivaleria a exagero idêntico de se afirmar que "o mundo cheira a enxofre e a terra é o próprio inferno", como fez Schopenhauer? Aliás, não é no conto "A igreja do Diabo" que Machado adverte, pela boca de Deus, sobre a eterna contradição humana?

Se Quincas Borba é Arthur Schopenhauer e seu otimismo a inversão do pessimismo, como o livro O náufrago da existência defende, que relação haveria entre o Humanitismo e a Vontade? Sem serem equivalentes, tampouco parece sustentável que sejam opostos. Ambos, no entanto, apelam ao monismo como princípio metafísico que opera por trás da realidade. Schopenhauer reduz a diversidade visível do real, representação do mundo, à Vontade, impulso cego que justifica o sofrimento, enquanto Borba, pelo princípio do Humanitismo, afirma que a dor é uma ilusão, ainda que a realidade dos vencidos, como Rubião, ateste que não.

Não seria possível enxergar no Humanitismo uma paródia à própria metafísica, inclusive a de Schopenhauer? Não estaria Machado, como um filósofo avant la lettre, questionando não propriamente, ou não somente, a filosofia de Schopenhauer, mas os filósofos metafísicos de modo geral, que teimam em ancorar seus princípios fora do mundo e da realidade?

Essa hipótese não é examinada no livro em questão, mas pode ser farejada na análise que faz da crônica "O autor de si mesmo", na qual Machado se refere à metafísica do amor sexual de Schopenhauer para explicar que a culpa da morte de Abílio, um bebê de dois anos, pelo abandono dos pais, é justamente dele, já que "o casal não escolhe formar-se, mas é inconscientemente formado por alguém que quer nascer" (BARBOZA, 2022BARBOZA, Jair. O náufrago da existência: Machado de Assis e Arthur Schopenhauer. Caricatura, paródia, tragédia e ética animal. São Paulo: Editora Unesp, 2022., p. 63).

A incongruência que compõe a ironia machadiana baseia-se, de um lado, na metafísica de o amor sexual de Schopenhauer mostrar uma nova vida que quer viver e escolhe o veículo do seu nascimento; de outro, no absurdo dessa escolha malfeita no próprio domínio da onisciência, o metafísico, em que está inserida a Ideia da futura criança. Quer dizer, tem-se aqui o caso estranho de uma criança que errou, mesmo habitando o mundo verdadeiro. A Ideia e a realidade não se casaram no casamento de Guimarães e Cristina. (BARBOZA, 2022BARBOZA, Jair. O náufrago da existência: Machado de Assis e Arthur Schopenhauer. Caricatura, paródia, tragédia e ética animal. São Paulo: Editora Unesp, 2022., p. 66).

De fato, "a Ideia e a realidade não se casaram", como constata o autor, o que, se não rechaça integralmente a filosofia de Schopenhauer, ao menos zomba do caráter metafísico da Vontade, do mesmo modo que o Humanitismo parodia o modus operandi dos filósofos metafísicos.

Contudo, essas questões não são aventadas no ensaio, que também ignora, com exceção de duas ou três referências, a fortuna crítica machadiana, o que frustra o leitor interessado em cotejar sua interpretação com a de outros hermeneutas. Isso se evidencia com mais força quando o autor vê em Quincas Borba cachorro a "inspiração" para a Baleia de Graciliano Ramos e o burrinho pedrês Sete-de-Ouros de Guimarães Rosa. A ausência de teóricos da literatura torna frágil a relação estabelecida entre as obras, ainda que haja sustentação filosófica para o debate sobre a ética animal.

E é justamente aí que reside uma qualidade original da leitura de Barboza: a relação entre tragédia e ética animal, desenvolvida na terceira parte de sua obra. O trágico é conceituado pelos olhos do filósofo alemão, que caracteriza três tipos de manifestação: pela maldade extraordinária de um caráter, como em Otelo; pelo destino cego, como em Édipo rei; ou pela mera disposição mútua das pessoas, quando, nas palavras de Schopenhauer (2015SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e representação. Trad. Jair Barboza. Tomo I. 2a ed. rev. São Paulo: Editora Unesp , 2015., p. 294 apud BARBOZA, 2022BARBOZA, Jair. O náufrago da existência: Machado de Assis e Arthur Schopenhauer. Caricatura, paródia, tragédia e ética animal. São Paulo: Editora Unesp, 2022., p. 154),

[...] não se faz preciso um erro monstruoso, nem um acaso inaudito, nem um caráter malvado acima de toda medida, que atinge os limites da perversidade humana, mas aqui caracteres moralmente comuns nas circunstâncias do dia a dia são dispostos em relação uns aos outros de uma tal maneira que a sua situação os compele conscientemente a tramar a maior desgraça uns dos outros, sem que com isso a injustiça recaia exclusivamente de um lado.

É o que acontece com Rubião, mas também com Quincas Borba cachorro, que se destaca como "um sujeito de direito. Apesar de não ter a potência da faculdade de razão, faz-se entendido tanto pelo olhar quanto pelo sentimento" (BARBOZA, 2022BARBOZA, Jair. O náufrago da existência: Machado de Assis e Arthur Schopenhauer. Caricatura, paródia, tragédia e ética animal. São Paulo: Editora Unesp, 2022., p. 147). Há aí, portanto, uma ética que aproxima humanos de outras espécies por meio de uma simpatia universal, tal como pensada por Schopenhauer e escrita por Machado de Assis, que traduziu como poucos as ideias dos animais, não só de Quincas Borba, mas também de burros, águias e hipopótamos.

Referências

  • ASSIS, Machado de. Quincas Borba. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
  • BARBOZA, Jair. O náufrago da existência: Machado de Assis e Arthur Schopenhauer. Caricatura, paródia, tragédia e ética animal. São Paulo: Editora Unesp, 2022.
  • GUIMARÃES, Hélio de Seixas. O escritor que nos lê. Cadernos de Literatura Brasileira: Machado de Assis, Rio de Janeiro, n. 23/24, p. 273-292, jul. 2008.
  • SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e representação. Trad. Jair Barboza. Tomo I. 2a ed. rev. São Paulo: Editora Unesp , 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    21 Set 2022
  • Aceito
    18 Out 2022
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